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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.47  São Paulo  2021  Epub 12-Ago-2021

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202147238861 

SEÇÃO TEMÁTICA: Justiça e Educação: um debate necessário

Injustiças e astúcias associativas nas ocupações das escolas públicas do Rio de Janeiro em 2016

Ubirajara Santiago de Carvalho Pinto1 
http://orcid.org/0000-0002-9010-8431

1- Instituto Federal Fluminense, Macaé, RJ, Brasil. Contato: santiagosamba@yahoo.com.br.


Resumo

A partir de dados qualitativos construídos em pesquisa de campo realizada no ano de 2016 em cinco escolas públicas estaduais do Rio de Janeiro, são analisados os sentidos de injustiça que atravessam a escolarização pública estadual e os modos de atuar que conformam as ocupações das escolas e a experiência escolar atual. As análises conduzem a ampliar a definição da escola como arena pública e à percepção da multiplicidade de formas pelas quais os vínculos políticos se constituem, se rompem e se mantêm na escola e nas ocupações, assim como a interrogar as deficiências do equipamento público escolar e das políticas públicas destinadas ao ensino médio no Rio de Janeiro e noutros estados. Na mesma direção, argumenta-se no sentido de mostrar o instável e dificultoso trabalho associativo dos estudantes em vista de sustentar, enquanto coabitam a escola ocupada, a denúncia dos problemas que atravessam sua escolarização. As situações encontradas interrogam tanto a oferta de uma escola pública habitável quanto a ineficácia da qualificação escolar dos estudantes/jovens das classes populares brasileiras, entre os quais as questões problemáticas trazidas à tona evidenciam uma difícil batalha pela escolarização e pela autonomização nas condições complexas, desiguais e plurais da sociedade brasileira atual.

Palavras-Chave: Sentidos de injustiça; Escola justa; Direitos humanos; Mobilizações estudantis; Astúcias associativas

Abstract

Based on qualitative data collected in a field research carried out in 2016 in five state public schools in Rio de Janeiro, this article examines the meanings attributed to injustice in public schooling practices and how student action in this context shapes the occupation of schools and current student experiences. The analyzes expanded the understanding of the school as a public arena, revealed the various ways in which political ties are formed, broken and maintained in the school and in occupations, and addressed the deficiencies of public schools and the policies for upper secondary public schools in Rio de Janeiro and other states. The research also revealed the uncertain and difficult associative student effort to expose education problems while living in the occupied school. The situations observed bring to light the need for a habitable public school, the ineffectiveness of the schooling offered to poor Brazilian students and young people, and the difficult struggle faced by them to ensure quality schooling and autonomy in the complex, unequal and plural context of current Brazilian society.

Key words: Sense of injustice; Fair school; Human rights; Student mobilization; Associative cunning

Do ponto de partida

O artigo aborda questões centrais às ocupações das escolas públicas estaduais do Rio de Janeiro no ano de 2016 ( PINTO, 2018 ). Dada a complexidade da dinâmica participativa encontrada na pesquisa de campo, focalizo as análises em dois tópicos relevantes ao entendimento dessas mobilizações.

Primeiro, a partir do material empírico, explicito os motivos pelos quais os estudantes decidiram pela ocupação das escolas e os sentidos de sua crítica às condições de escolarização nas escolas públicas estaduais do Rio de Janeiro. Em seguida, evidencio, examinando os múltiplos envolvimentos (THÉVENOT, 2014a), as sociabilidades e a criatividade ( JOAS, 1996 ) presentes no decurso da ação coletiva, os esforços e astúcias do instável trabalho associativo dos estudantes/jovens, sem os quais dificilmente as ocupações teriam logrado duração no tempo.

O quadro teórico da pesquisa assenta-se na sociologia das capacidades críticas ( BOLTANSKI; THÉVENOT, 1991 ), alargada pela sociologia dos envolvimentos plurais. A primeira permite analisar os quadros de justiça conformados durante as mobilizações, enquanto a segunda incide diretamente sobre a maneira pela qual deve ser observada a ação e os processos de emergência de comunidades políticas. Tais comunidades são pensadas a partir de uma prova que se dá na experiência, atravessada por múltiplas formas de envolvimento (THÉVENOT, 2014a).

A dinâmica do politizável depende da experiência circunstanciada de cada ocupação, considerando-se sua abertura a sequências imprevisíveis e os processos situados de conformação da vida em comum (THÉVENOT, 2014a). Ilustro o ponto: morava na Luiz Reid um familiar para alguns alunos, para outros não, senhor Sassá. Habitante vulnerável, os cuidados que os estudantes lhe dispensavam revelam formas de atuar e avaliar as situações daquela comunidade política. Em ato anterior às ocupações, os estudantes opuseram-se à diretora, quando intentou retirar Sassá de seu quartinho precário próximo ao campo de futebol da escola. Uma política do cuidado indica a importância dos envolvimentos em familiaridade que, aliás, mais dificilmente encontram expressão pública por oprimir a pessoa em modos de estar, fazer e habitar acessíveis somente àqueles que são próximos ( THÉVENOT, 2011 ).

Por que especificamente dessa?

Basicamente porque, a outra única escola que eu estudei, não, as outras duas únicas escolas que eu estudei, aqui em Macaé, uma era, tipo muito, muito pequena. E, tipo, a escola não era ruim nem nada, só era bem pequena. E eu era bem introvertida, então, isso não me ajudou muito. E quando eu vim pra cá, eu cresci bastante. Tanto por uma quantidade muito grande de pessoas, quanto por uma infinidade de pensamentos e ações diferentes e ideias e ideologias, e eu conheci muita gente diferente. Essa escola me proporcionou isso. E quando eu vim pra Macaé tinha, na verdade, não tinha nem um ano que o meu pai tinha falecido, tinha sete meses e eu tinha, tipo, dez anos. E o único lugar que eu conseguia me sentir, digamos, melhor, de todo o tempo que eu estava aqui, que eu acho que já tinha 3 anos, foi aqui no Luiz Reid. E tipo eu conheci pessoas que são meus amigos até hoje. Só que, por exemplo, o Sassá mora aqui e, tipo, ela dava uma marmita com uma quantidade muita pouca de comida pra ele. Ele dormia num local muito sujo. E, tipo, foda-se sabe? Ele tá aqui, eu não sou obrigada a cuidar dele, mas já que eu tenho que cuidar dele eu vou dar tipo o mínimo pra ele. E já que ele mora aqui, porque não cuidar dele direito ? E fora que, por exemplo, os cachorros cuidam mais da escola do que ela. É... eles são tipo mais respeitados do que ela, por exemplo. Se alguém tenta fazer alguma coisa com o Sassá eles começam a latir. Tipo, vão pra cima, por exemplo. Ou então se alguém começar a brigar aqui na escola, eu mesma já vi, sabe, por exemplo, os cachorros irem pra cima quando tinha tipo uma briga aqui na escola. (Conversa gravada na ocupação da escola Luiz Reid).

Ao modo de um prelúdio, Camille mostra a presença de significados e atuações instáveis, entre a injustiça e a justiça, nas situações escolares: tais sentidos visam tanto a inclusão social quanto a importância da proximidade e da diversidade. O desrespeito e o descuido são também injustiças atribuídas com frequência à regência dos espaços escolares, seja atribuindo-se ao estado e ao governador o desrespeito e o descaso, seja às direções de escolas ou à Secretaria de Educação (SEEDUC). A coatuação de Sassá não é de somenos para se compreender o que está em jogo na regência coletiva a diferentes temperaturas de envolvimento do que sucedia nas arenas escolares. Noutras escolas, outros ingredientes situados requeriam a conformação do comum a partir de envolvimentos variáveis.

Para a sociologia das capacidades críticas, o ponto nodal é que os atores sociais sabem se valer de critérios gerais de justiça reconhecidos na sociedade em que vivem: a ação pública requer razões legítimas. Boltanski e Thévenot (1991) , apoiando-se em autores da filosofia política e em pesquisas empíricas, reconstituem seis princípios de justiça frequentemente empregados em controvérsias públicas: o cívico, o industrial, o doméstico, o inspirado, o mercantil e o do renome. Eles compõem uma “gramática de ordens de grandeza”: regras histórica e culturalmente desenvolvidas para reduzir as tensões envolvidas quando bens comuns são submetidos a um teste de realidade situado, ou seja, são objeto de qualificação pública (THÉVENOT, 2014a). Essa gramática permite críticas radicais e conflitos em torno de qualificações conflitantes acerca do bem comum; já a gramática liberal, mais frequente na política norte-americana, doma as divergências e as canaliza dentro dos limites de interesses ou de preferências expressos por escolha individual em público (THÉVENOT, 2014a).

Os motivos de uma ação coletiva não podem ser, todavia, previamente estabelecidos: os quadros de justiça são mobilizados nas situações concretas. As razões legítimas podem ser alegadas e forjadas com base na experiência dos atores: seus ambientes de socialização podem fornecer elementos para a formulação de suas críticas ( JOAS, 1996 ).

Para a sociologia dos envolvimentos, a ação humana dá-se na dependência do ambiente circundante, considerando, aliás, diferentes formatos convencionais de preparação desses à ação. Os atores são dotados de capacidades de autocoordenação e de coordenação em vista da vida em comum. Mas a conformação do comum gera tensões - que vão além da oposição indivíduo/sociedade - porque os envolvimentos plurais envolvem diferentes bens - a execução de um plano, a própria familiaridade, bens comuns - e formatos de avaliação e informação ( THÉVENOT, 2006 ).

Apontam-se, inicialmente, três regimes de envolvimento: 1) o regime de ação em plano; 2) o regime de envolvimento em familiaridade, axial nas ocupações e, em certa medida, invisibilizado por estudos que, apesar do seu contributo, não adentram o trabalho cotidiano de associação política e suas tensões nas ocupações ( BARRETO, 2016 ; CORTI; CORROCHANO; SILVA, 2016); e 3) o regime público que exige posturas ajustadas aos constrangimentos convencionais da apresentação pública de motivos legítimos ( THÉVENOT, 2006 ).

Os atores lidam com as questões efetivo-objetivas trazidas no decorrer da ação: é preciso organizar o ato público e as palavras de ordem, mas há vínculos de familiaridade que precisam ser garantidos, tal como estipulavam as convenções que limitavam o acesso aos quartos dos ocupantes aos recém-chegados, entre outras questões que afetavam a proximidade. Em um nível intermediário entre as grandezas públicas e o envolvimento familiar, era preciso garantir as refeições e a organização da escola, por exemplo.

A esse quadro, soma-se o conceito de arena pública ( CEFAÏ, 2002 ). Pretende recobrir o espaço deixado à pesquisa empírica das ações públicas no regime democrático pela “arquitetura constitucional, institucional e jurídica que funda uma ordem pública, independentemente de sua gênese histórica ou de sua existência sociológica” ( CEFAÏ, 2002 , p. 64). Para Cefaï (2002 , p. 65), a:

[...] compreensão da experiência democrática e republicana vale-se de todos estes registros, tal como as categorias do idioma ordinário e dos raciocínios do senso comum que articula nossa inteligência das causas públicas.

O conceito de arena pública visa a entender as arenas públicas na sua dinâmica de emergência. O termo arena permite, por sua dupla conotação de lugar de combate e de uma cena de performances diante de um público, distingui-lo do conceito de espaço público, que tende a ser muito estático e não comporta uma conotação dramatúrgica, marcado pela leitura de Habermas. A ideia é demarcar diferença da abordagem que reduz a formação da instância pública à lógica do equilíbrio de mercado ou das abordagens pelo conceito de campo, que enfatizam o conflito entre partes pela definição da realidade e pela imposição de uma legitimidade e mostram a relação entre a temporalização das interações estratégicas e a construção de problemas sociais, mas tendem a encerrá-las em uma análise estrutural ( CEFAÏ, 2002 ).

Enfatiza-se o processo em sua publicitação experiencial, com sua invenção de regras, convenções, objetos, imagens e teorias. A esse processo vincula-se a produção de atores individuais e coletivos (dos quais a identidade não é totalmente estabelecida de antemão, conformando-se no curso das intervenções e interações) e uma dinâmica de elaboração de culturas públicas, sob a forma, por exemplo, de argumentos e vocabulários de motivos ( CEFAÏ, 2002 ).

É nesse quadro que, depois de analisar os sentidos de injustiça plurais e as astúcias associativas implicadas nas ocupações das escolas secundárias, teço algumas conclusões acerca das questões de justiça colocadas pelas ocupações relativamente aos processos de socialização escolar nas escolas públicas estaduais do Rio de Janeiro, às políticas educativas e à complexidade da participação política direta na escola.

Captar as ocupações das escolas em ação: outro modo de aferir a escola como arena pública

Nos tempos recentes, houve três ciclos de ocupações em escolas públicas estaduais no Brasil. O primeiro, em São Paulo, remonta a novembro de 2015. Os secundaristas colocavam-se contra a reorganização escolar intentada, segundo estudantes e professores, de modo autoritário pelo então governador Geraldo Alckmin (Partido da Social Democracia Brasileira - PSDB). De acordo com os ocupantes e professores, a proposta foi feita sem diálogo, com vistas a diminuir custos econômicos que colocariam ainda mais dificuldades à situação da rede e ao direito à educação. Os estudantes realizaram uma série de atos públicos. Não havendo diálogo com a secretaria de educação e o governo estadual, decidiram ocupar as escolas. Ante a tenacidade dos estudantes, que ocuparam mais de 200 escolas por quase dois meses, a medida foi suspensa.

Além de negligenciar as deficiências e as necessidades das condições escolares existentes, os cortes de custos implicariam mudanças nas rotinas de mais de 300 mil alunos, de professores e de outros servidores, com o fechamento de mais de 90 escolas e possíveis demissões. Os motivos da educação pública, democrática e eficaz somavam-se aos envolvimentos familiares e afetivos à volta da escola.

No segundo bimestre de 2016, as escolas estaduais do Rio de Janeiro foram palco do segundo ciclo de ocupações. Elas foram antecedidas por diversos atos públicos, na esteira da greve do magistério estadual que durou de março a junho. O colégio estadual Mendes de Moraes foi o primeiro a ser ocupado no dia 21 de março: no auge, cerca de 80 escolas públicas estaduais foram ocupadas no Rio de Janeiro e, de modo menos duradouro, algumas Secretarias de Educação e outros espaços. A rede estadual de ensino médio público totalizava na época cerca de 1300 escolas.

A greve iniciada pelo Sindicato dos Profissionais de Educação do Rio de janeiro (SEPE), em março de 2016, se dá num contexto de intensificação da crise fiscal e orçamentária do estado. Eis as razões da greve: atraso sucessivo nos salários dos servidores estaduais, demissões dos funcionários terceirizados e, de um modo mais geral, a degradação das condições de trabalho no magistério estadual, no que tange à valorização das carreiras e às condições de funcionamento mínimo das escolas. Os cortes de investimento sociais do estado atingiram diretamente a educação.

O terceiro ciclo de ocupações deu-se no segundo semestre de 2016. Opunha-se às medidas impopulares e inconsistentes com as condições de financiamento público da educação, da saúde e da previdência social, conduzidas, segundo os estudantes, de modo autoritário pelo presidente interino Michel Temer (Movimento Democrático Brasileiro - MDB) e seu partido. Nos três ciclos, qualifica-se criticamente a implementação de políticas de governamento por padrões, metas e resultados, cuja marca é a hipertrofia da eficácia industrial associada à grandeza mercantil ( THÉVENOT, 2011 , 2014b ). Tais políticas obliteram os bens plurais de que se compõem as comunidades afetadas. Produzem pressões e opressões tanto aos envolvimentos familiares quanto aos que visam à qualificação de bens comuns: supõem a possibilidade de mensuração objetiva dos envolvimentos que constituem as organizações ( THÉVENOT, 2011 ; CHEYNS; THÉVENOT, 2019 ).

Adentrar nas escolas: o plano da metodologia

Adentro, doravante, o segundo ciclo. Após visitar 20 escolas públicas do Rio de Janeiro, volto atenção a cinco escolas estaduais do norte do estado: Matias Neto, Luiz Reid e Vanilde (de Macaé), Cinamomo (de Rio das Ostras) e a Jamil El Jaick (de Nova Friburgo). Em Macaé, as ocupações começaram no dia 5 de abril pela ocupação da Matias Neto. No dia 12 de abril, foi a vez da Luiz Reid, seguida pela Vanilde Natalino Mattos. As demais foram também ocupadas em abril.

Foquei nessas escolas por três razões: a primazia do monitoramento situado da “ação coletiva” ( CEFAÏ, 2007 ), a ancoragem do objeto em relações de proximidade e a urgência, dada a incerteza sobre a duração dos protestos. A facilidade de residir em Macaé também contribuiu para a decisão. A frequência às ocupações foi desigual, em razão da sua simultaneidade.

A observação participante exige negociação, aproximação e construção de relações de confiança e colaboração, sem as quais fica difícil a aceitação na comunidade política. Tomar parte desde o início na Luiz Reid facilitou a aproximação: nela fiz muitas horas de gravação de áudio. Central à geografia urbana da cidade e às mobilizações, foi posto de acesso às atividades das demais escolas de Macaé e da Cinamomo: havia trânsito de pessoas e informações entre elas.

Além disso, fiz entrevistas e grupos focais nas escolas que frequentei menos e registrei atividades e depoimentos de diferentes atores - professores, militantes, servidores e outros que lá estiveram - em circunstâncias variadas. Enfim, fiz um acervo pertinente à descrição densa dessas comunidades e suas ações em diferentes espaços. A análise do material deu-me acesso a vários dilemas e conflitos que atravessam as escolas, as ocupações e a experiência social dos jovens que as frequentavam. Os registros foram autorizados pelos estudantes/jovens, que foram esclarecidos previamente acerca da finalidade científica da coleta e resguardavam o sigilo de suas identidades. Por isso, sempre são usados pseudônimos.

Do perfil dos públicos e suas composições

As análises e as observações permitem dizer que cada ocupação tinha uma composição diferente. Algumas admitiam pessoas vinculadas a entidades políticas sem levantar bandeira, ou seja, como diziam, “pessoa física”, outras tinham composição de alunos da escola, outras foram disputadas por entidades, tal como a Mendes de Moraes. Havia escolas mais permeáveis a composições que abrigam ex-alunos, amigos e amigos de amigos, estudantes advindos de outras ocupações e pessoas sem moradia, tal como na escola Luiz Reid. Em geral, dormiam entre 5 e 20 pessoas nas escolas. Havia variações de número entre elas e momentos de maior afluxo em cada uma, a depender das atividades, dos dias da semana e do período considerado.

Predominavam, nesses espaços, jovens dos meios populares, residentes, em geral, em bairros da periferia da cidade, com presença menos significativa de frações da classe dos batalhadores ( SOUZA, 2011 ). Em geral, jovens entre 15 e 20 anos, de ambos os sexos, com presença marcante, nas escolas de Macaé, de jovens assumidamente da comunidade LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgênero). A condição juvenil desses públicos refere-se à sua situação perante a vida, isto é, ao significado socialmente construído dessa fase da vida, mas também ao modo objetivo como ela é vivenciada, tendo em vista as diferentes condições sociais - de classe, de gênero, etnia etc. – de vivenciá-la ( DAYRELL, 2007 ).

De certo modo, a diferença manifesta nessa condição juvenil é atestada na reduzida presença de professores e nas dinâmicas de apoio recíproco entre esses e os mais jovens. Juízos de menorização dos jovens aparecem mesmo entre professores e militantes que colaboravam com as ocupações. Não obstante, houve atos públicos com confluência de estudantes e professores e diversas denúncias - das condições laborais e de financiamento, da degradação e dos problemas de gestão das escolas - eram convergentes.

Os dados aqui analisados foram selecionados por sua pertinência às questões de injustiça e às astúcias associativas requeridas ao longo dos três meses de ocupação das escolas no Rio de Janeiro.

(In)justiças de primeiro plano

Coabitar as escolas e acompanhar de perto, em diferentes espaços, as movimentações ao longo dos meses permitiram enriquecer a definição da escola como arena pública. Na verdade, os motivos dessas manifestações têm camadas que não desenham uma paleta definida de cores pronta a explicitar as injustiças escolares. Por outro lado, ao longo das assembleias e dos dias de convivência, os jovens forjavam o vocabulário de motivos ( TROM, 2001 ) que os levaram a ocuparem as escolas.

As ocupações não foram compreendidas por todos de maneira igual. Houve resistências e divisões nos públicos escolares. Ocupar uma escola foi criar uma interdição acerca da maneira como habitualmente era usada por todos. Essa fronteira da proibição retirava a possibilidade do uso da gramática liberal da escolha individual – restrita a opções individuais, não abarca os bens comuns - misturada abaixo com o significado da ordem de grandeza cívica pelo estudante Isaac:

Eu gostaria de perguntar aos líderes da ocupação porque a secretaria não está funcionando e perguntar também que, como vocês tem o direito de ocupar, a gente também tem o direito de vir à escola e ter aula com os professores que querem dar aula. Professor quer dar aula? A escola é um local público. Professor quer vir dar aula, ele vem. Aluno quer assistir aula, ele assiste. A escola é pública ninguém pode barrar, trancar o portão, impedir aluno de entrar. (Assembleia na Matias Neto, 13 de abril).

Para Isaac, é injusto barrar a entrada dos docentes que querem dar aulas e dos alunos que pretendem assistir às aulas: isso colide com o significado público do uso ordinário da escola. Já os ocupantes referem o respeito à divergência e à garantia do livre acesso à escola: defendem outro significado cívico da escola como lugar de aprendizagem da cidadania e a legitimidade da greve dos servidores no quadro da degradação das condições de trabalho e das escolas, enfim, alegam a impossibilidade dos processos de aprendizagem na crise instalada.

[...] no final do ano o Estado vai querer passar todo mundo, eu sou do 1º ano, eu não vou querer passar sem saber, como você que está no 3º ano não vai querer passar sem saber. [...] a gente não tem que pensar só na gente, mas tem a minha memória também, como a minha vó estudou nesta escola eu também estudei. [...] você vai querer que seu filho e a sua filha tenham esse direito? [...] é um direito nosso lutar pelo nosso direito . Você paga imposto pra ter um ensino de qualidade, entendeu, não pra você vim pra escola e ter duas aulas. (Assembleia na Matias Neto, 13 de abril).

Críticas às deficiências dos planos, processos e objetos de caráter industrial/burocrático eram transversais às escolas. Na sua fala, Fênix mobiliza alguns critérios de justiça: 1) o critério inspirado, expresso no querer o saber por ele mesmo; 2) o sentido industrial da crítica à ineficiência do uso do dinheiro público e da instrução escolar; 3) o critério doméstico, que remete à família e às relações “nesta escola” e, por fim, 4) o sentido cívico de “lutar pelo nosso direito”. Em seguida, Vitória, trazendo informações da reunião do comando das ocupações no Rio de janeiro, reforça o sentido cívico da causa e o agravamento das desigualdades escolares: a precarização das escolas públicas evidencia a injustiça das desiguais condições de competição no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) dos jovens das escolas públicas estaduais.

[...] a gente conheceu outras escolas que também estão ocupando, e ouvimos as estórias que elas tinham pra contar! É o estado inteiro que tá passando por precarização, e é uma precarização imensa! São... falta de professores, falta de alimentação, falta de higiene, falta porteiro, falta de muita coisa...Três anos de aula precária, sem condições nenhuma, com aquele ensino baixo, e competir depois no Enem com alunos de uma escola privada, que vai ter bem mais aulas que a gente, aulas bem melhores que a gente é, acho injusto falar que a gente tem que competir com este tipo de pessoa. (Assembleia na Matias Neto, 13 de abril).

As insatisfações e questões de justiça ultrapassam as escolas: a degradação dessas acompanha-se de outras problemáticas que afetam o cotidiano, o reconhecimento social dos jovens e suas expectativas de futuro. O sentido industrial/cívico da crítica soma-se à habitabilidade da escola, que exige investimento e mudanças nas formas de organização das escolas.

[...] a visão que eles têm da gente é que são simplesmente mais um sem emprego, ou os meninos que moram em comunidade são uns favelados, eles não se importam com a gente. [...] porque se importassem a gente tinha mais cultura, a gente tinha esporte dentro de nossa escola – de graça não porque nós pagamos isso com os nossos impostos – a gente tinha atletismo, a gente tinha palestra, a gente tinha oportunidade de assistir vídeos e filmes dentro da nossa escola. [...] Precisa de dinheiro, precisa de investimento e a gente precisa de vontade, porque assim como o professor, sem dinheiro, não vai querer trabalhar, eu, sem estímulo, não quero estudar, porque eu estou cansada de uma escola que não me dá estímulo. (Assembleia na Matias Neto, 13 de abril).

Mas há outras razões, não somente alicerçadas em interesses e em estratégias políticas jogadas em outros tabuleiros. A desqualificação social da escola pública estadual, por vezes, vai junto com a estigmatização dos jovens/estudantes das classes populares.

É uma falta de respeito que a sociedade tem. Mas vamos dizer assim que é culpa do aluno. É uma minoria e eles generalizam e taxam. Aí fica taxado como se todo aluno da rede estadual fizesse aquilo. Não tem compromisso, não tem respeito. Acham que o aluno do estadual é vagabundo, que não tem futuro, que não se interessa. (Gravação de conversa na Luiz Reid).

De sua parte, a jovem Gaia tece justificativas às ocupações: convoca sentidos cívicos (que apontam a autonomia), domésticos, que colocam os mais experientes como aqueles mais preparados para tutelar os jovens, e as condições sociais que afetam a condição juvenil dos jovens das classes populares que a escola deve considerar.

Na casa nós temos a educação na escola a instrução. Então é educação e instrução, elas se parecem, mas tem uma diferença e aqui no colégio, a gente aprende, a gente sai de casa e começa a viver com outras pessoas desde pequeno. Então a gente começa a ter aquele aprendizado social. E isso é uma coisa que ao longo dos anos a gente vai vendo que a escola perdeu esse papel de ensinar a gente a viver aqui fora. Eu vejo ocupação e todas essas manifestações como um regresso disso. [...] Se estudava dentro de casa. Isso há muito tempo atrás. As coisas foram mudando e só quem tinha dinheiro ia para a escola. E homens, que todo mundo sabe. Mas a gente tem que voltar no tempo para lembrar e para entender o que está acontecendo hoje. Quando começamos a chegar na escola... que educação vem de casa. Aqui, você chegava tinha palmatória, educação tradicional e não sei o quê. Era mais rígido, então você não precisava criar laços com o seu aluno porque você estava ali para ensinar. Porque a educação vinha de casa. O tempo passa a sociedade muda, o estudo muda. E desde que isso aconteceu tem gente aí... E isso vem acontecendo ao longo dos anos que a gente, a escola agora, os professores tem o dever de educar e ensinar. Educar no sentido de vida. Nós professores agora temos que ensinar adolescente a viver, a criança a viver, a andar com as próprias pernas. Porque a família não tem mais tempo para isso. Os pais trabalham em dois empregos, a mãe trabalha e todo mundo fica o dia inteiro fora de casa e é isso aí. (Gravação de entrevista na Luiz Reid).

Para Gaia, é uma injustiça, ante as mudanças sociais e históricas ocorridas mais amplamente na sociedade brasileira e na vida dos públicos escolares do ensino médio, a escola pública não se modificar, no sentido de atender as necessidades de formação dos jovens das classes populares ( DAYRELL, 2007 , p. 1116). Ela postula que a escola é uma instituição fundamental ao alargamento da condição juvenil em direção a uma maior autonomia. Na mesma direção, argumentam Dayrell (2007) e Sposito (2010 ; 2014). Apontam mudanças societárias, na composição dos públicos escolares e nas formas de se vivenciar a condição juvenil. O status do jovem não coincide com as exigências postas ao aluno e à instituição escolar não se preparou para lidar com isso ( DAYRELL, 2007 ). O cotidiano escolar foi profundamente afetado e a escola não se equipou para os desafios do reconhecimento da condição juvenil e das diferentes condições de vivenciá-la, “numa sociedade em que a construção de si é fundamental à plena assunção da autonomia” ( DAYRELL, 2007 , p. 1126).

Sem o investimento na melhoria das condições de trabalho e a consolidação de um programa de socialização ciente das composições escolares atuais e sua complexidade, a escola seguirá produzindo injustiças. Nesse sentido, vale lembrar a crítica cívica das ocupações e dos professores ao SAERJ (Sistema de Avaliação da Educação do Estado do Rio), um instrumento de governamento por metas e resultados (THÉVENOT, 2014b). Trata-se de prova estadual com objetivo de auferir o desempenho dos alunos do ensino médio público no Rio de Janeiro. A classificação produzida destinava mais recursos às escolas de melhor resultado: obliterando por completo as diferentes condições de vivenciar a condição juvenil e o agravamento das desigualdades escolares. Os envolvimentos circunstanciados - qualitativos - não são passíveis de uma redução a propriedades mensuráveis ( CHEYNS; THÉVENOT, 2019 ).

Algumas astúcias da ação coletiva e a sustentação da vida em comum

Uma das primeiras inquietações da pesquisa de campo nas ocupações das escolas públicas do Rio de Janeiro dizia respeito à percepção de que sua duração podia ser interrompida a qualquer tempo. Não pelo fato óbvio de que o curso dos acontecimentos humanos é incerto. Sobretudo porque desde o início do monitoramento dos envolvimentos requeridos à manutenção de uma vida em comum ficavam evidentes as instabilidades, os esforços, as tensões e todo um trabalho associativo atravessado por exigências recorrentes: tanto relacionadas à prova de publicização dos quadros de justiça já exposto, quanto à prova de coabitação cotidiana das escolas.

Por certo, em períodos mais rotineiros, a coabitação das escolas é igualmente atravessada por regimes múltiplos de envolvimento que, não raro, se tensionam por diferentes razões: disputas por critérios de justiça ou de organização, pelo uso dos objetos e dos espaços, pelas definições de situações e planos de ação, entre outras diatribes que emergem na arena pública escolar.

Todavia, as ocupações das escolas constituíram-se em uma experiência absolutamente nova para boa parte dos jovens que se implicaram. Certamente que as composições entre os envolvimentos das frágeis identidades juvenis ( BREVIGLIERI; STAVO-DEBAUGE, 2004 ), as exigências sérias da coabitação da escola e da publicização da causa, somadas às difíceis condições de vida dos jovens das classes populares, exigiram esforços e astúcias fundamentais à sustentação, por três meses em média, das ocupações.

Aos esforços, revisões, ajustamentos e, sobretudo, às capacidades empenhadas na solução de diatribes e tensões, assim como na superação de dificuldades que emergiam, é que designo aqui astúcias associativas. Elas foram essenciais à manutenção dessas comunidades políticas que se autoconstituíam no tempo das coabitações das escolas. Examino, a seguir, algumas situações emblemáticas, ancoradas nas experiências de conformação do comum (THÉVENOT, 2014a) das ocupações de três das cinco escolas focadas.

Cuidados recíprocos

Tenho argumentado, juntamente com outros autores, acerca do caráter compósito e múltiplo dos envolvimentos que conformam as organizações sociais contemporâneas e, com maior abertura à criatividade e à fusão de elementos, os próprios movimentos sociais ( CEFAÏ, 2007 ). Disse, aliás, a respeito das ocupações dessas escolas públicas, como essas conformaram-se a partir de múltiplos envolvimentos em temperaturas variáveis.

O que aqui denomino astúcias associativas das ocupações secundaristas não se refere a ações operadas mediante cálculo, convencimento ou visando a interesses específicos. Ao contrário, refiro-me às formas de ação que, nas situações, indicam os esforços feitos para superar emergências e inquietudes trazidas no curso dos eventos. Uma série de envolvimentos relevantes à continuidade de diferentes ações coletivas e organizações ficariam incompreendidos a partir de análises adstritas ao modelo estratégico ( DE CERTEAU, 2014 ). Tais situações não eram raras e se colocavam, o mais das vezes, fora de qualquer expectativa imediata dos atores: precisavam ser geridas em vista da sustentação da comunidade política.

Eis, nesse sentido, uma primeira cena. Ela conjuga as questões da coabitação da escola e do uso de seus objetos, mas traz à tona os cuidados recíprocos que se vão tecendo entre os ocupantes, quando se voltam à solução de tensões e inquietudes. No dia 25 de abril de 2016, Govinda conta um episódio que gera uma série de interações de cuidado entre eles. Ele e Fênix, que dormiriam na Vanilde, precisam retornar a Luiz Reid, a fim de cuidar dos colegas.

  • - A Tamara viu uma criança correndo lá atrás. Aí eu fui falar com a Isadora. Ela começou a chorar. Depois falou com a Isadora que tinha umas coisas para falar que não eram legais, né? Aí a Isadora começou a chorar. Aí eu e Fênix viemos lá do Vanilde. Aí, quando a gente chegou aqui, perto do portão, a Isadora já veio chorando, falando com a gente... aí o Fênix teve que conversar com Tamara, com o Golias e com o Luthor.

  • - Sobre?

  • - Sobre isso que está acontecendo. Esses espíritos e tal. Aí eles resolveram tudo. [...] Eu e Fênix voltamos para o Vanilde. Fênix pegou as coisas dele, voltou para cá e dormiu aqui. Aí a noite foi tranquila, né? Ele veio, fez a janta, jantaram e dormiram. (Relato gravado na Luiz Reid).

Vários jovens que estavam na Luiz Reid foram socializados em ambientes atravessados por formas religiosas que evocam espíritos e práticas místicas. Com Tamara, que “viu uma criança”, não é diferente. O evento não é isento de mal-entendidos. Bastou para desencadear a vinda de Govinda e Fênix à Luiz Reid, com o propósito de cuidar dos amigos. Foi preciso proceder a novas revisões das ações em curso: o evento não pode ser incluído em um cálculo linear dos meios e dos fins. As categorias que organizam a experiência dos ocupantes mostram, assim, todo um trabalho criativo, ancorado em elementos de sua socialização prévia, mas apropriados de modo imprevisível. Esse agir criativo ( JOAS, 1996 ) é fundamental ao ajustamento das perturbações trazidas à vida em comum.

A convivência e as alteridades

Os envolvimentos na ação coletiva convocam significados e fazeres provenientes das experiências culturais pregressas e atuais. É possível dizer que eles comportam relações de cuidado de si e dos outros ( FOUCAULT, 2017 ; CAILLÉ, 2007 ). Nesse particular, a ocupação da Luiz Reid foi arena de episódios recheados de motivos de caráter religioso. Tais irrupções davam lugar a atividades que demandavam a coordenação dos ocupantes à volta de espíritos e “encostos” que tentavam incorporar em alguns.

Sem incidência previsível, as exigências de sua resolução mobilizavam os ocupantes: tomava-lhes tempo e energia. Na criatividade do agir ( JOAS, 1996 ), novas informações são sempre suscetíveis de alterar os fins inicialmente visados, produzindo novos processos de conformação da experiência e da cena. Falo em astúcias e esforços também, porque proceder à retirada do encosto e à purificação de um conviva não era algo de que pareciam gostar de precisar fazer: os episódios eram recheados de tensão. Alguns tinham medo e preferiam que não se falasse muito sobre isso: pessoas que “não entendem” podiam fazer troça e agravar o “problema”.

Foi, aliviou bastante. A gente só não comentou o assunto com quem chegou aí hoje... porque a gente preferiu abafar o assunto. Mas quem não entende ia querer brincar com isso e ia causar até um agravante maior... (Conversa gravada na Luiz Reid).

No dia 22 de abril, já informado a respeito, converso com Isadora, com o objetivo de aprofundar e coligir versões a respeito de tais atividades.

  • - O Luthor disse que o Castro teve um episódio de incorporação, teve? - Acontece nas melhores famílias. [...] É, Golias foi lá. Eles mandaram todo mundo ficar aqui na frente. Aí Golias foi lá e não sei o que ele resolveu. Mas ele está melhor. [...] Ele pergunta o tempo todo, por que você está com medo de mim? Eu: “Eu não estou com medo de você não”. (Conversa gravada na Luiz Reid).

As coordenações práticas à volta de Castro (e do encosto) mostram, portanto, os esforços feitos no sentido de mobilizar conhecimentos e métodos de uma cultura no plural ( DE CERTEAU, 2014 ). Naquele ínterim, fazíamos, descontraídos, o almoço, quando se iniciaram os trabalhos de purificação. A própria atividade de registro exigiu uma acomodação corporal à cena, para que fosse possível o registro. Entre os presentes, boa parte se tranca na cozinha. No pátio, Luthor, Fênix e Golias assentam Castro em uma cadeira. Em torno dele fizeram um círculo de sal grosso que, segundo contaram, serve para encerrar o encosto em seu interior. Ao mesmo tempo, depositam diante de Castro, já sentado, uma bacia com água, orientando-o a que nela ponha os pés. A água, como soube, serve para fins de purificação. Um segurava Castro, os demais oravam com as mãos em sua cabeça. Rogavam ao encosto, para que fosse embora.

Fênix: Ele está mais calmo. Mas isso daí não é por falta de aviso, eu mandei ele orar ontem. Mas ele não quis orar. Desde ontem à noite ele já estava assim. Aconteceu ontem à noite. Eu mandei ele orar o salmo 91 e orar dois “Pai Nosso”. Ele não fez. Ele não quis orar, nem o “Pai Nosso”.

Golias: Se for demônio não é em uma sessão, não é em duas, não é em três, não é em quatro, não é em cinco sessões, é em mais de dez sessões, se isso for realmente demônio.

Fênix: Não é bruxaria, cara. O que está nele pode ir embora.

Golias: Mas não pode nem correr para fora e nem correr para dentro. É um círculo de sal. (Gravação da cena na Luiz Reid).

Tais situações são teorizadas em suas razões de ser. Conjuga-se a situação da escola a uma ideia de ambiente pesado e a outros relatos de situações críticas associadas à memória do terreno em que a escola foi construída. Vê-se, com nitidez, a criatividade e a inquietude da ação: “Sempre que aparece gente nova aqui acontece isso. Ontem mesmo veio duas pessoas do Matias e aconteceu isso”, diz um ocupante. Enfim, cenas emotivas e tensões ante as quais a intimidade e o cuidado trazem seu conforto apresentam-se com certa frequência na conformação das experiências das ocupações.

Fechar os olhos: aos conflitos e às diferenças

Os objetos e acessos – aos suprimentos da cozinha, às chaves e a determinadas dependências de cada escola – são outros tantos componentes da vida em comum a reclamar decisões qualificantes dos modos adequados ao viver em comum. Em decorrência do que se passa com tais objetos e dos modos de sua apropriação surgem tensões. Esforços, astúcias, revisões e ajustamentos são chamados a se dar. No dia 23 de abril de 2016, Govinda reporta as perturbações havidas com a perda momentânea da chave na Luiz Reid.

A gente resolveu tudo, mas ontem foi muito estressante. [...] Ontem, estava eu e a Calíope na portaria. Aí, o Golias foi sair e jogou a chave. Aí, a Mafalda, que é da cozinha, pegou a chave e deixou em cima da mesa. Aí caiu de cima da mesa, aí ele pegou e colocou dentro do caderno. [...] Aí a gente não achou a chave. Aí chegou o Golias e mais duas garotas. Aí ele começou a gritar lá fora, estressado. Por causa da chave. Aí veio o garoto aqui, abriu o caderno e a chave estava lá. Aí, abriu a porta e ele pediu para chamar todo mundo aqui para conversar. Ele queria conversar sobre a chave e sobre o cabo do som que sumiu... aí todo mundo ficou estressado, ele brigou com a Mafalda. Então, eu acho que a Mafalda não vai voltar mais. Eu e a Calíope desistimos. A partir do momento que nós achamos a chave eu não fiquei mais no portão, eu comecei a andar, depois eu fui lá para o Vanilde. Fiquei lá e voltei à noite. [...] Só que eu falei, eu vou embora amanhã de manhã. A Cassandra conversou comigo e com a Calíope aí eu decidi ficar. [...] Eu só acho desnecessário ele fazer o que ele fez por causa de uma chave. Aí teve um momento que eu desci a escada, ele estava deitado, aí eu sentei para conversar. Aí ele começou a gritar: ainda vai sentar para descansar? Aí eu falei: “Caraca, eu estou cansado”. Aí ele falou: “Está estressado? Quem está estressado sou eu”. Aí eu fui lá bebi uma água e fui lá para dentro. (Conversa gravada na Luiz Reid).

No epicentro está Golias, “chefe da segurança” da Luiz Reid. Percebido como uma pessoa de temperamento enérgico, ele enfatiza, frequentemente, a dimensão do fazer, engrandecendo, lembra Govinda, o “sacrifício” que faz pela segurança da escola e dos colegas. Embora tenha se envolvido em diferentes diatribes de caráter proximal, tornou-se uma referência por sua disposição ao fazer.

A tensão na proximidade evidencia a relevância recorrente do envolvimento proximal nas ocupações. Golias já estudou na Luiz Reid, conhece várias pessoas que estudam na Matias Neto, tem amigos e proximidade com os que frequentavam as escolas e outros espaços da cidade. No início da ocupação da Matias Neto, envolveu-se em um conflito em razão da queima de um cartaz e de pichações, por ele qualificadas como vandalismo. Golias, exaltado, reclama punição aos que infringiram as convenções. Vi-o empunhando um porrete no pátio da Matias Neto, avançando na direção de um dos autores. A militante Karenina, do PSTU (Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado), acaba por demovê-lo: alega que o “companheiro cometeu um erro e já pediu desculpas” e “tem contribuído muito com a luta”. A situação exigiu esforços de apaziguamento, tanto argumentativos quanto mediante ajustamento corporal à cena. Karenina se interpõe entre Golias e um dos jovens que havia queimado o cartaz.

Algum tempo depois, já “chefe da segurança” na Luiz Reid, ele proibiu a entrada dos autores: “Então, se eu proibi a entrada deles é porque eles fizeram alguma coisa para serem proibidos de entrar”. Tais eventos geraram deliberação, em assembleia das duas ocupações: isso faz aumentar as tensões. As revisões propiciam a convocação de um “terceiro” conexo às questões do bem viver comum e à qualificação dos quadros de justiça e, nesse sentido, a busca do sentido das convenções (BREVIGLIERI et al. , 2006).

Uma das coisas que eu mais gosto de estar aqui é que todo mundo se trata bem, mesmo no pico de estresse que todos aqui estão, nós estamos brincando, nós estamos rindo, nós estamos nos divertindo. Sendo que tem pessoas que não conseguem respeitar o fato da ordem, o fato de que tem que ter obrigação. (Golias, ex-aluno da Luiz Reid, gravação de conversa na ocupação).

Era-me possível mobilizar outras cenas em que esforços e astúcias foram intensamente mobilizados a fim de garantir a continuidade cotidiana da convivência nas ocupações e entre as ocupações. Os conflitos e divergências entre as ocupações das três escolas de Macaé eram frequentemente esquecidos e colocados em segundo plano noutras situações. Doações recíprocas de víveres, socorros mútuos, trocas de informações, atos públicos conjuntos, pedidos de desculpa, aceitação de esclarecimentos e o estreitamento de amizades dão mostras de algumas astúcias associativas que passam pela capacidade – dos ocupantes – de fechar os olhos ( BOLTANSKI, 1992 ) para tensões e divergências e, assim, refazerem, no curso do tempo, a comunalidade no plural (THÉVENOT, 2014a) que caracteriza essas mobilizações.

Algumas breves conclusões

A análise dos significados e envolvimentos que constituíram as ocupações em 2016 permite ampliar a definição da escola como arena pública: os envolvimentos em proximidade e os contributos plurais devem ser plenamente considerados na dinâmica da socialização política escolar atual e seus dilemas. O exame das formas de envolvimento e dos quadros de justiça em defesa da educação pública e das escolas recoloca a importância desta instituição nos processos de autonomização dos jovens nas sociedades complexas, plurais e desiguais contemporâneas. A autonomização tutelada dos jovens é, segundo muitos jovens que ocuparam as escolas, a finalidade principal da educação, apesar das evidências das dificuldades ( DAYRELL, 2007 ). Essa questão é colocada pelos jovens/estudantes, quando mostram o quadro de desigualdades e conflitualidades, o descaso dos poderes públicos com a situação da escolarização pública e a degradação das escolas no Rio de Janeiro e noutros estados da federação.

Decerto que os riscos à qualificação escolar dos jovens não se originam apenas na escola: há outras vulnerabilidades, evidenciadas nas críticas multifacetadas que fazem às condições em que vivem, que transpõem os muros da escola ( DAYRELL, 2007 ) e são levadas às ocupações. Porém, apesar dos diagnósticos do sistema educacional como fator de reprodução das desigualdades, é preciso considerar seriamente as questões de justiça enfrentadas no chão da escola, que não passam exclusivamente pelas desigualdades estruturais: tocam de perto dilemas vividos na copresença e na interação face a face, na proximidade e na visibilidade dos seres em diferentes circunscrições participativas do cotidiano escolar.

Foi possível aceder, a partir das categorias da experiência dos jovens ( RAYOU, 2005 ), os significados da escola e das injustiças que atravessam a escolarização nas escolas públicas secundárias do Rio de Janeiro. No expressivismo próprio dos jovens irrompem outros bens problemáticos cujo acesso deficitário contribui para dificultar a vivência escolar: trabalho, moradia digna, segurança pública, reconhecimento social e tratamento decente estão entre as questões de justiça aí referidas.

A composição entre os envolvimentos que se dão nas escolas não tem um tempero simples. Estudos contemporâneos das políticas de educação, saúde e mesmo acerca das formas de controle do trabalho apontam para a hipertrofia de formas de governamento pautadas em normas, metas e resultados. Elas pressionam as organizações, produzem opressões a outras formas de envolvimento e sentimentos de injustiça que nem sempre logram visibilidade pública ( THÉVENOT, 2011 , 2014b ). Tais políticas têm incidido fortemente na educação e nas redes de ensino da história recente no Brasil e são analisadas pela literatura acerca das ocupações: seja sob a conceituação do neoliberalismo como política de adequação da população ao mercado ( BARRETO, 2016 ), seja quando refere políticas de eficiência administrativa (CORTI; CORROCHANO; SILVA, 2016).

As políticas de governamento por metas e resultados colocam os profissionais das categorias intermediárias em uma situação difícil. A arte da composição entre diferentes regimes de envolvimento que lhes é exigida as torna uma verdadeira classe explorada, pois não tem reconhecimento nem remuneração.

[...] o crescimento da desigualdade torna os beneficiários destes serviços uma população que cresce mais e mais distante dos requerimentos formais das tarefas planejadas; a lógica da procedimentação também fortalece as ferramentas formais que supostamente fornecem transparência. ( THÉVENOT, 2011 , p. 59; 2014b).

Mas a qualificação de diferentes bens associados à escola na sua dimensão convivencial e os sentidos de justiça apontados pelos jovens nas ocupações mostram que a escola não se constitui apenas sob a lógica da dominação e do poder. Embora a escola não seja garantia de mobilidade social e ruptura com as formas de dominação vigentes, os jovens experimentam nela, mesmo criticando sua degradação, envolvimentos plurais - entre pares e com os adultos - que designam sentidos de justiça cruciais ao dificultoso processo de construção de si mesmos com vistas a uma maior autonomia. Dizem-no quando falam da arte da composição de professores e servidores que se aproximam, se importam com seus dilemas e fazem mais do que “devem”.

Apesar de quererem outra escola, os jovens produzem qualificações positivas da escola em suas vidas. Relatam a presença de modos de atuar justos, cuidadosos e consequentes com o reconhecimento de sua condição, ao manifestarem os diversos vínculos da vida escolar: a proximidade, a tutela, o cuidado, a amizade, a convivência, os planos comuns, a relação com o conhecimento e o respeito pelos mais experimentados. E isso são outros investimentos a fazer proximamente com maior continuidade.

Referências

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Recebido: 30 de Maio de 2020; Revisado: 23 de Julho de 2020; Aceito: 24 de Novembro de 2020

Ubirajara Santiago de Carvalho Pinto é professor de sociologia do Instituto Federal Fluminense/Macaé (IFF). É graduado em sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em letras também pela UFMG e doutor em sociologia política pela Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). É membro do grupo de pesquisa Pragmaticus.

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