SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.47Pedagogia crítica e o legado de Paulo Freire para a democratização da educação: entrevista com Henry Giroux índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.47  São Paulo  2021  Epub 22-Nov-2021

https://doi.org/10.1590/s1517-970220214701001 

Editorial

A ciência e os periódicos científicos: mais um ano de lutas num cenário de pandemia, negacionismos e desincentivos


No editorial do volume 46, de 2020, mobilizados pelas condições impostas pela pandemia da COVID-19, destacamos os muitos ataques sofridos pela população brasileira no cenário político recente. Com isso, nosso intuito foi evidenciar a difícil situação dos periódicos científicos ligados às ciências humanas – e, num âmbito mais amplo, da própria atividade científica e do pensamento relacional e crítico. Dizíamos, a um só tempo consternados e indignados, que:

[...] aos olhos de boa parte da nossa comunidade – surpreendentemente não da sua totalidade – é inadmissível, talvez insuportável, assistir às queimadas na Amazônia e no Pantanal, problema que tem ao longo dos anos posto em risco a preservação de nossos biomas e povos originários. Para além disso, a insistência no uso de medicamentos não comprovados para o tratamento da COVID-19, a negação da eficácia de uma vacina, os ataques insistentes à democracia e às universidades públicas configuram o absurdo e o espetáculo que prevalecem. (GALIAN et al ., 2020, p. 1-2).

A jornada obscura em que nos encontramos prossegue nessa toada e nos permite reafirmar, em 2021, as mesmas constatações e os sentimentos a elas associados. A COVID-19 subtraiu de nossa sociedade, até agora, mais de 600.000 brasileiras/os – e convivemos com a certeza de que a maioria delas/es seguiria com suas vidas se as vacinas tivessem chegado no tempo que se espera de um governo preocupado com seu povo (o oposto do que temos no presente momento). Seguimos com a falta dessas pessoas e de tudo o que ainda tinham por viver. E, como se não bastasse, assistimos a indecências antidemocráticas, que se acumulam desde a escrita do editorial do volume 46, cada vez mais explícitas. Diante disso, e na busca por evitar que o silêncio em torno de todo esse quadro possa ser visto como aprovação, em qualquer medida, lembramos Adorno (1995 , p. 136), quando se refere a Auschwitz: “quem ainda insiste em afirmar que o acontecido não foi tão grave assim já está defendendo o que ocorreu, e sem dúvida seria capaz de assistir ou colaborar se tudo acontecesse de novo”.

Do momento da escrita do editorial do volume 46 para cá, também na perspectiva dos periódicos científicos da área das ciências humanas permanecem questões a serem objeto de reflexão, tais como as que se associam às práticas da ciência aberta, à avaliação e ao financiamento.

No que tange ao primeiro desses aspectos, em 2020 já entendíamos que:

[...] as propostas relativas a tornar as práticas editoriais mais acessíveis em seus modos de funcionamento representam valorosa contribuição à produção do conhecimento; porém, é preciso ponderar também a respeito das condições em que as mudanças nas práticas e sua abertura se realizam, de modo a observar não apenas o que seja próprio da cultura científica e da produção do conhecimento, mas também as condições sociais, políticas e econômicas em que essa cultura se constitui. ( GALIAN et al., 2020 , p. 5).

Nesse sentido, continua a nos preocupar a forma pela qual as novas práticas vão se impondo aos periódicos. O que se inicia como uma possibilidade, paulatinamente vai se naturalizando como única via possível, caso se tenha interesse em manter a condição de indexação, com todos os efeitos que isso representa para a obtenção de financiamento. Assim, ainda que se opte pela avaliação duplo cega, a submissão de artigos já publicados em preprints , por diferentes mecanismos, vai sendo cada vez mais exigida tanto das/os autoras/es quanto dos periódicos. Teremos esgotado esse debate, realmente?

Amaral e Príncipe (2018 , p. 324) ressaltam importantes desafios em torno da ciência aberta, em sua maioria ainda por serem enfrentados, ou, ao menos, mais considerados em amplos debates, que levem em conta as especificidades da produção de conhecimentos nas ciências humanas:

[...] são aspectos e desafios da revisão por pares aberta, no que se refere à participação da comunidade em geral; o engajamento de toda a comunidade científica e não científica no processo de avaliação dos artigos; a problematização das identidades abertas dos autores e revisores; a qualificação necessária para avaliação de um manuscrito incluindo-se a titulação de um pesquisador como forma de medir o quanto um revisor está capacitado; os problemas das relações interpessoais que podem ser causados entre o pesquisadores.

É necessário colocar em perspectiva quais os objetivos que se atribuem às práticas da ciência aberta a fim de que que não se estabeleçam suas premissas de modo totalizante, isto é: em lugar de definir-se que a ciência aberta, concebida de modo uniforme e homogêneo, é positiva a priori , é preciso questionar em quais condições e em quais contextos determinadas práticas são operacionalizáveis e produtivas em seus objetivos, e em quais outros não o são. Faz-se necessário, assim, observar as características próprias de cada campo do conhecimento, de áreas específicas e da cultura própria de determinados conjuntos de periódicos em suas particularidades decorrentes dos modos de produção dos conhecimentos que divulgam.

Essa postura frente às práticas da ciência aberta parece ser mais adequada inclusive para que se defenda a não mercantilização do conhecimento e de sua divulgação: observamos que os processos de avaliação Qualis dos periódicos científicos são historicamente assediados por interesses de grandes grupos de exploração econômica dos processos de editoração de periódicos científicos. Esse assédio se mostrou mais incisivo nas novas regras Qualis estabelecidas em 2020, referenciadas estritamente em dados quantitativos de citação, mecanismos fundamentais para o controle econômico dos processos editoriais pelas plataformas de acesso privado.

Após novos movimentos de resistência na área das ciências humanas, garantiu-se que o índice a ser utilizado para as revistas da área seja o h5, e não outro, de propriedade da Scopus ou da Web of Science , dado que um número pequeno de revistas da área se encontra incluído nessas plataformas. Garantiu-se também que periódicos das ciências humanas publicados em língua portuguesa sejam avaliados como um conjunto à parte, de modo que não sejam ranqueados junto a periódicos incluídos nas bases acima mencionadas, com os quais concorreriam em condições desiguais, dada a abrangência das bases em sua disponibilização em nível mundial e de o inglês ser seu idioma comum.

Nessas condições, a colocação em termos totalitários de fechamento versus abertura da ciência enseja que as disputas pelo controle institucional dos processos se realize de modo mais radicalizado: o lançamento no segundo semestre de 2021, pelo CNPq, de edital de auxílio para editoração de periódicos, inclui como um dos requisitos para que uma revista possa submeter sua solicitação o de que siga estritamente em suas práticas editoriais a avaliação cega por pares, o que impede, também, que tenha entre suas práticas aquelas associadas à publicação de preprints.

Produz-se, assim, um embate entre as diretrizes das agências públicas de fomento e as plataformas que induzem práticas editoriais de ciência aberta. Nesse embate, os periódicos podem se encontrar em situação muito adversa ao ter de optar entre acatar uma política de financiamento que responde privilegiadamente aos interesses das plataformas comerciais, que seguem estritamente as regras do anonimato em seus processos de avaliação, e as plataformas e bases indexadoras que se posicionam pelo acesso amplo e democratizado à ciência e seus resultados.

É preciso, assim, para que sejam respeitadas as especificidades de áreas e subáreas no campo das ciências, e, também, para que os processos de avaliação não sejam empregados como instrumento de segregação, submetidos a interesses comerciais, que as práticas de ciência aberta sejam concebidas e promovidas de modo não impositivo, o que não apenas contraria os princípios democráticos que as legitimam, como também as posiciona como instrumentos úteis para as estratégias de controle do campo editorial pelos grupos econômicos em seus interesses.

Outro efeito produzido pela avaliação dos periódicos em relação ao número de citações é o de fragmentação e dispersão dos processos editoriais. Nesse sentido, políticas editoriais seletivas, definidas pelo objetivo de obtenção de índices altos de citação, podem conduzir os periódicos à busca por publicar manuscritos de temas de maior repercussão, porventura decorrentes de fatores circunstanciais, ou de autoria com mais forte expressividade num dado campo ou numa determinada disciplina. Fragilizam-se, assim, os periódicos, submetidos à lógica da concorrência e não à da qualidade da divulgação do conhecimento científico.

Esse processo mais fragmentário, que pode ser intensificado em função dos fatores acima mencionados, se constitui mais explicitamente com o advento dos meios digitais de disponibilização e de acesso a artigos científicos. Ainda que componham unidades referenciadas em formatos produzidos na cultura impressa, como os volumes e os números, o acesso a um dado manuscrito pode ser feito de modo individualizado, via serviços de pesquisa na internet. Estratégias têm sido empregadas com o objetivo de ordenar os processos de publicação a diretrizes estabelecidas pelas políticas editoriais dos periódicos. Assim, a proposição de dossiês ou de sessões temáticas tem sido um recurso para tornar mais orgânicas as práticas editoriais e suas publicações.

Nesse sentido, Educação e Pesquisa tem publicado sessões temáticas que buscam responder a questões prevalentes no campo educacional, procurando oferecer à leitura conjuntos de artigos que dialoguem mais proximamente entre si e ofereçam ao leitor uma mais bem delimitada rede intertextual que seja representativa dos estudos atuais numa determinada área. No volume de 2021, duas sessões temáticas foram publicadas: Infância, política e educação , sessão que teve sua publicação iniciada ainda em 2020; e Justiça e Educação: um debate necessário , iniciada em 2021. Para 2022, estão previstas duas novas seções: 20 anos depois: pensar com e sem Bourdieu ; e Educação em contexto de crise sanitária causada pela Covid-19 . Espera-se que contribuam para os debates sobre temáticas relevantes em suas áreas de filiação, seja em razão de fatores políticos atuais, como os referentes aos Direitos Humanos; às urgências do tempo, como as relacionadas aos impactos da crise sanitária causada pela COVID-19 sobre os processos educacionais; à revisitação de estudos fundamentais da obra de Pierre Bourdieu em suas contribuições para o campo educacional.

No contexto tão desafiador em que se encontra o país, em grave crise sanitária, econômica, política e social, a ciência é uma das áreas mais atacadas e afetadas pelos grupos que governam o país neste momento. Os movimentos em defesa da ciência e de sua divulgação, da cultura e da educação precisam se fazer de modo ainda mais intensificado em face dos riscos que se tem enfrentado. Os periódicos científicos têm papel fundamental nesse processo, ao divulgar os conhecimentos científicos e contribuir para o combate ao obscurantismo e ao controle político e social sustentado em estratégias de desinformação.

Referências

ADORNO, Theodor W. Educação após Auschwitz. In: ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação . 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1995. p. 119-138. [ Links ]

AMARAL, Janaynne C., PRÍNCIPE, Eloísa. Ciência aberta e revisão por pares: aspectos e desafios para a participação da comunidade em geral. Cadernos BAD , n. 1, p. 320-325, 2018. Disponível em: https://publicacoes.bad.pt/revistas/index.php/cadernos/article/view/1934/pdf . Acesso em: 06/10/2021. [ Links ]

GALIAN, Cláudia V. A. et al. O presente e o futuro das pesquisas em educação e de sua divulgação. Educação e Pesquisa , n. 46, p. 1-5, e20204601001, jan./dez. 2020. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ep/a/65n7RRsfZskmjqgXcxWqfmg/?format=pdf&lang=pt . Acesso em 14 out. 2021. [ Links ]

Creative Commons License This is an Open Access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution Non-Commercial License, which permits unrestricted non-commercial use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original work is properly cited.