SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.46Uma análise de orientações sobre revisão e reescrita de textos científicos no universo digitalContexto científico da pesquisa sobre a edição escolar local, nacional e mundial índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.46  São Paulo  2020  Epub 09-Dez-2020

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202046225328 

Artigos

Crianças e seus diagnósticos no cenário da educação inclusiva: a perspectiva de mães e professoras

Children and their diagnosis in the inclusive education scenario: the perspective of mothers and teachers

1- Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. Contatos: liaspadini@hotmail.com; lucianaszymanski@gmail.com.


Resumo

O presente artigo discute uma pesquisa cujo objetivo foi o de compreender os sentidos do diagnóstico de estudantes para suas famílias e professoras, partindo da perspectiva fenomenológico existencial. A questão norteadora da investigação foi: como mães e professoras compreendem os diagnósticos atribuídos a seus filhos/alunos(as)? Houve também interesse no aprofundamento de um caso em que, a despeito de certa expectativa, o diagnóstico era ausente. O trabalho foi realizado em uma Escola Municipal de Ensino Fundamental (EMEF) na cidade de São Paulo, onde ocorreram observações participativas e encontros sistemáticos da pesquisadora e equipe escolar, caracterizando a pesquisa como participativa, interventiva e dialógica. Seu foco foi a compreensão de narrativas dessas professoras e mães, tecidas a partir de entrevistas reflexivas e da noção de constelações. Revelou-se que o diagnóstico tem um papel importante para dar segurança às professoras e mães nas intervenções e ações cotidianas com crianças com necessidades educacionais especiais; por outro lado, a pesquisa trouxe à tona que diante do diagnóstico - entendido como a nomeação científica de uma existência - a narrativa sobre essa criança passa inevitavelmente por seu quadro nosológico, ao passo que aquelas que não receberam diagnóstico são apresentadas de modo complexo, a partir de muitas das suas características, inclusive dos seus potenciais.

Palavras-Chave: Educação Inclusiva; Diagnóstico; Medicalização da infância; Fenomenologia existencial; Psicologia escolar

Abstract

This article focuses on a research whose objective was to understand the meanings of diagnosis of students for their families and teachers, starting from the existential phenomenological perspective. The guiding question of the investigation was: how do mothers and teachers understand the diagnoses attributed to their children / students? There was also the interest in the in-depth study of a case in which, despite certain people’s expectations, the students’ diagnosis was absent. The research was developed in a Municipal Elementary School (EMEF) in the city of São Paulo, where participatory observations and systematic meetings of the researcher and school team occurred, characterizing the research as participatory, interventional and dialogical. Its focus was to understand the narratives of these teachers and mothers, created from reflective interviews and the notion of constellations. It was revealed that the diagnosis plays an important role in that it gives security to teachers and mothers in their interventions and daily actions with children with special educational needs; on the other hand, the research has brought to the fore that in the face of the diagnosis - understood as the scientific nomination of an existence - the narrative about this child inevitably goes through its nosological picture, whereas those children who have not received a diagnosis are presented in a complex way based on many of their characteristics and on their potential.

Key words: Inclusive education; Diagnosis; Medicalization of childhood; Existential phenomenology; School psychology

Introdução: contextualizando a política de inclusão no Brasil

Ao analisar os dados do Resumo Técnico do Censo da Educação Básica (BRASIL, 2014a) que indicam que de 2007 para 2013 o número de matrículas de estudantes com deficiência2 aumentou 22%, Laplane (2014) compreende que a difusão de ideias inclusivas é propiciada pelo reconhecimento social dos direitos dessas pessoas e que esse aumento indica a entrada progressiva desse público na educação, mas a sua permanência e progressão nos níveis educacionais não são observadas, por exemplo, no Estado de São Paulo. Dados mais atuais (BRASIL, 2020) sinalizam ainda que o percentual de matrículas de alunos incluídos em classe comum aumentou ao longo dos anos: em 2015, de 88,4%, passou, em 2019, para 92,8%.

Percebe-se uma constante preocupação com essa população, seu entorno familiar e escolar, que em razão de suas lutas sociais, vem se tornando mais visível. Assim, o cuidado para que não só o acesso, mas também a sua permanência na escola, recebendo um ensino de qualidade, é um motivador para este estudo, além do fato de que se pode, com essa experiência de pesquisa interventiva, discutir mais profundamente fazeres da/o psicóloga/o no cotidiano escolar, especialmente agora em que essa discussão está em pauta na sociedade diante das violências ocorridas no espaço escolar2.

A Constituição brasileira (1988) prevê no Capítulo III, Seção I e artigo 208 do decreto legislativo nº 186, no item III, que o Estado é responsável por oferecer atendimento especializado educacional (AEE) de preferência na rede regular de ensino. Segundo o Plano Nacional de Educação (PNE) (BRASIL, 2014), existem três situações possíveis de organização de AEE: participação nas classes comuns, sala de recursos ou sala especial e escola especial, mas a forma como cada estado e cidade brasileira se organizam para esse acesso pode ter variações.

São muitos os documentos legais que definem as diretrizes de quem são consideradas as pessoas com deficiência perante o Estado brasileiro, seus direitos e como deverão ser atendidas no contexto educacional e fez parte desta pesquisa fazer um levantamento desses documentos. Destaca-se a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008) em que é feita uma releitura crítica de marcos históricos de políticas de atendimento educacional na perspectiva de uma educação inclusiva.

O documento aponta que o público-alvo da educação inclusiva é formado por estudantes com necessidades educacionais especiais (NEE). Esse termo aparece inicialmente na Declaração de Salamanca (1994) e a adoção dele passa a representar uma postura política frente a um novo entendimento que se estabelece dentro do campo da educação inclusiva: aqui se chama a atenção para que o ensino regular trabalhe com as diferenças e, por consequência, com a individualidade de cada estudante, sua história, desenvolvimento e conhecimentos. Há, desta forma, uma mudança de paradigma na medida em que as políticas deixem de ser voltadas somente a um público-alvo restrito, mas sim, a todos estudantes com suas singularidades e especificidades.

As definições do público alvo devem ser contextualizadas e não se esgotam na mera categorização e especificações atribuídas a um quadro de deficiência, transtornos, distúrbios e aptidões. Considera-se que as pessoas se modificam continuamente transformando o contexto no qual se inserem. Esse dinamismo exige uma atuação pedagógica voltada para alterar a situação de exclusão, enfatizando a importância de ambientes heterogêneos que promovam a aprendizagem de todos os alunos. (BRASIL, 2008, p. 15).

No município de São Paulo, na Portaria 5718/04 da Secretaria Municipal de Educação, denomina-se como Sala de Apoio e Atendimento à Inclusão (SAAI)3 a forma pela qual o AEE será executado. Os(as) professores regentes dessas salas precisam ter habilitação ou especialização em Educação Especial. Assim que a escola identifica uma demanda de AEE para estudantes, solicita à equipe multiprofissional do CEFAI (Centro de Formação e Acompanhamento à Inclusão) que faz parte do DOT-P (Departamento de Orientação Técnico-Pedagógica) uma avaliação educacional. É função também dessa equipe fazê-la, acompanhar estudantes e apoiar as famílias e equipes escolares.

De acordo com o Artigo 5º da Portaria 1.185 de fevereiro de 2016 da Secretaria Municipal da Educação, que estabelece o Programa “São Paulo Integral” (SÃO PAULO, 2016a), o AEE deve ser organizado em colaboração com o trabalho que acontece dentro de sala regular. Vale lembrar que na escola em que a pesquisa foi realizada, esse formato de atendimento ainda não havia começado.

Diagnóstico ou laudo?

Na cidade de São Paulo, para que estudantes tenham acesso ao AEE é exigido um laudo com diagnóstico. Aqui faz-se necessária a distinção entre o que a comunidade escolar da escola pesquisada entendia por laudo e por diagnóstico: para gestores, professores e famílias da escola, a palavra laudo pode ser entendida como sinônimo de diagnóstico. No entanto, a seguir será feita uma distinção entre os dois termos e a priorização pela utilização da palavra diagnóstico.

O Conselho Regional de Psicologia da cidade de São Paulo (CRP-SP, 2003) define um relatório ou laudo psicológico como um documento cujo objetivo é descrever a dinâmica vivida por um indivíduo, apresentando os procedimentos instrumentais utilizados, tais como testes psicológicos, observações e entrevistas, podendo chegar ou não a um diagnóstico como resultado. Laudo, portanto, seria o registro do resultado de um processo de avaliação que culminaria em um diagnóstico. Para a escola em questão, é esse o documento utilizado e é nele que estão as respostas buscadas e solicitadas. O diagnóstico é o nome da patologia que acomete alguém, de acordo com parâmetros internacionais e mais recentes do CID-10 (Código Internacional de Doenças) ou DSM-5 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais).

Aqui vale o destaque de um documento feito pela então Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), em janeiro de 2014, Nota técnica nº 04 (BRASIL, 2014b) que presta orientação quanto a documentos comprobatórios de estudantes com NEE no Censo Escolar. O Ministério da Educação (MEC) aconselha a não obrigatoriedade da exigência de um diagnóstico para que estudantes frequentem o AEE. O(a) professor(a) regente da SAAI é o responsável por elaborar um Plano de AEE, que é considerado pelo MEC o documento comprobatório de que a escola reconhece que um(a) estudante necessita de AEE. Por fim, ainda sinalizava que exigir um diagnóstico denotaria uma imposição de barreiras e cerceamento ao livre acesso de estudantes a um atendimento especializado, que já lhe é assegurado por direito.

Diagnósticos e medicalização da vida: um recorte

O CRP-SP, juntamente com o Conselho Federal de Psicologia (CFP), tem alertado para o uso que se faz de diagnósticos, uma vez que vem problematizando o fenômeno da medicalização da vida e da educação. Em seu documento “Subsídios para a campanha ‘Não à medicalização’” (2011), comenta ser preocupante que fenômenos humanos como sentir tristeza, alegria e medo passem a ser vistos hoje a partir de um viés médico e patologizante, além do uso de medicamentos ser entendido como a melhor forma de tratamento.

O entendimento de medicalização da vida humana utilizado aqui corresponde ao proposto pelo Fórum sobre Medicalização da Educação e da Sociedade (2010):

[...] processo que transforma, artificialmente, questões não médicas em problemas médicos. Problemas de diferentes ordens são apresentados como “doenças”, “transtornos”, “distúrbios” que escamoteiam as grandes questões políticas, sociais, culturais, afetivas que afligem a vida das pessoas. (CFP, 2010, p. 17).

O saber médico responde atualmente a questões sociais complexas por meio de diagnósticos e laudos que estipulam o que está dentro ou não do padrão de normalidade. A medicação seria a via de normatização com a qual a medicina pretende compensar os desequilíbrios do doente (KAMERS, 2013).

O fenômeno da medicalização é uma forma de enxergar a vida humana sustentada em um discurso médico, no qual os modos de ser são conduzidos, controlados e disciplinados segundo o discurso hegemônico da medicina. Interessante atentar para como as questões sociais são tomadas como individuais, responsabilizando a pessoa por ser quem ela é ou por ter determinado diagnóstico. De acordo com Meira (2012), o questionamento deve ser em relação a transformar questões e problemas humanos em sintomas de doença, que será tratada somente por meio do uso de medicamentos.

Mantoan (2004) entende que as escolas, tradicionalmente, têm estipulado como parâmetro a ser atingido a igualdade entre os estudantes, tanto pelo desempenho intelectual ou a postura comportamental. A autora acredita que quando as diferenças passarem a ser o horizonte, a postura escolar não mais será a de enquadrar todas as pessoas em mesmos grupos, ou categorias, ou estágios do desenvolvimento, mas sim, a de ter um olhar individualizado para estudantes.

Uma educação que visa à inclusão vai em direção oposta ao modo como funciona uma educação de integração. Na integração, de acordo com Mantoan (2015), estudantes adaptam-se ao funcionamento e às exigências escolares, enquanto, na inclusão, a instituição escolar transforma-se e reorganiza-se como um todo, de modo que todos(as) frequentem as salas de aula de ensino regular. Na inclusão escolar, estaria presente certo radicalismo, justamente porque as escolas inclusivas atendem a todos(as) sem discriminar ou adaptando-se.

Sanches e Teodoro (2006) resgatam um princípio fundamental das escolas inclusivas, citado na Declaração de Salamanca (1994): o de que todos os estudantes precisam aprender juntos, independente das diferenças e dificuldades que possuem. Como comentado anteriormente, a escola deve reconhecer a riqueza existente na diversidade humana: diferenças desde a cor da pele até as de necessidades pedagógicas devem ser consideradas para que um debate democrático e valorativo da individualidade humana esteja presente. A integração foi um passo grande para que estudantes pudessem ter acesso a ambientes escolares, mas a promessa para os próximos anos é a de que a escola se torne inclusiva.

Assim, fica posto um grande desafio quando se fala acerca da inclusão escolar: a necessidade de transformação na cultura escolar. Uma escola inclusiva é aquela na qual estudantes são percebidos nas suas individualidades, potencialidades e dificuldades, têm seus ritmos de aprendizagem respeitados; na qual objetivos e expectativas de aprendizagem não visem à chegada a algo comum, igualitário, estático, mas a objetivos que serão conquistados, aos poucos, e que fazem sentido para cada um.

Conclui-se que existe uma polêmica a respeito da forma como um diagnóstico é realizado e esse cenário gera uma preocupação da psicologia e educação, especialmente no sentido de que certos fenômenos humanos sejam transformados em diagnósticos psicopatológicos. É preciso também questionar quais os interesses políticos e econômicos por trás da medicalização gerada a partir dos diagnósticos. Diante dessas considerações e questionamentos, partindo do olhar fenomenológico hermenêutico, a pesquisa pretendeu compreender os sentidos dos diagnósticos para mães e professoras de uma Escola de Ensino Fundamental I (EMEF), e assim, responder à seguinte questão: como as famílias e a escola compreendem os diagnósticos atribuídos a seus filhos(as)/ estudantes?

Método

Esta foi uma pesquisa qualitativa, participativa com base no pensamento fenomenológico hermenêutico, fundamentada especialmente no texto Analítica do sentido, de Critelli (2006), que apresenta uma perspectiva de ruptura da visão dicotômica de mundo, de objetividade no contexto de pesquisa e neutralidade do campo da investigação. Este modo de pesquisar busca pelo que se mostra, pela manifestação dos fenômenos, ou seja, pela aparência, que é a questão na qual a presente pesquisa pretende se debruçar. Legitimar a aparência é considerar toda uma existência e não um recorte conceitual sobre ela. Uma reflexão possível de se fazer a partir da experiência da pesquisa realizada é a de que uma criança com diagnóstico parece ser percebida e compreendida a partir dele, podendo ser a ele reduzida. O lado mais singular da criança, ou como aparece no contexto escolar ou familiar, fica sistematicamente esquecido, colocado em segundo plano. Pode-se dizer que seu modo genuíno de aparecer fica sobreposto por lâminas diagnósticas.

Na pesquisa científica, o retorno às aparências aparece na preocupação do(a) pesquisador(a) estar voltado(a) para observar e compreender o fenômeno que ele(a) investiga, tal como ele se mostra. Uma investigação é entendida como uma interrogação acerca de algo que ainda não se sabe, mas que se pretende buscar e, com isso, chegar a algum lugar. Nessa modalidade de pesquisa, há um interesse em buscar respostas para o questionamento inaugural, a saber, o entendimento dos sentidos do diagnóstico de estudantes para suas famílias e professoras a partir do próprio modo como isso aparece na escola onde o trabalho foi realizado.

Entende-se que o fenômeno da medicalização da vida e o surgimento dos diagnósticos psicopatológicos na história da Psiquiatria e Psicologia são desdobramentos do que, no pensamento heideggeriano, é “Era da técnica” (HEIDEGGER, 2012), entendendo técnica a forma como a pessoa no mundo moderno vive e se conhece. Critelli (2002) aponta que o modo como a ciência se apresenta na relação com o ente ou objeto provoca-o a se mostrar da forma como pretende que ele se mostre, de modo que esse modo técnico está presente em todas as instâncias do existir humano.

O controle daquilo que não é mensurável, tal como os fenômenos e experiências humanas, precisa estar em exercício para que exista um conhecimento sobre eles. Os diagnósticos e medicamentos entram como elementos que compõem esse conhecimento e um controle sobre a vida humana, pois essa é a maneira como a sociedade, inclusive médica, organiza-se. Esse cenário merece atenção, cuidado e questionamento.

Procedimentos

O tipo de observação desenvolvido no território da escola é a da participante (VALLADARES, 2007), que entende a não-neutralidade na ação do(a) pesquisador(a) no território em que está entrando: as perguntas, os apontamentos e até mesmo a sua presença já estará se revelando como uma possibilidade de intervenção.

O caráter intervencionista e de estabelecimento de relação entre pesquisador(a) e território fica cada vez mais evidenciado nessa modalidade de trabalho. Segundo a autora, o(a) pesquisador(a) não sabe de antemão como sua investigação se desdobrará no território a ser conhecido e a formulação do problema de pesquisa, inclusive, é realizada de forma conjunta, a partir da escuta de demandas da instituição. Assim, por cerca de um ano a pesquisadora frequentou semanalmente a escola parceira e as visitas/reconhecimento de campo/convivência, conjugadas com o interesse do equipamento escolar pelo tema, abriram espaço para reflexões e questionamentos acerca da educação inclusiva.

Ao final do processo de observação participante, foram realizadas entrevistas reflexivas (SZYMANSKI, 2004) que colocam participantes em contato com algum aspecto de sua existência e abrem espaço para que possam elaborar compreensões a respeito do fenômeno estudado. Tem-se a intenção de questionar as participantes sobre algo, sem direcionar sua resposta com questões que induzam a explicações, justificativas ou causas.

Assim, foram feitas entrevistas individuais com duas professoras da escola e entrevistas conjuntas com duas mães de estudantes com NEE, cujas características serão apresentadas no item Participantes. A escolha por essas participantes deu-se a partir de sua disponibilidade e da relação com a pesquisadora construída ao longo da parceria cuja característica é a de intervenção, no caso, fundamentada no acompanhamento longitudinal de situações escolares (SZYMANSKI; SZYMANSKI; FACHIM, 2019).

Posteriormente às entrevistas, também foram realizados momentos de devolutivas com as participantes, parte fundamental do procedimento, pois uma vez que o conhecimento foi construído conjuntamente entre participantes e pesquisador(a), precisa ser compartilhado entre todos os agentes dessa experiência. É importante para que haja uma reflexão a respeito das temáticas que apareceram, tornando o momento também uma possibilidade de formação continuada, aspecto presente na modalidade de uma pesquisa interventiva e dialógica.

As entrevistas partiram de uma questão desencadeadora que possibilitou a imersão na experiência que se pretendia investigar nessa ocasião; desencadeadora justamente porque auxilia a desencadear uma resposta, apresenta um tema que precisa ser explorado e desenvolvido por meio do diálogo. A questão feita para as professoras foi: “Como são seus(as) estudantes com deficiência na escola?”; para as mães: “Como é seu filho na escola?”.

Participantes e local de pesquisa

As participantes da pesquisa foram duas professoras e duas mães de alunos da escola. As professoras foram: Professora 1 (P1), regente da Sala de Apoio e Atendimento à Inclusão (SAAI) da escola; e Professora 2 (P2) de sala regular de um 2º ano. Ambas tinham formação em Pedagogia e Psicopedagogia, com especialização em práticas pedagógicas e educação especial e atuavam há mais de 20 anos na área da educação.

As duas mães foram: Mãe 1 (M1) de 34 anos, cujo filho cursava o 1º ano do Ensino Fundamental e tinha um diagnóstico de Espinha Bífida e de deficiência física; e a Mãe 2 (M2), cujo filho estava matriculado no 4º ano e se encontrava em processo de avaliação diagnóstica, por apresentar dificuldade de concentração e comportamentos agressivos, que apareceram, de acordo com sua mãe, após um episódio convulsivo quando ele era menor.

Local da pesquisa

O trabalho foi realizado em uma EMEF que tinha cerca de 665 estudantes, dentre os quais aproximadamente vinte e dois eram estudantes com NEE. Está localizada na zona norte de São Paulo, no território da Brasilândia, que abrange uma área de 21 km2 e cujo número de habitantes, em 2017, era de 417.685 (SÃO PAULO; CEInfo, 2017).

Segundo dados do Mapa da Desigualdade (2016)4, a Brasilândia estava ocupando o segundo lugar dos trinta e quatro piores distritos da cidade de São Paulo, aparecendo entre os trinta piores distritos nos quarenta indicadores avaliados. Dados atuais do Mapa (2019)5 mostram que a média de idade com que as pessoas morrem na Brasilândia é de 60,01 anos, em contrapartida, em bairros mais ricos a média de idade chega a 80,57 anos.

Procedimentos de análise

As notas de observação das visitas na escola foram consideradas como material de análise, bem como as entrevistas realizadas, gravadas e transcritas. Após esse processo, e, em posse de um texto escrito, os temas mais evidentes, que responderam ao presente problema de pesquisa e que se relacionaram entre si foram destacados como constelações (SZYMANSKI, 2014). Essas podem ser entendidas como uma possibilidade de organização de sentidos que, naquele momento, formam uma totalidade. Assim, a palavra constelação aponta para fenômenos que podem ser visualizados por diferentes perspectivas e entendimentos, tais como as estrelas; aí está o caráter circunstancial da compreensão de fenômeno.

Resultados e discussão

A partir das entrevistas, o trabalho de análise chegou a quatro constelações: 1) Relação entre professoras e estudantes com NEE - “É bem difícil trabalhar com inclusão, mas não é impossível” – P1; 2) Relação das mães e professoras com o diagnóstico de seus filhos e estudantes - “Eu sempre fui interessada em saber o que aconteceu no cérebro do meu filho!” – M2; 3) Relação das mães com a escola - “Eu quero que meu filho aprenda a escrever!” – M2; e 4) Relação das professoras e mães com especialistas - “Eu acho que o professor dentro da sala de aula sozinho não dá conta disso.” – P2.

As professoras relataram as dificuldades e desafios que aparecem nas suas relações com estudantes com NEE (Constelação 1) e apontam estratégias que encontraram para superar os percalços. Um dos desafios é o de que esses estudantes exigem do professor tanto estudo e formação para lidar com suas necessidades quanto uma abertura à modificação da sua metodologia em sala de aula para lidar com suas dificuldades.

P1 destacou a importância de um estudo anterior à aula para que professores estejam mais preparados para atingir alunos em suas diferentes solicitações e demandas e que esse não é um trabalho fácil, pois exige, dos docentes, disponibilidade e disposição. Ainda de acordo com ela, esse estudo traria um conhecimento acerca das necessidades de estudantes com transtornos e a auxiliaria a entender o motivo de não aprenderem determinado conteúdo ou de terem uma forma diferente de aprender da dos demais. Por outro lado, P2 indica que o estudo está relacionado a um momento em que ela se debruça sobre a patologia dos seus estudantes, de modo a entender quais seriam as necessidades dessas crianças e de que forma ela poderia contribuir em sala de aula para que fossem supridas. Dessa forma, ela consegue se sentir mais preparada para lidar com os estudantes.

Outro desafio destacado por ambas estaria ligado a sentimentos de incompetência e impotência frente às dificuldades encontradas no processo de escolarização desses estudantes. P2 comenta que o seu sentimento de incompetência vem quando ela está tentando desenvolver estratégias para atingir um aluno, mas o resultado de sua prática não fica evidente, além de um sentimento de desespero frente à cobrança por resultados que ela não conseguiu ou não está conseguindo atingir com seus alunos. P1, por outro lado, não se sente incompetente, uma vez que acredita ter competências necessárias para ensinar seus estudantes, tais como formações e especializações; mas se sente impotente frente a uma grande dificuldade: a de não conseguir atingir determinado aluno.

Isso que eu chamo de o sentimento de incompetência que ele é mais uma impotência... Gera uma impotência em você! De você falar “O que eu faço?”, você fica meio paralisado e o aluno cresce, ele fica maior que você e você, às vezes, fica com medo dele porque o problema dele, você começa a visualizar lá na frente... (P1, Trecho da entrevista).

O que se percebe são as professoras tentando criar estratégias para buscar segurança em uma situação na qual se deparam justamente com a insegurança do desconhecido, daquilo que as convoca a pensar acerca de suas indeterminações e, em último caso, do que não conseguem controlar, nem conhecer por inteiro. O diagnóstico pode ser visto como um descobrimento de algo que antes estava desconhecido, indeterminado. A determinação de um diagnóstico, nesse sentido, vem acompanhada da segurança, pois certa estranheza em alguém se torna conhecível, manipulável e, não mais importante, curável e tratável.

A medicalização da vida tem se tornado cada vez mais, na sociedade ocidental moderna, um dos caminhos mais eficientes e rápidos para amenizar o sofrimento psíquico e os problemas que nos assolam cotidianamente. Neste sentido, o psicofármaco aparece como uma solução técnica para eliminar nossas inquietações, diante de uma sociedade que nos impõe a necessidade de estar na condição de felicidade permanente. (DANTAS, 2009, p. 564).

Interessante acrescentar que se busca, no fenômeno da medicalização da vida, não somente um estado de felicidade constante, mas também – como a pesquisa mostrou – estudantes exemplares, que se comportem de forma adequada, que sejam contidos, estudiosos, obtenham resultados esperados para seu ano letivo, entre outras situações. É uma expectativa idealizada, estipulada por padrões sociais que são criações humanas. Vale acrescentar que Souza (2011) destaca a influência da formação do campo da psicologia, enquanto saber científico pautado em explicações organicistas e causalistas, na contribuição deste quadro.

As professoras expuseram, ao longo das entrevistas, três formas de apresentar seus estudantes que podem evidenciar a maneira como iniciam os seus relacionamentos com eles. A primeira é a apresentação de estudantes com um diagnóstico já conhecido por elas. Nesse caso, é como se os nomes das patologias já apresentassem os sujeitos: ao utilizarem-se desse nome, as professoras estariam descrevendo seus estudantes a partir do quadro nosológico ou sintomático das patologias.

Aí você tem o Thomas que é... Tem autismo, ele tem síndrome cerebelar, ele tem microcefalia, entre outros CIDs. Então assim o diagnóstico dele é o mais completo possível... Ele tem sete CIDs. (P1, Trecho da entrevista).

Nesse caso, existe um risco para o qual se deve estar atento: o de esquecimento de um sujeito, do indivíduo para além do seu diagnóstico. Não parece que foi isso o que as professoras participantes da pesquisa fizeram, mas sim trouxeram à tona uma forma de apresentar esses alunos, uma vez que, em seus discursos, valorizam e problematizam os casos de estudantes com NEE que atendem. No entanto, não raramente, a pesquisadora ouvia pela escola “Nesta classe, temos três inclusões”, “Este menino é autista”, “Ela tem PC”. São formas de apresentar situações que nomeam algo, mas que pouco dizem acerca dos sujeitos dessas experiências.

A biologização, embasada em uma concepção determinista, em que todos os aspectos da vida seriam determinados por estruturas biológicas que não interagiriam com o ambiente, retirando do cenário todos os processos e fenômenos característicos da vida em sociedade, como a historicidade, a cultura, a organização social com suas desigualdades [...], está preparado o terreno para a medicalização. (MOYSÉS; COLLARES, 2014, p. 51-52).

A segunda forma de apresentação toma lugar quando as professoras percebem características individuais de determinado aluno e as entendem como sintomas do diagnóstico que ele tem. Saber de características de um quadro parece trazer mais segurança sobre a compreensão que se tem da criança.

Sobre a terceira forma de apresentação, trata-se da situação de não existência de um diagnóstico de um estudante com dificuldades consideráveis. O interessante, nesse caso, é notar que a maneira como é o aluno é apresentado se dá pela descrição de suas características individuais e modos de ser. P1 passou grande tempo da entrevista descrevendo as percepções de como é o aluno ou a forma como se dá o seu relacionamento com os demais colegas, além de sua constituição familiar.

Outro aspecto importante: a partir das experiências de relacionamentos estabelecidos entre as professoras e seus estudantes, vão-se produzindo concepções de educação inclusiva. P2 entende que a educação inclusiva não significa ter, presencialmente, estudantes com NEE em sala de aula, mas sim tratá-los da mesma forma que as crianças que não tenham NEE; além de entender que crianças e, de uma forma geral, seres humanos, têm especificidades e necessidades diferentes, aspectos a serem melhorados e outros a serem valorizados.

Na constelação 1 (dificuldades e desafios enfrentados), surge um sentimento de incompetência/ impotência nas professoras, percebido pelas diferentes formas de apresentar os alunos, utilizando ou não seus diagnósticos, e pela concepção de educação inclusiva de cada professora a partir de suas experiências de contato com estudantes com NEE.

Quando se fala da relação estabelecida entre professoras e mães com o diagnóstico de seus estudantes e filhos (constelação 2), observa-se que, para a M2 o diagnóstico teria um papel muito importante na definição de uma dúvida dela sobre o que, de fato, aconteceu com seu filho. Em posse desse diagnóstico, ela teria acesso a medicamentos que pudessem, na sua perspectiva, transformá-lo em uma criança normal ou mesmo na criança que ela percebia antes do episódio de convulsões.

Eu penso assim, se eu tenho uma dor de cabeça, um resfriado e eu tomo o remédio certo, ali, praticamente uma hora a gente não vai mais estar resfriado, né? Aí vai acabar... Então eu acho que é a mesma coisa, ele vai conseguir... Sabe? Fazer as coisas dele direitinho, certinho... Não vai ser mais agressivo! Porque o remédio vai atingir o lugar certo né? (M2, Trecho da entrevista).

Dantas (2009) compara os mitos e a importância que a medicação tem recentemente: os medicamentos ocupam uma posição de um produto místico que existe para curar todos os males humanos, aliviar dor e sofrimento. Não há espaço para questionamentos, os profissionais da medicina ganham um status de poder em relação à mera crença popular, pois o que vale é o conhecimento científico.

Para as professoras, o diagnóstico teria um papel de ajudá-las a saber como lidar com seus estudantes com NEE. Por meio de um estudo acerca dos quadros de cada estudante, P2 sentia-se mais segura e preparada para estabelecer um contato. O conhecimento da patologia a auxiliou a justificar comportamentos, a compreender de forma mais clara determinadas características e a prever como poderia reagir frente a algumas situações com eles.

Interessante notar que as duas percepções: tanto a das mães quanto a das professoras parecem idealizações de alunos e filhos perfeitos e correspondem sempre às expectativas delas. Essa questão é apontada mais explicitamente por P1, quando fala que professores esperam que seus estudantes respondam de forma muito positiva e otimista em relação ao que é proposto no ambiente escolar ou então que tenham um comportamento dentro do esperado para sua idade.

A presença do diagnóstico é importante para que professores tenham o conhecimento acerca da patologia e possam intervir de forma mais assertiva e específica. Essa intervenção, no entanto, parece ter por objetivo igualar estudantes com NEE a seus colegas. M2, ao falar do desejo de que seu filho seja normal, também está fazendo uma idealização, ligada à sua percepção de quem ele era antes do episódio da convulsão e ao entendimento de que, no geral, crianças normais são inteligentes, querem estudar, são empenhadas, não muito agitadas ou agressivas.

De acordo com Garcia, Borges e Antoneli (2014), o discurso médico influencia no modo como professores irão conceber seus estudantes: da mesma forma que a psiquiatria e a medicina estipulam, por meio de manuais diagnósticos, o que é patologia e o que é normalidade, professores passam a ver seus alunos a partir desse parâmetro, que não lhes permite visualizar a historicidade daquela criança ou adolescente, mas sim se os comportamentos apresentados correspondem à idade que têm.

Esse modo de enxergar crianças e adolescentes cria uma uniformização de concepção de pessoas: todas devem ser e ter nível de desenvolvimento igual na mesma idade escolar. Aqui, cabe resgatar a discussão que Mantoan (2013) faz a respeito de como a escola tem se proposto a chegar, com seus alunos, a um status de igualdade de desempenho. É certo que a diferença não cabe nesses moldes educacionais, assim, fica difícil encaixá-los nos moldes estáticos e padronizados.

Quando se trata da relação das mães com a escola de seus filhos (constelação 3), também se nota que há expectativas com relação à escolarização: a forma como enxergam seus filhos na escola, o que pensam a respeito do que os faz gostar de ir para a instituição.

Em relação à postura de seus filhos na escola, percebe-se que, num primeiro momento, expõem dificuldades em relação a aspectos comportamentais. Além disso, enfatizam que seus filhos têm um sentimento de amor em relação à escola, gostam de frequentá-la, pois, por exemplo, é ali onde surgem elogios a eles quanto a suas atitudes ou atividades, sendo um espaço de importantes conquistas.

As mães também relatam suas expectativas quanto ao acolhimento que terão pelos profissionais da escola e à aprendizagem: elas esperam que os dois consigam desenvolver as capacidades de leitura e escrita. Aqui, cabe salientar que a P1, em sua devolutiva, disse que é difícil lidar com as expectativas das famílias em relação à alfabetização: há estudantes cujo foco de trabalho não está voltado somente para a alfabetização, mas antes disso, para questões como socialização e adequação ao ambiente escolar.

No que se refere à relação de professoras e mães com especialistas (constelação 4), deve-se considerar o modo como as participantes compreendem o papel ou o trabalho de especialistas ou outros profissionais da área da saúde. P2, por exemplo, ressalta a importância do trabalho de especialistas junto à escola em benefício da criança com NEE, pois observa que, ao longo de sua experiência profissional, estudantes que têm acompanhamento fora da escola têm um melhor desempenho no seu processo de escolarização.

Além desse ponto, P2 lembra que o seu trabalho em sala de aula é um trabalho solitário e que, por isso, em alguns momentos, fica difícil ser a única profissional a lidar com determinado estudante com NEE. Segundo ela, a parceria, tanto com membros da equipe pedagógica da própria escola quanto com especialistas como psicólogos, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e médicos, traz maior segurança para ela enquanto professora para se relacionar com os alunos e ensiná-los, pois, ao invés de ficar no achômetro, orientação de que caminho ou postura seguir.

É compreensível esse desamparo que P2 aparenta sentir, pois ao se dar conta de que tem grande responsabilidade na vida desses estudantes, sente o peso de ter que ser quem é, enquanto profissional.

A necessidade da presença de especialistas pode ser compreendida à luz da discussão que se tem feito nesta pesquisa a respeito do conhecimento técnico: o saber científico, que se especializa em áreas específicas, fundamenta diversas pesquisas e é bastante valorizado no contexto acadêmico (e fora dele). A existência desses saberes, tais como o médico, psicológico, pedagógico, fonoaudiológico, entre outros, está ligada à necessidade de compreensão e apreensão técnica daquilo que é desconhecido. Há a necessidade da pesquisa, do teste, do descobrimento e os conhecimentos específicos auxiliariam ainda mais neste processo.

A questão colocada aqui é como construir uma parceria, um diálogo entre profissionais de áreas diversas da saúde, professores e familiares, sem que um saber técnico ou especializado desconsidere as demais visões, como as experiências das mães com seus filhos e das professoras com seus estudantes. A equipe gestora da escola sentia que professores não conseguem, em geral, considerar a importância de seu trabalho, do seu conhecimento pedagógico. É como se o saber pedagógico fosse inferior aos demais saberes, como se as intervenções psicológicas, fonoaudiólogas, médicas e de pesquisadores tivessem maior importância e maior grau de assertividade. Assim, as professoras entrevistadas conseguem sim desenvolver trabalhos interessantes com seus estudantes com NEE, mas falta perceber o que realizam e o que já conseguem.

As mães, por outro lado, relatam experiências negativas que tiveram com profissionais médicos, uma vez que elas sentem que é como se eles não as escutassem em suas demandas, desejos e vontades; o saber do médico se mostrava superior ao saber das mães sobre seus próprios filhos, gerando certo incômodo. O desconforto das mães em relação a essas posturas médicas parece estar ligado ao descrédito desses profissionais em relação ao que elas sentem em suas vivências e experiências com seus filhos.

M2: [...] Aí de repente, muda tudo! Fica tudo muito forte! A gente não sabe o que fazer, não tem uma pessoa para te explicar, aí você corre atrás e escuta “Não, mãe! Isso é normal! Passa...”, e você sabe que não é, porque o seu filho não era daquele jeito... M1: E isso que dá raiva porque a gente conhece o filho da gente... M2: Isso! M1: E o médico “Não, mãezinha, não é assim...”, gente! Nós somos as mães! Nós sabemos as crianças que temos em casa! (M1 e M2, Trecho da entrevista).

O poder da psiquiatria na cultura humana é estabelecido, entre outras coisas, pela adequada delimitação dos papéis a serem desempenhados pelo paciente e pelo médico, (FOUCAULT, 2006). Esse modo de operar é percebido na situação narrada pelas mães: os médicos parecem colocar-se em uma posição de superioridade em relação ao que elas sabem sobre seus filhos e isso faz com que se sintam incompreendidas e não acolhidas com o atendimento. Ao mesmo tempo, é importante lembrar que as mães reconhecem a importância da presença de outros profissionais da saúde como a fonoaudióloga e o psicólogo no processo de desenvolvimento de seus filhos.

Considerações finais

Esta pesquisa teve por objetivo compreender sentidos do diagnóstico (ou de sua ausência) de crianças com NEE para suas mães e professoras. A entrada no território e a vivência da escola pública e da sala de aula conduziu a reflexão para outras dimensões, como a discussão do saber técnico e seus atravessamentos na instituição escolar e nas narrativas dos seus protagonistas.

Critelli (2002), acerca da Era da técnica (HEIDEGGER, 2012), denomina de pensamento calculante o modo pelo qual as ciências modernas transformam os fenômenos naturais e humanos, instaurando a necessidade (e crença) de uma previsibilidade e controle dos acontecimentos. O objetivo da ciência é o de chegar mais perto possível do controle e segurança, razão pela qual essa lógica é bem-vinda na dimensão da saúde e da saúde mental, especialmente quando falamos da interface da saúde e educação e, mais especificamente, do contexto escolar. Desse modo, o pensamento calculante permite o entendimento do diagnóstico como uma forma de representação de algo, de uma manifestação.

As ciências modernas quando descobrem algo sobre determinado fenômeno e, assim, passam a ver algo que antes não era visto, criam uma representação desse ente, reapresentam-no de uma nova forma, originando uma ideia. Esse processo só é possível, pois é por meio do pensamento calculante que se chega ao conhecimento científico. Critelli (2002) aponta que a forma como a ciência se apresenta na relação com o objeto investigado provoca-o a se mostrar da forma como ela (ciência) pretende que ele se mostre.

Ao ajustá-lo à medida da lente, a representação calculadora realiza uma certa provocação (próvocação) do real. Ela o convoca a mostrar-se sempre da mesma maneira. Lança o real diante de si como objeto dessa provocação representativa. Assim, opera em relação ao real um controle sobre sua possibilidade de manifestação. (CRITELLI, 2002, p. 86, grifos da autora).

Partindo dessa problematização, questiona-se: qual é a lente do diagnóstico? É a que minimiza, restringe? Ou é a que amplia? É a que acalma? A que traz consigo garantias e segurança? Fala de um conhecimento? Fala de todos? Fala de alguém?

Esta pesquisa pôde responder que a lente do diagnóstico são todas essas concomitantemente. Há um risco em se contentar ao saber o diagnóstico de uma criança ou adolescente e se sentir um alívio em relação à descoberta do que a pessoa tem, pois é assim que se organiza o mundo no contexto da saúde, solicitando que o homem moderno conheça a respeito de todas as situações, a fim de que possa controlá-las e ter uma sensação de segurança ou, em última instância, possa curá-las. Essa é a Lógica da medicalização, que:

[...] tem relação com a produção de um modelo de dominação. Reencarnamos modelos determinantes (esse inimigo está em nós) e é muito difícil superar essa lógica se o que pretendemos for também dominar. [...] Essa forma de pensar e agir em que o outro é tido como anormal, equivocado e fora de um padrão de normalidade [...] se faz presente em nossos trabalhos e nas formas de escrever os fenômenos. (MACHADO, 2014, p. 96).

Vive-se em um mundo descrente da possibilidade de que o cuidado dessas crianças e adolescentes seja realizado valorizando a diferença entre todos e, por conseguinte, a diversidade de individualidades e singularidades existentes: seja na sua necessidade educacional, no tom de pele, na cor do cabelo, na religião etc. Este trabalho também levanta a reflexão de que existem pessoas disponíveis para esse cuidado, pois tanto a escola quanto as participantes se disponibilizaram a pensar acerca do assunto, falar de suas dificuldades, dos seus desamparos, inseguranças e reafirmar aquilo que já fazem.

A discussão que também está sendo feita, mais ampla que a dos sentidos do diagnóstico, é a de como a área da educação e a interface da psicologia com a educação tem visto, percebido e concebido seus estudantes. Onde fica a individualidade? Das diferenças? A diversidade não está somente em aparências físicas, mas também pode estar presente nos processos de aprendizagens, nas relações com as diferentes áreas do conhecimento, entre as pessoas, sem trazer à tona questões de gênero e de raça, por exemplo, presentes em qualquer relação institucional. Priorizar modos corretos ou eficientes de ser/aprender significa negligenciar a vida mesma - esta certamente não passível de normatização ou categorização.

Por fim, por se tratar de um relato de pesquisa interventiva e dialógica, cabe dizer que a reflexão aqui sistematizada é fruto da discussão feita no decorrer do processo da pesquisa que teve duração de dois anos. Nesse tempo, abriu-se na escola um espaço para a sistematização da discussão, tornando-a cotidiana. As entrevistas aqui trazidas foram compartilhadas, por pedido das participantes, com a comunidade escolar. Famílias enxergaram-se nas falas das mães que, por sua vez, puderam ser ouvidas com cuidado, tempo e interesse - desdobramentos da modalidade da entrevista reflexiva. A discussão acerca da educação inclusiva de qualidade na escola pública é complexa, razão pela qual deve ser contínua e sistemática no espaço escolar. A coconstrução de um espaço de diálogo para esse tema foi uma das conquistas deste trabalho, cuja intenção é, em última instância, produzir oportunidade para que os diversos protagonistas (pesquisadores, profissionais e estudantes da educação e psicologia, educadores, familiares, crianças e adolescentes) se inquietem, perguntem, se ouçam e se apropriem do tema.

Referências

BRASIL. Constituição. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. [ Links ]

BRASIL. Lei n.13.005, de 25 de junho de 2014. Aprova o Plano Nacional de Educação – PNE e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF., 26 jun 2014. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Diretoria de Estatísticas Educacionais. Censo escolar da educação básica 2013: resumo técnico. Brasília, DF, 2014a. 39 p. Disponível em: http://download.inep.gov.br/educacao_basica/censo_escolar/resumos_tecnicos/resumo_tecnico_censo_educacao_basica_2013.pdf. Acesso em: 03 dez. 2015. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Diretoria de Estatísticas Educacionais. Censo escolar da educação básica 2019: resumo técnico. Brasília, DF, 2020. 94p. Disponível em: http://inep.gov.br/documents/186968/484154/RESUMO+T%C3%89CNICO+-+CENSO+DA+EDUCA%C3%87%C3%83O+B%C3%81SICA+2019/586c8b06-7d83-4d69-9e1c-9487c9f29052?version=1.0. Acesso em: 22 out. 2020. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Diretoria de Políticas de Educação Especial. Nota técnica nº 04. Brasília, DF, 2014b. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_docman&view=download&alias=15898-nott04-secadi-dpee-23012014&category_slug=julho-2014-pdf&Itemid=30192. Acesso em: 20 fev. 2015. [ Links ]

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Especial. Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva. Brasília, DF, 2008. Documento elaborado pelo Grupo de Trabalho nomeado pela Portaria nº 555/2007, prorrogada pela Portaria nº 948/2007. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/arquivos/pdf/politicaeducespecial.pdf. Acesso em: 22 nov. 2019. [ Links ]

CFP. Conselho Federal de Psicologia. Subsídios para a campanha Não à Medicalização da Vida – Medicalização da Educação. Brasília, DF, 2011, 22 p. XV Plenário. Gestão 2011-2013. Disponível em: https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/Caderno_AF.pdf. Acesso em: 03 FEV. 2016. [ Links ]

CRITELLI, Dulce. Analítica do sentido. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2006. [ Links ]

CRITELLI, Dulce. Martin Heidegger e a essência da técnica. Margem, São Paulo, n. 16, p. 83-89, dez. 2002. Disponível em: http://www4.pucsp.br/margem/pdf/m16dc.pdf. Acesso em: 18 out. 2016. [ Links ]

CRP-SP. Conselho Regional de Psicologia de São Paulo. Manual de elaboração de documentos decorrentes de avaliações psicológicas. São Paulo: CRPSP, 2003. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/portal/orientacao/resolucoes_cfp/fr_cfp_007-03_Manual_Elabor_Doc.aspx >. Acesso em 03 fev. 2016. [ Links ]

DANTAS, Jurema Barros. Tecnificação da vida: uma discussão sobre o discurso da medicalização da sociedade. Fractal, Niterói, v. 21, n. 3, p. 563-580, set./dez. 2009. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/fractal/v21n3/11.pdf. Acesso em: 18 nov. 2016. [ Links ]

FOUCAULT, Michel. O poder psiquiátrico. São Paulo: Martins Fontes, 2006. [ Links ]

GARCIA, Marcos Roberto Vieira; BORGES, Lenna Nascimento; ANTONELI, Patrícia de Paulo. A medicalização na escola a partir da perspectiva de professores de educação infantil: um estudo na região de Sorocaba - SP. Revista Ibero-Americana de Estudos em Educação, Araraquara, v. 9, n. 3, p. 536-560, 2014. Disponível em: http://seer.fclar.unesp.br/iberoamericana/article/view/7356. Acesso em: 05 abr. 2016. [ Links ]

HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 11-38. [ Links ]

KAMERS, Michele. A fabricação da loucura na infância: psiquiatrização do discurso e medicalização da infância. Estilos da Clínica, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 153-165, jan./abr. 2013. [ Links ]

LAPLANE, Adriana Lia Friszman de. Condições para o ingresso e permanência de alunos com deficiência na escola. Cadernos Cedes, Campinas, v. 34, n. 93, p. 191-205, maio/ago. 2014. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-32622014000200191&script=sci_abstract&tlng=pt. Acesso em: 08 abr. 2016. [ Links ]

MACHADO, Adriana Marcondes. Exercícios de superação da lógica da medicalização: a escrita de relatórios. In: VIÉGAS, Lygia de Souza et al. Medicalização da educação e da sociedade: ciência ou mito? Salvador: UFBA, 2014. p. 93-104. [ Links ]

MANTOAN, Maria Teresa Eglér. Inclusão escolar: o que é? Por quê? Como fazer? São Paulo: Summus, 2015. [ Links ]

MANTOAN, Maria Teresa Eglér. O desafio das diferenças nas escolas. Petrópolis: Vozes, 2013. [ Links ]

MANTOAN, Maria Teresa Eglér. O direito de ser, sendo diferente na escola. Revista CEJ, Brasília, DF, n. 26, p. 36-44, jul./set. 2004. Disponível em: http://www.jf.jus.br/ojs2/index.php/revcej/article/view/622/802. Acesso em: 23 out. 2016. [ Links ]

MEIRA, Marisa Eugênia Melillo. Para uma crítica da medicalização na educação. Revista Semestral da Associação de Psicologia Escolar e Educacional, São Paulo, v. 16, n. 1, p. 135-142, jan./jun. 2012. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141385572012000100014. Acesso em: 02 mar. 2016. [ Links ]

MOYSÉS, Maria Aparecida Affonso; COLLARES, Cecília Azevedo Lima. A educação na era dos transtornos. In: VIÉGAS, Lygia de Souza et al. Medicalização da educação e da sociedade: ciência ou mito? Salvador: UFBA, 2014. p. 47-68. [ Links ]

SANCHES, Isabel; TEODORO, António. Da integração à inclusão escolar: cruzando perspectivas e conceitos. Revista Lusófona de Educação, Lisboa, v. 8, n. 8, p. 63-83, jul. 2009. Disponível em: http://revistas.ulusofona.pt/index.php/rleducacao/article/view/691. Acesso em: 17 dez. 2016. [ Links ]

SÃO PAULO (Município). Secretaria Municipal da Educação. Portaria 1.185, de 01 de fevereiro de 2016a. São Paulo: SME, 2016. Disponível em: http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/portaria-secretaria-municipal-de-educacao-1185-de-2-de-fevereiro-de-2016/consolidado. Acesso em: 30 out. 2016. [ Links ]

SÃO PAULO (Município). Secretaria Municipal da Educação. Portaria 5.718, de 17 de setembro de 2004. São Paulo: SME, 2004. Disponível em: http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/portaria-secretaria-municipal-da-educacao-5718-de-18-de-dezembro-de-2004. Acesso em: 20 maio 2015. [ Links ]

SÃO PAULO (Município). Secretaria Municipal da Educação. Portaria 8.764, de 23 de dezembro de 2016b. São Paulo: SME, 2016. Disponível em: http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/portaria-secretaria-municipal-de-educacao-8764-de-23-de-dezembro-de-2016. Acesso em: 22 out. 2020. [ Links ]

SÃO PAULO (Município); CEInfo. Secretaria Municipal da Saúde. Coordenação de Epidemiologia e Informação. Boletim CEInfo Saúde em Dados, São Paulo, v. 16, n. 16, p. 1-20, 2017. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/saude/arquivos/publicacoes/Boletim_CEInfo_Dados_2017.pdf. Acesso em: 09 maio 2019. [ Links ]

SOUZA, Marilene Proença Rebello de Souza. Retornando à patologia para justificar a não aprendizagem escolar: a medicalização e o diagnóstico de transtornos de aprendizagem em tempos de neoliberalismo. In: CONSELHO REGIONAL DE PSICOLOGIA DE SÃO PAULO & GRUPO INTERINSTITUCIONAL QUEIXA ESCOLAR (org.). Medicalização de crianças e adolescentes: conflitos silenciados pela redução de questões sociais a doenças de indivíduos. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2011. Cap. 4. [ Links ]

SZYMANSKI, Heloisa. A prática reflexiva em pesquisas com famílias de baixa renda. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE PESQUISA E ESTUDOS QUALITATIVOS. A PESQUISA QUALITATIVA EM DEBATE, 2., 2004, Bauru. Anais... Bauru: Universidade do Sagrado Coração, 2004. p. 1-7. [ Links ]

SZYMANSKI, Heloisa. Entrevista reflexiva: um olhar psicológico sobre a entrevista em pesquisa. In: SZYMANSKI, Heloisa (org.). A entrevista na pesquisa em educação: a prática reflexiva. Brasília, DF: Liber Livro, 2004. p. 9-61. [ Links ]

SZYMANSKI, Luciana; SZYMANSKI, Heloisa; FACHIM, Felipe Luis. Interpretação como des-ocultamento: contribuições do pensamento hermenêutico e fenomenológico-existencial para análise de dados em pesquisa qualitativa. Pro-Posições, Campinas, v. 30, p. 1-25, 2019. Disponível em: www.scielo.br/pdf/pp/v30/1980-6248-pp-30-e20180014.pdf. Acesso em: 05 dez. 2019. [ Links ]

VALLADARES, Lucia. Os dez mandamentos da observação participante. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 22, n. 63, p. 153-155, 2007. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092007000100012. Acesso em: 25 abr. 2016. [ Links ]

2- O Projeto de Lei Nº 326, que “Dispõe sobre a implantação de serviços de psicologia e assistente social nas escolas da Rede Pública Estadual e institui a Lei E. E. Professor Raul Brasil de Suzano”, torna urgente a discussão sobre atuações da psicologia nas escolas para que se compreenda esse fazer psicológico para além do seu aspecto individualizante e patologizante.

3 - A portaria 8.764/16, que institui a Política Paulistana de Educação Especial, na Perspectiva da Educação Inclusiva (SÃO PAULOb, 2016), propõe uma nova forma de nomear esses espaços como Sala de Recursos Multifuncionais (SRM).

Recebido: 18 de Junho de 2019; Revisado: 12 de Novembro de 2019; Aceito: 18 de Fevereiro de 2020

Lia Spadini da Silva é psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), doutoranda do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação - PUC-SP. Docente e supervisora de estágio na Universidade Paulista (UNIP) e psicóloga clínica.

Luciana Szymanski é docente do curso de psicologia da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde e do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: Psicologia da Educação - PUC-SP. Líder do grupo de pesquisa “Práticas Educativas e Atenção Psicoeducacional na Escola, Família e Comunidade” (ECOFAM).

Creative Commons License  This is an Open Access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution Non-Commercial License, which permits unrestricted non-commercial use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original work is properly cited.