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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.46  São Paulo  2020  Epub 19-Fev-2020

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202046215302 

Artigos

A poesia nos livros didáticos de português de Moçambique e Brasil: um estudo comparativo 1

Poetry in Portuguese textbooks of Mozambique and Brazil: a comparative study

José de Sousa Miguel Lopes2 
http://orcid.org/0000-0002-0015-0100

2 - Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), Belo Horizonte , MG , Brasil . Contato: miguel-lopes@uol.com.br.


Resumo

Neste texto será feita uma análise a respeito do modo como se configuram as representações dos professores em relação às poesias presentes nos livros didáticos de português de Moçambique e Brasil, procurando compreender as práticas de escolarização da leitura do texto poético e a sua importância para a formação dos jovens. A pesquisa é de caráter qualitativo. Foram analisados textos poéticos em quatro livros didáticos de português (dois de Moçambique e dois do Brasil). Entre os vários aspectos, tomaram-se em conta representações sociais que poderiam emergir nos livros didáticos. Para além da pesquisa bibliográfica, foram coletados dados por meio de entrevistas semiestruturadas com 16 professores, sendo oito pertencentes a quatro escolas de Moçambique e oito pertencentes a quatro escolas do Brasil. O objetivo era compreender a importância que os professores atribuem à poesia e como realizam o trabalho poético com seus alunos. A despeito do fenômeno da globalização, que estilhaça as fronteiras nacionais, o nacional continua a induzir a formação de narrativas (neste caso, poéticas), com o fim de ser ele o gerador da identidade oficial. Considerando o fato de os livros didáticos se constituírem em um instrumento que dá visibilidade a práticas de letramento e a modos de ler os textos por elas instituídos, espera-se que esta pesquisa contribua para que a poesia não seja apenas um elemento importante na formação de professores e alunos, mas que possa também contribuir para a reflexão acerca da formação dos leitores.

Palavras-Chave: Poesia; Livros didáticos de português; Moçambique; Brasil

Abstract

In this paper an analysis will be conducted as to how the representations of teachers are configured in relation to the poetry present in the Portuguese textbooks of Mozambique and Brazil, seeking to understand the schooling practices of reading poetic texts and its importance in the formation of young people. The research is qualitative. Poetic texts were analysed in four Portuguese textbooks (two from Mozambique and two from Brazil). Among the various aspects, social representations that could emerge in textbooks were taken into account. In addition to bibliographic research, data were collected through semi-structured interviews with 16 teachers, eight from four schools in Mozambique and eight from four schools in Brazil. The goal was to understand the importance that teachers attach to poetry and how poetic work is conducted with their students. Despite the phenomenon of globalization, which shatters national boundaries, the national continues to induce the formation of narratives (in this case, poetic narratives), in order to generate official identity. Considering the fact that textbooks are an instrument that gives visibility to literacy practices and ways of reading the texts they institute, it is expected that this research will contribute to the fact that poetry is not just an important element in the formation of teachers and students, but can also contribute to the reflection about the readers’ formation.

Key words: Poetry; Portuguese textbooks; Mozambique; Brazil

Introdução

Inúmeras influências que vieram de Moçambique para o Brasil e àquele país precisam ser estudadas. O primeiro e indispensável passo, para promover e tornar visíveis essas mútuas influências, é o de procurar realizar estudos numa perspectiva comparada reescrevendo o passado e o presente dessas duas realidades culturais. Assim, a história é chamada a fornecer a chave do enigma que revela a identidade de cada um. É a história que precisa ser evocada para situar, exatamente, a procura das identidades africana e afro-americana.

Um campo com muitas potencialidades a explorar nas sociedades moçambicana e brasileira é o que diz respeito à realidade educacional. São muitas as vertentes de pesquisa que podem ajudar a compreender trajetórias nesse domínio. Uma faceta a explorar é o modo como nos livros didáticos do ensino primário/ensino fundamental em Moçambique e Brasil é tratado o texto poético, visando à formação do leitor.

Através da sociedade, da interação e das relações pessoais, o indivíduo encontra a expressão de sua subjetividade. No compartilhar da intersubjetividade, o ser humano adquire a certeza da realidade vivida e percebe a diferença entre a sua realidade e as outras. A estrutura social é compartilhada pela consciência do senso comum, porque se refere a um mundo que é comum a muitos indivíduos.

Face ao exposto, serão inicialmente discutidas algumas questões de ordem teórico-metodológica que orientaram a realização desta pesquisa. Serão abordados os modos como se configuram as representações das poesias presentes nos livros didáticos de português de Moçambique e Brasil. Igualmente, far-se-á uma abordagem das falas dos professores dos dois países acerca do modo como trabalham a poesia com seus alunos. Considerando o fato de os livros didáticos se constituírem em um instrumento que dá visibilidade a práticas de letramento e a modos de ler os textos por elas instituídos, espera-se que esta pesquisa contribua não apenas como um elemento indispensável à formação dos professores e dos alunos na arte da poesia, mas também que possa contribuir para a reflexão sobre a formação dos leitores.

Discussão teórico-metodológica

Ao pensar na escola enquanto espaço privilegiado de formação de leitores, tendo o professor como mediador das experiências leitoras, faz-se necessário refletir acerca da importância de se trabalhar com diferentes categorias textuais, para que esse leitor em formação estabeleça relações significativas entre a leitura e as situações comunicativas.

Uma dessas categorias textuais que pretendemos pesquisar é a poesia. Muitos professores trabalham com a poesia infantil por ela ser geralmente curta e de fácil aplicação em sala de aula. Além disso, por apresentar estruturas que brincam com o ritmo e a musicalidade, torna-se muito atrativa às crianças, sendo uma categoria textual capaz de despertar leitores de qualquer faixa etária. Textos poéticos mais complexos, de poetas nacionais e estrangeiros, e utilizados em faixas etárias mais altas (sobretudo nas últimas classes/anos 3 do ensino primário/fundamental 4 ) são um poderoso fator para o domínio da língua. Embora todos esses motivos sejam relevantes, não constituem a principal razão que nos levou a destacar o poema como um gênero privilegiado da literatura a ser estimulado em sala de aula.

A poesia, antes de tudo, é a transfiguração da realidade em expressão de beleza e de contemplação emocional. Ela desperta a sensibilidade e os valores estéticos. Aprimora as emoções e a sensibilidade, aguça sensações. Brinca com múltiplos significados, materializa o prazer, torna a criança receptiva às manifestações de beleza. É comunicação, fonte de saber. É profundidade.

Observando a poesia de autores moçambicanos, brasileiros e não só, presente nos livros didáticos de língua portuguesa de Moçambique e Brasil, dois países situados em continentes diferentes, mas originários da mesma matriz colonial, pode revelar-se desafiador na perspectiva de observar como estão sendo operacionalizadas na sala de aula as propostas de leitura aos leitores-alunos. Isso implicará procurar conhecer as histórias de leitura que ocorrem no interior da escola, de um determinado tempo (os anos de 2010 e 2011) e lugar (na cidade de Maputo, a capital de Moçambique e na cidade de Belo Horizonte, a capital do Estado de Minas Gerais).

Visa-se a analisar o modo como são representados os poemas nos livros didáticos moçambicanos e brasileiros procurando compreender as práticas de escolarização da leitura do texto poético e a sua importância para a formação dos jovens. Isso implicou:

  • Realizar um levantamento dos poemas/poetas que mostrem a seleção escolar da literatura poética considerada importante para a formação dos jovens;

  • Identificar que figura de leitor é pensada, imaginada, inscrita nas propostas de poemas inseridos nos livros didáticos;

  • Analisar como os professores trabalham o texto poético (frequência, receptividade).

  • Analisar as dificuldades encontradas pelos professores e as condições oferecidas pela escola no desenvolvimento dessas atividades; e

  • Identificar a preferência dos alunos em relação aos autores apresentados pelos professores em suas aulas.

A pesquisa é de caráter qualitativo. Foram analisados os textos poéticos em um total de quatro livros didáticos de português (dois de Moçambique e dois do Brasil). A análise incidiu no:

  • Levantamento de dados históricos, geográficos e biográficos presentes nos poemas;

  • Classificação dos dados sociais (históricos, políticos e geográficos) ou culturais (artísticos ou religiosos);

  • Sintetização dos fatos políticos e sociais identificados a partir das análises dos poemas;

  • Realização de pesquisa biográfica de autores (as) dos poemas tendo em conta o período histórico, países e as regiões a que pertencem dentro de cada país; e

  • Levantamento das atividades propostas para os alunos, a partir da sua leitura.

Entre os aspectos analisados, tomaram-se em conta várias representações sociais que poderiam emergir nos livros didáticos, a saber: a afirmação da identidade, as especificidades da natureza, o universo da tradição oral em Moçambique/o predomínio da cultura escrita no Brasil, a luta anticolonial em Moçambique/luta pela cidadania no Brasil.

Para além da pesquisa bibliográfica, foram igualmente coletados dados por meio de entrevistas semiestruturadas com 16 professores: 8 de quatro escolas de Moçambique e 8 de escolas do Brasil:

  • Quatro (4) escolas do 2º grau do Ensino Primário: em duas turmas da 6ª classe e duas turmas da 7ª classe na cidade de Maputo (Moçambique), no 2º semestre de 2010.

  • Quatro (4) escolas da 7 o e 8 o anos do Ensino Fundamental: duas turmas da 7 o ano e duas turmas da 8 o ano na cidade de Belo Horizonte (Brasil), no 1º semestre de 2011.

O nível de ensino pesquisado foi definido tomando como referência a faixa etária dos alunos, que foi igual nos dois países pesquisados. Em ambos os países, os alunos que têm, em média, 13 a 14 anos de idade e encontram-se inseridos nos seguintes níveis de ensino: Moçambique: 2º grau do Ensino Primário (6ª e 7ª classes); Brasil: Ensino fundamental (7 o e 8 o anos).

A problemática das representações

A separação entre o indivíduo e o social não é um processo exclusivo da psicologia. Durkheim (1989) ao propor tal divisão procurava dar conta de um todo, mas se fundamentava em uma concepção de que as regras que comandam a vida individual (representações individuais) não são as mesmas que regem a vida coletiva (representações coletivas).

Mas deve-se fazer uma distinção entre representações sociais e coletivas, como definidas por Durkheim (1989) . Sperber (1985) faz uma analogia com a medicina, dizendo que a mente humana é susceptível de representações culturais, do mesmo modo que o corpo humano é suscetível a doenças.

Para Moscovici (1994) , o conceito de representação social tem origem na Sociologia e na Antropologia, através de Durkheim e Lévi-Bruhl. Também contribuíram para a criação da teoria das representações sociais a teoria da linguagem, de Saussure, a teoria das representações infantis, de Piaget, e a teoria do desenvolvimento cultural, de Vygotsky.

Moscovici resgata do emaranhado de conceitos sociológicos e psicológicos a definição de representação social, que para ele é “uma modalidade de conhecimento particular que tem por função a elaboração de comportamentos e a comunicação entre os indivíduos.” (MOSCOVICI, 1978, p. 20).

Outra contribuição ao desenvolvimento das ciências sociais e da psicologia social foi a linha de pesquisas da Escola de Frankfurt, através de um conjunto de ideias e interpretações da sociedade elaboradas durante a década de 1930 por um grupo de pesquisadores alemães. Entre eles encontravam-se grandes nomes das ciências sociais alemãs do século XX, como Max Horkheimer, Theodor Adorno, Herbert Marcuse e o psicólogo Erich Fromm, entre outros. Entre os mais recentes membros da escola encontra-se Jürgen Habermas. Para eles, o valor de uma teoria depende de sua relação com a prática, ou seja, para ser relevante uma teoria social tem de estar relacionada a uma ação criadora, diversa do comportamento resultante da pressão de forças externas, remotas ao controle do homem, situação considerada característica do sistema capitalista. A prática se oporia, dessa maneira, à simples ação pela ação e estaria numa relação dialética com a teoria.

Moscovici não aceita a ideia de que grupos e indivíduos estejam sempre e completamente sob o domínio ideológico de classes sociais, do estado, da igreja ou de escolas. A verdadeira dimensão dos seres humanos seria a de pensadores autônomos e produtores constantes de suas representações, para quem as “ciências e as ideologias não são mais que alimentos para o pensamento” (MOSCOVICI, 1981, p. 183).

A formação das representações sociais a partir da realidade da vida cotidiana constitui uma grande força para que essas possam ser tratadas e reconhecidas como conhecimento pela sociedade. Isto porque a realidade da vida cotidiana apresenta-se como a realidade por excelência, já que, sendo decorrente das relações que o ser humano mantém no dia a dia com o mundo, tem um caráter predominantemente impositivo e urgente para a consciência. Sendo assim, o indivíduo experimenta a vida diária em um estado total de atenção, que lhe permite apreendê-la de forma normal e natural ( BERGER; LUCKMANN, 1987 ).

As representações nos livros didáticos

Importa desde já esclarecer que se entende por livro didático a concepção que refere “o material impresso, estruturado, destinado ou adequado a ser utilizado num processo de aprendizagem ou formação” (OLIVEIRA; GUIMARÃES; BOMÉNY, 1984, p. 11). Nesse sentido, os livros didáticos devem ser vistos como artefatos culturais que fabricam significados e sentidos em meio a redes de poder e verdade, discursivamente tecidas. São máquinas históricas dos saberes, lugares de verdades cientificamente estabelecidas, que produzem, fazem circular e consolidam significados sobre diversas questões da realidade social.

Assim, é necessário e relevante olhar para os livros didáticos tentando localizar: quais formas de representação são legitimadas; quais formas de conhecer são válidas e quais não são; quais grupos sociais podem representar a si mesmos e aos outros tomando a si próprios como referência; como são construídos os sentidos de pertencimento e exclusão; e como são estabelecidas as fronteiras sociais que demarcam posições e funções ancoradas nas diferenças étnicas. E o que ocorre nos livros didáticos quando se procuram estudar algumas representações? Que representações são essas? De que modo podem ser questionadas?

Os livros didáticos, como campos de produção do saber, estão moldados por relações de poder que constituem os discursos, de variada natureza, ali inscritos. Eles são produto de um lugar que os molda por inúmeros processos e agentes. O conhecimento ali registrado, oficializado como saber, é o que está sendo trabalhado na escola. Instituem os discursos que entram em cena para constituir as identidades, mantendo e perpetuando formas de significação.

Alguns desses discursos estão perpassados por estereótipos. Nesse sentido, importa verificar quais os mecanismos que, implícita ou explicitamente, operam para naturalizar tais tipos de representações.

De acordo com Louro (1997) , os materiais didáticos repercutem as desigualdades, sendo produtos e produtores delas. Para a autora, os:

[...] currículos, normas, procedimentos de ensino, teorias, linguagem, materiais didáticos, processos de avaliação são, seguramente, loci das diferenças de gênero, sexualidade, etnia, classe – são constituídos por essas distinções e, ao mesmo tempo, seus produtores. ( LOURO, 1997 , p. 64).

Importa ressaltar que essas reflexões dizem respeito às representações dos professores relativamente ao ensino de poesia presente nos livros didáticos, não estando incluídas as histórias da leitura, tendo em vista que os alunos leitores em formação não fizeram, efetivamente, parte da pesquisa desenvolvida.

Após essa digressão de ordem teórica acerca das representações e como essas se configuram nos livros didáticos, é chegado o momento de se analisar o modo como se configura a poesia nos livros didáticos de Moçambique e Brasil.

A análise da poesia nos livros didáticos de Moçambique

Cada poema foi analisado tendo em conta alguns dados biográficos de seu respectivo autor, o contexto em que o poema foi escrito, a temática (histórica, política, social, geográfica, cultural, artística, religiosa), o âmbito (local, regional, nacional, universal), se é ou não acompanhado de imagens ou outros aspectos gráficos, as características comportamentais atribuídas aos grupos, a possível interdependência entre os papéis sociais, os eventuais estereótipos reproduzidos pelos autores dos poemas inseridos nos livros didáticos e, finalmente, a sintetização dos fatos políticos, sociais e culturais identificados a partir das análises dos poemas.

Para os objetivos deste texto, fez-se um recorte em que foram sintetizadas apenas algumas características dos poemas: a nacionalidade dos autores, a época em que foram escritos os poemas, o caráter nacionalista ou universal dos poemas, o modo como as estruturas governamentais em Moçambique e Brasil têm entendido o papel a desempenhar pelo livro didático, se os poemas inseridos nos livros didáticos se apresentam de forma integral ou sob a forma de fragmentos e se as letras de músicas e demais poemas estão harmoniosamente distribuídos entre as várias unidades temáticas.

Assim, esta digressão será iniciada com a análise dos poemas dos livros didáticos de língua portuguesa da 6ª e 7ª classes. O primeiro que será analisado é o livro da 6 a classe, que tem o título Aprender a comunicar , de Álvaro D. Cavete, Marcolino C. Cuta e Carlos Zimba (s/d). Trata-se de livro didático único, portanto, adotado para todo o país. O livro tem sete poemas, de cinco autores, originários de três países. Dos sete poemas, há uma clara predominância de autores africanos (cinco) dos quais quatro são moçambicanos. Dois autores (um português e um moçambicano) estão representados com dois poemas.

Os poemas foram escritos em diferentes épocas:

  • Dois no início da década de 60 (autor moçambicano e angolano);

  • Um na década de 70 (autor português);

  • Três na década de 80 (autor moçambicano e português); e

  • Um na década de 90 (autor moçambicano).

Os poemas foram depois analisados e apresentados pela ordem em que se encontram no livro didático. Em resumo, dos sete poemas constantes do livro didático de Língua Portuguesa da 6ª classe, constata-se uma predominância de poemas de caráter nacionalista (quatro). Dois poemas têm um caráter universal e um poema uma mescla de caráter nacionalista e de caráter universal.

Em seguida foi analisado o livro didático da 7ª classe, que tem o título Regras de comunicação . São seus autores: Simião Muhate, Sandra Maurana, Clementina Massango e Filipe Macie (s/d). O livro tem nove poemas, de nove autores nomeados e três autores desconhecidos. Os autores nomeados são originários de dois países (Moçambique e Portugal). Dos nove poemas há uma predominância de autores africanos (cinco), todos moçambicanos. Dois autores são portugueses. Os poemas foram escritos em diferentes épocas:

  • Um em meados da década de 60 (autor português);

  • Dois na década de 80 (autores moçambicanos);

  • Um no início dos anos 2000 (autor moçambicano); e

  • A maioria dos poemas (cinco) desconhece-se a data de sua produção.

Os poemas foram depois analisados e apresentados pela ordem em que se encontram no livro didático. Em resumo, dos nove poemas constantes do livro didático de Língua Portuguesa da 7ª classe, constata-se uma predominância de poemas de caráter simultaneamente nacionalista e universal (cinco). Três poemas têm um caráter universal.

A análise da poesia nos livros didáticos do Brasil

Tal como foi feito com a análise dos poemas dos livros didáticos de Moçambique, foram abordados os mesmos aspectos em relação aos livros didáticos do Brasil. Em relação à dicotomia poetas nacionalistas/poetas universais, importa referir que a pesquisa não incidiu sobre as representações feitas pelos alunos. Neste sentido, esteve fora de nosso foco de investigação como tal dicotomia contribuiu, ou não, para a formação estética de leitores. Esta questão merece, certamente, o desenvolvimento de novas pesquisas.

Assim, essa digressão se iniciará com a análise dos poemas dos livros didáticos de língua portuguesa da 7 o e 8 o anos. O primeiro tem o título Textos & linguagens , de Márcia de Benedetto Aguiar Simões e Maria Inês Cândido dos Santos. O livro tem quatro poemas, todos de autores brasileiros, sendo dois autores da área da literatura e dois da área musical. Os poemas foram escritos em diferentes épocas: dois na década de 60 e dois na década de 80.

Os poemas foram depois analisados e apresentados pela ordem em que se encontram no livro didático. Dos quatro poemas constantes do livro didático de Língua Portuguesa da 7 o ano, três poemas têm um caráter simultaneamente nacional e universal e um poema tem caráter universal.

Em seguida, foi analisado o livro didático de Língua Portuguesa da 8 o ano Textos & linguagens , de Márcia de Benedetto Aguiar Simões e Maria Inês Cândido dos Santos. O livro tem quatro poemas, todos de autores brasileiros, sendo três da área da literatura e um da área musical. Os poemas foram escritos em diferentes épocas: um na década de 60, um na década de 80 e dois na década de 90.

Os poemas foram depois analisados e apresentados pela ordem em que se encontram no livro didático. Em resumo, dos quatro poemas constantes do livro didático de Língua Portuguesa da 8 o ano, três têm um caráter universal e um poema tem caráter nacional.

Refletir acerca das contribuições do fazer poético e seus desafios no viver contemporâneo requer conceber esse fazer para além da ideia de verdade absoluta e puramente racional. A educação estética, como se sabe, efetiva-se mediante a formação integral do ser humano, num processo em que coloca em jogo o próprio ser humano que dela participa, como um todo, articulando um diálogo entre razão e a emoção, entre o formal e o sensível.

Moçambique e Brasil: breve análise comparativa dos livros didáticos

Em primeiro lugar, importa colocar o modo como as estruturas governamentais em Moçambique e Brasil têm entendido o papel a desempenhar pelo livro didático.

No caso do Brasil, ao contrário de Moçambique, o Ministério de Educação tem empreendido esforços para que o livro didático “passe a ser entendido como instrumento auxiliar, e não mais a principal e única ferramenta” ( SILVA, 2000 , p. 140). Porém, não se pode esquecer que em algumas regiões do Brasil o acesso a outros meios e materiais é extremamente difícil, quer pela localização geográfica da escola, quer pelas condições financeiras da população local. Esse é também o caso de Moçambique que só há 43 anos conquistou a sua independência. Por esse motivo, o que está contido nos livros didáticos assume, muitas vezes, o estatuto de verdade absoluta, imutável e inquestionável.

Importa salientar que no Brasil existe, desde 1997, o Plano Nacional do Livro Didático (PNLD). Com o Decreto nº 9.099, de 18 de julho de 2017, são unificadas as:

[...] ações de aquisição e distribuição de livros didáticos e literários, anteriormente contempladas pelo Programa Nacional do Livro Didático (PNLD) e pelo Programa Nacional Biblioteca da Escola (PNBE). Com nova nomenclatura, o Programa Nacional do Livro e do Material Didático – PNLD também teve seu escopo ampliado com a possibilidade de inclusão de outros materiais de apoio à prática educativa para além das obras didáticas e literárias: obras pedagógicas, softwares e jogos educacionais, materiais de reforço e correção de fluxo, materiais de formação e materiais destinados à gestão escolar, entre outros. ( BRASIL, 2017 , s. p.).

Outras questões que a análise suscitou: Como se apresentam os poemas nos livros didáticos: poemas integrais ou fragmentos de poemas? Letras de música e poemas distribuídos harmoniosamente entre as várias unidades temáticas? Os poemas estão distribuídos ao longo do livro ou com maior concentração em capítulos específicos destinados à leitura de poemas? Analisar essas diferenças pode contribuir para o redimensionamento de formas cristalizadas e alterar o quadro de inércia, que se repete livro após livro, ano após ano, em eventos escolares voltados para a formação de leitores da poesia.

Ao responder às indagações colocadas no parágrafo precedente, constata-se que nos livros didáticos moçambicanos há uma frequência bastante acentuada em apresentar fragmentos dos poemas ou, até mais grave, a adaptação do texto poético por parte dos organizadores dos livros.

É o caso do poema Dia de feriado , de Maria Cândida Mendonça, incluído na página 119 do livro didático nas quais as partes em itálico foram suprimidas.

Quadro 1 Poema Dia de Feriado (Maria Cândida Mendonça) 

  • Certo dia

  • ao meio-dia

  • à hora de ponta

  • um carro eléctrico resolveu

  • fazer feriado por sua conta...

  • Estou farto farto de trabalhar

  • hoje quero ir passear

  • Dizem que se está bem

  • no jardim de Belém

  • pois vou até lá

  • e vou já a correr

  • sem querer saber

  • do que possam dizer

  • nas paragens,

  • reinava a maior confusão.

  • seria alguma aflição?

  • Onde iria um eléctrico vazio

  • a correr naquele corrupio?

  • Quando chegou a Belém

  • o eléctrico

  • para não dar nas vistas

  • misturou-se com os turistas.

  • Visitou os monumentos

  • e ouviu uma guia

  • muito apressada

  • fazer da História

  • grande baralhada.

  • deixou os turistas

  • e ainda bem

  • pois foi comer

  • pastéis de Belém

  • Comeu meia centena

  • com açúcar e canela

  • e depois voltou a passear

  • e foi ver o mar...

  • Ao cair a noite

  • regressou a Lisboa

  • pela beira-rio

  • sem um lugar vazio

  • e muito contente

  • como toda a gente

  • que de vez em quando

  • em vez de trabalhar

  • vai ver o mar...

Fonte: (SIMÕES; SANTOS, 2006, p. 119).

Ora, isto é uma clara mutilação do texto poético, selecionando o que se considera bom ou mau a ser apresentado aos alunos. Qual o critério desses cortes? A opinião dos organizadores sobre a capacidade de entendimento dos alunos ou sobre o valor estético das partes cortadas? Enfim, um caminho perigoso, que não deve ser recomendado.

Felizmente, não é o caso dos poemas apresentados nos livros didáticos brasileiros. A título de exemplo, cita-se o poema Os poemas , de Mário Quintana (1980), inserido no livro didático na página 37:

Quadro 2 Os poemas , (Mário Quintana,1980) 

  • Os poemas são pássaros que chegam

  • não se sabe de onde e pousam

  • no livro que lês.

  • Quando fechas o livro, eles alçam voo

  • como de um alçapão.

  • Eles não têm pouso

  • nem porto

  • alimentam-se um instante em cada

  • par de mãos e partem.

  • E olhas, então, essas tuas mãos vazias,

  • no maravilhoso espanto de saberes

  • que o alimento deles já estava em ti...

Fonte: (SIMÕES; SANTOS, 2006, p. 119).

E quanto às letras de música e demais poemas, eles são harmoniosamente distribuídos entre as várias unidades temáticas? Como se sabe, a oralidade mantida até meados do século XX nos contos, sobrevivendo de uma maneira mais folclórica do que fundamental nos ditados e provérbios, espalhou-se, vulgarizando-se com bastante frequência nos domínios superpovoados da canção nas sociedades modernas. Parece que se está na presença de uma nova forma de oralidade, digamos midiática, para simplificar, divulgada de forma exponencial pela rádio, a televisão, o telefone/celular e outros artefatos tecnológicos, em detrimento do escrito.

Essa nova forma de oralidade facilitará uma nova e necessária expansão da poesia? Esta é uma questão que extrapolou este estudo, mas que seria interessante elucidar a partir de uma nova pesquisa. O que se pode constatar é que é visível uma maior presença de poemas/canção nos livros didáticos do Brasil (três poemas/canção) do que nos de Moçambique, em que nenhum poema/canção está presente. Exemplifica-se com o poema/canção Alegria, alegria , do cantor Caetano Veloso, que consta do álbum Sem lenço, sem documento , Polygram, 1990, faixa 1.

Quadro 3 Poema-canção Alegria, alegria , de Caetano Veloso 

  • Caminhando contra o vento

  • Sem lenço e sem documento

  • No sol de quase dezembro

  • Eu vou…

  • O sol se reparte em crimes Espaçonaves, guerrilhas

  • Em Cardinales bonitas

  • Eu vou…

  • Em caras de presidentes

  • Em grandes beijos de amor

  • Em dentes, pernas, bandeiras

  • Bomba e Brigitte Bardot…

  • O sol nas bancas de revista Me enche de alegria e preguiça

  • Quem lê tanta notícia

  • Eu vou…

  • Por entre fotos e nomes

  • Os olhos cheios de cores

  • O peito cheio de amores vãos

  • Eu vou

  • Por que não, por que não…

  • Ela pensa em casamento

  • E eu nunca mais fui à escola

  • Sem lenço e sem documento,

  • Eu vou…

  • Eu tomo uma coca-cola

  • Ela pensa em casamento

  • E uma canção me consola

  • Eu vou…

  • Por entre fotos e nomes

  • Sem livros e sem fuzil

  • Sem fome, sem telefone

  • No coração do Brasil…

  • Ela nem sabe até pensei

  • Em cantar na televisão

  • O sol é tão bonito

  • Eu vou…

  • Sem lenço, sem documento

  • Nada no bolso ou nas mãos

  • Eu quero seguir vivendo, amor

  • Eu vou…

  • Por que não, por que não…

  • Por que não, por que não…

  • Por que não, por que não…

  • Por que não, por que não…

Fonte: (SIMÕES; SANTOS, 2006, p. 10).

Constata-se também que os poemas estão distribuídos ao longo do livro e não concentrados em capítulos específicos destinados à leitura de poemas.

Por último, importa destacar que se confirmou a representação social que colocamos como possibilidade de se fazer presente nos livros didáticos dos dois países, a saber: a afirmação da identidade/nacionalidade dos autores e, em decorrência, o caráter nacionalista ou universal dos poemas.

Assim constatou-se que a inserção de autores estrangeiros é nula nos livros didáticos brasileiros. Com efeito, do total de oito poemas dos dois livros analisados, todos são de autores brasileiros. No caso de Moçambique, no total de 16 poemas presentes nos dois livros didáticos, constata-se que seis são de autores estrangeiros. É o caso do poeta português Mario Dionísio (1982) do qual foi selecionado o seu poema Solidariedade , inserido na página 153 do livro didático da 7 o ano, de Simões e Santos (2006 , p. 153).

A parte do poema que não consta no livro didático encontra-se em itálico.

Quadro 4 Solidariedade (Mario Dionísio -1982) 

  • Vamos, deem as mãos.

  • Porquê esse ar de desconfiança?

  • esse medo? essa raiva?

  • Porquê essa imensa barreira

  • entre o Eu e o Nós na natural conjugação do verbo ser?

  • Vamos, deem as mãos.

  • Para quê esses bons-dias, boas-noites,

  • se é um grunhido apenas e não uma saudação?

  • Para quê esse sorriso

  • se é um simples contrair da pele e nada mais?

  • Vamos, deem as mãos.

  • Já que a nossa amargura é a mesma amargura,

  • já que a miséria, para nós, tem as mesmas sete letras,

  • já que o sangrar de nossos corpos é o vergão da mesma chicotada,

  • fiquemos juntos,

  • sejamos juntos.

  • Porquê esse ar de desconfiança? esse medo?

  • essa raiva?

  • Vamos, deem as mãos.

  • Com uma estrela na mão

  • E a palavra no olhar

  • Apenas a emoção

  • De convosco partilhar

  • Um Natal aqui tão perto

  • Que nunca foi descoberto

O esforço para chamar autores não nacionais parece ser maior em Moçambique. Dado o número restrito de livros analisados face à enorme pluralidade de livros didáticos adotados nas escolas brasileiras, neste como em outros quesitos, os resultados obtidos relativamente à realidade brasileira não devem ignorar esse fator de ordem quantitativa.

Entrevistas com os professores de Moçambique e Brasil: o que revelam

Os professores dos dois países deram explicações semelhantes para a importância da poesia. Em Moçambique, foi destacada a poesia como um despertador de emoções, sentimentos, alegria, beleza, constitui uma música, um ritmo. É liberdade de expressão. Expressa paixão e projetos de futuro e leva o aluno a ter um raciocínio mais apurado. No Brasil, acentuou-se que a poesia incentiva a imaginação, usa um vocabulário mais sofisticado, trabalha o lado sentimental das pessoas. Além disso, é uma das manifestações mais importantes do espírito humano, desenvolve a sensibilidade, o humanismo e o gosto literário, eleva o pensamento, desperta a criatividade, leva-nos a viajar pela fantasia, resgata o emocional da pessoa, o seu eu interior.

Nos dois países, a esmagadora maioria dos professores afirmou gostar de poesia. Só que enquanto em Moçambique a maioria ganhou o gosto na escola, incentivados pelos professores, no Brasil, metade dos professores ganhou esse gosto através dos pais. Em Moçambique foram citados quatro poetas nacionais, sendo os mais citados José Craveirinha (oito vezes, portanto, uma unanimidade) e Noémia de Sousa (três vezes). Os poetas estrangeiros mais citados foram também dois poetas de língua portuguesa, um português (Fernando Pessoa) e um brasileiro (Vinicius de Moraes). No Brasil, foram citados 17 poetas nacionais, sendo os mais citados Carlos Drummond de Andrade (cinco vezes) e Cecília Meirelles (duas vezes). Foram citados oito poetas estrangeiros, sendo os mais citados dois poetas de língua portuguesa: Fernando Pessoa (quatro vezes) e Florbela Espanca (duas vezes). Importa salientar que em ambos os países existe um conhecimento por parte dos professores sobre poemas não apenas de autores nacionais. O conhecimento parece ser maior no Brasil.

Nos dois países ocorreram críticas severas sobre o tipo de poemas que estão inseridos nos livros didáticos. A maioria dos professores tanto em Moçambique quanto no Brasil afirmou que não são adequados. Em Moçambique, a crítica foi mais contundente chegando um professor a afirmar que “é um livro difícil para o próprio professor, que não se identifica com os poemas”. No Brasil, um deles afirmou que “Quem escreve esses textos não sabe o que é uma sala de aula”.

Enquanto em Moçambique os professores recorrem, unicamente, aos poemas contidos no livro didático, no Brasil, a maioria dos professores vai buscar outros poemas para além dos que vêm inseridos no livro didático.

Ao se perguntar se eles pedem aos alunos para nomearem alguns poetas moçambicanos/brasileiros e de países de língua portuguesa, no Brasil, três responderam afirmativamente em relação a poetas brasileiros, três negativamente e dois, às vezes. Em Moçambique, cinco responderam sim e três não.

A receptividade ao texto poético, por parte dos alunos, revelou-se maior em Moçambique, pois apenas um professor afirmou que os alunos não gostam de poesia. No caso do Brasil, dois professores responderam afirmativamente, quatro negativamente e dois responderam que apenas uma minoria gosta.

Há dificuldades idênticas nos dois países quanto à compreensão da linguagem metafórica e dificuldades de interpretação. Não conseguem entender a subjetividade do autor.

Ao serem indagados sobre as condições que a escola oferece no desenvolvimento da atividade poética (festas, datas comemorativas…) a situação é semelhante nos dois países, ou seja, a maioria dos professores afirmou que a escola, praticamente, não toma iniciativas para incentivo à poesia, ficando esse incentivo à responsabilidade de cada professor. No entanto, em Moçambique a situação parece um pouco melhor, dado que metade dos professores afirmou que, às vezes, a escola toma iniciativa.

Perguntou-se se seria possível identificar a preferência dos alunos em relação aos poetas apresentados pelo livro didático ou pelos professores em suas aulas. Foi constatado que a situação é idêntica nos dois países: a maioria dos alunos desconhece os poetas de seu país.

Quando se perguntou se os alunos são incentivados, por exemplo, a recitar poemas, a situação é idêntica nos dois países, sendo que a maioria dos professores incentiva seus alunos à prática da recitação.

Novas pesquisas poderão trazer outras inquietações para posteriores investigações, nomeadamente: Como os textos da mídia impressa têm sido utilizados em outros contextos escolares? De que maneira o campo acadêmico da mídia vê a utilização pela escola dos textos produzidos em suas áreas?

Considerações finais

Como se pode observar, as lutas de representações têm tanta importância quanto às lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os seus valores, o seu domínio. Em relação ao livro didático de português, vimos que ele utiliza a linguagem, seja ela escrita, ou através de imagens de outros materiais, para que o aluno apreenda conceitos, normas, usos da língua, entre outros. Do ponto de vista das análises de materiais pedagógicos, pode-se considerar que a complexidade desse tipo de livro – e por consequência sua análise – vem do fato que ele assume funções múltiplas, junto aos diversos destinatários, cujas expectativas variam segundo os momentos.

Se excetuarmos o importante canal que é a canção, temos de admitir que a escola continua a ser o único canal onde os alunos podem ter algum contato com a poesia e os poetas.

Constatamos nesta pesquisa que a inserção das poesias nos livros didáticos como meios de geração de identidades culturais e étnicas nos leva a pensar que a despeito de o fenômeno da globalização, que estilhaça as fronteiras nacionais, o nacional continua a induzir a formação de narrativas (neste caso poéticas), com o fim de ser ele o gerador da identidade oficial.

Em relação à ação do governo, no que diz respeito à forma como são estruturadas e inseridas as poesias nos livros didáticos nos dois países, ficou claro que em Moçambique, pelo fato de ser um país com apenas quatro décadas de independência, há uma tentativa, visível, de marcar fortemente nas poesias a construção da identidade nacional.

Constatou-se haver uma mutilação dos poemas presentes nos livros didáticos de Moçambique. Poder-se-á indagar por que isso ocorre e se essa opção poderá servir para a formação de leitores. Na verdade, a constatação apenas revela a existência de um descompasso entre os elaboradores dos livros didáticos e a real situação educacional, particularmente no domínio, ainda débil, da língua portuguesa.

Num plano estritamente pedagógico, não parece ser uma boa estratégia impor uma interpretação, a do professor ou a do livro didático ou a do crítico. Cada aluno é capaz de recriar para si o imaginário escondido no texto ou que lhe subjaz, tanto mais que a linguagem poética funciona para lá das normas lexicais, sintáticas etc., da linguagem de comunicação corrente.

A poesia deveria possibilitar ampliar formas de sociabilidade por meio da partilha e da expressividade artística, oportunizando um reconhecimento de si a partir das experiências enunciadas pelo outro. Talvez pensar a poesia numa perspectiva de uma pedagogia da escuta, de uma pedagogia da sensibilidade, de sentir e aprender com o outro na partilha do sensível.

Isso leva-nos a pensar a poesia na escola como uma forma capaz de transformar uma abordagem pálida da linguagem, numa aproximação com a arte, a cultura, o letramento e a criatividade, instaurando uma abordagem mais vívida do universo poético.

Em síntese, deve buscar salientar-se a importância do investimento na formação do leitor crítico, construtor de significados, que percebe seu estar no mundo e apreende a plurissignificação das minúcias do texto entendido como tessitura de sentidos e entrelaçamento de saberes. Trata-se de um leitor que questiona em constante interação com o texto e com o mundo ao seu redor.

Nesse sentido, o texto poético jamais deve ser utilizado como pretexto para outros fins, mas deve ser compreendido como fruição estética, símbolo da liberdade, jogo de significados, música que eleva o espírito, brincadeira, objeto de prazer. A leitura é a experiência que proporciona as condições para a elevação e crescimento do indivíduo, desenvolvendo a reflexão, o questionar, contribuindo para a formação do espírito crítico e para a emancipação do sujeito. É fonte inesgotável de prazer, de conhecimento, emoções e experiências.

A qualidade dos textos é fundamental. A poesia para crianças e adolescentes, assim como a prosa poética, tem de ser de elevada qualidade, bela, movente, prazerosa, instigante, surpreendente, bem escrita... Devem-se selecionar poetas que brincam com as palavras, tornando-as sedutoras. A beleza da imagem deve misturar-se à cadência, ao ritmo das palavras.

A poesia, à semelhança das artes plásticas, do teatro, da dança e da música, constitui, pois, um elemento indispensável à formação dos professores e dos alunos e representa, no mundo de hoje, uma respiração profunda, permitindo a cada um reencontrar as suas próprias raízes.

Considerando o fato de os livros didáticos se constituírem em um instrumento que dá visibilidade a práticas de letramento e a modos de ler os textos por elas instituídos, espera-se que esta pesquisa possa também contribuir para a reflexão a respeito da formação dos leitores.

Para finalizar, vale a pena fazer referência a uma citação de David Brooks que a escreveu no texto Ações de graça em 2012 , a respeito de Victoria Soto, uma professora que foi enterrada rodeada de flores e lágrimas. Soto que, junto com seus colegas, vive num país onde são desvalorizados, demonizados e acusados de serem culpados de quase tudo, deu sua vida para salvar seus estudantes, os filhos de todos, no massacre ocorrido em uma escola em um povoado de Connecticut. Com rara sensibilidade, o autor foi capaz de fazer referência ao modo como os professores podem ajudar a salvar seres humanos. Chama a atenção que tal salvação não ocorre apenas por meio de conselhos, de abraços e de seus próprios corpos, mas que os professores podem ainda salvar outros seres humanos por meio de poemas! Assim, para encerrar esta digressão pelo universo da poesia, parece bastante pertinente apresentá-la no que ela pode simbolizar como arma contundente na construção de um mundo mais humanizado. A palavra final está com David Brooks (2012 , s. p.):

Milhões de estudantes, todos anônimos (alguns depois se tornam famosos) são resgatados todos os dias por professores aqui [EUA] e em todo o mundo. Os professores se dedicam ao exercício humano mais nobre: passar o fogo de Prometeu, a maçã de Eva, a consciência e sabedoria humana coletiva e acumulada à próxima geração. Obviamente não o fazem por remuneração, por fama, nem por ambição (essa profissão é inútil para tudo isto), mas sim por ser o trabalho essencial da civilização. Mas ao estar entre o universal e o particular, entre a totalidade e o estudante, também são às vezes os que com um conselho, com um abraço, um poema ou com seus corpos salvam a outro ser humano. (grifo meu).

Referências

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1- Este texto constitui um recorte da pesquisa de pós-doutorado Poesia e etnicização nos livros didáticos de português: um estudo comparativo Moçambique e Brasil , realizada na Universidade de Lisboa, tendo o trabalho de campo sido levado a cabo nos anos de 2010 e 2011, na cidade de Maputo, capital de Moçambique, e na cidade de Belo Horizonte, capital do Estado de Minas Gerais.

3- Em Moçambique, os níveis iniciais de escolarização são designados como “classes”, enquanto no Brasil a designação era de “séries” até 2010. A partir de 2006, o Brasil começa a implementar o ensino fundamental de nove anos e a designação usada passa a ser “anos”.

4- Em Moçambique, o 1º nível de escolarização é designado como “ensino primário”, enquanto no Brasil a designação é de “ensino fundamental”.

Recebido: 12 de Outubro de 2018; Revisado: 09 de Abril de 2019; Aceito: 08 de Maio de 2019

José de Sousa Miguel Lopes é graduado em pedagogia (1992) e Mestre em educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Doutor em história e filosofia da educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e tem pós-doutorado pela Universidade de Lisboa (2013). Atua com ênfase nos temas: História da educação, Moçambique, educação, letramento, formação de professores, cinema, antropologia cultural.

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