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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.46  São Paulo  2020  Epub 06-Ago-2020

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202046220336 

Artigos

Hipóteses docentes sobre o fracasso escolar nos anos iniciais do Ensino Fundamental1

2- Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara, SP, Brasil. Contato: claudiaprioste@gmail.com


Resumo

O fracasso escolar no Brasil é crônico e complexo, portanto, torna-se relevante uma escuta atenta daqueles que lidam com os desafios cotidianos das escolas públicas. Esta pesquisa teve o objetivo de identificar as hipóteses docentes sobre as dificuldades na aprendizagem escolar e analisar alguns aspectos subjacentes às explicações dadas por eles. A coleta de informações foi realizada por meio de 133 questionários e grupos focais com professores do Ensino Fundamental I. Utilizou-se a análise temática de conteúdo e frequências de palavras para sistematização e interpretação dos resultados. A maioria dos professores, 88%, afirma que as dificuldades de aprendizagem estão relacionadas principalmente à falta de apoio e de estímulo das famílias; 69% destacam os aspectos relacionados aos alunos, como falta de interesse, de atenção, de pré-requisitos, além de problemas emocionais e de indisciplina. Ressaltam, ainda, questões pertinentes às políticas públicas: redução da idade para matrícula no EF sem as devidas adaptações estruturais na escola, material didático inadequado e a progressão continuada sem apoio às crianças com dificuldades. Concluímos que tais explicações se, em um primeiro momento, sugerem preconceitos quanto às famílias e alunos, em uma análise criteriosa, revelam sintomáticas contemporâneas da sociedade de consumo, dissonâncias na relação família-escola e desvalorização da educação. As falas dos professores denunciam um mercado de apostilas e de formações que desqualificam seus saberes. Os cursos formativos, apelidados de deformações docentes, parecem descontextualizados das problemáticas concretas enfrentadas pelas instituições públicas. Por fim, as falas também evidenciam o universo de manipulações midiáticas dos interesses e valores das famílias e dos alunos.

Palavras-Chave: Fracasso escolar; Dificuldades na aprendizagem; Alfabetização; Formação docente; Mídia e infância

Abstract

Academic failure in Brazil is chronic and complex, therefore it is significant to listen carefully to those who deal with everyday challenges in public schools. The purpose of this research was to identify the teachers´ hypotheses concerning the difficulties in learning at school and to analyze some aspects underlying the explanations provided by those teachers. Information was collected by means of 133 questionnaires and focus groups with teachers working on Elementary School level. Thematic analysis of contents and the frequencies of words were used in order to systematize and interpret the results. Most teachers, 88 percent, explain that difficulties in learning are related mainly to the lack of support and encouragement by the student`s families; 69 percent highlight aspects associated with students, such as lack of interest, of attention, of preconditions, in addition to indiscipline and emotional problems. They also emphasize issues pertaining to public policies: reduced age for registration in Elementary School without the corresponding structural adaptations in the school, inadequate teaching materials, and continued academic progression without supporting the children with learning difficulties. We have concluded that even if such explanations, at a first look, indicate prejudices against families and students, upon careful examination, they reveal contemporary symptoms of the consumerist society, dissonances in the family-school relationship, and depreciation of education. What teachers say is an denounce of a market of handouts and workbooks, beside some types of training which dismiss their knowledge. The training courses, nicknamed teacher deformations by teachers, seem to be out of the context of the concrete problems faced by the public schools. Finally, what teachers say also bespeak the universe of mediatic manipulations towards the interests and values of families and students.

Key words: Academic failure; Learning difficulties; Literacy; Teacher training; Media and childhood

Introdução

No Brasil, tradicionalmente, as dificuldades no processo de aprendizagem escolar têm sido explicadas em função de possíveis deficiências físicas ou psicológicas das crianças e de seus familiares. Nos anos de 1980, os estudos de Maria Helena Patto acerca do fracasso escolar promoveram uma nova perspectiva para compreensão dos efeitos das desigualdades sociais na educação básica brasileira. Os resultados da pesquisa revelaram um sistema educacional produtor de obstáculos aos próprios objetivos, com destaque ao caráter tecnicista do trabalho pedagógico, à desumanização dos contatos pessoais e às ultrageneralizações carregadas de preconceitos. A autora conclui que o fracasso escolar seria “administrado por um discurso científico que, escudado em sua competência, naturaliza esse fracasso aos olhos de todos os envolvidos no processo” (PATTO, 2000, p. 414).

O fracasso escolar também tem sido explicado a partir de teorias sociológicas, especialmente, a falta de capital cultural das famílias pobres, outra versão do preconceito de classe. Charlot (2005) considera que as pesquisas de Bourdieu sobre o capital cultural têm sido usadas de maneira equivocada. Argumenta que não basta ser filho do... ou da... para que se obtenha o tal capital, a herança cultural não é uma transmissão automática, “é preciso também estudar, entrar num trabalho intelectual. E para ‘transmitir’ esse ‘capital cultural’ a seus filhos, é preciso igualmente se esforçar muito” (CHARLOT, 2005, p. 39).

O autor questiona o uso midiático da expressão fracasso escolar, utilizada de uma maneira ampla e simplista. Para Charlot (2008, p. 16), “O ‘fracasso escolar’ não existe; o que existe são alunos fracassados, situações de fracasso, histórias escolares que terminam mal”. Em sua análise, o fracasso escolar pode ser compreendido, em um primeiro momento, a partir da diferença de expectativas quanto aos resultados do desempenho do aluno, contudo, não se trata apenas de uma diferença: “é também uma experiência que o aluno vive e interpreta e que pode constituir-se objeto de pesquisa” (CHARLOT, 2008, p. 17).

Explicações genéricas e simplistas também têm sido adotadas por parte dos psicólogos. Em geral, há uma tendência de os psicólogos interpretarem as dificuldades na aprendizagem escolar enfatizando os problemas familiares, intrapsíquicos e psicodinâmicos, com negligência dos fatores relacionados ao processo de escolarização da criança (SOUZA, 2000; SOUZA, 2010). Trata-se de um psicologismo que reforça a culpabilização dos alunos e de seus familiares.

Uma revisão de literatura acerca do fracasso escolar empreendida por Angelucci et al. (2004), com enfoque nas publicações ocorridas entre os anos de 1991 e 2002, constatou que as explicações continuaram semelhantes às que foram destacadas por Patto (2000), culpando principalmente as crianças e suas famílias. No entanto, também foi identificado o crescimento de pesquisas que atribuíam aos professores a causa do fracasso escolar, com ênfase em suas defasagens formativas e em seus preconceitos.

Na análise de Souza (2010), uma série de fatores relacionados às políticas públicas educacionais brasileiras têm contribuído para a produção de professores e alunos fracassados. Com relação ao funcionamento escolar produtor de professores fracassados, a autora destaca os seguintes aspectos: autoritarismo na implementação de políticas na educação; troca de professores durante o ano letivo; desorganização da rotina escolar; baixos salários; ausência de espaços sistemáticos de formação docente e de reflexão a respeito de práticas pedagógicas; desqualificação dos saberes docentes e falta de infraestrutura de apoio. Para Prioste (2011), a falta de apoio aos docentes faz com que eles se sintam solitários e desenvolvam expectativas por laudos psicológicos que expliquem os problemas de seus alunos.

Em relação especificamente às dificuldades na aprendizagem da leitura e da escrita, Mortatti (2013) considera que predominam as explicações voltadas à incapacidade da criança para aprender, dos professores para ensinar, além do pouco envolvimento das famílias na vida escolar dos filhos; explicações que a autora julga serem reducionistas. Mortatti (2016) enfatiza que, nas três últimas décadas, as didáticas construtivistas tornaram-se hegemônicas nas políticas de formação docente como promessa de superação do analfabetismo. Porém, constata-se que a concretização de tais promessas estaria longe de ser efetivada: “[...] as boas intenções político-pedagógicas anunciadas inicialmente pelos defensores do construtivismo, vêm se perdendo para o analfabetismo funcional de gerações de brasileiros” (MORTATTI, 2016, p. 763). A autora tece críticas ao modelo de formação docente direcionado por uma perspectiva procedimental em que o papel do professor seria reduzido a um “facilitador”, “diagnosticador/avaliador” ou “incentivador”, focado no “como fazer” ou no “aprender a aprender”.

Se, na década de 1980, os estudos de Patto (2000) analisaram os históricos de repetência como indicadores de fracasso escolar, a partir das políticas públicas de progressão continuada, o fracasso tornou-se cada vez mais dissimulado. Nos relatos de professores têm sido frequentes as queixas de que as crianças avançam de séries sem serem alfabetizadas e algumas concluem o Ensino Fundamental sem saber ler e escrever.

Em meio aos fracassos, o mercado aproveita para criar mecanismos lucrativos. Lucra com as formações docentes, cursos, apostilas e com a medicalização dos que se sentem fracassados, sobretudo de professores e alunos. Na perspectiva de Collares; Moisés (2010), embora não se possa negar que alguns problemas para aprender tenham interferência de fatores biológicos, há um interesse da indústria farmacêutica em ampliar seu mercado para o público infantil, assim, boa parte do que se tem denominado transtornos na aprendizagem se refere às dificuldades que ocorrem em crianças normais e saudáveis.

Ao considerar essa perspectiva, optamos por utilizar, nos questionários, a expressão dificuldades na aprendizagem, pois o processo de escolarização envolve dificuldades transitórias que não deveriam ser tratadas, a priori, como doenças, transtornos psicológicos, tampouco como fracassos. Supomos que a maior parte das dificuldades na aprendizagem poderiam ser superadas por meio de acolhimento às famílias e às crianças; maior apoio ao professor; mudanças no contexto educacional e nas estratégias pedagógicas. Isso não significa negar que alguns casos possam se beneficiar de tratamentos psicológicos, médicos ou de outros especialistas da área da saúde. Nesse aspecto, reforçamos a importância de compreendermos os contextos escolares e os problemas que os docentes têm enfrentado em seu cotidiano.

De acordo com Souza (2010), é crescente o preconceito contra professores das escolas públicas: “Esses profissionais vêm sendo depositários das mazelas do ensino, vistos como incompetentes, malformados, egoístas e sem compromisso com seus alunos” (SOUZA, 2010, p. 241-242). Consideramos que uma visão preconceituosa não contribui para que possamos avançar em uma perspectiva mais aprofundada da complexidade envolvida no ensino e aprendizagem, sobretudo nas escolas públicas. Desse modo, neste trabalho, priorizamos uma escuta atenta aos docentes, com o objetivo de compreender suas explicações a respeito das dificuldades escolares enfrentadas por seus alunos, bem como analisar alguns fatores subjacentes aos seus principais argumentos.

Desenvolvimento

Neste artigo, apresentamos parte de uma pesquisa mais ampla, intitulada As próteses televisuais e a aprendizagem escolar3, cujo objetivo foi identificar os possíveis efeitos dos hábitos televisuais infantis em seus processos educativos. O recorte aqui apresentado se restringe à primeira etapa da pesquisa, cujo objetivo foi investigar as hipóteses docentes a respeito das dificuldades na aprendizagem.

Imbuídos de uma perspectiva heurística, antes de questionarmos se os hábitos televisuais das crianças poderiam prejudicar ou ajudar no desempenho escolar, procuramos entender os fatores que os professores julgavam mais relevantes. Inspiramo-nos na Teoria Fundamentada, Grounded Theory, cuja proposta é partir das interpretações dos envolvidos no problema para, em seguida, investigar os processos subjacentes às afirmações e explicações apresentadas (TAROZZI, 2011). Embora nosso estudo não tenha tido o propósito de elaborar propriamente uma teoria, pautamo-nos em uma abordagem qualitativa exploratória-explicativa para tecer algumas explicações mais elaboradas. Entendemos o conhecimento “como um processo socialmente construído pelos sujeitos nas suas interações cotidianas, enquanto atuam na realidade, transformando-a e sendo por ela transformados” (ANDRÉ, 2013). Desse modo, os procedimentos investigativos buscaram, de um lado, explorar as hipóteses docentes a respeito das dificuldades na aprendizagem, e, de outro, aprofundar seus argumentos ao desvelar aspectos relevantes ao problema abordado.

A pesquisa foi desenvolvida com professores do Ensino Fundamental I, de escolas públicas municipais da cidade de Araraquara. A coleta de informações foi realizada em duas etapas: na primeira fase foram aplicados questionários durante um evento voltado à formação docente. Na segunda etapa, foram realizados encontros com grupos focais em duas escolas municipais, contando com a participação de 10 professores do Ensino Fundamental I em cada grupo, perfazendo um total de 20 professores. Os encontros, com duração de uma hora, tiveram o objetivo de conhecer as explicações acerca das dificuldades na aprendizagem escolar de seus alunos. O registro das falas nos grupos focais foi realizado por meio de anotações no diário de pesquisa.

O processo de elaboração do questionário incluiu um pré-teste com três professores, os quais contribuíram com sugestões para compreensão das questões. Na primeira parte do questionário, buscou-se identificar o tempo de atuação do docente; o número de turmas atendidas; a quantidade média de alunos por turmas; bem como a média de alunos que enfrentavam dificuldades na aprendizagem escolar. Na segunda parte, foram investigadas as hipóteses com a seguinte questão: Na sua visão, quais seriam as principais causas das dificuldades na aprendizagem escolar? A última pergunta do questionário tratou de investigar a influência dos dispositivos televisuais na aprendizagem escolar, porém, neste recorte, focaremo-nos apenas na primeira questão.

Para análise das respostas abertas, primeiramente, realizou-se uma leitura flutuante dos questionários e dos relatórios produzidos a partir dos grupos focais. Em seguida, procedeu-se uma seleção dos questionários que fariam parte da pesquisa, resultando em 133 participantes, dos quais 30 ministravam aulas no 1º ano; 29, no 2º; 27, no 3º; 22, no 4º; 25, no 5º. Importante destacar que a rede pública do município contava com 243 professores no Ensino Fundamental I. Portanto, nossa amostra contou com a participação de 54,73% dos docentes.

A seleção dos questionários foi realizada a partir dos seguintes critérios de exclusão: questionários incompletos; respondidos por professores que assumiam mais de uma turma, ou por professores de apoio, da educação especial e educação física. Também foram excluídos os questionários respondidos por docentes que assumiam as funções de direção, coordenação e supervisão. Critérios de inclusão: professores polivalentes que assumiam exclusivamente uma turma por ano e os questionários com a maioria dos itens respondidos. Buscou-se, assim, tornar a amostra mais homogênea, considerando a possiblidade de comparar a visão docente nas etapas distintas.

Os procedimentos de sistematização das informações foram baseados na proposta de análise de conteúdo de Bardin (2009). A opção por essa abordagem esteve relacionada à necessidade de maior rigor na pesquisa. Nesse sentido, iniciamos por uma análise de conteúdo temático-categorial apoiada na frequência das palavras de cada eixo temático.

As respostas foram digitadas em tabelas no software Excel, nas quais os nomes dos professores foram substituídos por códigos alfanuméricos. A análise qualitativa da questão aberta partiu de uma leitura inicial por meio da qual foram elaboradas as seguintes categorias: aspectos relacionados às famílias; aspectos relacionados aos alunos; aspectos pertinentes ao sistema educacional, contexto escolar e abordagem metodológica; aspectos socioeconômicos e culturais; falta de apoio fora da escola (exemplo: falta de diagnóstico, necessidade de acompanhamento psicológico ou médico); e, por fim, desvalorização da educação ou do professor. O processo de categorização de dados exigiu análise do contexto da frase para identificar seu sentido. Desse modo, algumas respostas foram desmembradas e incluídas em mais de uma categoria, por exemplo, a resposta do professor C17: “Falta de interesse e comprometimento dos pais com os filhos e a escola. Imaturidade e indisciplina dos alunos. Além dos problemas sociais”. No desmembramento, uma parte foi incluída nos aspectos familiares; outra nos aspectos relacionados aos alunos; e, por fim, nos aspectos sociais. Além do software Excel para elaboração de gráficos e da frequência das palavras, utilizamos o software Nvivo, por meio do qual criamos figuras ilustrativas em formato de nuvens de palavras.

Resultados e discussão

A maioria dos professores atuava no Ensino Fundamental há 11 anos ou mais (64,66%). Do total, 39,10% tinham entre 10 e 15 anos de experiência e 25,56% mais de 16 anos. Constatamos que a maior parte dos professores apresentava um tempo satisfatório de experiência profissional na área, sendo que apenas 15% exerciam a profissão há menos de dois anos. A experiência poderia ser uma vantagem, pois os professores já teriam passado pela fase inicial de adaptação, podendo assumir o lugar de produtores de conhecimento, como propõe Nóvoa (1991). No entanto, identificamos que pelo engessamento do sistema educacional, somado à desvalorização dos saberes docentes, eles, quase sempre, sentiam-se tolhidos em sua autonomia pedagógica, demonstrando frustração com a profissão.

No que tange às dificuldades na aprendizagem, 96,24% dos professores responderam que tinham em suas turmas crianças com problemas para aprender, estimando-se em média 6,8 alunos por classe, sendo que, segundo as respostas, a média de alunos matriculados em cada turma era de aproximadamente 24. Observa-se, na Tabela 1, que no 1º ano a média de crianças com dificuldades era de 5,96 menor do que no 5º ano, a qual era de 8,04 alunos por turma.

Tabela 1 Estimativa de alunos com dificuldades na aprendizagem por turma 

Etapa Estimativa total de alunos com dificuldades na aprendizagem escolar Média de alunos com dificuldade por turma
1º ano 155 5,96
2º ano 184 6,57
3º ano 148 5,92
4º ano 169 7,68
5º ano 177 8,04
Total 833 6,834

Fonte: dados da pesquisa.

Nos grupos de discussão, não havia clareza do que era esperado em termos de aprendizagem em cada ano, pois, independentemente dos resultados nas avaliações diagnósticas e processuais, os alunos avançariam de etapa em função das políticas de progressão continuada. Na visão dos professores, a exigência de alfabetizar as crianças até a idade de 8 anos, conforme o Pacto de Alfabetização na Idade Certa – PNAIC (BRASIL, 2012), era incompatível com as metodologias propostas e com as condições de trabalho docente, além disso, propunha um ideal de aluno, distante da realidade das periferias. Portanto, o PNAIC também não oferecia parâmetros plausíveis em relação à aprendizagem.

No que se refere aos encaminhamentos para o apoio escolar ou para uma avaliação com a equipe da educação especial, havia uma norma nas escolas proibindo indicar as crianças do primeiro e do segundo ano. A maior parte dos professores discordava, pois acreditava que as dificuldades na aprendizagem poderiam ser percebidas no início do processo de alfabetização e o quanto antes fossem identificadas e trabalhadas maiores seriam as chances de superação. Além disso, muitas vezes, não se encaminhavam as crianças em decorrência da falta de professor de apoio. Desse modo, nos anos subsequentes, as dificuldades acumulavam-se, agravando-se ano a ano.

A maior porcentagem de crianças consideradas com algum problema de aprendizagem concentrava-se nos quartos e quintos anos, corroborando outras pesquisas sobre as queixas escolares em que os encaminhamentos aos serviços de psicologia eram mais frequentes nessa etapa, quando as crianças estavam com idade aproximada de 9 anos (BRAGA; MORAIS, 2007).

Apresentamos, a seguir, os resultados da análise das respostas dos professores a respeito das principais causas das dificuldades na aprendizagem. É importante destacar que as categorias foram criadas, a posteriori, a partir dos questionários, complementadas com as informações obtidas nos grupos focais.

As explicações sobre as dificuldades na aprendizagem escolar

Os resultados evidenciam que as causas das dificuldades na aprendizagem são atribuídas principalmente às famílias e às crianças, corroborando os estudos de Patto (2000), Mortatti (2013) e Prioste (2011). As palavras família e familiar, somadas, constaram 105 vezes nas respostas aos questionários. Identificamos que 87,97% dos professores mencionam as famílias como principal fator relacionado às causas das dificuldades na aprendizagem escolar. A maior parte associava outras causas, porém, 16,54% se referiram somente às famílias.

Dos motivos citados pelos professores, em segundo lugar estão os aspectos relacionados aos alunos, mencionados por 69,92% dos participantes; em terceiro, estão os fatores pertinentes ao sistema educacional, ao contexto escolar e aos aspectos teórico-didáticos, referidos por 39,10%; em quarto, estão os fatores sociais, incluindo questões socioeconômicas e culturais, citados por 19,55%; em seguida, os fatores relacionados à falta de apoio fora da escola, compreendendo 9,77%; e, por fim, a desvalorização da educação ou dos professores, mencionado por 4,51%, conforme evidenciado no gráfico 1.

Fonte: dados da pesquisa.

Gráfico 1 Percentual de professores em relação às hipóteses mencionadas 

Aspectos relacionados às famílias

Os professores consideram que as dificuldades de aprendizagem decorrem principalmente da falta de apoio e interesse dos familiares às questões escolares das crianças, bem como da desestrutura familiar. Falta é a palavra-chave para se entender a visão dos professores em relação aos pais e foi mencionada 78 vezes. As palavras incentivo e estímulo, usadas com um mesmo sentido, somam 21 citações. A palavra apoio foi mencionada 18 vezes. Falta de estrutura ou a desestrutura familiar, somadas, têm 18 menções. Destacam-se também, a falta de interesse ou o desinteresse, perfazendo um total de 15 citações; além da falta de comprometimento e de acompanhamento. Em um grupo focal, uma professora do segundo ano lamentou: “as famílias não estão nem aí. Este ano eu me sinto tudo, menos professora; sou babá e socorrista. Tenho que ficar apartando as brigas. Como vou conseguir dar aula assim?”

Fonte: dados da pesquisa.

Figura 1 Nuvem de palavras mais frequentes na categoria dos aspectos relacionados à família 

Esses resultados revelam que os professores criam expectativas de que as famílias possam oferecer apoio e estímulo às crianças, que acompanhem suas atividades escolares e se comprometam com a escola. Ou seja, esperam que os pais transmitam normas disciplinares e estímulos escolares que talvez nunca tenham recebido, eles próprios. Evidenciam, ainda, uma visão romantizada de família ao atribuírem as dificuldades de aprendizagem à desestrutura familiar. Sarti (2007), em sua pesquisa acerca de famílias em situação de vulnerabilidade social, considera que “a primeira característica a ressaltar sobre as famílias pobres é sua configuração em rede, contrariando a ideia corrente de que essa se constitui em um núcleo” (SARTI, 2007, p. 29). Essa visão idealista de família nuclear dificulta propostas que acionem uma rede de cuidados à criança para além da mãe e do pai.

Ainda no que tange à participação das famílias, 9 docentes queixaram-se do absentismo dos alunos: “as faltas atrapalham muito”, escreveu um professor. Nos grupos focais, eles atribuíam o absentismo ao desinteresse das famílias pela escola, à desvalorização cultural da educação e principalmente aos problemas com álcool e drogas ilícitas dos pais.

Por que os professores tendem a culpar principalmente as famílias pelo fracasso escolar? Na análise de Patto (2000), uma perspectiva científica racista teria contribuído para que os professores tivessem uma visão negativa das famílias pobres, atribuindo a elas todos os defeitos morais e psíquicos. Ademais, culpar as famílias seria uma maneira de se eximir das responsabilidades pedagógicas. De acordo com Charlot (2005), o fracasso escolar do aluno produz um sofrimento narcísico no professor, o qual é intensificado à medida que o fracasso se repete, a despeito de tentativas e esforços em ajudar a criança a superar suas dificuldades. Diante da frustração, as explicações focadas na deficiência sociocultural das famílias ganhariam ênfase. Prioste (2011) e Souza (2010) destacam o sentimento de impotência do professor, a falta de apoio e de espaços para reflexão acerca de suas práticas e dificuldades, contribuindo para o apego às explicações simplistas.

Contudo, é preciso cuidado com generalizações para que o alvo do preconceito não se desloque das famílias aos professores. No contato mais próximo com os docentes, identificamos aqueles que procuravam meios para maior envolvimento dos pais no processo educativo. Encontramos professores que utilizavam diversas estratégias para ajudar as crianças na superação de suas dificuldades; alguns chegavam a elaborar materiais didáticos com os próprios recursos financeiros, criavam apostilas e jogos pedagógicos, além de utilizarem seus horários destinados ao planejamento para oferecer reforço escolar.

Nesse sentido, destacamos algumas dificuldades relatadas pelos professores, as quais julgamos que deveriam ser mais bem examinadas com a finalidade de propor ações educativas e políticas públicas: a percepção de que tem aumentado o número de alunos, cujos pais e mães são adolescentes; de que os problemas com álcool e drogas ilícitas têm sido frequentes nas famílias, contribuindo para a violência doméstica; de que muitas crianças têm sido cuidadas por avós ou parentes contrariados com essa função; de que uma grande parte das famílias parece mais preocupada com os objetos de consumo do que com a educação dos filhos; de que os familiares passam muito tempo diante das televisões ou dos aplicativos de aparelhos celulares, sem conversar com as crianças; da permissividade das famílias quanto à exposição infantil aos conteúdos midiáticos violentos ou de sexualidade; de que a escola tem sido vista não como um local para educação e sim como uma espécie de depósito de crianças. Além desses fatores, também é importante ressaltar a visão dos professores em relação à maneira pela qual a gestão pública trata as famílias, ou seja, por meio de um clientelismo paternalista, não responsabilizando-as em termos de direitos e deveres.

Para Dufour (2005), um grande problema enfrentado pelos professores refere-se ao novo perfil de crianças que chega às escolas, o qual é denominado por ele de homo zappiens, em uma referência ao hábito de zapear, à dificuldade de tolerar frustrações e à exposição a um fluxo contínuo de imagens velozes. Afirma que “as crianças que hoje chegam à escola são frequentemente crianças empanturradas de televisão desde sua mais tenra idade. Está aí um fato antropológico novo, cujo total alcance não se avaliou ainda” (DUFOUR, 2005, p. 120). Considera que as crianças passam mais tempo diante das telas do que no convívio familiar, o que pode ter efeitos na capacidade simbólica. Além disso, ressalta que ao chegarem à escola, as crianças encontram um ambiente discursivo de negação geracional, ou seja, uma pedagogia do laissez-faire, cuja autoridade docente torna-se cada vez mais questionável em favor de uma suposta educação democrática, calcada em um ideal de criança feliz e sem frustrações.

Portanto, se os professores atribuem os problemas de aprendizagem escolar principalmente às famílias, ao invés de tratarmos seus argumentos apenas no âmbito das queixas repetitivas, seria importante ajudá-los a compreender o contexto de formação de valores e interesses da comunidade escolar como um todo; bem como propor políticas públicas que pudessem auxiliar as escolas a planejar atividades educativas com as famílias.

Aspectos relacionados aos alunos

Se na visão dos professores a família está em falta, às crianças também faltam requisitos ou competências que, supostamente, impedem ou dificultam a aprendizagem escolar. 69,92% dos participantes da pesquisa relacionaram as causas das dificuldades na aprendizagem aos déficits dos alunos, com destaque à falta de interesse, de atenção, de concentração, de disciplina; bem como à falta de maturidade, de pré-requisitos, de bagagem, somados aos problemas emocionais. O conjunto de palavras que mais se destacou refere-se ao desinteresse ou à falta de interesse, perfazendo um total de 36 menções. Alguns exemplos dos registros nos questionários: “imaturidade, falta de interesse, falta de pré-requisitos” (professora do 1º ano); “desinteresse e apatia pela escola” (professora do 2º ano); “desinteresse da criança, já vem com defasagem muito pontual que faz com que a criança não avance” (professora do 4º ano); “desinteresse, defasagem de conteúdos” (professora do 4º ano).

Fonte: dados da pesquisa.

Figura 2 Nuvem de palavras mais frequentes na categoria dos aspectos relacionados aos alunos 

Em um exame atento ao registro dos professores nos questionários, identificamos que, nos primeiros anos, o desinteresse aparece vinculado à imaturidade, à falta de atenção e de pré-requisitos. Nos grupos focais, eles queixavam-se das famílias que tratavam os filhos como bebês e das escolas de Educação Infantil que estavam deixando de desenvolver nas crianças as supostas competências prévias necessárias à alfabetização.

A terceira palavra mais citada foi problema, mencionada 25 vezes, presente em frases do tipo: “problemas cognitivos e emocionais”; “problemas na fala”; “problemas de disciplina”; “problemas psicológicos”, bem como problemas relacionados à saúde. Também merecem destaques: a falta de atenção, mencionada 16 vezes; falta de concentração, 9 vezes; indisciplina, 8 vezes e apatia, 9. Nos grupos focais, prevalecia a concepção de que esses problemas deveriam ser resolvidos pelas famílias ou por tratamentos psicológicos, fonoaudiológicos e médicos.

O relato acerca do aluno M., do terceiro ano, que não estava alfabetizado, consiste em um exemplo: a professora descreveu M. como “uma criança muito agressiva, principalmente fora da sala de aula. Ele já possui prescrição médica psicológica para utilizar remédios controlados, mas a mãe parou de medicá-lo por conta própria”. Outros casos semelhantes foram citados nos grupos focais, revelando as expectativas de tratamentos medicamentosos das dificuldades escolares, como evidenciado por Collares; Moyses (2010). Um estudo mais aprofundado do caso de M. identificou que a família tinha um histórico de fracassos escolares, sobretudo o pai. Havia também um contexto de violência doméstica e, por fim, descobriu-se que o menino passava as noites jogando games violentos. Além disso, houve trocas de escolas e o aluno ficou um semestre sem estudar devido à mudança de residência dos pais. O contexto de M. envolvia uma somatória de fatores complexos e desfavoráveis ao sucesso escolar.

A partir das falas docentes, nos questionários e grupos focais, procuramos elencar algumas considerações que podem nos ajudar a compreender a percepção dos professores sobre o desinteresse das crianças. O primeiro aspecto está relacionado à mudança legislativa de idade para início no Ensino Fundamental, pois, segundo os professores, as crianças têm sido matriculadas aos 6 anos, ou até menos, sem que as escolas tenham adaptado suas estruturas. Uma professora relatou: “os pezinhos ficam soltos, balançando, nem alcançam o chão”. Também afirmam que não houve adaptação do currículo e do material pedagógico.

A redução da idade para matrículas das crianças de 6 anos no Ensino Fundamental I ocorreu a partir da Lei 11.274 (BRASIL, 2006). Essa alteração da lei gerou polêmicas e alguns estudos indicam que sua implementação ocorreu sem garantir mudanças estruturais nas escolas, sem adaptações nos currículos, sem preparo das equipes pedagógicas e com pouca clareza dos propósitos, contribuindo para perpetuação dos fracassos no âmbito da alfabetização (PANSINI; MARIN, 2011).

O segundo aspecto que destacamos da fala dos professores está relacionado a uma possível falta de pré-requisitos, os quais não teriam sido desenvolvidos no ambiente familiar, nem na Educação Infantil. Os professores referem-se à falta de atenção, de concentração, de memorização, de coordenação motora, além de dificuldades na fala e problemas cognitivos.

O debate acerca do papel da educação infantil no desenvolvimento das funções psíquicas é extenso e não pretendemos nos estender nesse quesito, porém, é importante mencionar que no Brasil há uma histórica distinção entre a função da escola de educação infantil privada e pública. Grosso modo, a primeira prepara e desenvolve habilidades para o sucesso no Ensino Fundamental, a segunda, guarda as crianças enquanto as mães trabalham. Pesquisas realizadas na cidade de Araraquara em escolas públicas de Educação Infantil identificaram que o trabalho docente estava fundamentado em uma perspectiva assistencial, espontaneísta e com práticas oriundas do senso-comum, com pouca sistematização das atividades pedagógicas (SILVA; HAI, 2012; BARBOSA; SILVA, 2016). É provável que a falta de um trabalho pedagógico sistematizado na Educação Infantil possa afetar o desenvolvimento de algumas habilidades importantes ao processo de alfabetização, no entanto, talvez o termo pré-requisito seja reducionista e limitador, revelando que os professores do Ensino Fundamental idealizam uma criança pronta para ser alfabetizada.

Além dos aspectos supramencionados em relação aos problemas das escolas de educação infantil, precisamos refletir a respeito das atividades realizadas pelas crianças no contexto familiar e que talvez possam prejudicar o desenvolvimento das funções psicológicas. Nos últimos anos, tem aumentado o número de pesquisas que relacionam o excesso de tempo das crianças diante das telas e as dificuldades na atenção, concentração e na fala (DUFOUR, 2005; DESMURGET, 2012). Uma revisão de literatura a respeito dos efeitos das telas no desenvolvimento infantil empreendida por Esseily et al. (2017) destaca que os efeitos prejudiciais dos dispositivos televisuais recaem sobretudo no desenvolvimento da linguagem, da capacidade de atenção e na interação pais e filhos. Há uma correlação entre os distúrbios de atenção e a precocidade em que criança começa a assistir à televisão. Em nosso estudo, identificamos que as principais atividades das crianças ao chegarem em casa estavam relacionadas a algum dispositivo televisual (PRIOSTE, 2016).

Um terceiro aspecto a ser destacado refere-se ao interesse das crianças pelas atividades escolares. De acordo com Desmurget (2012), os dispositivos televisuais não somente podem afetar o desenvolvimento das funções psíquicas como também podem interferir no interesse das crianças por atividades que exijam esforço cognitivo. Os professores relataram que os interesses das crianças estavam voltados aos objetos de consumo, produtos de marcas, além de novelas, desenhos e jogos digitais.

O quarto aspecto que merece destaque, e que foi bastante enfatizado nos debates, diz respeito à inadequação do material didático ao perfil das crianças. De um modo geral, os professores consideravam que as apostilas do primeiro e do segundo ano não eram direcionadas ao processo de alfabetização. Todo o conteúdo partia do pressuposto de que a criança já estivesse alfabetizada, criando um grande problema ao docente, que além de ter de se responsabilizar pela elaboração dos materiais para alfabetizar, precisava fazer com que as crianças preenchessem as apostilas como se já soubessem ler e escrever, pois o registro dos conteúdos ministrados eram exigidos por parte das instâncias gestoras. Essas exigências podem ter contribuído para que uma parte das crianças chegassem ao terceiro ano sendo consideradas copistas.

No tópico seguinte, detalharemos a problemática do sistema apostilado no município e o sentimento de impotência dos professores ao ter seus conhecimentos pedagógicos desqualificados.

Por fim, ainda com relação às questões pertinentes aos alunos, os professores citaram problemas emocionais (15 vezes), psicológicos (5 vezes), neurológicos (3) bem como de indisciplina e falta de regras (11). Problemas emocionais ou psicológicos são expressões vagas. Contudo, de acordo com os relatos docentes, podemos pressupor uma educação marcada por negligências por parte dos adultos, ao mesmo tempo individualista e consumista, sem desenvolver nas crianças o senso de coletividade e tolerância às frustrações. Além disso, é importante considerar as vivências traumáticas decorrentes de violência familiar e comunitária.

No que tange às questões de indisciplina e falta de regras, não se pode dizer que estejam necessariamente relacionadas aos problemas emocionais das crianças, é preciso considerar que o contexto escolar deveria focar no significado de ser aluno, trabalhar a importância da civilidade no espaço coletivo, com regras claras e compartilhadas com todos. Os estudos de Freller (2001) sobre a indisciplina escolar ressaltam a importância de a escola compreender e satisfazer algumas necessidades psíquicas das crianças, entre elas, destaca-se a necessidade de pertencimento, de acolhimento e de enraizamento.

Fatores relacionados ao sistema educacional e ao contexto escolar

Nos questionários, 39,10% dos professores consideraram a dimensão do sistema educacional, o contexto escolar, a capacitação docente, bem como a abordagem teórico metodológica como fatores que podem causar dificuldades na aprendizagem. Nos grupos focais esses aspectos foram bastante debatidos. Os professores queixavam-se principalmente da falta de autonomia na escolha da abordagem teórico-metodológica. Também mencionaram que as capacitações propostas pelo Pacto Nacional da Alfabetização na Idade Certa (BRASIL, 2012) não traziam contribuições significativas a uma prática pedagógica eficaz, ao contrário, quase sempre atrapalhavam, por isso apelidavam os cursos de deformação docente. Esse mercado de capacitações continuadas tem sido desmotivador aos professores, pois quase sempre são cursos descontextualizados, que partem de uma psicologia infantil idealizada e eurocêntrica, sem conexão com o perfil atual da criança da periferia brasileira, com seus históricos de racismo, exclusões e privações. São capacitações que, normalmente, negligenciam a complexidade dos fatores envolvidos nas relações de ensino e aprendizagem das escolas públicas.

Fonte: dados da pesquisa.

Figura 3 Nuvem de palavras mais frequentes na categoria dos aspectos relacionados ao sistema educacional e contexto escolar 

Outro aspecto relevante refere-se aos métodos apostilados, vendidos aos municípios sem um exame criterioso dos professores e sem pesquisas científicas sobre sua eficácia àquele público. Uma professora do primeiro ano comentou: “o material do X4 foi uma implementação por jogo político que acabou com a didática e a metodologia do professor”. Relataram que os professores, antes da chegada das apostilas, estavam entusiasmados desenvolvendo um material próprio para a alfabetização e se sentiram frustrados com a interrupção de suas pesquisas e com o confisco de seus livros didáticos. Uma professora do segundo ano criticou: “esse material foi implementado de forma impositiva, proibindo-nos de trabalhar com qualquer outro tipo de metodologia”. Uma professora do 3º ano relatou: “chegamos a trancar os livros didáticos nos armários da cozinha para esconder do pessoal da secretaria, pois eles passavam em uma perua coletando todos os nossos materiais”; outra docente afirmou que, desde então, começou a esconder seus livros no porta-malas do seu carro.

No que se refere aos aspectos metodológicos da alfabetização, a maior parte dos professores queixava-se de que suas experiências não eram levadas em consideração e que a ausência de um ensino sistemático “das partes para o todo” prejudicava a aprendizagem das crianças. Morais (2014) considera que as diretrizes para a alfabetização propostas pelo MEC, há décadas, negligenciam pesquisas internacionais acerca dos aspectos metodológicos mais eficazes para se ensinar a ler e escrever, o que ocorre devido a uma perspectiva ideológica, a qual domina as políticas públicas brasileiras limitando a autonomia do professor. Os relatos docentes também corroboram os estudos de Mortatti (2016), ao evidenciar que as promessas construtivistas não trouxeram respostas significativas para o problema do fracasso escolar no âmbito da alfabetização, deixando o professor como mero coadjuvante, facilitador e diagnosticador.

É importante destacar que, no ano de 2018, a Secretaria Municipal da Educação do referido município reabriu o debate sobre o material didático, possibilitando que os professores escolhessem os livros com os quais trabalhariam em 2019. Constatamos, assim, a relevância de nossas pesquisas para que os professores se sentissem confiantes em lutar por maior autonomia didática.

Outros aspectos

Os fatores sociais, econômicos e culturais foram mencionados por 19,55% dos professores. Algumas citações são amplas, do tipo: “problemas sociais” ou “fatores sociais”, outras, mais específicas: “pouca vivência em meios relacionados à cultura”, ou “falta de ambiente letrado”, as quais nos remete à discussão feita por Charlot (2005) acerca do equívoco de atribuir o fracasso escolar exclusivamente à falta de capital cultural. Também foram mencionadas privações básicas, por exemplo: “há crianças que não têm o mínimo necessário, muitas vezes vão para a escola sem almoço e café da manhã”.

Na categoria relacionada à falta de apoio fora da escola, mencionada por 9,77% dos professores, o que mais se destacou foi a “falta de diagnóstico”, “demora nos encaminhamentos”, e uma visão de que as crianças não são acompanhadas por profissionais competentes. Esses aspectos, que foram mais enfatizados nos grupos focais, revelam que há uma forte expectativa de que a maior parte dos problemas das crianças possa ser tratado por psicólogos, fonoaudiólogos e médicos.

Por último, temos a categoria da desvalorização da educação, mencionada por 4,51% dos docentes que responderam ao questionário. Frases do tipo “desvalorização da escola”; “desvalorização do professor e do papel da escola”; “a escola perdeu o significado” foram frequentes. Embora essa categoria tenha sido menos ressaltada nos questionários, nos grupos focais, era recorrente. Alguns professores repetiam que a escola tinha se transformado em um “depósito de crianças”, porque as famílias não valorizavam a educação, tampouco as instâncias gestores viam a escola como um local para educar. Identificamos que os professores se sentiam desvalorizados ao serem impedidos de propor uma abordagem didática que julgavam funcionar para seus alunos. Alguns professores alfabetizadores sentiam-se clandestinos por terem de alfabetizar às escondidas, com seus próprios materiais didáticos. Sentiam-se desvalorizados quando suas avaliações eram desconsideradas, quando não eram escutados com relação aos problemas que enfrentavam com suas turmas; quando não tinham apoio para os casos de inclusão; quando tentavam, sozinhos, ajudar uma família que passava dificuldades, sem o apoio da escola ou de outras instâncias gestoras. Por fim, sentiam-se desvalorizados quanto aos seus salários e às necessidades de acumular turmas, enfrentando uma sobrecarga de trabalho e de exigências.

Conclusões

O debate acerca do fracasso escolar no Brasil é amplo, complexo e multifacetado, especialmente quando se trata do ensino público. Nesse contexto, é essencial compreendermos a perspectiva dos professores que vivenciam complicadas problemáticas, ao mesmo tempo em que têm suas percepções e saberes, quase sempre, desqualificados pelas instâncias gestoras, pelo meio acadêmico de pesquisa e de formação docente.

A análise dos questionários revelou que 96% dos professores acreditavam que em suas turmas havia crianças com dificuldades na aprendizagem escolar, estimando-se uma média de 6,8 alunos por classe. Aproximadamente 88% dos docentes atribuíram essas dificuldades às questões familiares, principalmente ao desinteresse e à falta de apoio dos pais. Em segundo lugar, mencionaram os fatores relacionados às crianças (69,92%), destacando a falta de interesse, de atenção, de pré-requisitos, além de problemas emocionais e disciplinares. Os fatores pertinentes ao sistema educacional foram mencionados por 39% dos docentes; enquanto as questões socioeconômicas e culturais foram citadas por 19,55%. Os aspectos relacionados à falta de apoio fora da escola foram citados por 9,77%, e, finalmente, a desvalorização da educação ou dos professores, mencionados por 4,51% dos docentes. Essas últimas categorias foram significativamente enfatizadas nos grupos focais, ainda que tenham sido pouco mencionadas nos questionários.

Embora, em um primeiro momento, os resultados desta pesquisa apontem para um repertório de explicações estereotipadas que culpam principalmente as famílias e as crianças pelas dificuldades de aprendizagem, uma análise mais criteriosa e aprofundada dos questionários e dos grupos focais indicou que os professores estavam descontentes com as políticas públicas educacionais em âmbito federal e municipal. Na esfera federal, destacaram três aspectos: rebaixamento da idade para matrículas das crianças no Ensino Fundamental de 7 para 6 anos, sem as devidas adaptações estruturais do ambiente escolar, tampouco metodológicas; descontentamento quanto à chamada aprovação automática; além de críticas ao referencial teórico e às formações do Plano Nacional da Alfabetização na Idade Certa, apelidadas de deformações docentes.

No que concerne às políticas públicas municipais, os professores queixaram-se da falta de autonomia na escolha do referencial teórico-metodológico, com substancial insatisfação quanto ao material apostilado adquirido pelo município. Também mencionaram a falta de apoio às crianças que apresentavam dificuldades na aprendizagem, as quais avançavam de etapas, acumulando defasagens a cada ano. Por fim, questionaram o estilo de gestão pública em relação às famílias, pois predominava uma vertente assistencialista que não ajudava a implicar os pais na educação dos filhos.

A despeito de possíveis preconceitos dos professores quanto às famílias e às crianças, suas explicações revelam problemas estruturais de políticas públicas impostas com pouco reconhecimento dos saberes docentes; denunciam um mercado de apostilas e de formações continuadas descontextualizadas das reais necessidades das escolas públicas. Denunciam também o universo de manipulação midiática dos gostos e interesses das crianças, incluindo seus familiares. Manipulações direcionadas às satisfações narcisistas por meio de objetos de consumo, como forma de garantir algum sentimento de pertença e de reconhecimento social.

Concluímos que o diagnóstico que os professores tanto esperam não deveria ser de um aluno específico, mas sim, de toda a comunidade escolar. Quem são as crianças que estão iniciando o Ensino Fundamental? Quais são suas rotinas e hábitos? Quem são suas famílias, ou seja, com quem essas crianças podem contar? Quais são os valores e interesses familiares? Quais os possíveis históricos de fracasso escolar nessas famílias? O que significa para elas estudar?

Referências

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* English version by the author.

1- Uma parte deste trabalho foi apresentada no XII Encuentro Iberoamericano de Educación, na Universidad de Alcalá, em Alcalá de Hernanes, na Espanha, em novembro de 2017.

3- A pesquisa respeitou todos os procedimentos éticos e de sigilo aos participantes, conforme diretrizes da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). O projeto e o relatório final foram aprovados no Comitê de Ética da Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – Campus Araraquara.

4- Nome da empresa fornecedora das apostilas foi suprimido.

Recebido: 22 de Fevereiro de 2019; Revisado: 04 de Junho de 2019; Aceito: 14 de Agosto de 2019

Cláudia Prioste é doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP). Docente nos cursos de graduação em pedagogia e letras da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Campus de Araraquara. Atua nos programas de Pós-graduação em Educação Escolar e Educação Sexual. Coordena o grupo de pesquisa A formação do sujeito na era digital.

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