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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.46  São Paulo  2020  Epub 06-Mar-2020

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202046214756 

Artigos

O ensino de robótica em centros de recondicionamento de computadores: construções discursivas de desobediência tecnológica

Jaqueline Ferreira Freitas Cortes de Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0001-8754-1050

Alexandre Guilherme Motta Sarmento1 
http://orcid.org/0000-0002-7201-4466

1 - Universidade Federal do Rio Grande do Sul , Porto Alegre , RS , Brasil . Contatos: jackiecorteso@gmail.com ; agmotta.ufrgs@gmail.com.


Resumo

Este artigo apresenta os principais aportes teórico-metodológicos para a execução de uma pesquisa que teve como objetivo geral investigar o uso e a legitimação das tecnologias digitais na construção e execução de projetos político-pedagógicos de robótica em onze Centros de Recondicionamento de Computadores apoiados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. O trabalho busca esclarecer as perspectivas teóricas adotadas, a construção das estratégias de pesquisa e seus desdobramentos práticos. Os resultados do estudo descritivo-analítico, de abordagem qualitativa, evidenciam construções discursivas contra-hegemônicas em relação a modelos de produção, de consumo de bens e de apropriação de conhecimento que geram ou reproduzem a exclusão digital e social. Nesse sentido, os discursos investigados enunciam e demarcam uma postura de desobediência 2 a partir da qual se constroem as formações identitárias docentes e discentes, assim como os modelos e as práticas educacionais de robótica nesses Centros. Espera-se que as reflexões apresentadas neste artigo contribuam para o aprofundamento das discussões acerca das metodologias qualitativas na investigação em educação, sobre o surgimento de novos espaços e modelos educativos, evidenciando também a importância da perspectiva histórico-sociológica e de abordagens não tecnicistas e não deterministas para o estudo das representações e dos usos das tecnologias digitais em ambientes educacionais e em processos de ensino-aprendizagem.

Palavras-Chave: Robótica educacional; Robótica livre; Análise do discurso; Pesquisa qualitativa

Abstract

This article presents the main theoretical and methodological intakes for the execution of a research that has the overall objective of investigating the use and legitimization of digital technologies in the construction and execution of political-pedagogical robotics projects in eleven computer recycling centers supported by the Ministry of Science, Technology, Innovations and Communications. The work intends to enlighten the adopted theoretical perspectives, the construction of research strategies, and its practical tools. The results of the descriptive-analytical studies, with a qualitative approach, puts in evidence discursive counter-hegemonic constructions regarding patterns of production, goods consumption, and the appropriation of knowledge that results or reproduces the digital/social exclusion. Thus meaning that the investigated speeches formulates and demarcates a posture of technological disobedience on which to build its formation identity of teachers and learners, as well as models and educational robotics standards in those centers. Hopefully the thoughts presented in this article contribute on the deep immersion of the discussions regarding the qualitative methodologies in educational research, about the emergence of new areas and educational models, also putting in evidence the importance of a historical-sociological perspective, and non-technologist/deterministic approaches for the digital technology studies, its representations and on how to use them in an educational environment, and the teaching-learning process.

Key words: Educational robotics; Free robotics; Discourse analysis; Qualitative research

Introdução

Na década de 1990, teóricos como Pierre Lévy (1998) e Manuel Castells (2010) já se dedicavam a explicar o impacto das tecnologias digitais na economia, nas atividades políticas e culturais e a expor suas implicações diretas no cotidiano das pessoas e das sociedades. Um novo paradigma tecnológico ou sociotécnico, que tem como cerne da sua transformação as tecnologias digitais, a informação, o processamento e a comunicação, já era anunciado naquela década com diversos desdobramentos.

Ressalta-se que, com a crescente automação de processos fabris e com o surgimento de máquinas capazes de aprender cada vez mais e de forma relativamente autônoma, isto é, com a difusão da inteligência artificial, fala-se em uma quarta revolução industrial que já está em andamento, em ritmo acelerado.

Assim, mediante a presença cada vez maior das tecnologias digitais no cotidiano das organizações e das pessoas, as instituições de ensino e a educação, de um modo geral, também têm sido provocadas a aderir às mudanças desse tempo, sob o risco de serem consideradas obsoletas frente a esse novo paradigma sociotécnico.

Nesse sentido, salienta-se que as instituições de ensino têm recebido demandas pela atualização de seus modelos e recursos didáticos, o que se pode observar pela proliferação do uso de novas tecnologias educacionais, softwares , aplicativos e ainda pela grande quantidade de cursos e plataformas educativas disponibilizados on-line , para mencionar apenas alguns exemplos.

Vale destacar também que, nesse cenário de transformações sociotécnicas, os modelos educacionais, de modo amplo, têm ainda sido igualmente provocados pelo surgimento de novos espaços de ensino-aprendizagem e de interação sociopedagógica baseados cada vez mais no uso das tecnologias digitais.

Importa ressaltar que, diante do uso intenso e da difusão das tecnologias digitais no cotidiano da maioria das pessoas e em espaços voltados à educação, a forma como se aborda a temática da tecnologia e do desenvolvimento tecnológico deve se tornar um motivo de constante vigilância. Naturalizar ou tratar a presença das tecnologias digitais de modo determinista torna-se um risco, inclusive na pesquisa em educação.

Quando um pesquisador trata o desenvolvimento tecnológico e seus desdobramentos como uma espécie de determinismo técnico-científico, impede que discursos de problematização em relação ao uso das tecnologias digitais se revelem na investigação.

No caso da pesquisa apresentada por meio deste artigo, esse entendimento e essa vigilância foram fundamentais, permitindo não apenas que campos de conflito a respeito das tecnologias emergissem dos discursos analisados, mas também que uma nova percepção do seu uso e da sua legitimação evidenciasse seus impactos.

Desafios iniciais para a construção da proposta

Cumpre esclarecer, inicialmente, que a pesquisa foi um estudo descritivo-analítico acerca do modelo e das práticas de ensino de robótica nos 11 Centros de Recondicionamento de Computadores (CRCs) apoiados pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Os CRCs realizam, resumidamente, dois grandes processos, quais sejam, o recondicionamento de eletroeletrônicos e a formação de jovens em situação de vulnerabilidade, com foco nas tecnologias digitais de informação e comunicação.

Destaca-se que apesar da política pública de apoio do governo federal aos CRCs existir há mais de uma década, a abordagem recebida por esses Centros na literatura, em geral, está restrita ao tratamento que esses espaços dão ao lixo eletrônico, sem colocar em foco os seus processos de formação.

Desse modo, mediante a escassez de referências bibliográficas sobre os CRCs e, em especial, sobre os processos formativos realizados nesses Centros, descrever e analisar seus modelos e práticas educacionais assume ainda maior relevância e urgência. Os CRCs desenvolvem uma grande variedade de cursos, oficinas e eventos formativos, tais como oficinas de manutenção e montagem de computadores, cursos de eletrônica, de robótica, de empreendedorismo digital, de gestão ambiental e, até mesmo, de produção de artesanato a partir da sucata de eletroeletrônicos, dentre outros.

Diante dessa variedade, optou-se por delimitar o tema da pesquisa especificamente ao ensino de robótica nos CRCs. A partir da delimitação e aproximação do tema, surgiu uma indagação que se constituiu no problema de pesquisa e que pode ser assim expresso: Em que medida a forma como os CRCs usam e legitimam as tecnologias digitais influi na construção dos seus projetos político-pedagógicos e nas práticas sociopedagógicas de robótica desenvolvidas nesses Centros?

Vale destacar que tanto o processo de recondicionamento de eletroeletrônicos quanto a formação de jovens realizados pelos CRCs guardam relação direta com as tecnologias digitais, tecnologias não analógicas, de informação e comunicação. Tais tecnologias fazem parte das atividades rotineiras de recondicionamento e de formação nos CRCs, em especial nos cursos de robótica. Quanto ao conceito de robótica, de modo geral, trata-se da ciência dedicada a estudar os robôs, os autômatos. Contudo, neste estudo, trata-se da robótica educacional, ou robótica pedagógica, conforme definição utilizada por Albuquerque et al. (2007) , com foco em projetos pedagógicos que propõem conciliação entre o uso de dispositivos mecânicos e eletrônicos e o processo de ensino-aprendizagem. Quanto aos projetos político-pedagógicos dos CRCs, foram identificados, nesta pesquisa, como os documentos que reúnem e organizam as intencionalidades educacionais e as propostas de ação concreta, com os meios e as estratégias previstos, no âmbito desses Centros.

Dessa forma, embora possa parecer demasiadamente óbvio justificar a presença das tecnologias digitais nas atividades dos CRCS em função da própria natureza e da finalidade expressa desses centros, buscou-se investigar essa presença, analisando os discursos dos principais atores sociais envolvidos na construção das diretrizes e na elaboração dos projetos político-pedagógicos.

Nesse sentido, ressalta-se a importância da investigação acerca dos discursos e práticas educacionais seguir o que preconiza Merton (1979) a respeito do ceticismo organizado. É fundamental submeter sempre as ideias e as construções discursivas a uma análise crítica e sistematizada. Ao pensar sobre os imperativos que fundamentam o ethos da ciência, isto é, ao pensar a atividade científica como um conjunto de valores e normas institucionalizadas que orientam e legitimam as práticas realizadas pelos cientistas, Merton (1979) prescreve uma atitude crítica que é preciso manter ao longo de qualquer pesquisa, mesmo diante da tentação das explicações aparentemente evidentes e mais rápidas. A presença e o uso das tecnologias digitais também devem ser estranhados e questionados, sistematicamente, sem fugir a essa regra.

Quanto à forma como se aborda a temática da tecnologia e do desenvolvimento tecnológico e científico, cumpre ressaltar que é de extrema relevância evitar uma perspectiva determinista, em especial no tocante à investigação de processos educacionais que envolvem as tecnologias digitais. Assim, ao buscar compreender o uso das tecnologias digitais e seus desdobramentos sobre as práticas de ensino-aprendizagem, é preciso estar constantemente vigilante quanto à falsa ideia de neutralidade das tecnologias.

Salienta-se que a ideia equivocada de neutralidade do desenvolvimento tecnológico pode conduzir os pesquisadores a tratar as escolhas tecnológicas realizadas como algo livre de condicionantes sociais e a perceber as questões sobre o próprio desenvolvimento tecnológico e suas consequências como uma espécie de determinismo tecnológico ou técnico-científico provido de uma racionalidade própria ou de uma racionalização que lhe seria inerente.

A respeito da temática do desenvolvimento técnico-científico, Habermas (2014 , p.75-149) adverte não apenas quanto aos interesses econômicos que investem para que o avanço tecnológico tome uma determinada direção, mas também e, sobretudo, para a ideologia tecnicista que busca conferir a esse desenvolvimento um caráter de racionalidade neutra e de racionalização a-histórica, que despolitiza os conflitos sociais e legitima as relações de dominação.

Desse modo, é fundamental para a investigação científica evitar a armadilha de ver o avanço tecnológico como algo autossustentado, como se tivesse uma racionalidade intrínseca. Nesse mesmo entendimento, buscou-se investigar as percepções e analisar os discursos de quem elaborou e defende os projetos político-pedagógicos que tratam da apropriação das tecnologias digitais nos CRCs, procurando perceber as conexões com os múltiplos condicionantes sócio-histórico e os posicionamentos políticos e econômicos escolhidos.

Acautelar-se em relação a uma visão tecnicista permite que os campos de conflitos também se manifestem livremente nos discursos, enunciando explicações sobre seus condicionantes, ritmos e rumos, mas evitando perspectivas deterministas ou voluntaristas, em consonância com o que é apontado por Figueiredo (1989 , p.7):

Multiplamente condicionada por necessidades econômicas, culturais, sociais e políticas, a tecnologia avança com ritmos e rumos variados segundo mudam tempo e local onde é praticada. Isso não quer dizer, porém, que o desenvolvimento seja aleatório a tal ponto que não comporte explicações. O que não cabe são perspectivas deterministas, ou ao contrário, voluntaristas. ( FIGUEIREDO, 1989 , p. 7).

Ainda quanto à problematização da questão tecnológica, Porto (1992 , p. 82-83) ressalta um aspecto muito relevante quanto ao risco de utilização da tecnologia de forma a-política. De acordo com essa autora, se a produção tecnológica for assumida como algo natural e neutro, como resultado necessário do progresso, passa a vincular-se a uma perspectiva que nega a natureza material-econômica e ideal-simbólica da tecnologia.

Nesse sentido, Porto (1992 , p. 93) apresenta também a abordagem a-histórica da tecnologia como uma forma de ideologia, de violência simbólica e de exclusão. A tecnologia precisa ser tratada em uma perspectiva que permita a discussão sobre suas escolhas e seus condicionantes, de modo a permitir a democratização das formas de produção, gestão e consumo das inovações tecnológicas e evitar novos processos de exclusão.

Vale também destacar a importância de um olhar ampliado sobre a própria educação para buscar entender os discursos produzidos sobre sua intencionalidade e sobre as escolhas das quais resultam as suas práticas. De modo amplo, as teorias e práticas educacionais são construídas a partir de percepções do mundo, de formações identitárias e de relações sociais objetivas e subjetivas, que incluem complexas relações e redes de poder. Foucault (1996 , p. 44) afirma que “Todo o sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que estes trazem consigo.”

Nesse sentido, refletir sobre as práticas de ensino-aprendizagem requer, igualmente, uma perspectiva ampliada e uma abordagem que leve em consideração os discursos, seus sujeitos produtores e propagadores, bem como o contexto socio-histórico em que tais discursos se inscrevem para, por fim, compreender os “enunciados e relações, que o próprio discurso põe em funcionamento” ( FISCHER, 2001 , p. 198). Assim, tendo por objetivo compreender como os CRCs se referem às tecnologias digitais e como legitimam seu uso no ensino, a análise do discurso foi escolhida como método de análise mais adequado na pesquisa com esses Centros.

Ressalta-se que os discursos, na perspectiva foucaultiana, não são apenas um conjunto de signos ou elementos significantes utilizados para expressar ou representar um determinado conteúdo. Eles são construções sociais perpassadas por valores, saberes e relações que resultam e, simultaneamente, ressignificam os contextos sociais em que se inscrevem. Ademais, ao discutir a importância das contribuições de Foucault para a pesquisa em Educação, Fischer (2001 , p. 201) ressalta algumas atitudes metodológicas presentes na obra daquele filósofo. Dentre elas, destacam-se duas: i) a importância do pesquisador estar atento às práticas discursivas e não-discursivas; e ii) a necessidade de se manter, ao longo da pesquisa, uma constante atitude de dúvida e de abertura ao inesperado.

O primeiro destaque refere-se à relevância do que é dito, bem como daquilo que é calado nos discursos. A identificação e análise daquilo que é silenciado também pode ser indicativo das relações e de um contexto de regras sociais que podem ser também percebidos nesse não-discurso. De acordo com Fischer (2003 , p. 379):

Para Foucault, descrever práticas discursivas e não-discursivas em torno de um certo objeto ou tema tem a ver com um trabalho dedicado e pormenorizado de investigar e expor aqueles espaços não óbvios, aqueles vazios (ou seja, aquilo que fica para além do óbvio, do já-dito, do já sobejamente conhecido e nomeado) que se localizam em torno de nossos objetos, aquilo que, numa certa época histórica, está virtualmente posto para que tais e tais objetivações ocorram. ( FISCHER, 2003 , p. 379).

O segundo destaque corrobora aquela atitude de desconfiança necessária no ceticismo organizado mertoniano: a de estranhar o que já se sabe. Muitas vezes, toma-se por certeza aquilo que era ainda mera impressão inicial sobre as construções discursivas e sobre os enunciados que surgem na pesquisa. Pesquisar, contudo, é estar pronto a ter as próprias percepções e discursos desconstruídos ao longo do processo. Não é legitimar o que já se julga saber. É estar aberto a novos saberes e isso requer posicionamento e vigilância.

Quanto a outro importante aporte teórico-metodológico a destacar na pesquisa realizada com os CRCs, propõe-se retomar, ainda que de modo breve, a reflexão acerca das profundas mudanças na organização das sociedades e da economia, em âmbito global, impulsionadas principalmente a partir da segunda metade do século XX. Para compreender a política pública de apoio aos CRCs, seus discursos de criação e de implantação e suas práticas educacionais, é essencial perceber o contexto em que se inscrevem. É necessário verificar as condições econômicas, culturais e sociais em que tais políticas e os próprios CRCs surgem e a partir das quais seus discursos se enunciam.

Nesse sentido, ressalta-se que as construções discursivas analisadas levaram em conta o contexto, sendo o construto contexto entendido na pesquisa sobretudo a partir das relações de poder, na perspectiva foucaultiana (FOUCAULT, 1986) e as construções discursivas tratadas também como formas de prática social ( FAIRCLOUGH, 1992 , p. 65).

Assim, a partir dos aportes disponibilizados pelo referencial teórico, foi possível perceber que os discursos governamentais e dos CRCs foram construídos em conexão com um determinado paradigma sociotécnico e em diálogo com um contexto cultural específico, seja para validá-lo enquanto discurso hegemônico ou para enfrentá-lo, com construções discursivas contra-hegemônicas.

Ressalta-se que os discursos e as teorias sobre a sociedade informacional ( CASTELLS, 2010 ) e sobre a obsolescência programada ( BAUMAN, 2008 , p. 31), dentre outros importantes aportes teóricos, forneceram conceitos e elementos essenciais para a compreensão ampliada do contexto onde se inscreve a exclusão digital. Por consequência, permitiram uma melhor compreensão das características e dos conflitos deste tempo, das políticas públicas para a inclusão digital das quais os CRCs fazem parte e de seus discursos sobre o uso das tecnologias em seus processos formativos de robótica.

Complementando esse mesmo entendimento, salienta-se ainda que as análises nesta pesquisa foram realizadas, a partir da perspectiva faircloughiana, assumindo que os discursos são também um modo de ação e de representação, que guardam uma relação dialética de criação e de limitação pela estrutura social.

Nesse sentido, os discursos são construídos e balizados, mas também podem desafiar as dimensões da estrutura social. Em consonância com o que afirma Fairclough (1992 , p. 65), as práticas discursivas são constitutivas, de forma convencional e criativa, pois contribuem para manter e reproduzir, mas também para desafiar as identidades e as relações sociais, os sistemas de conhecimento e de valores. Nesse entendimento, os discursos têm o potencial para contribuir tanto com a manutenção das condições e dos condicionantes sociais, quanto com a transformação da sociedade, como defende claramente Fairclough (1992) , no seu livro Discurso e mudança social.

Materialização da proposta

Como desdobramentos do problema de pesquisa, que buscava investigar em que medida a forma como os CRCs usam e legitimam as tecnologias digitais influi na construção dos projetos político-pedagógicos e nas práticas sociopedagógicas de robótica, foram definidos os seguintes objetivos específicos: i) Identificar e categorizar as diretrizes governamentais para os processos formativos nos CRCs; ii) Verificar que categorias de diretrizes afetam mais diretamente os projetos pedagógicos de Robótica nesses Centros; iii) Mapear e descrever a formação de Robótica ofertada pelos CRCs; iv) Levantar os materiais escolhidos e utilizados pelos CRCs no ensino de Robótica e analisar como são justificadas as suas escolhas; v) Verificar se existe um modelo de educação compartilhado entre os CRCs; e vi) Analisar como os discursos dos CRCs sobre os usos das tecnologias digitais se desdobram em implicações sócio-pedagógicas no ensino de Robótica.

Salienta-se que a pesquisa, no que concerne à sua natureza, constituiu-se como pesquisa básica, com abordagem qualitativa, visto que busca explicar significados, valores, motivações e crenças, portanto, dados não quantitativos, que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis quantificáveis, tendo objetivos exploratório-descritivos e analíticos. Sua operacionalização teve como principais procedimentos técnicos: i) a pesquisa bibliográfica; ii) a pesquisa documental; e iii) a elaboração e a aplicação de um questionário, contando também com uma etapa de a triangulação de dados e análise dos resultados.

Quanto à pesquisa bibliográfica, seu aprofundamento permitiu a identificação dos principais conceitos relacionados à pesquisa, viabilizando uma aproximação mais sistematizada dos assuntos relacionados ao tema. Assim, além de contornar a escassez de referências bibliográficas sobre os CRCs, a pesquisa bibliográfica permitiu identificar os assuntos e conceitos fundamentais e determinar que dimensões e informações deveriam ser buscadas e priorizadas nas demais etapas.

Durante a pesquisa documental, foram realizadas a exploração e a análise de documentos oficiais, considerando sobretudo os discursos registrados nos Documentos propositivos do projeto computadores para inclusão – o projeto integrado pelos CRCs - disponibilizados pelo MCTIC, assim como nas propostas, nos portfólios institucionais e nos termos de referência, que haviam sido encaminhados pelos CRCs por ocasião da pactuação das parcerias com aquele Ministério.

É fundamental esclarecer também que, na etapa de pesquisa bibliográfica, bem como na pesquisa documental, para delimitar o corpus da pesquisa e realizar a escolha dos documentos que seriam analisados, os critérios propostos por Barthes (2006) referentes à pertinência, homogeneidade e temporalidade serviram como princípios orientadores. Assim, a partir do critério de pertinência, entendido aqui como pertinência temática, a seleção priorizou a busca de documentos, de dados e de informações que permitissem a verificação das diretrizes pedagógicas em direção à operacionalização da política pública, contribuindo também para identificar o modelo de educação e de apropriação tecnológica que orienta as práticas educacionais desenvolvidas nos CRCs.

Por outro lado, o critério de homogeneidade orientou a pesquisa no sentido de analisar materiais constituídos de uma mesma natureza e intencionalidade. Na prática, a operacionalização desse critério implicou a escolha dos dois últimos Documentos propositivos do projeto computadores para inclusão , e dos onze termos de referência elaborados pelos centros. Nesses documentos, foram identificadas as diretrizes governamentais e as propostas político-pedagógicas dos CRCs.

Por fim, quanto ao critério de temporalidade, o recorte se propôs a analisar apenas os CRCs ativos, que correspondiam àqueles centros cujas parcerias haviam sido pactuadas com o MCTIC em função dos editais lançados em 2013 e em 2015. A principal motivação para esse recorte temporal foi a possibilidade de garantir o acesso aos gestores e coordenadores pedagógicos dos CRCs, por se tratar de parcerias ainda ativas.

Destaca-se que os achados, a partir da pesquisa bibliográfica e da pesquisa documental, possibilitaram a identificação das diretrizes para a formação, bem como a sua tipologia ou categorização em quatro grandes dimensões, quais sejam: i) cognitiva; ii) do trabalho; iii) ambiental; e iv) sociopolítica. Do mesmo modo, tais leituras indicaram também os possíveis materiais didáticos utilizados pelos CRCs no ensino de robótica. Contudo, para verificar se tais achados não representavam uma percepção equivocada ou ainda uma distorção construída a partir dos recortes realizados, optou-se por expor tais achados novamente aos discursos dos gestores e coordenadores pedagógicos nos CRCs, por meio da aplicação de um questionário.

A etapa referente ao questionário consistiu na elaboração do instrumento de coleta de dados e na sua disponibilização on-line para aplicação aos CRCs. O instrumento contou com questões abertas e fechadas, de múltipla escolha, de classificação e de texto alfanumérico simples e foi aplicado por meio de uma plataforma de soluções para questionário, obtendo respostas completas de todos os onze centros ativos no período de execução da pesquisa.

A partir das respostas ao questionário, foi possível realizar a triangulação dos dados coletados por meio das etapas de pesquisa bibliográfica, pesquisa documental e da aplicação do próprio questionário. Tomando os achados dessas três primeiras etapas como insumos, a pesquisa utilizou-se, sobretudo, de elementos da Análise Textual Discursiva (ATD) e da Análise Crítica Discursiva (ACD) para chegar aos resultados da pesquisa.

Quanto à ATD, foi realizada conforme orientam Pedruzzi et al. (2015) . Nesse sentido, a partir da desmontagem dos textos, foi realizado um exame detalhado com o estabelecimento de relações entre cada unidade, procurando-se a identidade entre elas. Buscou-se entender o que emerge da totalidade dos textos, como uma nova construção discursiva e uma nova compreensão dos fenômenos investigados.

A realização da ATD ocorreu em três etapas, conforme sugerido pelos referidos autores. Primeiro, o processo de unitarização, em que o texto é desconstruído. Em seguida, a categorização, em que ocorreram as simplificações, as reduções e as sínteses de informações que resultaram na formação de um conjunto com elementos em comum. Por fim, foi realizada a produção de metatextos com as descrições e interpretações que apresentaram novos modos de compreensão da forma como os CRCs usam e legitimam as tecnologias digitais, do seu processo formativo em robótica e da maneira como percebem o consumo e a apropriação tecnológica.

Quanto à Análise Crítica Discursiva, pode-se dizer que sua contribuição na operacionalização da pesquisa se deu, sobretudo, na perspectiva adotada para as análises. Nesse sentido, os textos e as análises discursivas, vistas como práticas sociais ( FAIRCLOUGH, 1992 , p. 65), permitiram a identificação da construção identitária, das relações sociais estabelecidas e do sistema de conhecimento e de valores defendidos e combatidos pelos emissores dos discursos. As análises de conteúdo ancoradas na perspectiva faircloughiana permitiram que a produção dos discursos, seus produtores, os consumidores e propagadores das construções discursivas também sejam pensados em sua relação com as mudanças sociais e culturais, a partir de um contexto sócio-histórico e culturalmente situado.

Resultados e análises: tecnologias disruptivas, discursos e práticas de mudança social

A partir dos resultados das etapas de pesquisa bibliográfica e de pesquisa documental, foram identificados elementos estruturantes do contexto sócio-histórico, econômico e cultural em que surgiu a política pública de inclusão digital, seus principais teóricos e temas, bem como os principais atores sociais envolvidos com essa temática no cenário brasileiro, sobretudo no que diz respeito às políticas governamentais, em âmbito federal.

Na pesquisa documental, foram mapeadas as diretrizes pedagógicas e os princípios orientadores para os processos formativos nos CRCs. No que concerne às diretrizes pedagógicas, destacam-se: a orientação para a oferta de cursos, oficinas e treinamentos que permitam aos jovens apropriarem-se de saberes que os qualifiquem profissionalmente e viabilizem sua inserção no mundo do trabalho e o estímulo para a inclusão de temas transversais voltados para a cidadania, orientados pela ética, participação social e comunitária e pela defesa dos direitos humanos.

A análise de tais achados resultou na definição de quatro grandes categorias ou dimensões para a formação nos CRCs: i) a dimensão cognitiva, cujos objetivos poderiam ser traduzidos como promover a integração de conhecimentos, a formação técnica e a melhoria do desempenho escolar dos adolescentes e jovens nos CRCs; ii) a dimensão ambiental, cujo objetivo principal poderia ser traduzido como a oferta de uma formação cidadã orientada para a gestão ambiental; iii) a dimensão do trabalho, tendo por metas conceder ao jovem a certificação ocupacional exigida pelo mundo do trabalho, bem como promover o empreendedorismo digital; e iv) a dimensão sociopolítica, buscando a apropriação tecnológica por segmentos antes excluídos, como meio para a inclusão social destes jovens e comunidades.

Embora as dimensões estivessem definidas, não estava ainda esclarecida a ordem de importância que cada uma delas representava para os CRCs. Assim, resolveu-se aplicar o questionário para checar tais achados e verificar sua relevância, a partir da perspectiva dos respondentes. Quando indagados, por meio do questionário, acerca da relevância das dimensões identificadas para os objetivos do curso ou das suas oficinas de Robótica, os CRCs apontaram a seguinte classificação, em ordem decrescente de importância: 1) Dimensão Sociopolítica; 2) Dimensão Ambiental; 3) Dimensão do Trabalho; e 4) Dimensão Cognitiva. A dimensão sociopolítica foi aquela que recebeu a maior pontuação, sendo considerada a mais relevante.

Ademais, o questionário serviu também a outro importante propósito, que foi checar o uso dos materiais utilizados no ensino-aprendizagem de robótica e a forma como os CRCs justificam sua importância. Vale esclarecer que duas questões daquele instrumento de coleta de dados buscavam subsidiar a compreensão sobre o uso e a legitimação das escolhas tecnológicas nos CRCs. Para isso, uma das questões, de tipo matriz, foi adaptada a partir dos critérios de comparação propostos por Silva e Barreto (2011) para a escolha de kits de robótica educacional.

A respeito desses materiais, ressalta-se que as respostas dos CRCs apontaram como critérios imprescindíveis para a escolha de seus kits de robótica: i) permitir o uso de sucata e resíduos eletroeletrônicos; ii) ter baixo custo; e iii) ter código aberto. Importante destacar também que os CRCs se referem aos seus cursos de robótica como cursos de “Robótica Livre”. Aqueles centros que ofertam cursos regulares de robótica usam o Arduíno , que apesar de ser uma solução comercial, é basicamente uma plataforma de prototipagem eletrônica aberta, de baixo custo, que permite a integração com praticamente qualquer software e hardware .

Ao analisar esse resultado, é importante lembrar os dois grandes processos que ocorrem nos CRCs: o recondicionamento de eletroeletrônicos e as formações. É igualmente importante ter clareza de que o processo de recondicionamento nos CRCs se subdivide em processos de recepção, triagem, recondicionamento, estoque, descarte ambientalmente correto de resíduos e doação de equipamentos. Tudo isso ocorre juntamente com processos de ensino-aprendizagem.

O reaproveitamento de eletroeletrônicos e a oferta de formação profissionalizante acontecem simultaneamente, combinando formação com foco nas tecnologias à gestão ambiental e à participação cidadã. Os jovens aprendem fazendo, hands on , em uma proposta de construção do conhecimento que se aproxima mais do construcionismo de Seymour Papert (1980) .

Vale esclarecer que o construcionismo é uma teoria da aprendizagem que partiu do construtivismo piagetiano e, portanto, também trata o estudante como construtor ativo das próprias estruturas cognitivas. O construcionismo concentra-se na forma de aprendizagem. De acordo com essa proposta, é no processo de interação com o mundo, em ambientes que estimulam a aprendizagem, por meio da experimentação e criação de objetos tangíveis, que o estudante testa suas ideias, teorias e hipóteses, favorecendo a construção do conhecimento.

Para testar as próprias ideias acerca da aprendizagem, Papert (1980) desenvolveu uma linguagem de programação chamada LOGO, por meio da qual as crianças demonstraram integrar conhecimentos concretos e abstratos para a solução de desafios. A abordagem construcionista permite a integração de conhecimentos de diferentes áreas por meio da experimentação, fazendo uso das tecnologias digitais, e considerando que o aprendizado é significativo quando resulta de uma descoberta centrada no próprio estudante.

Assim, a partir das informações e de suas próprias referências, o estudante busca adquirir novos conhecimentos. Por meio de projetos que apresentam uma problematização, conexões entre diferentes ideias e áreas de conhecimento são estabelecidas pelo estudante. Do mesmo modo, nos cursos de robótica dos CRCs, a abordagem requer uma aprendizagem ativa pela experimentação e criação de objetos tangíveis. O desenvolvimento cognitivo, nesse tipo de proposta pedagógica, não resulta do simples repasse de informação. O estudante não recebe conhecimento de forma passiva. O processo é mediado pelo professor, mas é mediante a ação de problematizar ou de confrontar-se com o meio e com a sucata, abundante nos CRCs, que os jovens elaboram a sua compreensão da realidade, enquanto sujeitos ativos e construtores do seu próprio saber. Salienta-se que essa abordagem construcionista adaptada e utilizada nos CRCs é uma estratégia de ensino-aprendizagem a partir da qual os jovens experimentam, exploram, manipulam e aprendem, à medida que constroem.

Para entender melhor os desdobramentos dessa proposta de aprendizagem e de apropriação tecnológica dos CRCs, encontramos em Castells (2010) um aporte fundamental. Ao pensar acerca das condições específicas de cada sociedade, no que diz respeito ao maior ou menor grau de defasagem para seu ingresso no novo paradigma da sociedade informacional, o autor fornece-nos um componente relacionado à forma como se dão os aprendizados dentro desse novo modelo de desenvolvimento. De acordo com o autor:

As elites aprendem fazendo e com isso modificam as aplicações da tecnologia, enquanto a maior parte das pessoas aprende usando, e, assim, permanecem dentro dos limites do pacote da tecnologia. ( CASTELLS, 2010 , p. 73.).

Nesse sentido, é possível perceber que o tipo de escolha para o modelo de ensino-aprendizagem já traz consigo alguns campos de conflito. Percebe-se, a partir da afirmação de Castells (2010 , p. 73), que ainda na escolha do modelo de apropriação tecnológica é possível definir quem será capaz de modificar as aplicações da tecnologia e quem será mero consumidor dos pacotes tecnológicos criados e/ou escolhidos por outrem. Isso também se evidencia nos discursos dos CRCs sobre suas próprias escolhas. O papel social que desejam é de produtores de novas tecnologias, de novos usos, de novos processos e de novos saberes.

Importa destacar também outro resultado e as novas percepções decorrentes dele. Os CRCs são locais onde os materiais descartados por outras pessoas e instituições se tornam insumos para as aulas e oficinas de robótica. Evidenciou-se na dimensão ambiental do estudo que algo característico dos CRCs é justamente a sua natureza de espaço de ensino do consumo consciente, onde, por um lado, ocorre a extensão da vida útil de equipamentos descartados por meio do recondicionamento e, por outro, acontece também a reutilização de equipamentos e de suas peças-partes para a construção de novos artefatos. Como exemplos de achados que subsidiam essa análise, destacam-se, no Quadro 1 , algumas respostas dos CRCs, quando indagados por meio do questionário se haveria vantagem ou diferencial no ensino de robótica ofertado por esses centros:

Quadro 1 – Exemplos de respostas sobre o diferencial no ensino de Robótica pelo CRCs 

Respostas dos CRCs (reproduzidas com preservação das identidades dos respondentes) Dimensões identificadas, categorias e destaques da pré-análise
“O maior diferencial do ensino no CRC é a liberdade de criação que o aluno tem em função dos materiais que utilizamos durante o curso, que no caso são as sucatas e componentes eletrônicos que podem ter adaptado para outra funcionalidade.” Dimensões cognitiva, sociopolítica e ambiental: Liberdade de criação; Materiais, sucatas; Adaptação de materiais e componentes eletrônicos com outras funcionalidades.
“Sim. Pois há estímulo para apropriação de tecnologia, re-uso de equipamento e componente e sensibilização com relação ao meio ambiente”. Dimensão cognitiva: Estímulo para apropriação de tecnologia; Dimensão ambiental: Reuso de equipamentos; Sensibilização com relação ao meio ambiente.
“Sim. Além de todo o conhecimento tecnológico e prático, que o ensino de robótica pode proporcionar, também poder promover o trabalho coletivo e a troca de ideias, já que toda a construção pode ser feita em equipe. Solucionar problemas e desenvolver senso crítico e raciocínio lógico são capacidades que precisam ser desenvolvidas nas crianças e adolescentes e que, infelizmente, nem sempre são estimuladas no ensino convencional. Porém, perfeitamente possível em um ambiente colaborativo, criativo e inovador como deve ser o CRC.” Dimensão cognitiva: Conhecimento tecnológico prático; Senso crítico, raciocínio lógico; e Solucionar problemas; Dimensões cognitiva e sociopolítica: Trabalho coletivo, troca de ideias; Construção em equipe; Solucionar problemas; e Ambiente colaborativo, criativo e inovador em contraposição ao ensino convencional.

Fonte: elaboração própria.

Desse modo, um computador descartado pode ser recondicionado e revitalizado em sua função original ou pode ser desmontado para virar uma impressora tridimensional (3D), um drone , um robô, ou qualquer outro aparato tecnológico. Nesse mesmo entendimento, ao conhecer a lógica de funcionamento dos equipamentos, professores e estudantes de robótica tornam possível a desobediência tecnológica, conforme utilizada por Ernesto Oroza (2012) . De modo simplificado, o conceito de desobediência tecnológica consiste em dar usos e/ou estética diversos aos objetos, aos equipamentos e a suas peças-partes em relação àqueles originalmente imaginados e elaborados pela indústria. A prática relaciona-se ao conhecimento da lógica de funcionamento dos equipamentos e à liberdade de uso dos equipamentos e materiais, muitas vezes em insubordinação ao modelo definido pela grande indústria.

Ao tratar a história da desobediência tecnológica em Cuba, Oroza (2012) destaca os motivos histórico-sociológicos e as intermináveis crises que levaram os cubanos a essa atitude e expressão de desobediência em sua relação com os objetos. Diante da necessidade de produzir em condições extremamente escassas, os cubanos assumiram um crescente desrespeito pela identidade dos produtos, bem como com a verdade e a autoridade que essa identidade busca impor. Assim, na visão do referido autor, depois de abrir, consertar, fragmentar e utilizar os objetos conforme sua conveniência, os sinais que fazem dos objetos uma unidade ou identidade fechadas já não importavam aos cubanos.

Para Oroza (2012) , os processos de reparo, refuncionalização e a reinvenção podem ser considerados saltos imaginativos, em oposição aos conceitos de inovação desenvolvidos pelas atuais lógicas comerciais. Tais lógicas, ainda segundo o autor, propõem soluções escassas aos problemas atuais do indivíduo. Os saltos imaginativos, pelo contrário, representam uma recuperação da capacidade e das atitudes criativas dos usuários e dos centros de geração de bens materiais.

Destaca-se que a desobediência tecnológica não se dá apenas em novos usos para a sucata, mas também apresenta uma nova ética. No caso dos CRCs, trata-se de uma ética socioambiental, com discursos de gestão ambiental e de economia circular que se sobressaem em suas propostas de trabalho. Salienta-se ainda que há também uma nova estética na desobediência tecnológica, que tem foco na funcionalidade dos equipamentos.

Ressalta-se, ainda, a partir da dimensão sociopolítica, que a desobediência tecnológica se revela claramente nas construções discursivas dos CRCs, indicando os posicionamentos e as mudanças sociais e culturais que fazem parte de seus anseios. Essa análise é corroborada ainda pela ideia defendida por Fairclough (1992 , p. 96) de que a mudança envolve formas de transgressão e a ultrapassagem de limites ou fronteiras.

Assim, ao analisar os discursos e os não-discursos dos CRCs, percebe-se que há um embate evidente e permanente entre duas lógicas bastante distintas: a do consumismo e a do construcionismo. Uma se escraviza e, mesmo no processo de construção e difusão do conhecimento, busca a dominação. A outra, por sua vez, prima pela autonomia dos sujeitos, busca decodificar e compartilhar conhecimentos, em um processo de desobediência tecnológica ( OROZA, 2012 ) e de ruptura com os discursos hegemônicos da lógica consumista, do mercado, combatendo seus processos de exclusão econômica, social e digital.

A respeito da lógica do consumismo e das relações sociais resultantes dela, encontramos no sociólogo Zygmunt Bauman (2008 , p. 31) alguns elementos teóricos para compreender que as muitas toneladas de sucata que chegam aos CRCs a cada ano são consequência, sobretudo, de uma obsolescência programada. Acerca dessa lógica, o autor afirma, em seu livro Vida para consumo :

A curta expectativa de vida de um produto na prática e na utilidade proclamada está incluída na estratégia de marketing e no cálculo de lucros: tende a ser preconcebida, prescrita e instilada nas práticas dos consumidores mediante a apoteose das novas ofertas (de hoje) e a difamação das antigas (de ontem).

Entre as maneiras com que o consumidor enfrenta a insatisfação, a principal é descartar os objetos que a causam. A sociedade de consumidores desvaloriza a durabilidade, igualando ‘velho’ a ‘defasado’, impróprio para continuar sendo utilizado e destinado à lata do lixo. ( BAUMAN, 2008 , p. 31).

Por outro lado, a lógica construcionista, que prevalece nos discursos e nas práticas socioeducativas dos CRCs, vê nos equipamentos descartados uma fonte quase inesgotável de recursos para o recondicionamento, para a aprendizagem e para a criação. Nessa outra perspectiva, o desmanchar e o (re)fazer se constituem em uma forma desafiadora de apropriação e difusão de conhecimentos, de tecnologias existentes e de outras inovações.

Ressalta-se que as análises do discurso foram corroborando esses entendimentos e evidenciando que as tecnologias digitais são representadas e legitimadas, nos CRCs, em uma perspectiva disruptiva, que não se alinha com a lógica de consumo estabelecida pela indústria e pelo mercado. Tal posicionamento torna-se um marco conceitual e relacional. Nos CRCs, as tecnologias digitais são disruptivas tanto em suas construções discursivas sobre seus processos de formação, de modo geral, quanto em suas escolhas práticas.

Destarte, a partir dos aportes teóricos e do desenvolvimento da pesquisa já apresentados, foi evidenciado que os posicionamentos assumidos em relação aos modelos de produção e consumo das tecnologias têm um expressivo impacto na formação identitária dos professores e estudantes. A partir dos posicionamentos e de sua identidade, suas práticas de ensino-aprendizagem são mais claramente demarcadas, em direção ao construcionismo e a novas formas de apropriação tecnológica.

Conclusão

O estudo apresentado por este artigo teve caráter descritivo-analítico e assumiu por objetivo investigar em que medida a forma como os CRCs usam e legitimam as tecnologias digitais influi na construção dos seus projetos político-pedagógicos e nas práticas sociopedagógicas de robótica desenvolvidas por eles.

A abordagem desenvolvida foi qualitativa e apoiou-se, principalmente, na perspectiva foucaultiana (FOUCAULT, 1986, p. 56), tratando as construções discursivas a partir das relações de poder e também na perspectiva faircloughiana (FAIRCLOUGH, 1992), buscando compreender os discursos, enquanto formas de prática social, estabelecidos a partir de uma estrutura social e situados em um contexto de mudanças, em relação a um paradigma sociotécnico definido histórica e culturalmente.

Quanto às estratégias de pesquisa desenvolvidas, ressalta-se a importância da triangulação realizada a partir das técnicas de pesquisa bibliográfica, de pesquisa documental e da aplicação de um questionário. A execução dessas técnicas e das análises discursivas delas decorrentes evidenciou que o uso e a legitimação das tecnologias, nos CRCs, têm um caráter de desobediência tecnológica. As tecnologias são utilizadas e legitimadas em uma perspectiva disruptiva, que não se submete nem ao modelo de uso definido pela indústria, tampouco à lógica de consumo estabelecida pelo mercado.

Nessa perspectiva, ressalta-se que os discursos dos CRCs sobre as tecnologias digitais assumem uma postura contra-hegemônica e definem um modelo de apropriação e de consumo tecnológico que busca ser inclusivo. Tal modelo e seus discursos promovem uma formação identitária dos docentes e discentes, reforçando a autonomia do sujeito, numa abordagem construcionista. Ademais, a perspectiva assumida nas construções discursivas dos CRCs contribui para produzir todo um sistema de conhecimento e de valores em que as tecnologias digitais, por serem assumidamente disruptivas, permitem e impulsionam a mudança social.

Salienta-se que, ao buscar compreender o uso das tecnologias digitais nas práticas de ensino-aprendizagem, é preciso estar alerta quanto à forma como as tecnologias e o desenvolvimento tecnológico são tratados. Uma leitura tecnicista e determinista em relação ao desenvolvimento tecnológico, sobretudo por parte do pesquisador em educação, pode enviesar a investigação, impedindo que os campos de conflitos e as relações de poder, dominação e de exclusão digital possam se manifestar livremente pelos atores sociais.

Para concluir este artigo, vale retomar a perspectiva de Porto (1992 , p. 93) quanto à importância de não se negar a natureza material-econômica e simbólica da tecnologia. Se, por um lado, a abordagem a-histórica da tecnologia produz violência simbólica e exclusão, por outro, a discussão e a investigação sobre seus condicionantes, sobre os interesses e as escolhas em seus processos de produção, gestão e consumo podem ser um caminho para não produzir novos excluídos, no atual paradigma sociotécnico.

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2- O conceito de desobediência tecnológica é utilizado neste artigo conforme apresentado por Ernesto Oroza (OROZA, 2012). Refere-se, basicamente, a dar usos diversos àqueles originalmente pensados pela indústria para equipamentos e suas peças-parte

Recebido: 29 de Setembro de 2018; Revisado: 23 de Abril de 2019; Aceito: 04 de Junho de 2019

Jaqueline Ferreira Freitas Cortes de Oliveira é socióloga pela Universidade de Brasília (UnB), mestre e doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Educação e Ciências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Alexandre Guilherme Motta Sarmento é sociólogo pela Universidade de Brasília (UnB), doutor em educação em ciências pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e professor em educação em ciências na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

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