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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.46  São Paulo  2020  Epub 26-Nov-2020

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202046217820 

Artigos

Coletivos universitários e o discurso de afastamento da política parlamentar 1

Olívia Cristina Perez2 
http://orcid.org/0000-0001-9441-7517

Bruno Mello Souza3 
http://orcid.org/0000-0003-1611-0581

2- Universidade Federal do Piauí (UFPI), Teresina, Piauí, Brasil. Contato: oliviacperez@yahoo.com.br.

3- Universidade Estadual do Piauí (UESPI), Teresina, Piauí, Brasil. Contato: bmellosouza@yahoo.com.br.


Resumo

O primeiro objetivo do trabalho é apresentar dados e o discurso dos coletivos universitários. Para tanto, foram realizadas dezesseis entrevistas qualitativas com todos os coletivos universitários da cidade de Teresina/PI, bem como análises das postagens de 170 coletivos universitários brasileiros com páginas na rede social digital Facebook. Após a análise crítica desses dados, problematizam-se a autonomia e as novidades dos coletivos, por vezes reclamadas por eles, por vezes atribuídas pela literatura. Os resultados empíricos mostram um distanciamento discursivo dos coletivos em relação à política partidária e parlamentar. Para entender tais discursos, o trabalho retoma dados do Latinobarômetro acerca da confiança no Congresso e nos partidos entre jovens estudantes brasileiros. A fim de se entender o aumento da desconfiança na política estatal, foram retomadas reflexões acerca das consequências do capitalismo neoliberal. As reflexões apresentadas permitem avançar na compreensão dos discursos de jovens universitários envolvidos em organizações políticas, sem perder de vista a relação desses posicionamentos com contextos sociais e teóricos mais amplos.

Palavras-Chave: Coletivos; Movimentos Sociais; Juventude; Participação Política

Abstract

The first objective of this work is to present data and the discourse of university collectives. For such, sixteen qualitative interviews were carried out with all university collectives from the city of Teresina, state of Piauí, Brazil, as well as analyses of Facebook posts of 170 Brazilian university collectives. After critical analysis of these data, autonomy and novelty issues of these collectives were discussed, sometimes claimed by them, other times assigned to them by the literature. Empirical results show a discoursive distancing of collectives as regards parliamentary and party politics. For understanding such discourses, this work recalls data from Latinobarómetro on the trust in the Congress and political parties among Brazilian young students. In order to understand the increase of distrust in state politics, reflections were made on the consequences of neoliberal capitalism. These allow us to move forward in comprehending the discourses of young university students involved in political organizations, not losing sight of these positions as regards broader social and theoretical contexts.

Key words: Collectives; Social Movements; Youth; Political Participation

Introdução

Este artigo concentra-se nas práticas e nos discursos dos coletivos universitários formados por jovens que frequentam a universidade e desenvolvem suas ações principalmente nesses espaços.

Embora seja uma nomenclatura bastante difundida, são poucos os estudos que tratam especificamente dos coletivos. Os trabalhos que existem apontam algumas das suas características, tais como: informalidade, pautas múltiplas e pontuais, horizontalidade, fluidez e presença nas mídias digitais ( BORELLI; ABOBOREIRA, 2011 ; MAIA, 2013 ; GOHN, 2017 ). Conforme Maia (2013) , o que distingue o coletivo dos outros movimentos é o fato de não ter uma pauta permanente de ação; ele pode agregar múltiplas demandas de modo que as pautas prioritárias sejam definidas por meio de debates periódicos.

A fim de se conhecer mais esse tipo de organização política, o trabalho tem como objetivo inicial apresentar dados sobre os coletivos formados por jovens universitários e a opinião deles acerca da política e das instituições parlamentares.

Para nomear coletivos e outras organizações que saíram às ruas em junho de 2013 no Brasil, ou que estavam presentes no Occupy Wall Street (movimento de protesto contra a desigualdade econômica e social iniciado em 2011 na cidade de Nova York), pesquisadores vêm utilizando o termo novíssimos movimentos sociais ( DAY, 2005 ; AUGUSTO; ROSA; RESENDE, 2016; GOHN, 2017 , 2018 ). Os novíssimos movimentos sociais seriam plurais, autônomos, horizontais e apartidários (AUGUSTO; ROSA; RESENDE, 2016), características que os distanciaria das estruturas institucionalizadas ( GOHN, 2017 ).

Tanto a autonomia quanto a novidade atribuída aos coletivos são problematizadas neste trabalho. Embora se defenda que não se trata de organizações novas e autônomas, os coletivos reproduzem esse discurso para se distanciar da atividade política parlamentar. A fim de se entender esse discurso, são retomados dados de um survey chamado Latinobarômetro que contém levantamentos acerca da confiança dos jovens estudantes brasileiros nas instituições políticas, tais como o Congresso e os partidos políticos.

Do mesmo modo, para se compreender a desvalorização das instituições estatais, são retomadas algumas reflexões de Dardot e Laval (2016) , autores que explicam como o neoliberalismo altera todas as dimensões da existência humana, impondo sua razão-mundo baseada na competição e fazendo com que, nessa nova razão-mundo, o Estado não seja mais visto como realizador do comum.

Os resultados da pesquisa permitem compreender o discurso de jovens universitários envolvidos em organizações políticas, sem perder de vista a relação desses discursos com contextos sociais e teóricos mais amplos.

Procedimentos metodológicos

Como os coletivos foram pouco sistematizados pela literatura, primeiramente optou-se por fazer uma investigação exploratória por meio de entrevistas semiestruturadas com membros de todos os coletivos que atuam na cidade de Teresina, capital do Estado do Piauí, região Nordeste do Brasil. Para selecionar os objetos de pesquisa, partiu-se da autodefinição das organizações como coletivos. A localização deles foi feita por meio da técnica conhecida como snowball: os entrevistados eram solicitados a indicar outros coletivos, até que as indicações não revelassem novos nomes. Foram localizados dezesseis coletivos universitários que atuavam dentro de duas universidades públicas. As entrevistas foram autorizadas pelo Comitê de Ética da Universidade dos pesquisadores.

Embora os nomes das organizações e de seus membros não sejam citados, conforme combinado com os entrevistados, seguem caracterizações dos dezesseis coletivos: doze deles contavam com três a quinze integrantes; enquanto outros quatro tinham por volta de quarenta, cinquenta. Esse tamanho não tinha relação com a temática. Em quase todos os coletivos apenas um membro foi entrevistado, geralmente aquele apontado por outros coletivos. Um coletivo preferiu que a entrevista fosse realizada com todos os integrantes.

Com o intuito de ampliar a compreensão do fenômeno, foram também investigados todos os coletivos que tinham páginas na rede social digital mais utilizada atualmente no Brasil, o Facebook . Na busca feita para a pesquisa, primeiramente as palavras coletivas e coletiva foram digitadas no espaço da busca, no mês de junho de 2017.

O banco de dados foi formado por 725 páginas de coletivos. Dentre todos esses, 23% (170) foram classificados como coletivos universitários, pois atuavam dentro de universidade, daí porque foram escolhidos como objetos de análise deste artigo. Foram analisadas as seguintes informações retiradas das páginas de todos os coletivos universitários cadastrados no Facebook: ano de criação, composição, objetivo, tema principal, conteúdo das postagens mais recentes (observadas a partir das últimas cinco postagens), afirmação de que há horizontalidade, autonomia, apartidarismo, ausência de burocracia/formalização, opinião sobre política parlamentar, se o coletivo faz críticas e, em caso afirmativo, contra quem. A confecção do banco de dados ocorreu no mês de junho de 2017 por uma equipe treinada para essa tarefa.

Reunidos os dados, os conteúdos foram analisados para captar as práticas e a relação dos coletivos universitários com a política parlamentar. A análise de conteúdo é uma técnica bastante utilizada nas pesquisas qualitativas com o objetivo de verificar a frequência com que ocorrem determinadas construções em um texto, permitindo assim sistematizar as informações reunidas ( BARDIN, 2006 ).

Além de expor, o trabalho problematiza o discurso de novidade e autonomia dos coletivos, por vezes reclamada por eles, por vezes atribuída pela literatura, demonstrando o quanto esse tipo de organização é antigo e tem relação com outras instituições, inclusive partidárias e estatais.

Para contextualizar o discurso dos coletivos, são apresentados dados do Latinobarômetro sobre confiança no Congresso e nos partidos nos anos de 2010, 2013 e 2015. O Latinobarômetro reúne um amplo estudo sobre opinião pública na América Latina.4 O ano de 2010 foi escolhido como ponto de partida para a análise temporal, pois a pesquisa no Facebook indicou que a maior parte dos coletivos foi criada entre os anos de 2012 a 2016, com pico em 2016.

Embora sejam coletados dados da América Latina, a presente pesquisa expõe informações do survey aplicado pelo Latinobarômetro apenas no Brasil. Foram coletadas respostas de 1204 brasileiros em 2010, de outros 1204 em 2013, enquanto em 2015 foram questionados 1250 brasileiros.

Como o foco da pesquisa são os jovens universitários, foram selecionadas as respostas dos jovens (de 16 a 25 anos)5 que estão estudando, mas ainda não completaram o ensino superior. Embora tais critérios não garantam que os jovens sejam universitários, foi o mais perto possível que se pôde chegar de uma seleção de jovens que estivessem nas universidades. A subamostra de jovens estudantes foi composta então por 152 entrevistados em 2010, 172 em 2013, e 236 entrevistados em 2015. Foram sistematizadas, com maior especificidade, a confiança desses jovens no Congresso ( gráfico 2 ) e nos partidos ( gráfico 3 ). Os gráficos demonstram como o discurso dos coletivos tem relação com a descrença dos jovens no Congresso e nos partidos.

Gráfico 2 Confiança no Congresso entre jovens estudantes (%)Fonte: Elaboração própria, a partir dos dados do Latinobarômetro (2010 , 2013 , 2015 ). 

Gráfico 3 Confiança nos partidos entre jovens estudantes (%)Fonte: Elaboração própria, a partir dos dados do Latinobarômetro (2010 , 2013 , 2015 ). 

Como forma de análise desses dados e no intuito de ampliar a compreensão sobre a desconfiança nas instituições políticas e partidárias, o trabalho procede, enfim, a uma retomada de certas reflexões a respeito das consequências do neoliberalismo para a relação dos sujeitos com o Estado.

Os coletivos universitários e o discurso de distanciamento dos partidos políticos e da política parlamentar

Os coletivos universitários são formados por estudantes do Ensino Superior que atuam dentro das universidades. Eles discutem e propõem ações que desconstruam preconceitos, incentivando assim a inclusão de grupos com mais dificuldade de acesso a direitos, tais como mulheres e negros, bem como Lésbicas, Gays , Bissexuais, Travestis e Transgêneros (conhecidos pela sigla LGBTT). Tais discussões são feitas nas próprias universidades e nas redes sociais digitais, a exemplo do Facebook . Em consulta a todas as páginas de coletivos formados por universitários no Facebook (170) foi possível sistematizar suas principais pautas no Gráfico 1:

Fonte: Elaboração própria.

Gráfico 1 – Temas principais dos coletivos universitários com páginas no Facebook (%) 

A principal pauta dos coletivos universitários é o feminismo (40,4%). A discussão a respeito da categoria gênero enquanto construção social e a luta pelo empoderamento das mulheres é um dos temas com maior repercussão atualmente. Os coletivos também lutam por temas conhecidos entre os estudantes, a exemplo da pauta estudantil e organização partidária (tema de 15,2% dos coletivos). Os movimentos estudantis e grupos ligados a partidos políticos foram reunidos sob a mesma categoria, pois o movimento estudantil em sua maior parte está ligado a partidos (em geral à esquerda no espectro político-ideológico). De modo semelhante, mas inversamente, os universitários ligados a partidos políticos também militam a favor dos direitos dos estudantes dentro das universidades. Essa é a razão pela qual não é possível dissociar o movimento estudantil da orientação partidária por meio das informações disponibilizadas pelo Facebook (embora os movimentos estudantis possam estar se distanciando dos partidos políticos). Em todo caso, nas dezesseis entrevistas realizadas, os coletivos que defendiam os direitos dos estudantes eram também ligados a partidos políticos.

O terceiro tema mais debatido entre os coletivos universitários é a questão LGBTT, com foco no combate à discriminação que lésbicas, gays , bissexuais, travestis e transgêneros sofrem dentro e fora das universidades. Em quarto lugar, 11,7% dos coletivos universitários discutem e combatem o racismo. Os coletivos procuram chamar para si essa discussão e exigem das universidades reconhecimento das dificuldades associadas à cor/raça/etnia no Brasil, bem como políticas de inclusão e permanência dos estudantes negros.

Em menor proporção, 7% dos coletivos atuam em prol das artes (teatro, música e dança, por exemplo); 4,1% dos coletivos universitários debatem questões como meio ambiente, natureza, causa animal e saúde, conforme definição deles; 2,3% tratam do acesso à cidade; 1,8% estão ligados a sindicatos e categorias profissionais (e ainda assim se definem como coletivos); a pauta anarquista apareceu em 1,2% deles e a anticapitalista em 0,6%.

Essas pautas não estão isoladas. Uma das grandes novidades dos coletivos é a luta por mais de uma clivagem social — o que leva à criação de um coletivo feminista negro, por exemplo. Os coletivos que discutem feminismo são os que mais adicionam mais de uma pauta em suas lutas, o que é percebido pelo fato de que suas postagens contêm a defesa de clivagens diferentes daquelas que são suas bandeiras principais. Os casos mais comuns são os coletivos que adicionam, além de sua pauta principal, a militância em prol do fim da discriminação racial (23%), seguida pela defesa de direitos para a população LGBTT (16,4%).

Quanto à criação dos coletivos universitários, as entrevistas com dezesseis coletivos da cidade de Teresina/PI revelaram um descontentamento dos jovens em relação à ausência de discussões sobre preconceito e direitos para mulheres, negros e LGBTTs nas universidades, daí a necessidade de se proporem debates e ações de inclusão. A percepção de que o problema é a falta de ação diante de questões relacionadas a preconceito, direito e inclusão também aparece nas páginas virtuais dos coletivos. Conforme uma das páginas pesquisadas, “o pontapé inicial do coletivo foi voz” para debater e combater essas situações sentidas como injustas.

Embora não seja compartilhado entre todos os coletivos universitários, 3% deles declararam em suas páginas no Facebook a ausência de hierarquias ou de lideranças em suas organizações tanto quanto o apartidarismo. Essas características também apareceram nas entrevistas: mais da metade dos dezesseis entrevistados destacou a ausência de liderança nas decisões e o distanciamento dos partidos. O discurso de recusa aos partidos políticos revela posicionamentos antipartidários e apartidários.

Os antipartidários recusam a própria filiação aos partidos, pois tais instituições retirariam a autonomia dos indivíduos, tolhendo suas liberdades de pensar e agir. Por isso um coletivo pontua que: “[...] a gente não tem um partido, a gente não tem nada. Então nosso lugar é a favor do povo e que aquilo dali fique melhor pra todos”.

Por sua vez, os apartidários admitem que os membros da organização sejam de partidos, porém as orientações partidárias não devem se sobressair nas decisões. Por exemplo, quando perguntado para um dos entrevistados se os membros do coletivo faziam parte de algum partido, ele respondeu: “cara, se são, é uma coisa bem interiorizada, fora da associação”. Isso significa que os participantes daquele coletivo não explicitam suas filiações partidárias e elas não devem guiar as decisões, ainda que seja admitida a filiação.

O distanciamento diante dos partidos também pode ser percebido na descrição da página de um coletivo no Facebook.

O Coletivo feminista [...] surgiu em 2012 através da iniciativa de estudantes da Universidade Federal [...] que, percebendo a falta de espaço e debate sobre a situação das mulheres na instituição e as tantas situações sexistas a qual somos expostas diariamente, iniciaram um grupo de conversa/debate para discutir a condição das mulheres na universidade (e todas as questões que aqui se encaixam) sob a perspectiva feminista. Nos organizamos de forma horizontal e autogestionada, ou seja, sem hierarquias e divisão de cargos, apenas divisão de tarefas. Autônomo, o Coletivo não tem vínculo com outras organizações partidárias, o que não exclui que pessoas organizadas em outras esferas ajudem a construir o coletivo e, portanto, esteja presente um diálogo aberto com quaisquer ideologias. Entendemos que a luta feminista é interseccional e necessária para desnaturalizar, combater e superar as relações sexistas existentes na sociedade. Por isso, pautamos também discussões transversais de classe e raça.

A descrição desse coletivo serve como exemplo de várias caraterísticas apresentadas como típicas de coletivos universitários: a militância em prol do feminismo, a importância da luta em torno de outras pautas afora a principal, a afirmação de que os debates e decisões são horizontais e autônomos e o distanciamento com relação aos partidos políticos.

O discurso de distanciamento frente aos partidos também aparece quando os entrevistados discutem o que é fazer política: membros de oito coletivos entrevistados rechaçam a afirmação de que fazem política. Por exemplo, quando questionado sobre a prática política dos coletivos, um dos entrevistados respondeu: “não, a gente não mexe com política”.

A associação negativa que jovens fazem com o termo política já foi apontada por Baquero, Baquero e Morais (2016), no contexto de uma pesquisa com jovens de Porto Alegre/RS e Curitiba/PR. Conforme a pesquisa, os jovens associam a política com expressões como corrupção, ladroagem e oportunismo, enquanto os políticos são associados aos termos alienação, corrupção, falsidade e inutilidade.

A política é rechaçada porque os jovens a associam com política partidária. Citando outro exemplo, ao ser questionado sobre o paradoxo de fazer política, mas sem política, um entrevistado respondeu que: “a gente fala de política, sim. Mas quando a gente está falando de uma política partidária e de ter um partido, não!”. Percebe-se nesse trecho as associações de política com política partidária; dessa forma, ao rechaçar a política, os jovens estariam se distanciando da política via partidos em instituições parlamentares — essas sim, fontes de descrença. Mas isso não significa imobilismo, afinal, conforme um entrevistado: “A gente não está querendo nenhum dos partidos que estão aí, mas estamos lutando”.

O distanciamento dos partidos garantiria inclusive mais horizontalidade nas decisões, já que a orientação partidária estabeleceria uma hierarquia entre membros e suas posições, conforme afirmou parte dos entrevistados. Nesse sentido, o coletivo só seria livre e igualitário se decidisse de modo independente com relação às determinações partidárias. A mesma razão justifica a recusa ao estabelecimento de lideranças declaradas, mesmo que se saiba quem são elas: assumir a liderança significa ir contra o caráter igualitário dos coletivos.

Um dos entrevistados pontua a necessidade de atuação política de forma direta, nos seguintes termos: “existe uma outra forma de a gente construir uma forma plural, independente, sem depender de partido, sem depender dessa galera. Existe um outro caminho, um terceiro caminho. Mesmo que não seja uma forma eleitoral, é mais direta mesmo”. Assim como já apontado por outro estudo ( VOMMARO, 2015 ), os coletivos demandam democracia direta ao recusarem intermediários, hierarquias e líderes na prática política.

Ao fazer tais defesas, os discursos dos coletivos remetem a debates teóricos sobre como a democracia deve incluir os cidadãos nas decisões públicas. O debate sobre a inclusão da população diretamente nas decisões públicas remonta à democracia direta grega, regime em que os cidadãos se reuniam em assembleias para discutirem e decidirem as questões concernentes à polis , ainda que nem todos fossem considerados cidadãos (estavam excluídos dessa categoria mulheres, estrangeiros e escravos). Jean Jacques Rousseau com sua obra clássica O contrato social ([1762] 2014) é uma fonte de inspiração para diversas teorias que defendem que o próprio povo deve sancionar as leis às quais vai se submeter, sem a necessidade de representação (cf. PATEMAN, 1992 ).

Além da possibilidade de maior inclusão da população nas decisões públicas, existe no discurso dos coletivos uma preocupação com o processo de tomada de decisão — tema de reflexão da democracia deliberativa. Conforme o conceito de democracia deliberativa, que tem em Habermas seu principal autor, não basta que as decisões públicas sejam tomadas por representantes eleitos, tampouco que os cidadãos sejam incluídos apenas por meio de mais votação: imprescindível também é que os cidadãos possam influir sobre a forma como as decisões são construídas. Para essa vertente teórica, as decisões devem ser construídas após um amplo processo de discussões do qual todos possam participar com igualdade de condições. As opiniões devem ser além disso justificadas para que se chegue a um entendimento geral. Ademais, o processo de reformulação das decisões deve ser contínuo ( GUTMANN; THOMPSON, 2007 ).

De acordo com parte dos entrevistados, ao contrário dos partidos e instituições parlamentares, que engessam o comportamento das pessoas ao dirigirem sua atuação pelas normas burocráticas e por decisões autoritárias da liderança, os coletivos permitiriam a participação dos seus membros. Conforme um dos entrevistados:

Tem partidos que lhe instruem para que você tenha uma forma de se expressar mais dirigista. Mas o que a gente tem que fazer na verdade é coletivizar o conhecimento e fazer com que várias pessoas se sintam empoderadas para poder falar.

É como se os partidos contaminassem as discussões na medida em que sobrepõem seus interesses aos do grupo. A forma ideal de decisão, conforme os coletivos, seria com a inclusão de todos os interessados em determinada questão e que as decisões fossem fruto de deliberações igualitárias e independentes de influências partidárias externas.

Problematização do discurso dos coletivos

A literatura sobre os coletivos, entendidos como novíssimos movimentos sociais, considera-os como novas formas de organização política surgidas em grandes manifestações, como o Occupy Wall Street em Nova York ou naquelas que se espalharam pelo Brasil, em junho de 2013. Os coletivos seriam novos em virtude de seu caráter contemporâneo e de certo traços que os diferenciam de movimentos sociais antigos ou de organizações mais estruturadas, tais como movimentos sociais e Organizações Não Governamentais. Essas últimas seriam formais, burocráticas, hierárquicas e permeadas por posições partidárias. Diferentes delas, os coletivos seriam autônomos e apartidários ( DAY, 2005 ; AUGUSTO; ROSA; RESENDE, 2016; GOHN, 2017 , 2018 ). A ideia da novidade, da autonomia e independência com relação aos partidos reaparece no discurso dos coletivos, conforme procuramos indicar no presente artigo. É necessário, não obstante, problematizar o discurso dos coletivos e as categorias atribuídas a eles pela literatura.

A novidade

Os coletivos são considerados novas formas de organização política, diferentes de movimentos sociais, pelo seu caráter informal, pontual e fluido. Em livro recente, Gohn (2017) analisa três novíssimos movimentos sociais criados a partir de 2010: o Movimento Passe Livre, o Vem Pra Rua e o Movimento Brasil Livre. O termo novíssimos movimentos sociais é usado para distinguir a novidade deles com relação aos movimento sociais clássicos (ligados à luta da classe trabalhadora e a organizações verticalizadas) e aos novos movimentos sociais (que atuam com pautas identitárias em rede e em instituições de participação).

O canadense Richard Day (2005) , por exemplo, argumenta que os movimentos criados após a década de 1980 (movimentos de resistência indígena, organizações feministas e ativismos antiglobalização) devem ser considerados novíssimos movimentos sociais, pois seguem a lógica da afinidade e não a da hegemonia. Os projetos dos novíssimos movimentos sociais obedeceriam a uma lógica de afinidade, na medida em que estão enraizados na autonomia e na descolonização. Para tanto, desenvolvem novas formas de auto-organização que podem funcionar em paralelo ou como alternativas às formas existentes de organização social, política e econômica. A lógica da afinidade esteve presente no anarquismo libertário como recusa ao Estado e às formas de relações hegemônicas, permitindo assim que cada grupo desenvolvesse sociabilidades distintas sem obedecerem a um único projeto em comum ( DAY, 2005 ).

A novidade é destacada pelos membros dos coletivos, conforme constatou-se nas entrevistas com dezesseis coletivos universitários da cidade de Teresina/PI. De acordo com um dos entrevistados: “a gente é diferente de tudo que está aí. A gente quer tudo diferente, tudo novo”. O próprio termo coletivo remete a uma novidade distante das organizações formalizadas, perenes e hierarquizadas.

No entanto, a nomenclatura coletivo não é nova, tampouco as organizações que se autointitulam dessa maneira. Um dos coletivos mais famosos, o Combahee River , foi uma organização negra feminista ativa em Boston de 1974 a 1980 que chamava atenção para o quanto o movimento feminista branco não estava contemplando as necessidades das mulheres negras. No Brasil, a professora e ativista Lélia Gonzalez fundou em 1983, com outras mulheres negras, o Nzinga , coletivo com base no Rio de Janeiro. Logo, não se trata de uma novidade. Ademais, a luta feminista e antirracista, típica dos coletivos universitários — conforme apresentado neste artigo — já eram bandeiras dos coletivos mais antigos.

Além da novidade de serem contemporâneos, os coletivos são considerados novos por não se encaixarem nas explicações sobre movimentos sociais; por isso são chamados de novíssimos movimentos sociais. Os novíssimos movimentos sociais seriam horizontais, autônomos e apartidários ( DAY, 2005 ; AUGUSTO; ROSA; RESENDE, 2016; GOHN, 2017 ), o que os distancia dos movimentos sociais clássicos. Essas características também são ressaltadas pelos coletivos na medida em que se definem como “[...] horizontal e autogestionado, ou seja, sem hierarquias e divisão de cargos, apenas divisão de tarefas. Autônomo, o Coletivo não tem vínculo com outras organizações partidárias [...]” (Trecho retirado da página de um coletivo no Facebook ).

Ao se interpretar os fenômenos irruptivos de meados de 2013 no Brasil e no mundo com esses critérios, o problema está, entretanto, na pressuposição de que o discurso ou mesmo certas características empíricas de algumas organizações são válidos para todo o universo dos coletivos. A ideia de movimentos autônomos e apartidários parte principalmente da análise do Movimento Passe Livre (que impulsionou o ciclo de protestos iniciados em junho de 2013 no Brasil) e de coletivos com discurso anarquista. Mas os manifestantes que estiveram nas Jornadas de junho não se resumiam a organizações políticas anarquistas: a diversidade de atores é uma das características de junho de 2013. Logo, não é possível atribuir o antipartidarismo ou a autonomia a todos os manifestantes com base no discurso de parte deles.

Em segundo lugar, características como horizontalidade, apartidarismo e autonomia também eram atribuídas aos movimentos sociais que atuavam durante as décadas de 1960 e 1970 na Europa e que ficaram conhecidos como novos movimentos sociais. Autores como Melucci (1989) e Touraine (2006) explicam que os movimentos daquele contexto expressavam demandas simbólicas no lugar daquelas relacionadas diretamente à classe social, principal bandeira de luta dos movimentos sociais clássicos. Assim como os coletivos, os novos movimentos sociais das décadas de 1960 e 1970 lutavam pelo feminismo e fim do racismo.

No Brasil, os movimentos sociais que se multiplicaram durante o período da ditadura militar, em especial na década de 1970, também ficaram conhecidos como novos movimentos sociais. Conforme um estudo que é referência no assunto ( SADER, 1988 ), os movimentos daquela época produziram sujeitos coletivos pautados em novos padrões de sociabilidade mais horizontais e cientes do que lhes é de direito. Diferentes dos movimentos sociais anteriores à ditadura, os novos movimentos sociais teriam a autonomia em relação ao Estado opressor como um traço e bandeira de luta.

As disputas em torno de categorias que denotam antinomias como velhos ou novos ou novos e novíssimos movimentos sociais já produziram extensas discussões. Ruth Cardoso (1987) explicou que essas disputas são movidas pela aposta do pesquisador (o que tem relação com o contexto social) acerca de quais organizações serão responsáveis pela transformação social. Doimo (1995) , em sentido complementar, afirma que a literatura sobre os movimentos sociais da década de 1970 apostava na transformação social através da reapropriação do Estado pela sociedade civil. Naquele contexto, os movimentos sociais seriam capazes de transformar as relações sociais, daí a novidade e as virtualidades que eram atribuídas a eles.

Já no contexto atual, de baixa confiança nas instituições parlamentares, a aposta recai novamente nas organizações civis. Para se reafirmar a importância dos atores sociais, termos como novíssimos são apregoados, bem como características que evocam independência e capacidade. Entretanto essas interpretações não consideram a heterogeneidade dentro das organizações e delas entre si, atribuindo-lhes virtuosidades excessivas, o que fez com que alguns estudos brasileiros (cf. GURZA LAVALLE, 2003 ) as propusessem como dificuldades para o avanço de pesquisas na área.

A autonomia

Além da novidade, os coletivos se distinguiriam de outras organizações políticas, e mesmo dos movimentos sociais, pela autonomia. A autonomia seria decisiva inclusive para classificar um movimento social como novíssimo, aproximando suas práticas do anarquismo ( DAY, 2005 ).

No entanto, é preciso pontuar que o significado do que é autonomia varia. Para os movimentos sociais a autonomia não significa ausência de contato com o Estado, mas sim que eles devem ser livres para escolher suas pautas e estratégias. Nesse caso, a autonomia remete:

[...] à capacidade de determinado ator de estabelecer relações com outros atores (aliados, apoiadores e antagonistas) a partir de uma liberdade ou independência moral que lhe permita definir as formas, as regras e os objetivos da interação a partir dos seus interesses e valores. ( TATAGIBA, 2010 , p. 68).

Já a autonomia entre os coletivos tem outro significado. Conforme a descrição de um coletivo universitário com página no Facebook , a autonomia refere-se à distância com relação aos partidos políticos.

O coletivo tem total autonomia com relação aos partidos políticos e a questão dos partidos políticos não é algo que diz respeito [...] mas as pessoas [...] têm liberdade de organização política para se organizarem em um partido se elas desejarem, então existem algumas pessoas que se organizam em partido, mas isso são instâncias diferentes. A gente tenta ao máximo manter nossa autonomia frente a essas outras organizações.

O mesmo significado de autonomia foi revelado nas entrevistas com os coletivos universitários de Teresina/PI. Segundo a opinião de uma parte deles, os partidos dirigem as decisões de seus membros, o que compromete a possibilidade de militância genuína. É preciso que os próprios membros, coletivamente, sejam capazes de decidir seus posicionamentos sem a interferência externa de partidos. Isso não significa que os membros não possam ser filiados a partidos ou que eles não terão relação com o Estado, mas sim que os partidos não devem determinar as decisões dos coletivos. Ou seja, se no anarquismo autonomia refere-se à distância com relação ao Estado — e essa autonomia seria característica dos novíssimos movimentos sociais ( DAY, 2005 ; AUGUSTO, ROSA; RESENDE, 2016; GOHN, 2017 ) — para os coletivos a autonomia significa distanciamento com relação aos partidos.

Mas esse distanciamento nem sempre ocorre na prática. O nome coletivo está inclusive ligado a grupos que pertencem à esfera interna de alguns partidos políticos. A título de exemplo, dentre as principais tendências do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL, partido político brasileiro à esquerda no espectro político-ideológico) encontram-se o Coletivo Resistência Socialista, o Coletivo Primeiro de Maio (tendência oriunda do Coletivo Rosa do Povo), Coletivo Rosa Zumbi e Coletivo Liberdade Socialista (CSL), que se fundiu ao Socialismo Revolucionário para formar a corrente Liberdade, Socialismo e Revolução.

Por outro lado, metade dos coletivos universitários entrevistados em Teresina/PI tem ligação com partidos políticos. No entanto, em vez de adotarem como nome as siglas dos partidos ou das entidades às quais pertencem, os coletivos preferem se autonomear dessa forma. Inclusive, pelo nome de metade dos coletivos entrevistados, não era possível reconhecer a ligação partidária. Era preciso perguntar algumas vezes durante as entrevistas se os coletivos tinham ligação com partidos para descobri-la. A relação com partidos políticos, que já foi uma demonstração de politização, é hoje ocultada nos coletivos.

Um dos problemas dessa recusa a um possível dirigismo dos partidos está no fato de que ela pressupõe certa neutralidade enquanto fonte de decisões genuínas, como se livres de opiniões externas ao coletivo os sujeitos fossem capazes de debater e decidir melhor. Mas neutralidade é impossível: ninguém opina sem influências externas. Se antes esse também parecia ser um debate superado pelas Ciências Sociais, hoje voltou à tona a ideia da independência como um posicionamento positivo, inclusive entre organizações políticas sociais, como os coletivos.

A baixa confiança nas instituições parlamentares

Os coletivos apresentam-se e são considerados novidades em comparação com outras formas de organização política, especificamente pela distância que mantêm diante das instituições parlamentares. No entanto, mais do que reproduzir tais ideias, cabe entendê-las. A baixa confiança em instituições parlamentares como o Congresso não é exclusiva dos coletivos: ela permeia a opinião dos jovens estudantes brasileiros, conforme dados do Latinobarômetro sistematizados no Gráfico 2 .

Os dados do Gráfico 2 sistematizam a confiança dos jovens estudantes (de 16 a 25 anos que estão estudando, mas ainda não completaram seus estudos), brasileiros, a respeito do Congresso. Conforme os dados, 27,4% deles não tinha nenhuma confiança no Congresso em 2010, enquanto 8,2% confiavam plenamente nessa instituição. O ano de 2013 expressa justamente o crescimento dessa desconfiança: 48,4% dos jovens estudantes (quase o dobro de 2010) não tinham nenhuma confiança no Congresso, enquanto apenas 1,6% confiavam muito nele. Em 2015 cresceu o percentual daqueles que pouco confiavam no Congresso (49,1%). Os dados sobre a confiança no Congresso são um retrato da percepção dos jovens com relação à política parlamentar.

Resultados semelhantes podem ser constatados quando se analisa a confiança dos jovens estudantes brasileiros nos partidos políticos, conforme dados do Gráfico 3 .

Os jovens estudantes confiam mais nos partidos que no Congresso, talvez por uma proximidade maior com as agremiações políticas. Os dados do Gráfico 3 demonstram que houve maior variação entre aqueles com alguma confiança nos partidos: o índice caiu bastante em 2013 (11,1%), com um significativo aumento em 2015 (43,4%). O que chama a atenção no gráfico é o fato de ninguém ter expressado que não tem confiança nenhuma nos partidos em 2015, dados bem distantes de 2010, em que 49,3% dos universitários jovens manifestavam nenhuma confiança nos partidos, ou em 2013, com 37% de respostas atribuindo nenhuma confiança aos partidos.

Os dados do Latinobarômetro ainda mostram como, em 2013, a desconfiança nos partidos e no Congresso foi maior que nos outros períodos. Isso explica-se pelas grandes manifestações que tomaram as ruas do Brasil em 2013. A onda de manifestações, ou ciclo de protestos iniciado em junho de 2013, teve como estopim a luta pelo transporte público, mas os protestos reuniriam outras bandeiras: direito à cidade, defesa dos direitos sociais e trabalhistas, melhoria de serviços públicos, combate à corrupção, contra as discriminações étnico-raciais, de gênero e orientação sexual etc. Todas essas demandas estavam presentes em junho, mas algumas delas ganharam mais relevo a depender da manifestação.

Relacionada a essas insatisfações, as manifestações de 2013 exprimiram o distanciamento frente à política parlamentar: “[...] as massas nas ruas afirmam o desejo de exercício da política sem mediações institucionais [...]” ( TATAGIBA, 2014 , p. 41). O distanciamento com relação aos partidos marcou as manifestações da época, com alguns manifestantes chegando à franca hostilidade ( TATAGIBA, 2014 ). Acompanhando esses posicionamentos, os coletivos proliferaram nas Jornadas de 2013.

A propósito, o crescimento de coletivos apartidários e discursivamente distantes da política partidária e parlamentar já poderia indicar o teor e as consequências das manifestações. Conforme Vommaro (2015 , p. 62, tradução nossa):

[...] para além da surpresa que essas mobilizações possam ter causado em alguns setores e analistas, se nos concentrarmos no que acontecia entre os coletivos juvenis do Brasil desde tempos atrás, surgem vários elementos que podem contribuir para sua compreensão.

Ou seja, o crescimento de coletivos que se colocam como apartidários já expressava o descontentamento com a política e os políticos, um dos motes das manifestações. Essa insatisfação também tem relação com o processo de deterioração econômica do país. Isto é, enquanto nos anos de bonança econômica da primeira década deste século existia um ambiente de maior otimismo em relação ao regime democrático, com o surgimento das crises econômicas e da baixa popularidade dos governos a elas relacionados, esse clima de otimismo rapidamente se transformou em pessimismo e insatisfação ( BAQUERO; GONZÁLEZ, 2016 ). O ambiente de insatisfação, portanto, não é uma exclusividade dos jovens brasileiros e está situado num contexto mais amplo de crise econômica, política e institucional existente no país.

A perda de confiança no Estado tem relação com a orientação política e econômica denominada neoliberalismo. Gentili e Sader (1995) explicam a origem da corrente neoliberal. De acordo com os autores, o neoliberalismo nasceu logo depois da II Guerra Mundial, na Europa e na América do Norte, onde imperava o capitalismo. Foi uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar social. Para essa doutrina, a concorrência é a responsável pela distribuição de riquezas. Draibe (1989) também atribui à crise do Estado nos anos 80 o impulso para a discussão sobre a diminuição do Estado nas políticas sociais e a transferência dos serviços às organizações da sociedade civil. A autora chama esse processo de privatização em um sentido amplo, argumento esse que seria defendido tanto pela esquerda, quando esta propõe maior participação do setor não lucrativo e não governamental, quanto pela direita, ao propor a redução do Estado nas políticas sociais.

Mas as consequências do neoliberalismo não atingem apenas a esfera econômica e social, impactando também as subjetividades dos sujeitos e suas concepções sobre o Estado. Conforme Dardot e Laval (2006), a racionalidade neoliberal é baseada na concorrência irrestrita em todos os âmbitos. Ela adquire uma dimensão totalizadora que abarca, além do Estado, toda a existência humana, traduzindo-se em uma razão-mundo. A racionalidade neoliberal seria assim um “conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência” (DARDOT; LAVAL, 2006, p. 17).

A retirada do Estado e a busca do serviço nos meios privados leva o sujeito a desvalorizar a política estatal. Os sujeitos passam a compartilhar a concepção da meritocracia como forma de se garantir a sobrevivência, deixando de identificar a política estatal como possibilidade de garantia de direitos. Mais do que isso: como consequência da razão-mundo neoliberal, a própria ideia de política é esvaziada.

As Jornadas de junho expressaram descontentamento com relação à garantia de direitos via Estado e, com isso, criticaram a própria política estatal. Dentre os coletivos pesquisados, todos à esquerda, a descrença dos jovens em relação à política tem relação com a decepção com o Partido dos Trabalhadores (PT). Havia uma crença de que o PT faria reformas estruturais pautado no interesse dos trabalhadores, e isso não se concretizou como era esperado por parte da esquerda. É nesse sentido que a crítica ao PT é comum entre os coletivos. Conforme um entrevistado: “[o] PT que era aquele partido que a gente sabe como é, a gente meio que se sentiu traído por esse governo”. O PT teria se distanciado de suas bases e escolhido firmar alianças com partidos ideologicamente distantes. Para outro entrevistado, o PT: “[...] não chamou o povo pra lutar contra o golpe e contra o que se observa agora, inclusive há alianças entre os setores maiores do Partido dos Trabalhadores e outros partidos”. Percebe-se que o discurso de repulsa ao PT, que inclusive foi pauta de manifestações de rua no país nos últimos anos, também é replicado pelos coletivos – o que nem poderia ser diferente, já que fazem parte do mesmo contexto político.

Esse discurso explica-se em parte, porque nem os governos de esquerda tampouco os de direita conseguiram mudar o Estado neoliberal, que tem um funcionamento muito mais geral que a redução do Estado na economia. O Estado deixa de integrar as dimensões da vida coletiva, da economia e do poder político: sua função passa a ser a gestão de serviços privados consumidos pelos sujeitos, agora clientes ( DARDOT; LAVAL, 2016 ). Ainda conforme os autores, tais consequências são sentidas em governos de direita e de esquerda, porque o neoliberalismo é muito mais do que uma ideologia partidária: ele se transformou em uma razão-mundo que atinge toda a existência humana.

Não por acaso as manifestações de junho de 2013 e o ciclo que se seguiu em 2014, 2015 e 2016 expressavam um descontentamento com as medidas de austeridade fiscal promovidas pelo governo Dilma, reeleita em 2014. Os jovens perceberam que mesmo governos à esquerda não eram capazes de garantir direitos. Daí a descrença nas instituições políticas estatais, tais como o Congresso e os partidos, aumentar justamente nesse período, conforme os Gráficos 2 e 3 .

O descrédito sofrido pelos partidos, mesmo que à esquerda, não é de agora e não ocorre somente no Brasil. Protestos em várias partes do mundo ocorreram em 2011 com bandeiras anticapitalistas, antiglobalização, anticorrupção e contra regimes políticos mais fechados à participação da população. A onda de protestos em 2011 começou no Norte da África, onde foram derrubadas ditaduras na Tunísia, no Egito, na Líbia e no Iêmen. Depois espalhou-se para a Europa, com ocupações e greves na Espanha e na Grécia e revolta nos subúrbios de Londres. Eclodiu no Chile e ocupou Wall Street nos Estados Unidos ( CARNEIRO, 2012 , p. 7-8). Após esses protestos e as diversas críticas ao sistema político, diversas regiões elegeram políticos conservadores, como por exemplo Donald Trump, eleito em 2017 nos Estados Unidos, ou Jair Bolsonaro, em 2018 no Brasil.

Embora a obra de Dardot e Laval, A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal, tenha sido lançada no Brasil em 2016, ela foi publicada originalmente na França em 2009, ou seja, na gestação da crise financeira mundial de 2008, de um tempo e de um lugar em que se podia constatar as consequências do neoliberalismo. Conforme os autores, a crise não foi suficiente para fazer o neoliberalismo desaparecer. Ao contrário, foi uma oportunidade para as classes dominantes fortalecerem a natureza do projeto social e político do neoliberalismo. Além das consequências políticas, as mobilizações sociais com vistas a mudanças profundas são enfraquecidas pelo sistema neoliberal, pois os indivíduos concorrem em diversas esferas de suas existências. O individualismo e o egoísmo social, que negam a solidariedade, podem desembocar, ainda segundo Dardot e Laval (2016) , em movimentos reacionários ou até mesmo neofascistas.

Considerações finais

Os coletivos universitários vêm ganhando espaço nas universidades e nas redes sociais digitais com base na união de pessoas em torno de um objetivo comum. O discurso deles expressa a novidade e o distanciamento com relação à política parlamentar partidária.

A novidade carregada pelo termo coletivos serve para distanciá-los da política parlamentar, considerada antiga, engessada e ineficiente. No entanto, não é possível afirmar que eles de fato sejam novíssimos e distantes da política parlamentar. O velho e o novo convivem, já que a realidade é múltipla e os movimentos sociais são diversos e contraditórios. Aliás, a contradição é inerente aos movimentos sociais e não deve anular seu estudo. Os coletivos são como os novos movimentos sociais definidos por Melucci (1989): heterogêneos, entrelaçando heranças do passado e bandeiras contemporâneas. Ademais, na relação de uns com os outros, os movimentos sociais emprestam uns aos outros ideias, pessoas, retórica e modelos de ação (TILLY, 2010).

O discurso da novidade e do distanciamento com relação à política tem relação com a baixa confiança nas instituições parlamentares entre os jovens estudantes e entre a população em geral. Essa baixa confiança foi expressa e alimentada pelo ciclo de protestos iniciado em junho de 2013 no Brasil. A distância entre os coletivos e as organizações políticas tradicionais atenderia às expectativas da sociedade quanto à forma de organização societal. Em um contexto de desconfiança frente aos partidos e às instituições parlamentares, os coletivos aparecem como formas de organização mais genuínas.

O distanciamento dos jovens com relação à política parlamentar, incluindo partidos e instituições parlamentares, pode ter implicações para o fortalecimento das instituições democráticas. As instituições parlamentares poderiam ser aprimoradas pela luta dos movimentos sociais, em especial a dos jovens universitários. No entanto, quando os ativistas se distanciam dessas instituições, eles contribuem para que se diminuam as chances de mudança. Inversamente, a desconfiança com relação aos partidos e ao Congresso pode aumentar a possibilidade de rompimento da população com essas duas instituições centrais para a democracia.

As posições antipartidárias ou apartidárias podem, aliás, impulsionar projetos como o movimento Escola sem Partido e tantos outros que procuram retirar de cena as discussões ideológicas e as práticas políticas. Mesmo não sendo o objetivo dos coletivos, o discurso presente em toda a sociedade e replicado/alimentado pelos coletivos pode levar a um esvaziamento da luta política associada a partidos.

Diante desse cenário, aponta-se, no âmbito acadêmico, a necessidade de mais pesquisas que analisem de forma reflexiva as mobilizações feitas pela juventude. Considera-se que por meio dessas análises será possível compreender melhor a crise pela qual o país vem passando, bem como pensar em alternativas de ação.

Para a práxis política, valem as apostas de Dardot e Laval (2017) na atuação de movimentos ambientais e sociais mundo afora que contestem a apropriação de recursos naturais, de conhecimentos, de espaços e de serviços públicos por parte de uma oligarquia. As lutas sociais devem visar, conforme os autores, à instituição de comuns: meios materiais e imateriais necessários às atividades coletivas, que não seriam, portanto, propriedade privada ou estatal. Uma vez que a razão-mundo neoliberal está introjetada no mundo, não haveria mais negociação com esses modelos capitalistas. Por isso, o comum seria a revolução: uma nova razão política que deve substituir a razão neoliberal.

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1- Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Piauí (FAPEPI) pelo auxílio para publicação científica e à Universidade Federal do Piauí (UFPI) pelo serviço de tradução.

4- A corporação Latinobarômetro é privada, sem fins lucrativos e sediada no Chile. De acordo com o site do Latinobarômetro, o estudo tem financiamento múltiplo, com participação de organizações internacionais, governos e setor privado, como o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (AECID), Agência Sueca de Cooperação para o Desenvolvimento Internacional (SIDA), Agência Canadense de Desenvolvimento Internacional (CIDA), Corporação Andina de Fomento (CAF). Organização dos Estados Americanos (OEA), Escritório de Pesquisa dos Estados Unidos, IDEA International e Arquivo de Dados do Reino Unido.

5- A separação etária obedece aos critérios do IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, embora não seja possível distinguir entre gerações apenas pelo critério etário, desconsiderando o contexto cultural e as vivências dos sujeitos.

Recebido: 17 de Dezembro de 2018; Revisado: 15 de Abril de 2019; Aceito: 11 de Setembro de 2019

Olívia Cristina Perez é doutora em ciência política pela Universidade de São Paulo (USP). É professora adjunta na Universidade Federal do Piauí (UFPI), vinculada aos cursos de bacharelado e mestrado em ciência política e ao programa de pós-graduação (mestrado e doutorado) em políticas públicas.

Bruno Mello Souza realizou pós-doutorado em ciência política pela Universidade Federal do Piauí (UFPI). É doutor e mestre em ciência política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). É professor na Universidade Estadual do Piauí (UESPI).

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