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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.46  São Paulo  2020  Epub 17-Jul-2020

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202046219428 

Artigos

O método natural e o pensamento complexo: uma relação possível para a educação escolar

Ivan Fortunato1 
http://orcid.org/0000-0002-1870-7528

Maria do Rosário Silveira Porto2 
http://orcid.org/0000-0002-1873-4526

1- Instituto Federal de São Paulo, Itapetininga, SP, Brasil. Contato: ivanfrt@yahoo.com.br

2- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Contato: mdoporto@uol.com.br


Resumo

Este artigo foi escrito com o objetivo central de mostrar como dois autores – Célestin Freinet e Edgar Morin –, aparentemente com trajetórias diferentes, aproximam-se pela necessidade de se construir uma outra escola, que não se preocupe somente em transmitir conteúdos abstratos e isolados da realidade concreta do seu alunado, mas que desenvolva um processo educativo que efetivamente se preocupe com o ser humano em toda a sua completude. Para tanto, buscou-se descrever, ainda que sumariamente, algumas pistas metodológicas para esse fim. No caso de Célestin Freinet, tem-se o método natural empregado por ele em sua ação pedagógica; de Edgar Morin, tem-se as noções de complexidade e transdisciplinaridade. Verifica-se, ainda, as ideias de mundo e de conhecimento em ambos. Dessa descrição, pode-se evidenciar a seguinte aproximação entre o pensamento dos dois autores: existe uma escola que desvitaliza, que compartimentaliza os conhecimentos, esvazia os conteúdos do que tem significado para os alunos, se preocupa mais em dar conta do currículo do que com a formação da pessoa humana, sendo necessário, pois, buscar maneiras de se formar um ser social integrado ao seu grupo particular e ao mundo em geral. Ao final, espera-se que essa aproximação ajude na busca por olhares distintos do que está posto na educação escolar, valorizando pensamento e emoção, o saber e o fazer, o futuro e o presente, enfim, a complexidade humana.

Palavras-Chave: Complexidade; Escola; Freinet; Morin

Abstract

This paper was written with the central objective of showing how two authors – Célestin Freinet and Edgar Morin –, apparently with different trajectories, are approached by the need to build another school, which is not only concerned with transmitting abstract and isolated contents of concrete reality of its students, but that develops an educational process that effectively cares about the human being in all its completeness. To this end, we sought to describe, albeit briefly, some methodological clues for this purpose. In the case of Célestin Freinet, there is the natural method used by him in his pedagogical action; in Edgar Morin, we have the notions of complexity and transdisciplinarity. There is still the world of ideas and knowledge in both. From this description, the following approximation between the two authors’ thinking can be evidenced: there is a school that devitalizes, that compartmentalizes knowledge, empties the contents of what has meaning for students, is more concerned with coping with the curriculum than with the formation of the human person, being necessary, therefore, to look for ways to form a social being integrated to his/her particular group and to the world in general. In the end, it is hoped that this approach will help in the search for different views from what is put in school education, valuing thought and emotion, knowledge and action, the future and the present, in short, human complexity.

Key words: Complexity; School; Freinet; Morin

Introdução

Somente uma outra maneira de agir e de pensar pode levar-nos a viver uma outra educação que não seja mais o monopólio da instituição escolar e de seus professores, mas sim uma atividade permanente, assumida por todos os membros de cada comunidade e associada a todas as dimensões da vida quotidiana de seus membros.

(HARPER; CECCON; OLIVEIRA; OLIVEIRA, 1987, p. 117).

O conceito de educação, nas sociedades modernas, está indissoluvelmente ligado ao de escola e ao papel que é destinado a essa instituição: realizar, junto às novas gerações, o que a sociedade pretende que seja a formação ideal. Mas a escola moderna também vem desenvolvendo outras funções, em especial as de agir como mecanismo de controle de conflitos sociais e de promover um processo de homogeneização cultural, devido à forte influência exercida pelo espírito do capitalismo e suas consequências – burocratização da vida social, ideologia do desenvolvimentismo e da mobilidade ascensional, tecnificação geral da existência etc. –, e pela despersonalização efetuada pelo excesso de racionalização presente nas relações entre indivíduos e grupos.

Boa parte da literatura sobre educação escolar é pródiga em mostrar que, nas sociedades industriais (ou que pretendem ser), o objetivo da escola tem sido o de formar indivíduos para o mercado de trabalho, desconsiderando que é o educando que deve ser considerado o fim do processo, e não o meio para se obter o que quer que seja.

Em contraponto a essa dominação, pensadores e educadores vêm buscando incessantemente outras teorias e práticas pedagógicas que possam reconhecer e considerar a rica polifonia do social; as culturas sociais e individuais diferenciadas, que permitem as trocas constantes, propiciadas por diferentes percepções de mundo; as relações harmônicas e/ou conflituais que se estabelecem entre os componentes da escola, em especial entre professores e alunos; os saberes apriorísticos que os alunos trazem de seu cotidiano (excelente matéria a ser trabalhada pelos professores!), juntamente com os conhecimentos decorrentes do desenvolvimento científico. Tudo isso em constante interação no cotidiano escolar, formando um todo complexo, potencialmente resultando em um processo educativo, para além daquela função específica de transmitir os conteúdos previamente selecionados, tidos como os mais importantes para os educandos.

É sobre outra concepção de educação escolar, que leva em conta essas questões, que tratamos neste artigo. Para isso, vamos nos valer de propostas de organização do currículo escolar e de práticas pedagógicas com base em dois pensadores franceses, Célestin Freinet e Edgar Morin, que têm exercido importante influência nas reflexões sobre educação e, especificamente, sobre o papel da instituição escolar, tentando mostrar como seus ideais se aproximam na intenção de encontrar saídas saudáveis para a escola contemporânea. De Célestin Freinet, partimos do seu método natural como pedra angular para a elaboração de uma perspectiva baseada no interesse intrínseco de aprender, vigorosamente minado pela educação escolar. De Edgar Morin, tomamos a noção de complexidade e, relativamente ao ensino, as noções de inter e transdisciplinaridade, tão ausentes na escola contemporânea, disciplinar e conteudista. Na sequência, buscamos entrelaçar suas ideias, com o objetivo de revelar concepções de educação e ser humano fundamentais para a sociedade contemporânea.

Afinal, cada um deles, a seu modo e de acordo com suas crenças teóricas, tentou construir uma nova ideia de ser humano, que vai se fazendo pelo caminho, e não como um produto final e acabado.

Apesar das diferenças de formação acadêmica e funções exercidas – Freinet como mestre-escola e Morin, sociólogo de formação, com estudos e pesquisas nos campos da filosofia, da antropologia e, especialmente, da epistemologia – ambos caminham sobre um solo paradigmático comum, partilhado também por muitos educadores do século XX, dos quais podem ser lembrados, entre outros, Rudolph Steiner, Carl Rogers, Anton Makarenko, Francisco Ferrer Guardia, Maria Montessori, Alexander Sutherland Neill, José Pacheco e, no Brasil, Anísio Teixeira, Rubem Alves e Paulo Freire. Aliás, tomamos o termo solo paradigmático da noção de paradigma de Thomas Kuhn (1982), o qual explica ser uma estrutura absoluta de pressupostos que alicerça uma comunidade científica, indicando a constelação de crenças (metodológicas e teóricas), valores, técnicas etc., partilhada pelos membros dessa comunidade. Portanto, compartilhar um solo paradigmático é comprometer-se com as mesmas regras e padrões para a prática científica.

Edgar Morin vai mais além. Para ele (2002), o paradigma se inscreve no indivíduo, influenciado não só pelo campo científico, mas por sua cultura, de forma a organizar, com alto grau de radicalidade, os modos de pensar, sentir e agir de uma época. Embora inconsciente, o paradigma irriga o pensamento consciente, desempenhando um papel subterrâneo e soberano nas doutrinas, teorias e ideologias de uma época, ao mesmo tempo em que é regenerado por elas, mostrando-se pelos resultados que o alimentam.

Um paradigma entra em crise quando os grandes sistemas interpretativos que ele alimenta perdem a capacidade de explicar uma realidade cada vez mais complexa, heterogênea e plural. Pressupostos explícitos, conscientes, deslizam para o inconsciente, para o nível do implícito, tornando-se obstáculo para o diálogo e para a compreensão dos fenômenos científicos e dos fatos sociais. Mas essa mudança não se dá abruptamente, é muito lenta, por vezes percorre séculos antes de se afirmar.

Na educação, o paradigma ainda dominante é o da racionalidade técnica com as consequências para a escola descritas no início deste artigo. Entretanto, ele vem deixando de responder adequadamente à compreensão da realidade, porque pressupostos inicialmente explícitos, conscientes, estão deslizando para o inconsciente, para o nível do implícito, tornando-se obstáculo para o diálogo e para a compreensão dos fenômenos sociais e culturais, que, anteriormente desconsiderados ou ignorados, começam a se fazer presentes cada vez mais intensamente, colocando em xeque a crença na estabilidade e na harmonia de grupos e sociedades.

Uma dessas consequências é a percepção de que, se não é possível reduzir os indivíduos ao macroestrutural, tampouco se pode diluí-los no grupo. Embora Crespi (1983) explique que um indivíduo encontra, ao nascer, um sistema de mediações simbólicas já determinado, que vai levá-lo a estabelecer suas relações com o self, com o Outro, com o mundo, e que constitui a estrutura concreta de sua situação existencial, nessas relações a criatividade e inventividade serão constantes e inexoráveis, num processo de desorganização e reorganização infinito não apenas de suas condições de vida, mas também, consequentemente, da sociedade e, no limite, da humanidade.

Outra característica de uma possível mudança de paradigma, que tem a ver com o conteúdo desenvolvido neste artigo, é a percepção de que a escola, árida em princípio, pode ser reencantada por meio de práticas, cuja missão seja a de mostrar e ilustrar o destino multifacetado do ser humano: como espécie humana e como indivíduo, ser social e histórico, todos entrelaçados e inseparáveis. Sem se esquecer de que a ação humana não é só racional em seus meios e fins, mas é igualmente guiada pelos afetos, pelas emoções, pela criatividade, até mesmo pelos atos que aparentam não ter sentido. E é por meio do processo educacional que se permite ao educando o encontro com o melhor de si, com o mais perto de sua completude. Portanto, mais do que somente adaptá-lo ao mundo exterior, a escolarização é (pelo menos deveria ser) o meio de realizar suas potencialidades, formá-lo para si mesmo, para desfrutar seu próprio ser e o mundo que o cerca. E parece que essa é a crença básica desses dois autores.

Ao final, espera-se que essa aproximação entre os princípios do método natural de Freinet, revelado pelo seu empirismo como professor da escola básica, e os pressupostos da complexidade de Morin, forjados na profunda reflexão a respeito de uma emaranhada ordem/desordem do caos mundano, venha a colaborar com a construção de novos e mais profundos olhares, valores e fundamentos da educação escolar.

Célestin Freinet e o método natural: a educação escolar revirada

[...] ouvia-se a sineta; produzia-se imediatamente como que um vazio no nosso ser. A vida detinha-se ali, a escola começava: um mundo novo, totalmente diferente daquele em que vivíamos, com outras regras, outras obrigações, outros interesses, ou, o que é mais grave, com uma ausência por vezes dramática de interesse.

(FREINET, 1975, p. 63).

Célestin Freinet (1896-1966) foi um professor francês que nasceu e viveu sua infância na região da Provença, no sul da França, e estudou na Escola Normal de Nice. Isso autoriza a inferir que tenha estudado as principais correntes pedagógicas do Ocidente, em textos como a Paideia grega, a escolástica da idade média (trivium e quadrivium), a Didactica Magna de Comenius e, sobretudo, o Emílio de Rousseau. Provavelmente também não passou incólume às novas correntes de pensamento da época, em especial as socialistas e anarquistas, e aquelas que propunham uma outra percepção do ser humano, integral na sua constituição física, psíquica, social e mental, e que já anunciavam algumas mudanças paradigmáticas.

Freinet sempre esteve ligado ao ensino de crianças de seu país, mas, não satisfeito com os métodos utilizados na escola, desejava criar um sistema mais livre e democrático de educação. Tais métodos, ainda apoiados num solo paradigmático clássico, desenvolviam-se com base numa lógica redutivista, simplificadora, fechada, que não permitia o desenvolvimento de uma postura criativa, de incentivo à descoberta, ao interesse e ao prazer da criança. Na busca desses objetivos, procurou desenvolver uma metodologia centrada na criança, não como um indivíduo isolado, mas como parte de seu grupo social, resultando em uma escola, cuja ação seria um elemento ativo de mudança social.

Ao escrever seu primeiro livro sobre o método natural, Freinet (1977a) identificou que a escola tradicional, da transmissão de conhecimentos previamente selecionados, supostamente importantes para os mais novos, acaba por desvitalizar o gosto natural pelo aprendizado. Torna obrigatório, sob pena de sanção (física, mental, psicológica, de liberdade etc.), o estudo sistemático de coisas, sejam elas interessantes, relevantes, importantes ou não (a maioria das vezes, não). Percebeu, então, “que a escola é a inimiga da tentativa” (FREINET, 1977a, p. 70), reconhecendo que, mesmo depois de muitos anos de frequência aos bancos escolares, produzem-se vários egressos que até conseguem decifrar os códigos da escrita, mas não compreendem o que estão lendo. Segundo o autor, isso decorre de uma completa ausência de bom senso nas práticas educativas, que são realizadas pelo método mecânico de ensino, ao invés do natural.

O método natural, percebeu Freinet (1977a), é o que permite a uma criança aprender a falar e a caminhar, por exemplo. Não há imposição de regras estruturais, não há horas de lições tomadas na frente de um quadro-negro, sugerindo os meios corretos para que se fale ou se ande, impondo a todos o mesmo ritmo; pelo contrário, cada um desenvolve essas habilidades em seu tempo. Mas, explica o autor, caso o desenvolvimento dessas aptidões ficasse a cargo da escola, acreditar-se-ia que todas as crianças iriam engatinhar para sempre, se nenhum adulto/professor interviesse e os forçasse a andar corretamente. Da mesma forma, as crianças permaneceriam balbuciantes, se não houvesse o constrangimento, por meio de métodos corretos de repetição sistemática, até a aquisição da fala adequada.

Não obstante, caminhar e falar não são propriamente conteúdos escolares, então é permitido se desenvolver naturalmente. A escrita, por outro lado, é forçada praticamente desde os primeiros dias de escola, com a apresentação de movimentos válidos, repetidos à exaustão. Para além do treino da destreza, impõem-se as regras de gramática e sintaxe, como a conjugação verbal, por exemplo. Tudo isso antes mesmo de qualquer tentativa de escrita, afinal a humanidade já sabe escrever, então a escola seria o local, ou o meio, ou a instituição mais adequada para desenvolver essa capacidade. Mas, a escola, como inimiga da tentativa, impede que a criança se arrisque a rabiscar antes do treino e das regras, sob pena, talvez, de permitir que ela se orgulhe de sua própria criação – tal qual no relato de Freinet (1977a, p. 79) sobre uma criança livre para experimentar seu próprio poder (de ser): “[...] e que encanto no dia em que, molhando os dedos na tinta, produz, apenas pela magia dos seus gestos, grandes manchas que ganham ares de árvores, de homens ou de monstros, vivos, móveis e transformáveis!”.

Decorrem dessas constatações sobre o encantamento de aprender, diversas críticas aos métodos clássicos de escolarização, nomeados por Freinet (1977b) como um ensino mecânico, desvitalizado. Primeiro, considera essa forma de ensinar como uma “mera pedagogia da aquisição” (FREINET, 1977b, p. 14, grifo nosso) e/ou uma “pedagogia de simples rendimento” (FREINET, 1977b, p. 15, grifo nosso). A aquisição e o rendimento como foco tendem a minar o gosto pela vida, que se torna mecânica, estéril, praticamente sem sentido. A escola da aquisição e do rendimento não prepara para a vida, mas, pelo contrário, torna-a sem graça, inibindo a alegria de se experimentar o trabalho legítimo, escolhido por interesse, e até mesmo os sonhos.

Sua proposta se centraliza, pois, na criança e se baseia em alguns princípios, especialmente sobre o senso de responsabilidade e de cooperação, a condição de refletir sobre e de realizar escolhas próprias, o desenvolvimento da comunicação e da criatividade e, principalmente, a autonomia. Para tanto, utiliza em sua ação pedagógica, técnicas ou processos de aprendizagem, como o desenho livre, o texto livre, as aulas-passeio, a correspondência interescolar, o jornal, o livro da vida (diário e coletivo), o dicionário dos pequenos etc., com o objetivo de favorecer o desenvolvimento dos métodos naturais da linguagem (desenho, escrita, gramática), da matemática, das ciências naturais e das ciências sociais.

Para Freinet, educar é construir juntos. Nesse sentido, sua pedagogia pode ser considerada uma prática libertadora, uma vez que os problemas da vida e da prática social são discutidos em grupos e avaliados cooperativamente para realização e reorganização do trabalho conjunto.

Freinet (1977b) não poupa elogios para o método natural, acreditando que nesse se esconde uma exaltação do espírito que o ser humano nunca experimenta, pois é limitado a seguir regras, adquirir conhecimento e demonstrar rendimento. Acredita, dessa forma, que o simples impulso ao método natural pode ser capaz de transformar positivamente o mundo, pois as pessoas não estarão voltadas ao egoísmo e à produtividade, mas ao interesse de se encantar pela própria vida. “A vida é uma conquista”, afirmou Freinet (1977b, p. 15), “se se tornou numa luta, aos nossos erros comuns o deve. Só o esforço solidário das boas vontades poderá franquear à criança um futuro à medida das suas esperanças”.

Shimizu (1984) já havia mapeado críticas basilares de Freinet ao modo da escola que não respeita a tentativa experimental. Segundo a autora, o método mecânico desvia dos interesses e abafa a vontade natural de aprender. Além disso, oprime, por meio de recompensa e/ou punição, a curiosidade, o desejo de investigar e aprender as coisas da vida, impondo-se sobre esses conceitos alegóricos. Ao submeter as crianças (e os adultos) ao método tradicional de ensino, cria-se um ambiente escolar separado da vida, estabelecendo um círculo vicioso no qual o que se aprende na escola serve à escola, quase sempre para obtenção de bons resultados em avaliações internas ou externas – como os exames vestibulares que servem de acesso a mais escolarização estéril, ou as provas que medem uma suposta qualidade do ensino.

Contudo, importante anotar que o método natural identificado por Freinet (1977b) não é contrário às explicações intelectuais, às regras, aos conceitos e ao treinamento. Tudo isso deve existir num ambiente escolar, mas depois, e somente depois, da liberdade de experimentar, de tentar, de acertar e de errar sozinho ou em conjunto. Primeiro, simplesmente se escreve qualquer coisa, com rabiscos irreconhecíveis que se tornam letras, depois viram palavras que se transformam em frases, parágrafos, textos completos... aí, sim, chega-se à oportuna ocasião de apresentação das regras gramaticais, ortográficas e sintáxicas, das revisões e correções. Esse período próprio para o estudo regrado foi identificado por Freinet (1977b, p. 28) como o momento em que as experiências se tornaram “indeléveis técnicas de vida”.

Eis, então, que a proposta educativa de Freinet (1977b), pelo método natural, pode ser elucidada: não se começa a ensinar pelo treino das habilidades, pela transmissão intelectual das regras e dos conceitos, mas pela liberdade de experimentar, estabelecendo um ambiente em que o sinal de entrada não seja um símbolo de interrupção da vida, mas de início de um processo de tentativa e erro, de curiosidade, de trabalho interessante. Quando a tentativa progride até um ponto em que já se descobriu como fazer, inicia-se, então, o trabalho mais estruturado, organizado, regrado. “O processo é realmente infalível”, afirmou Freinet (1977b, p. 28), “mas pressupõe uma reviravolta total da técnica educativa”.

Reviravolta necessária, afinal parece haver um moto-perpétuo de protestos, tanto por parte do professorado quanto por parte do alunado, a respeito da escola. Já em Freinet (1975) tínhamos o registro dos docentes reclamando que os estudantes não se interessavam pelo aprendizado oferecido pela escola, apresentando baixíssimo rendimento na leitura e na escrita. Da mesma forma, lemos sobre os estudantes com semblantes perturbados indo à aula e saindo aos gritos de alegria quando soava a sineta, liber(t)ando-os. Relatos e cenários ainda amiúde presentes no cotidiano escolar, como retratados em entrevista recente, por Pessoa de Carvalho (2016), na qual a autora reconhece a renovação constante como meta e desafio da docência, pois a sociedade, logo, o alunado, reiteradamente se transforma.

Isso nos faz pensar que, talvez, valesse a pena tentar sobrepor o método natural ao tradicional. Mas, redundantemente, voltamos ao estigma de que a escola é contrária à tentativa, portanto, perpetua-se.

Edgar Morin e o pensamento complexo: implicações para a ação da escola

Os avanços das ciências não estão ligados apenas às especializações por disciplinas, mas também às transgressões de especializações, à elaboração de teorias gerais e, hoje, a reagrupamento transdisciplinares. A baixa complexidade social opera a disjunção entre especializações, policompetência, competências gerais. A alta complexidade reclama a conjunção de tudo isso.

(MORIN, 2012, p. 189-190).

De acordo com Morin (1992, p. 14), em O problema epistemológico da complexidade, a complexidade não se reduz à complicação, mas a um problema decorrente da dificuldade de pensar, “porque o pensamento é um combater com e contra a lógica, com e contra as palavras, com e contra o conceito”. O pensamento complexo funda-se, pois, nas noções de pluralidade e complexidade dos sistemas físicos, biológicos e antropossociais. Enfrenta a incerteza, a inseparabilidade, as insuficiências da lógica dedutiva-identitária, os limites da indução e do princípio de identidade. Não há mais fundamento último ou único para o conhecimento, nem ordem soberana num universo onde caos, desordens e eventualidades obrigam-nos a negociar com a incerteza. Não há conhecimento pertinente sobre objetos fechados, separados uns dos outros, mas a necessidade de contextualizar o conhecimento particular e, se possível, de introduzi-lo no conjunto ou no sistema global de que ele é um momento ou parte.

O pensamento complexo propicia uma visão global da sociedade, na qual o que é rejeitado como resíduos irracionais ou não racionais considerados pela lógica clássica, racional, como elementos desintegradores, são também fundamentais para a interação e reorganização dos sistemas. Permite, também, entender os níveis de emergência da realidade sem reduzi-los a níveis elementares e a leis gerais, e, relativamente ao ser humano, como um unitas multiplex, uma unidade complexa (genética, cerebral, intelectual, afetiva) do homo sapiens-demens, que se expressa em seus modos de pensar, sentir e agir, de acordo com o sistema simbólico de significados, produto e produtor de sua cultura e nunca o único possível. Nessa perspectiva, afirma Morin (2000a, p. 47), os seres humanos “devem reconhecer-se em sua humanidade comum e ao mesmo tempo reconhecer a diversidade cultural inerente a tudo que é humano. Conhecer o humano é, antes de mais nada, situá-lo no universo, e não separá-lo dele”.

A complexidade resulta, também, na possibilidade da existência de conflitos, do contraditório, do diferente, do plural, no interior dos grupos sociais e na relação destes com o meio em que vivem, e se exprime através da diversidade cultural, constituindo-se numa auto-organização complexa, um sistema autopoiético ou autoprodutor, oposto ao sistema alopoiético. Nesse sentido, a objetividade, elemento primeiro e fundador da verdade e da validade das teorias científicas, é produto de um consenso sociocultural e histórico, não estabelecida a priori, mas incessantemente autoproduzida e reconstruída. Assim, Morin (1997) propõe três princípios do pensamento complexo fundamentais para o que ele denomina reforma do pensamento e, consequentemente, do conhecimento e da educação: o princípio dialógico, fundado na associação complexa (concorrente, complementar e antagônica) de instâncias necessárias à existência, ao funcionamento e ao desenvolvimento de um fenômeno organizado; o princípio recursivo, em que todo momento é, ao mesmo tempo, produto e produtor, causa e causador; e o princípio hologramático, em que a parte está no todo e, de certa forma, o todo está na parte.

Como operadores do pensamento complexo, o autor propõe utilizar a razão dialógica (e-ou), não binária, que articula totalidades e o tertium datur, o terceiro elemento que a lógica clássica não inclui na relação; rejuntar pares de opostos (mas, também) que o pensamento simplificador disjunta; ligar o par sujeito-objeto num continuum; invibializar o determinismo mecanicista; realizar a polarização natureza-cultura; e encaminhar para a comunicação-elaboração transdisciplinar.

Entretanto, na contramão dessas constatações, as sociedades modernas vêm privilegiando uma ideologia de produtivismo e de progresso, cuja consequência mais importante é a racionalização exagerada da existência, expressa pela tecnoburocracia que domina todos os setores da vida social. Segundo Edgar Morin (2001), essa visão racionalista de mundo, que vem dominando tais sociedades a partir do século XVIII, com a consequente identificação entre o real, o racional, o calculável e a eliminação da desordem, da subjetividade, concorreu para que essa razão técnica se tornasse instrumento de poder, ou seja, de dominação, e implantou uma ordem racionalizadora, pela qual tudo o que possa ser desorganizador se configura como demente ou criminoso – tal como visto no célebre Vigiar e punir, de Michel Foucault (2001).

No nível micro, apenas o pensar e raciocinar vem monopolizando as propostas de ações, desconsiderando o sentir, as afetividades, as ações criativas, as relações entre os alunos e destes com os professores, enfim as irracionalidades, a não ser para ignorá-las ou para convertê-las em resultados quantificáveis. Caso contrário, serão ignoradas, quando não eliminadas ou punidas. No nível macro, o domínio dessa ideologia expressa-se pela adaptação das pessoas a normas, modelos sociais e a ideais de produtivismo e de progresso. De acordo com o Morin (2001), esse pensamento dominante é empobrecedor, porque se funda numa razão fechada, cujos princípios são simplificação, generalização e disjunção. Ou seja, reduz o complexo ao simples, ao separar a realidade em fragmentos; rejeita o acaso, a desordem, o singular; separa o sujeito do objeto e este do seu ambiente; elimina a incerteza, a ambiguidade, o contraditório e a complexidade do real. Acaba, pois, por impor um projeto de redução generalizada, tanto do indivíduo, quanto da sociedade e suas instituições.

Quanto à escola, tal projeto acaba por impor um currículo baseado em disciplinas, causando uma fragmentação e desarticulação dos conhecimentos que podem conduzir ao isolamento disciplinar. No livro A cabeça bem-feita, bastante difundido entre as comunidades escolares, Edgar Morin (2000b, p. 112-113) se refere às consequências da disciplinaridade, sendo que “as disciplinas são plenamente justificáveis, desde que preservem um campo de visão que reconheça e conceba a existência das ligações e das solidariedades [...] se não ocultarem realidades globais”. Para o autor, a organização do currículo baseada na disciplina, mesmo sendo positiva ao circunscrever e responder à diversidade das áreas de conhecimento instituídas pelo desenvolvimento científico na modernidade (sem as quais o conhecimento seria intangível), também pode acarretar consequências negativas. Entre elas, podem ser citadas as seguintes: sendo uma categoria organizadora dentro do conhecimento científico, contribui para instituir a divisão e a especialização do conhecimento e, em decorrência, das práticas pedagógicas, que podem ser tornar fragmentadas e, pior, descontextualizadas; acarreta o perigo da hiperespecialização e da coisificação do objeto estudado, correndo-se o risco de se esquecer que o objeto em si é uma parte do conhecimento global; promove um isolamento em relação às outras disciplinas e aos problemas que se sobrepõem ao currículo e à escola; e, pior, desenvolve uma mentalidade de proprietário, que proíbe incursões consideradas espúrias em seus domínios, em sua parcela do saber.

Nesse mesmo livro, Morin (2000b) apresenta duas posturas diferentes, entre outras possíveis, quanto ao desenvolvimento do currículo escolar e às práticas pedagógicas inerentes: a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade.

Ele propõe que, dadas as condições atuais da escola, é viável utilizar a interdisciplinaridade, com os devidos cuidados, porque ela pode tanto significar a junção de disciplinas sem a necessária ligação, quanto a troca e cooperação entre elas, uma organicidade, que é o desejado. A interdisciplinaridade exige a reorganização do espaço escolar, não mais como uma instituição formalizada, quase imobilizada por regras e deveres, mas como um lugar de ensino-aprendizagem que se configura como um espaço de vida, de trocas, de desenvolvimento, cuja tarefa pedagógica é garantir que as interações entre indivíduos e grupos produzam um conhecimento que retroaja sobre eles mesmos.

Mas o que pretende mesmo é uma concepção transdisciplinar de conhecimento, pois o reconhecimento da complexidade exige uma comunicação e elaboração transdisciplinar, na qual as áreas de estudo e de pesquisa precisam recorrer às disciplinas diversas e à policompetência do pesquisador e do professor. Portanto, a transdisciplinaridade não consiste no domínio sobre as disciplinas, mas ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das disciplinas e além de qualquer disciplina, e na abertura dessas àquilo que as transpassa.

A aplicação de uma metodologia transdisciplinar exige, pois, um pensamento complexo, tal como foi proposto neste artigo, o que exige ipso facto uma mudança de olhar sobre os fatos humanos, em outras palavras, um outro paradigma que permita uma análise mais rica e complexa da realidade e encaminhe para uma antropolítica, ou seja, uma política do ser humano envolvendo mutações organizacionais e educativas em profundidade. O próprio autor reconhece a dificuldade da transdisciplinaridade no atual tratamento curricular, justamente por exigir outro esquema cognitivo, que possibilite ultrapassar uma visão determinista e estritamente causal da vida social, conforme explicitado anteriormente.

Em resumo, em um processo mais amplo, é preciso buscar práticas pedagógicas que contribuam, segundo Bruno Duborgel (1992, p. 2), para reequilibrar, harmonizar um ser humano imaginante, sujeito do “pensamento direto”, que ele contrapõe ao “pensamento indireto”, mediado pela ciência, que conduz ao conhecimento positivo, objetivo, racional de mundo. Não um ensino com caráter meramente reprodutório, mas que permita a criatividade e a inventividade. Nesse sentido, Paula Carvalho (1988, p. 180) acredita ser possível liberar o processo educacional da lógica social de dominação, da hipocomplexidade e da repressão, de modo a viabilizar a emergência do complexo, do multiforme, da polifonia, e aos indivíduos uma consciência do real que não limite suas relações com o mundo pela percepção imediata do que tem nele.

Freinet e Morin: uma outra escola é possível?

As ciências participam da construção da sociedade de amanhã com todas as suas contradições e incertezas. Elas não podem renunciar à esperança, elas que, nos termos de Peter Scott, exprimem da maneira mais direta que “o mundo, o nosso mundo, trabalha sem cessar para estender as fronteiras do que pode ser conhecido e do que pode ser fonte de valor, para transcender o que é dado, para imaginar um mundo novo e melhor”.

(PRIGOGINE, 1996, p. 98).

Célestin Freinet nasceu em 1896, portanto, na virada do século, quando as concepções sobre ensino e escola eram muito rígidas, no tempo do magister dixit. Entretanto, na contramão, sempre se manteve aberto a todas as experiências pedagógicas, buscando formas alternativas de ensino, questionando a maneira tradicional, cujos conteúdos, para ele, nada tinham a ver com a realidade da criança e, portanto, não traziam nenhum estímulo à aprendizagem. Ele acreditava que só se aprende passando pela experiência de vida, de modo que a escola deve ser viva, ativa, dinâmica, aberta para o encontro com a vida, um local no qual o exercício do pensamento e da criatividade esteja sempre presente e a serviço da sociedade. Desse modo, o trabalho é fundamental, não o manual necessariamente, mas aquele que engloba a pesquisa, a documentação e a experimentação.

Edgar Morin, por sua vez, vem desenvolvendo sua obra ao longo do século XX e início deste século, preocupando-se basicamente com o desenvolvimento de um novo olhar sobre os fenômenos humanos. Segundo o autor, a aventura humana do conhecimento consiste em interrogar, ininterruptamente, o universo, de modo que o conhecimento resulta no autoconhecimento. Embora não tenha se formado mestre-escola como Freinet, também se preocupa com a concepção de escola e de ensino, os quais não conseguem identificar conhecimentos com Conhecimento. Ou seja, enquanto os conhecimentos são ministrados por meio de ideias especializadas, operacionais e precisas, mas que não informam sobre o sentido da vida, o Conhecimento comporta possibilidades de responder às incertezas, à complexidade do mundo.

Na escola, Freinet relata que viveu, como jovem estudante, os dissabores de uma educação mecânica, descontextualizada e sem sentido com a vida. Mais tarde, quando assumiu a função de professor, viu-se compelido a buscar meios de fazer diferente. Havia voltado da guerra, pensando que, se a educação fosse desvitalizada, não teria algo a contribuir para aplacar tanto ódio entre as pessoas. Percebeu que na educação escolar faltavam ingredientes fundamentais para a promoção de uma vida individual e coletiva mais fértil, saudável e colaborativa, como o simples bom senso, capaz de permitir e possibilitar que a frequência aos bancos escolares fosse mais significativa para as crianças (e, mais tarde, para os adultos).

De certa forma, isso se parece com algumas das ideias centrais de Morin a respeito da educação para a humanidade, ao evidenciar, por exemplo, que a escola deveria ocupar-se em contextualizar o conhecimento, inserindo-o num todo mais amplo, complexo e significativo. Paradoxalmente, a educação escolar não se guia pelo bom senso, pois, ao invés da complexidade das coisas, empreende esforços para a alegoria do simples, rejeitando a criatividade, a subjetividade, a incerteza, a desordem. Esse empenho para simplificar as coisas resultou num ensino disciplinar, como se a complexidade do mundo pudesse ser repartida e cada pedaço compartimentado de acordo com suas características singulares.

De forma mais clara, o ensino reducionista criou uma matemática, uma geografia, uma história que se fecham em si mesmas, isto é, que podem ser estudadas e compreendidas isoladamente, sem que sejam entendidas como partes fundamentais de uma ampla e complexa existência mundana. Daí a proposta de Morin, para superar essa simplificação, das noções de interdisciplinaridade (que não seria uma mudança radical do status quo disciplinar, pois serve para ajudar a compreender as conexões possíveis/existentes entre as disciplinas) e de transdisciplinaridade (esta, sim, uma forma diferente de se trabalhar os conteúdos escolares, longe da compartimentação, mas valendo-se da ligação do que foi disjunto pela simplificação disciplinar).

Nos escritos de Freinet, embora não tenham sido mencionados os conceitos de inter e transdisciplinaridade, as técnicas que o autor empregava no ensino das crianças eram suficientes para evidenciar que ele compreendia a complexidade da existência, pois não havia compartimentação dos conteúdos, ou seja, não se começava pela aula de matemática, passando para aula de história, depois ciências. O ensino era impulsionado justamente por aquilo que ele percebeu e que a escola tradicional se negava a permitir: a tentativa e erro.

Se a escola era inimiga da tentativa, como postulou Freinet, a sua escola era guiada pela própria reviravolta que cunhou: primeiro o estudante é livre para tentar fazer, depois a fazer novamente, e de novo, até que as tentativas se tornem motivação suficiente para que se continue melhorando. Isso vale para o desenho, para a escrita, para a leitura, matemática, ciências, ou, como idealizou Morin, para qualquer conhecimento contextualizado. A forma de trabalho da escola de Freinet é a concretização do ensino mais criativo e menos reprodutivo pelo qual anseia Edgar Morin.

Ao promover uma escola amiga da tentativa, Freinet deixava-se guiar por aquilo que acreditava – que aprender é algo natural, e que desejar aprender é humano –, ao mesmo tempo em que colocava em prática sua crítica de que a escola não deveria ser mecânica, mas orgânica, sendo um lugar de aprendizagem da vida, incluindo a vida coletiva em regime de cooperação.

Morin, por sua vez, deixa expressa a necessidade de que a existência humana não pode ser guiada pelo produtivismo, pela tecnoburocracia, pela racionalidade, sendo fundamental, portanto, que a instituição criada pela e para a própria educação humana não fique refém da simplicidade inventada. No processo educativo, deve-se reconhecer o que há de comum no ser humano e, ao mesmo tempo, o que o diferencia das outras espécies vivas e os seres humanos entre si. Ou seja, a educação deve ser algo muito mais amplo, vivo e complexo do que a rotina estabelecida pelas lições disciplinares que, há séculos, se tornaram o modus operandi da escola.

Certamente, tanto Freinet quanto Morin elucidam isso, tanto pela prática de mestre-escola, quanto pela teoria de quem investigou o ser humano pela ótica da ciência, da psicologia, da filosofia, da antropologia, do misticismo, da religiosidade, enfim, por um olhar que não reduz para simplificar, mas que considera que o todo não é a soma das partes, mas a relação entre elas.

Portanto, voltando à questão colocada no início desta seção, acredita-se, com Freinet e Morin, em uma outra escola, que, fundada sobre tais princípios, é possível. Certamente não uma escola burocratizada, dividida em turmas e classes, com práticas obsoletas de avaliação, com currículos e conteúdos previamente previstos em manuais e apostilas, mas que relaciona os vários níveis de realidade e de conhecimentos, e que propicia uma visão complexa e global da sociedade. Até porque, ainda que em caráter singular, muitas experiências nesse sentido – e de formas próprias –, têm sido levadas a termo em diferentes lugares. Incluindo-se o Brasil.

Considerações finais

O saber nos confere poder. O saber e o poder nos levaram à Lua e já para fora do sistema solar. Mas a serviço de que projeto de ser humano, de sociedade e de mundo utilizamos o poder da ciência e da técnica? A resposta a essa questão pede mais que ciência e técnica. Exige uma filosofia do ser e uma reflexão espiritual que nos fale do Sentido de todos os sentidos e que saiba organizar a convivência humana sob a inspiração da lei mais fundamental do universo: a sinergia, a cooperação de todos com todos e a solidariedade cósmica. Mais importante que saber é nunca perder a capacidade de sempre mais aprender.

(BOFF, 1999, p. 17).

Iniciamos este artigo com algumas observações importantes a respeito da função da escola que, no plano ideal, serve à formação das novas gerações para a vida em sociedade, mas, no cotidiano, tem como foco a transmissão de conteúdos disciplinares, quase sempre descontextualizados, porém listados nos planos curriculares. Pensamos, portanto, que uma outra escola seria possível, afinal Freinet e Morin mostram isso. Embora não tenham trabalhado em conjunto, provavelmente tampouco tenham se conhecido, é perceptível a convergência das ideias de ambos naquilo que compreendiam como mais necessário. Assim, pode-se dizer que cada um a seu modo e de acordo com suas crenças teóricas tentam construir uma nova ideia de ser humano, que vai se fazendo pelo caminho – isto é, metodologicamente – e não como um produto final e acabado. O humano na humanidade.

Cada vez com mais intensidade, a escola vem deixando de responder adequadamente à compreensão da realidade, desconsiderando ou ignorando aspectos do cotidiano que se fazem presentes de forma cada vez mais marcante, colocando em xeque a crença na estabilidade e na harmonia de grupos e sociedades.

Uma dessas consequências é a percepção de que, se não é possível reduzir os indivíduos ao macroestrutural, tampouco se pode diluí-los no grupo, ignorando a estrutura concreta de sua situação existencial, na qual a criatividade e inventividade serão constantes e inexoráveis, num processo de desorganização e reorganização infinito de suas condições de vida e, consequentemente, da sociedade e, no limite, da humanidade.

Outra característica de uma possível mudança de paradigma, que tem a ver com o conteúdo desenvolvido neste artigo, é a percepção de que a escola, árida em princípio, pode ser reencantada por meio de práticas, cuja missão seja a de mostrar e ilustrar o destino multifacetado do ser humano: como espécie e como indivíduo, ser social e histórico, todos entrelaçados e inseparáveis. Sem se esquecer de que a ação humana não é só racional em seus meios e fins, mas é igualmente guiada pelos afetos, pelas emoções, pela criatividade, até mesmo pelos atos que aparentemente parecem não ter sentido.

E é por meio do processo educacional que se permite ao educando o encontro com o melhor de si, com o mais perto de sua completude. Portanto, mais do que somente adaptá-lo ao mundo exterior, a escolarização é (pelo menos deveria ser) o meio de realizar suas potencialidades, formá-lo para si mesmo, para desfrutar seu próprio ser e o mundo que o cerca. E parece que essa é a crença básica desses dois autores.

Ao final, espera-se que essa aproximação entre os princípios do método natural de Célestin Freinet, revelado pelo seu empirismo como professor da escola básica, e os pressupostos do pensamento complexo de Edgar Morin, resultantes de seus estudos e pesquisas, venha a colaborar para a construção de novos e muito mais profundos olhares, valores e fundamentos da educação escolar.

Até porque, como bem delineou Morin (2000b, p. 55), “É a unidade humana que traz em si os princípios de suas múltiplas diversidades. Compreender o humano é compreender sua unidade na diversidade, sua diversidade na unidade”. E é a pessoa humana a razão última da educação, a qual não deve, assevera Freinet (2004, p. 13), ser apenas uma forma de trabalho da escola, “mas sim uma obra de vida”. Obra essa que não se reduz, não se simplifica, não se torna mecânica.

Uma outra escola, portanto, não é somente possível, mas desejável e necessária.

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Recebido: 02 de Fevereiro de 2019; Revisado: 27 de Abril de 2019; Aceito: 14 de Agosto de 2019

Ivan Fortunato é doutor em Desenvolvimento Humano e Tecnologias e doutor em Geografia, ambos pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho de Rio Claro. É coordenador do grupo de pesquisa Formação de Professores para o Ensino Básico, Técnico, Tecnológico e Superior (FoPeTec).

Maria do Rosário Silveira Porto é doutora em Educação pela Universidade de São Paulo. Pesquisadora do grupo de pesquisa Formação de Professores para o Ensino Básico, Técnico, Tecnológico e Superior (FoPeTec).

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