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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.47  São Paulo  2021  Epub 27-Maio-2021

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202147229608 

Artigos

Experiência educativa no Taekwondo: autoconfrontação como análise subjetiva do movimento

Educational experience in Taekwondo: self-confrontation as a subjective analysis of movement

Luiz Arthur Nunes da Silva1 
http://orcid.org/0000-0003-4541-6141

Terezinha Petrucia da Nóbrega1 
http://orcid.org/0000-0002-1996-4286

1- Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, Brasil. contatos: arthur_nunes@hotmail.com; pnobrega68@gmail.com.


Resumo

Neste trabalho, apresentamos a experiência do corpo como fenômeno educativo no Taekwondo, por meio do método da autoconfrontação como análise subjetiva do movimento e da experiência educativa. Nosso objetivo é compreender como essa experiência do corpo inaugura o fenômeno educativo nas significações e expressões do próprio corpo no Taekwondo, a partir da autoconfrontação. A metodologia pauta-se na atitude fenomenológica do filósofo francês Maurice Merleau-Ponty, por meio da qual realizamos diálogos e discussões nesse universo de significações que se expressam no corpo. Trouxemos ainda como aliado à fenomenologia o cinema-verdade, descrito por Edgar Morin e Jean Rouch, no intuito de dar o tratamento necessário para a construção imagética do nosso corpus de análise, constituído por filmagens de entrevistas, aulas e autoconfrontações, a partir da captura e da leitura dos registros de Mestres do Taekwondo. Assim, situamos três momentos distintos nos quais foram feitos registros (filmagens): entrevistas com os Mestres (conversa/relatos), aulas de Taekwondo ministradas por eles e a autoconfrontação. O olhar sensível oportunizado pela leitura flutuante do material e pela variação imaginativa ampliou o pensamento na percepção para a compreensão do fenômeno em pauta, dando-nos elaborações para refletir o fenômeno educativo em horizontes de sentidos epistemológicos, éticos, existenciais, dentre outros. Assim, destacamos o papel da autoconfrontação como dispositivo para perceber a experiência vivida, no corpo, como educação sensível que transita entre mestre e discípulo por meio do gesto, da técnica e da relação do corpo com o outro, com o mundo e com o próprio ser. Percebemos, nesse contexto, a marca da educação que se transfigura pela experiência educativa assinalada pela sensibilidade.

Palavras-Chave: Autoconfrontação; Cinema-verdade; Fenomenologia; Artes marciais; Taekwondo

Abstract

In this paper, we present the experience of the body as an educational phenomenon in Taekwondo, through the method of self-confrontation as a subjective analysis of movement and educational experience. Our goal is to understand how this body experience unveils the educational phenomenon in the meanings and expressions of the body itself in Taekwondo, based on self-confrontation. The methodology is based on the phenomenological attitude of French philosopher Maurice Merleau-Ponty, through which we conducted dialogues and discussions in this universe of meanings that are expressed in the body. As an ally to phenomenology, we brought the cinema-truth, described by Edgar Morin and Jean Rouch, in order to give the necessary treatment for the imagistic construction of our corpus of analysis, consisting of footage of interviews, classes and self-confrontations, stemming from the capture and reading of the records of Taekwondo Masters. Thus, we positioned three distinct moments in which records were made (filming): interviews with the Masters (conversation/reports), Taekwondo classes taught by them, and self-confrontation. The sensitive look provided by the floating reading of the material and by the imaginative variation allowed to expand the thoughts concerning the perception for the understanding of the phenomenon in question, giving us elaborations to reflect the educational phenomenon in horizons of epistemological, ethical and existential meanings, among others. Thus, we highlight the role of self-confrontation as a device to perceive the lived experience in the body, as sensitive education that master and disciple go along through gesture, technique, and the relationship of the body with others, with the world, and with one’s own being. We perceive, in this context, the mark of an education that is transfigured by the educational experience characterized by sensitivity.

Key words: Self-confrontation; Cinema-truth; Phenomenology; Martial arts; Taekwondo

Fenomenologia e o cinema-verdade: por um método filosófico, estético e educativo

Nesse texto, apresentamos a experiência do corpo como fenômeno educativo no Taekwondo, por meio do método da autoconfrontação como análise subjetiva do movimento e experiência educativa. Consideramos a educação aqui delineada como educação do corpo, como parte integrante do sensível, privilegiando a relação que se manifesta no corpo próprio, com o corpo do outro e com o mundo. Com isso, nosso objetivo é compreender como essa experiência do corpo inaugura o fenômeno educativo nas significações e expressões do próprio corpo no Taekwondo, a partir do método da autoconfrontação.

Abraçamos a perspectiva fenomenológica descrita por Maurice Merleau-Ponty como possibilidade de reaprender a ver o mundo, o mundo do corpo, da percepção, do movimento. Relacionamos essa perspectiva com o Taekwondo2, dialogando com as experiências de Mestres dessa arte marcial. Trata-se aqui de unir a atitude fenomenológica ao método documental do cinema-verdade, traçado por Edgar Morin e Jean Rouch para desenhar a estratégia estético-metodológica do nosso estudo, o qual abordaremos mais adiante neste artigo (MORIN, 2003).

De forma intencional, escolhemos dois sujeitos participantes da pesquisa como narradores das experiências com o Taekwondo e que se transformaram nos personagens protagonistas desta pesquisa, são eles: o professor Raimundo Maxiliano de Miranda, mais conhecido como Mestre Roni, faixa preta 6º Dan, considerado por outros Mestres de Taekwondo como o faixa preta mais antigo da cidade de Natal/RN, e o professor Cleiton Silva Pinheiro, que é seu aluno, faixa preta 2º Dan. Eles foram convidados a contar suas histórias a partir das próprias experiências, desde seus primeiros passos na prática do Taekwondo até os dias e hoje. Essas histórias constituem-se como crônicas para o nosso corpus de análise, considerando-se duas gerações hierarquicamente graduadas nessa arte marcial, aqui representadas por esses Mestres.

Nesse processo, disponibilizamos nossa escuta e observação sensível para compreender a experiência dos Mestres, considerando-se ainda nossa própria experiência na arte marcial, como professores de Educação Física e pesquisadores no campo dos estudos sociofilosóficos do corpo e do movimento humano. A atitude da escuta sensível permeou todo o processo de pesquisa, como expressão subjetiva fundamental para a compreensão do fenômeno educativo. No texto O corpo como expressão e a fala, Merleau-Ponty afirma: “a fala não traduz naquele que fala um pensamento já feito, mas o consuma. Com mais razão ainda, é preciso admitir que aquele que escuta recebe o pensamento da própria fala” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 242). Assim, damos escuta à voz dos Mestres e de suas experiências, dialogando no contexto fenomenológico e educativo.

Como em um aperto de mãos, a pesquisa uniu a atitude fenomenológica de Merleau-Ponty e o método documental do cinema-verdade, traçado por Morin e Rouch para compreender a experiência do corpo como fenômeno educativo no Taekwondo. Sobretudo, é importante lembrar que o cenário ao qual se pauta este estudo está inserido nas reflexões sobre o corpo que vêm sendo discutidas e pensadas no Grupo de Pesquisa Estesia – Corpo, Fenomenologia e Movimento e no Laboratório VER – Visibilidades do Corpo e da Cultura de Movimento, na Universidade Federal do Rio grande do Norte, em Natal/RN, Brasil.

O viés estético aqui pensado encontrou inspiração no filme Crônica de um verão (1961), de Morin e Rouch, no qual foi possível observar a partilha de sentidos que poderia ser convocada a partir do Taekwondo e de sua história na cidade do Natal/RN, narrada por alguns de seus Mestres. Desse modo, o que se apresenta ao nosso olhar configura-se como um acontecimento expressivo de quem conta sua história no ato da própria reflexão sobre si e sobre sua experiência. No filme citado, Morin e Rouch apresentam uma nova forma de captura de representações do real. Nessa perspectiva, considera-se a impossibilidade de se encontrar uma essência na representação, pois se trata da verdade, do real, do sentimento expresso sem máscaras, sem encenação. Trata-se, então, de um cinema-verdade. Nos textos anexos de Crônica de um verão, Morin descreve:

Esse filme é uma pesquisa. [...]. Não se trata de um filme de ficção. Essa pesquisa lida com a vida real. Não se trata de um documentário. A pesquisa não tem por objetivo descrever. É uma experiência vivida pelos autores e atores. [...] Trata-se de um filme etimológico no sentido forte do termo. Ele estuda o gênero humano. [...]. É uma experiência de interrogações cinematográficas: “como você vive?”. Isto é, não pomos em foco apenas o modo de vida (moradia, trabalho, lazer), mas o estilo de vida, a atitude que as pessoas têm em relações a si mesmas e aos outros, a forma como concebem os seus problemas mais profundos e as soluções para esses problemas. A pergunta abrange desde os problemas mais básicos, mais cotidianos e práticos, até uma investigação sobre o homem, sem priorizar, a priori, nenhum deles. (MORIN, 2003, p. 7-8).

Afirmamos, assim, que o corpo que se movimenta no Taekwondo abre um horizonte de significados por meio da técnica e revela a expressão estética do corpo em movimento e uma expressão subjetiva a ser considerada na percepção, análise e compreensão nos campos da Educação Física e da Educação, entre outros. Como afirma Merleau-Ponty, na Fenomenologia da Percepção:

A expressão estética confere a existência em si àquilo que exprime, instala-o na natureza como uma coisa percebida acessível a todos ou, inversamente, arranca os próprios signos [...] de sua existência empírica e os arrebata para um outro mundo. (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 248).

A estética como fenômeno expressivo é atravessada pela realidade do corpo como sensível exemplar. A atitude fenomenológica ancora-se na realidade do corpo e de sua sensibilidade, em um logos estético que ultrapassa a estética como teoria da arte, julgamento do belo ou do gosto. O diálogo com a arte na filosofia de Merleau-Ponty não é uma mera ilustração, mas um modo de pensar, uma linguagem indireta capaz de expressar sentidos e instituir verdades sempre passíveis de revisão, correção e ultrapassagem de si mesma. No método fenomenológico, o corpo, as expressões corporais, o movimento constituem-se como horizontes para a experiência do irrefletido, ou seja, do que nos dá a sentir, a pensar, a criar, a viver.

Em sua fenomenologia, Merleau-Ponty compreende que a historicidade da experiência vivida traz à tona a significação da expressão do corpo e da própria experiência como descrição do fenômeno educacional. Trata-se de uma dialética de compreender o corpo como o ser-no-mundo capaz de aprender as coisas do mundo de forma a trazer sentidos e significados a partir de uma educação sensível. Do ponto de vista da educação, Nóbrega (2008) define que:

Sentir e compreender constituem-se em um mesmo ato de significação, possíveis pela nossa condição corpórea e pelo acontecimento do gesto, cuja estesia inaugura a possibilidade de uma racionalidade que emerge do corpo e de seus sentidos biológicos, afetivos, sociais, históricos. Essa compreensão é significativa para redimensionar o fenômeno do conhecimento, relacionando-o à experiência vivida, ao corpo e aos sentidos. (NÓBREGA, 2008, p. 148, grifo nosso).

Enquanto corpo, engajo-me entre as coisas e atrelo significações a elas. Somos, ao mesmo tempo, uma composição histórica, social, temporal, um entrelaçamento do corpo com o outro e com o mundo, sendo no outro que aprendemos a ser. É a partir da prática do Taekwondo que esse fenômeno educativo faz com que as coisas existam para mim e me habitem, enquanto sujeito encarnado que sou, o que torna comum que haja essa educação proveniente da relação deste corpo, fundado aqui na técnica corporal do Taekwondo. Do ponto de vista fenomenológico, Martins (1992) propõe que:

Aprender, numa perspectiva fenomenológica, consiste na possibilidade que tem o humano de tomar consciência da necessidade de reorganizar um projeto pessoal baseado na discrepância que percebe existir entre o que este sabe e a compreensão das ações dos outros (pais, professores, amigos), em termos do projeto da mesma situação. Manifesta-se, também, na descoberta do sujeito de que ele a situação de aprendizagem está vivendo pré-reflexivamente, de forma conflitiva, diferentes papéis e que existem outros que lhe são preferidos de forma não ambígua. (MARTINS, 1992, p. 82).

O processo de composição do material de pesquisa: filmagens, edições e análises

Assumimos o filme como processo de pesquisa, como educação sensível e estética, que revela a atuação dos personagens pela própria experiência vivida. Em nosso filme, o processo que se desenvolve revela o fenômeno educativo: os personagens falam de suas experiências, refletem sobre elas e, ao mesmo tempo em que contam essas experiências, comunicam suas realidades reconfigurando a própria maneira de se ver dentro da história contada. “Este filme é uma pesquisa” (MORIN, 2003, p. 7) cuja natureza estética mobiliza a sensibilidade e o contato com a experiência vivida, como podemos ler na citação que segue:

O nosso terreno comum é que nenhum de nós concebe este filme como sendo apenas sociológico ou apenas etnográfico ou apenas estético, mas como algo total e difuso que é, ao mesmo tempo, um documento, uma experiência vivida por pessoas e uma pesquisa sobre o contato entre elas. (MORIN, 2003, p. 33).

Na obra O cinema ou o homem imaginário, encontramos a relação com o cinema como narrativa e reflexão sobre uma dada realidade, como esclarece-nos Edgar Morin:

O cinema reflete a realidade, mas, mais do que isso, comunica com o sonho. É que todos os testemunhos nos asseveram: e são precisamente esses testemunhos que formam o cinema, que nada é sem os espectadores. O cinema não é a realidade, pois que todos no-lo dizem. (MORIN, 1970, p. 14).

Com base nessas referências, a pesquisa apresenta dois personagens: professores, Mestres de Taekwondo. Nossa reflexão toma como ponto de partida a escuta desses Mestres, cujas narrativas podem ser consideradas como ensinamentos sobre o corpo em movimento como fenômeno educativo. No processo da pesquisa, elencamos três momentos, nos quais foram feitos registros filmados, a saber: entrevistas com os Mestres (conversa/relatos), aulas de Taekwondo ministradas por eles e a autoconfrontação. A seguir descrevemos cada um desses momentos, apresentados esquematicamente na Imagem 1.

Fonte: Elaboração própria.

Imagem 1 – Momentos da captura do corpus da pesquisa 

As entrevistas (primeiro momento)

As entrevistas, retratadas sobre a forma de conversas, tiveram a intenção de dar voz aos sujeitos e assim fornecer-nos bases para traçarmos nossos diálogos e reflexões. Para isso, elaboramos um roteiro de entrevista como norte para disparar o diálogo sobre o contexto do Taekwondo. Na primeira parte do roteiro, destacamos os dados de identificação: nome, idade, profissão etc. Na segunda parte, lançamos no diálogo questões norteadoras acerca do relato de suas experiências: como conheceu o Taekwondo? Quando começou a ensinar? Como vê o corpo e o movimento no Taekwondo? Quais os valores que são transmitidos a partir da prática? Se houve transformações na sua vida, dentre outras questões que iam surgindo e se adequando à conversa para tornar fluido o diálogo com os sujeitos.

Nesse processo inicial, pedimos que os entrevistados escolhessem o local mais adequado e agradável para realizarmos a filmagem, para que as conversas ocorressem da forma mais confortável possível. Assim, a conversa realizada com os dois Mestres se deu em dois ambientes distintos: uma na academia com o Mestre Roni e a outra, com o professor Cleiton, realizada na casa dele3.

Enquanto recursos, utilizamos: 2 câmeras filmadora (Sony Dcr-sx43 e Samsung Hyper Dis Modelo Smx F400 Bn 65 Zomm Optic), 1 Gravador de Áudio M-Audio Microtrack II, cartões de memória, 1 Tripé Aluminio Targus 50i 1.30m. Além de materiais diversos como: extensões, conectores e notebook.

Para a filmagem das entrevistas, fizemos a utilização das câmeras da seguinte forma: uma câmera permaneceu fixa no tripé e colocada ao lado do pesquisador que norteava as questões ao entrevistado. Nessa configuração, a câmera ao lado do pesquisador faz com que o entrevistado dirija a palavra para frente, de forma que a câmera registre o plano frontal do entrevistado. Essa primeira câmera continuou ligada ininterruptamente do início ao fim da entrevista, de forma fixa, sem oscilar ângulos, capturando a imagem no espaço um pouco abaixo do busto até um pouco acima da cabeça do entrevistado.

Uma segunda câmera foi utilizada por uma terceira pessoa, de forma subjetiva, móvel, operada de forma a conseguir capturar takes de vídeos (pequenos momentos) que registrassem expressões corporais menores, mas de grande significado para compreensão a posteriori na leitura e interpretações das cenas.

Nesse primeiro momento de filmagem das entrevistas, compilamos um vasto material, quase 25 gigabytes de gravação, incluindo registros da câmera fixa, da câmera subjetiva e dos arquivos de áudio. Depois de realizadas as entrevistas, partimos para a observação e filmagem das aulas ministradas.

As aulas práticas (segundo momento)

Fizemos o registro de uma aula tradicional de Taekwondo, ministrada por cada um dos sujeitos de nossa pesquisa, a saber: Mestre Roni e professor Cleiton. Cada uma dessas aulas aconteceu em dias distintos, porém, ambas foram realizadas na academia do Mestre Roni, no Center Clube de Taekwondo, no Bairro das Rocas na cidade de Natal/RN.

Importante ainda citar que no mesmo dia em que foi realizada a entrevista com Mestre Roni, também foi feita a filmagem de sua aula expositiva, em turnos alternados. Já com o professor Cleiton, a entrevista e a aula ministrada foram feitas em dias distintos, porém com um intervalo de dois dias apenas. Nesse processo, apontamos nossas lentes para o âmbito de uma prática tradicional de Taekwondo, em uma aula com distintos momentos de trabalhos com os diferentes níveis de graduação.

Em uma aula de Taekwondo, o professor ou Mestre mostra os movimentos, realiza a técnica corporalmente e a descreve oralmente para que seus alunos possam realizar o mesmo movimento na sequência. Há contato com o aluno tanto na intenção de corrigir certos movimentos, como também os coloca frente a frente para desenvolverem as técnicas já ensinadas, como poderemos observar na Imagem 2.

Fonte: Elaboração própria.

Imagem 2 – Alunos do Mestre Roni realizando defesa pessoal 

No exemplo da Imagem 2, deslocamos em cena para ilustrar uma das aulas que foram gravadas. Na ocasião, o Mestre Roni coloca seus dois alunos mais antigos, professor Cleiton e o professor Jailton, para realizarem defesa pessoal específica da faixa preta4. Dessa forma, tudo que foi experienciado no corpo próprio se revela agora entrando em contato com o corpo do outro, mostrando-se assim como parte do mesmo mundo.

Os ensinamentos que são transmitidos no Taekwondo são carregados de sentidos pela busca do movimento com exatidão, do padrão de técnica singular, na qual um praticante de Taekwondo sempre tenta alcançar a melhor forma para tornar o movimento perfeito, de torná-lo ímpar. Esse pensamento é perpassado nessa cultura pela lógica de atingir o originário, a perfeição seja nos golpes, nas bases, nos socos, nos chutes, nas defesas, em todos os movimentos provenientes dessa arte. Esse processo de filmagem será de extrema importância para análise do ensinamento do movimento pelo Mestre Roni enquanto professor, como veremos mais a frente em seu discurso a partir de sua autoconfrontação.

Em ambas as filmagens, utilizamos os mesmos recursos já descritos no momento das entrevistas, com duas câmeras (uma fixa e outra subjetiva). Durante esse processo de filmagem, fizemos o possível para não interferir diretamente no espaço onde ocorria a aula, mantendo-nos a pontos distantes dos praticantes.

Nesse processo, manipulamos, editamos e condensamos o material bruto de filmagem, com mais de 6 horas (entrevista e aula), em dois vídeos com tempo aproximado de 40 minutos cada, um para cada sujeito, que serviram de apreciação dos próprios sujeitos no momento da autoconfrontação. Paralelamente, foi realizada a transcrição completa das duas entrevistas. Toda a edição dos vídeos foi realizada na Ilha de Edição, espaço situado dentro da sala do Grupo de Pesquisa Estesia, no Departamento de Educação Física da UFRN. Para a manipulação dos vídeos, fizemos uso de um Mac PC Apple, realizando as edições com o software Adobe Premiere Pro. Elegemos montar esse vídeo com partes da entrevista em que os diálogos permitiam refletir a respeito das proposições aqui elucidadas, bem como com partes das aulas que foram ministradas, enfatizando novamente aspectos da experiência do corpo.

Com base nesse material, criamos horizontes de sentidos a partir da redução fenomenológica que, como nos mostra Merleau-Ponty (2011) em sua tese Fenomenologia da percepção, é compreendida como uma admiração sobre o mundo, tal como ele se mostra antes de qualquer julgamento ou reflexão a priori. O olhar sensível oportunizado pela leitura flutuante do material e pela variação imaginativa que esse movimento nos permite, amplia o pensamento na percepção do que é essencial para a compreensão do fenômeno em pauta, buscando-se o irrefletido, ou seja, o que pode ser pensado e elaborado em termos de conhecimento e horizontes de sentidos epistemológicos, éticos, existenciais, dentre outros. Em nosso caso, horizontes de sentido relativos à análise subjetiva do movimento, do sujeito que se movimenta e da experiência educativa no Taekwondo em uma perspectiva epistemológica, ética e estética a partir da experiência subjetiva dos participantes da pesquisa.

Encontramos na fenomenologia referências necessárias para a compreensão subjetiva do movimento. Complementando a reflexão acerca do conceito do corpo próprio e do movimento, a ideia de movimento próprio de Buytendijk, na obra Attitudes et Mouvements: etude fonctionnelle du mouvement humain, mostra que o “movimento próprio inclui a própria noção do sujeito” (BUYTENDIJK, 1957, p. 55). Assim, “a compreensão fenomenal nos dá o movimento próprio decorrente de um sujeito, “subjacente” às suas próprias determinações, incluído nos limites que implicam a possibilidade de sua própria ultrapassagem” (BUYTENDIJK, 1957, p. 58).

Para caracterizar o movimento próprio dentro de uma teoria do movimento humano, Buytendijk fala-nos do “se mover” como sendo uma forma particular de movimento, o qual provém do “interior”, ou seja, é espontâneo, o que em suas palavras “[...] é visto como a expressão de um sujeito autônomo, independente e individual” (BUYTENDIJK, 1957, p. 55). Acrescenta a essa noção a concepção de sujeito, como sendo “o sujeito do movimento próprio que transcende seus limites. [...]. Ele possui seus próprios limites e os tem. Assim ele demonstra estendendo-se e movendo-se” (BUYTENDIJK, 1957, p. 55-56). Assim, relaciona o conceito de movimento próprio a uma subjetividade que é fonte dos movimentos, não pertencente aos conteúdos da consciência, mas regulada pelo campo sensorial, que coloca o sujeito que “se movimenta” e é “movido por sensações”, mantendo relações específicas com o ambiente e sua própria corporeidade.

O homem pode se mover, ele pode comunicar o movimento às coisas, ele se percebe e percebe os outros, sem nunca mudar sua subjetividade. O sujeito é o fundamento de todo movimento e mudança; mas em si permanece oculto. (BUYTENDIJK, 1957, p. 61).

A autoconfrontação (terceiro momento)

A autoconfrontação consiste em criar situações em que os personagens da pesquisa possam verbalizar suas atividades ao assistir a trechos de suas entrevistas e/ou aulas filmadas tornando-se, assim, observadores da própria ação. Dessa forma, esse momento faz disparar o relato em foco, utilizando as imagens como apoio para elucidar as reflexões.

Em estudos anteriores, Rosemberg et al. (2010) fazem uso do vídeo da autoconfrontação como dispositivo metodológico na clínica da atividade docente, com o objetivo de colocar em análise o trabalho docente e provocar um movimento de análise e coanálise do trabalho na escola, filmando situações de trabalho de duas professoras do ensino fundamental, no ato da atividade de ensino em sala de aula.

Destaca-se também o trabalho de Bernard Andrieu (2015), que situa sua pesquisa na perspectiva da filmagem e da narrativa corporal, acerca da aprendizagem do corpo e de seus gestos nas artes do circo. O autor coloca em pauta, de um lado, o conhecimento do corpo próprio (esquema corporal, imagem corporal, ecologia corporal, memórias corporais) e, de outro, uma análise reflexiva do movimento através da utilização da câmara GoPro utilizada em primeira pessoa, adicionada ao próprio corpo do sujeito da pesquisa, como um modo autorreflexivo. Assim, afirma: “ao invés de centrar a câmera sobre a performance, nós a voltamos sobre o corpo vivo construído no curso da ação” (ANDRIEU, 2015, p. 3). A partir disso, o pesquisador faz uso da análise da autoconfrontação a partir de entrevistas que partem da observação dos filmes capturados, disparando a verbalização em relação direta como o corpo do sujeito no ato.

Assim, para esse momento da autoconfrontação em nossa pesquisa foi preciso uma preparação prévia de um material para que fosse utilizado nessa etapa. Falamos aqui de dois vídeos, cada um referente a um sujeito da pesquisa, com tempo de aproximadamente 40 minutos, contendo imagens da entrevista e algumas cenas que fazem referência à aula ministrada.

A realização da autoconfrontação exigiu uma melhor distribuição dos materiais (recursos). Então, convidamos os sujeitos da pesquisa para um ambiente mais controlado, livre de interferências externas (barulhos, sons diversos etc.) e no qual pudéssemos deixá-los bem à vontade, para também registrar esse momento de forma mais significativa, com uma boa qualidade. Para isso, convidamos o Mestre Roni e o professor Cleiton a comparecerem ao Departamento de Educação Física da UFRN e realizamos a autoconfrontação na própria sala da Ilha de Edição do Laboratório VER.

Todo o espaço onde aconteceu a autoconfrontação foi organizado e os recursos dispostos: 2 câmeras ficaram intencionalmente distribuídas, sendo ambas fixas e em ângulo frontal ao sujeito em foco. No espaço alocado entre as câmeras, foi colocada uma TV LG, modelo 47LS4600, de 50 polegadas, exatamente em frente a ela, na distância aproximada de 1,5m, uma poltrona fixa destinada ao sujeito que iria assistir ao vídeo da autoconfrontação. Todos os materiais utilizados (câmeras e TV) ficaram no mesmo plano, que era o plano de visão do espectador que estava ali para assistir ao vídeo, ligado à TV via pendrive USB, como mostra a Imagem 3.

Fonte: Elaboração própria.

Imagem 3 – Organização do material para captura da autoconfrontação 

O pesquisador permaneceu sentado junto a uma das câmeras, onde fosse possível observar as expressões do espectador em determinadas partes do vídeo e, da mesma forma, poder fazer anotações que serviriam de reflexões pós-apreciação. A todo momento as câmeras permaneceram ligadas, de maneira a registrar não só o diálogo após a apreciação do vídeo, mas também as reações do espectador durante cada momento específico do vídeo.

Após exposição do vídeo, conversamos com os sujeitos, para que eles nos contassem um pouco de suas experiências enquanto se autoconfrontavam e falassem acerca de questões mais pontuais que foram sendo observadas enquanto reações e expressões corporais durante a apreciação do material audiovisual. Para esse momento também foi elaborado um roteiro de autoconfrontação que delineou algumas questões significativas para a compreensão e entendimento de pontos deste trabalho, como por exemplo: Como você se sentiu vendo o que falou diante da tela? Você ficou feliz em se ver dando aula? Como foi a experiência de se autoconfrontar? Teve algum momento da filmagem que lhe chamou mais atenção? A preparação desse roteiro também foi pensada de forma a dar abertura para que os sujeitos entrevistados pudessem falar sobre alguns pontos que foram aparecendo no próprio relato.

Destacamos ainda que a autoconfrontação aconteceu em dias distintos e que cada sujeito teve somente a experiência de visualizar o próprio vídeo. Ou seja, o vídeo do Mestre Roni só foi visto por ele, assim como somente o professor Cleiton foi quem teve acesso à visualização do seu vídeo. Primeiramente, fizemos a autoconfrontação com o professor Cleiton, que teve duração média de 1 hora e 45 minutos, contando desde o momento de apreciação do vídeo até a finalização da conversa realizada a posteriori.

A autoconfrontação com o Mestre Roni precisou ser adiada por diversas vezes, sendo que o período desde a entrevista até a realização da autoconfrontação durou cerca de um ano e um mês. Isso se deu pelo fato de o Mestre Roni ter passado por um longo período de recuperação de cirurgias que havia feito nas pernas, as quais tiveram algumas complicações. Dessa forma, somente após esse período foi possível a presença do Mestre Roni no Departamento de Educação Física.

Assim como no filme Crônicas de um verão, de Jean Rouch e Edgar Morin, trouxemos à reflexão do relato o próprio autor da fala, da expressão, que foi colocado frente a frente consigo mesmo, encarando seu relato, suas ações, confrontando a si mesmo. A partir do uso desse suporte imagético, podemos mobilizar os sentidos, a reflexão, favorecendo a discussão e traçando significações – a partir da redução fenomenológica – que serviram de estratégias para refletirmos as proposições da pesquisa e da experiência do Taekwondo como fenômeno educativo que acontece como expressão do corpo e do movimento dos sujeitos no mundo. Dessa forma, a configuração deste trabalho no que concerne o corpus de análise foi pensada a partir desse momento singular, trazendo a autoconfrontação como forma de disparar o diálogo em foco, utilizando as imagens como suporte para ascender a essa reflexão.

Um reencontro consigo: a experiência educativa na autoconfrontação

Destacamos o papel da autoconfrontação como dispositivo para perceber a experiência vivida, o que os sujeitos sentem e como agem perante as próprias alusões ao real ou ainda desvelando sentidos relativos ao corpo e ao movimento. A expressão do gesto e o comportamento frente à autoconfrontação possibilita compreender o fenômeno educativo a partir da relação dos sujeitos com o outro, com o mundo e consigo mesmo. Ao relatarem suas experiências, ao perceberem seus gestos, movimentos e aqueles de seus alunos, ao rememorarem passagens das aulas, vendo-se por meio da perspectiva da imagem fílmica entre outros momentos desencadeados por essa estratégia, os sujeitos refletem sobre sua prática, suas atitudes, suas histórias. Essa marca subjetiva é aguçada pela imagem.

De acordo com a visão fenomenológica de Merleau-Ponty (2011), nós não existimos apenas na consciência de nós mesmo, mas na experiência do outro, de modo que necessitamos dele para nos conhecermos e nos reconhecermos. Nós passamos a sentir que existimos à medida que entramos em contato com o outro e tornamos significativa essa relação. Dessa forma:

O mundo fenomenológico é não um ser puro, mas o sentido que transparece na intersecção de minhas experiências, e na intersecção de minhas experiências com aquelas do outro, pela engrenagem de uma nas outras; ele é portanto inseparável da subjetividade e da intersubjetividade que formam sua unidade pela retomada de minhas experiências passadas em minhas experiências presentes, da experiência do outro na minha. (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 18).

Com Merleau-Ponty (2011), compreendemos que percebemos as coisas, o mundo, as situações por meio do corpo em movimento, da expressão corporal, da afetividade que se estabelece nas relações subjetivas e intersubjetivas nas diversas experiências humanas. Por meio da autoconfrontação evidenciamos essa percepção da experiência do corpo como fenômeno educativo.

Compreendemos que é pela experiência do corpo, na prática do Taekwondo, que a educação ocorre. Ensinamentos, competências, valores e atitudes organizam-se de forma a criar um conjunto de significações que vão formando os corpos no Taekwondo, sobretudo, enquanto seres humanos. Nesse sentido, podemos afirmar que é a partir da experiência que esses sentidos são impressos e expressos, ao longo de uma jornada em que a própria existência ganha sentidos e significados próprios na cultura dessa arte marcial.

Em relato, o professor Cleiton (2016) fala-nos do sentimento de ser professor de Taekwondo e da significação dessa prática para sua vida:

Eu pratico Taekwondo não é só para fazer os movimentos, não é só para minha saúde. Eu faço Taekwondo de coração mesmo [...]. Deus dá um dom a cada um. E Deus me deu esse dom, de ser professor de Taekwondo. Como eu gosto muito da Arte, então eu faço de coração. Cada movimento que eu faço, eu não faço só por fazer, aquilo sai de dentro para fora, sai do meu coração e do meu pensamento. Eu faço com maior prazer. Então o Taekwondo na realidade, ele está correndo junto com meu sangue. [...] Para mim, é sempre uma evolução, pois eu sempre procuro algum detalhe, alguma coisa que seja para melhorar a mim mesmo, ta entendendo? E isso é o que vai fazendo com que a minha pessoa mude também: meu comportamento, a minha maneira de agir e de pensar. Então pra mim o Taekwondo, a meu ver, é minha sombra. É que nem esse dobok5, como eu falei uma vez, que é a minha segunda pele. E é verdade. (PROFESSOR CLEITON, entrevista, 2016, grifo nosso).

A vivência no Taekwondo a partir de seus gestos, da técnica e seus princípios filosóficos estão colocados como campo de possibilidades para refletirmos o fenômeno educativo, considerando a experiência do corpo próprio como fator primordial para esse acontecimento. Esse corpo que tem a vivência no Taekwondo está situado na compreensão do “eu posso”, como afirma Merleau-Ponty (2011), tal como se mostra o ser no mundo e a relação com sua vivência. Assim, o meio pelo qual existo no mundo se dá no trânsito pelo qual o mundo se faz existir para mim. Esse equilíbrio se dá na troca constante, considerando o corpo no Taekwondo como o veículo que proporciona a abertura para essa comunicação.

Destacamos que no Taekwondo a concepção de gesto parte da caracterização de um movimento fluido e flexível. Embora tenha seu momento de finalização da técnica com extrema precisão, a arte exige certa flexibilidade harmoniosa na condução da energia, que dá continuidade aos movimentos que ainda estão por vir, como nos mostra o relato do Mestre Roni:

O Taekwondo ela não tem rigidez nos golpes. Em relação às outras Artes Marciais, eu não vou citar nomes aqui, mas dá para vocês entenderem muito bem... tem alguns estilos de lutas que deixam o corpo rígido, alguns movimentos todo rígido. Às vezes o cara solta um soco, é forte, mas você ver que ele tem pouca energia para ele. Quando no Taekwondo, ele (golpe) sai e é flexível, é rápido, flexível e forte. Ela sai e provoca uma certa explosão onde bate. Chame-se Ki, que significa energia, uma energia, explosiva através do golpe. Então essa energia sai em forma de chicotada, é tipo você pegar uma bola de ferro, amarrar numa corrente, rodar e bater numa parede: onde ela bate quebra. Então é dessa forma que a gente trabalha com o nosso Taekwondo. Por isso que é uma arte que você dá para diferenciar de longe pelos golpes, tanto de mão, de perna e de defesa. [...] O Taekwondo Marcial que a gente treina se baseia [...] em 4 elementos: força, velocidade, flexibilidade e precisão. Esses 4 é o que a gente treina pra melhorar. Então isso aí é difícil encontrar em outra Arte Marcial, por isso que eu acho que o Taekwondo ainda é uma das melhores a ser praticada. (MESTRE RONI, entrevista, 2016).

A partir dos relatos do Mestre Roni e do professor Cleiton, podemos entender que o Taekwondo amplia os conceitos de experiência do corpo, porque além de ser observado a partir do gesto, de uma técnica corporal, integra fatores inteiramente ligados à educação. No Taekwondo, o corpo chuta, soca, se equilibra, se movimenta de maneira a configurar um padrão corporal típico da arte, com estruturas e expressões singulares. Nóbrega (2015) contempla esse entendimento acerca da educação ao afirmar que:

Há uma profunda ligação entre a expressão e o corpo através dos gestos. Assim, os gestos podem significar diferentes aspectos do nosso ser, dos nossos sentimentos mais íntimos. Os gestos podem também comunicar as influências da cultura e dos códigos sociais. (NÓBREGA, 2015, p. 116).

Ao pensar acerca dessa técnica de corpo, confirmamos que os sentidos e significados atrelados a ela fazem com que seus praticantes expressem também uma cultura corporal própria da arte marcial. Marcel Mauss (2003) retrata as técnicas do corpo como a maneira pela qual o indivíduo se utiliza de seu corpo para manifestar e executar formas de atividades, principalmente, fundadas na cultura tradicional. Assim, existe um habitus, a observação e uma imitação do gesto enquanto ato técnico transmitido pelo homem que parte de um ato de ordem mecânica.

Assim, o discurso aqui criado é marcado pelo viés do tradicional, ou seja, do Taekwondo marcial enquanto cultura corporal de movimento. Novamente, ao elucidarmos o fator tradicional no ensinamento do Taekwondo, trazemos o pensamento de Mauss (2003) para ancorar esse fator, configurando-se a partir da noção de experiência do corpo, de técnica do corpo:

Chamo de técnica um ato tradicional eficaz (e vejam que nisto não difere do ato mágico, religioso, simbólico). É preciso que seja tradicional e eficaz. Não há técnica e tampouco transmissão se não há tradição. É nisso que o homem se distingue sobretudo dos animais: pela transmissão de suas técnicas e muito provavelmente por sua transmissão oral. (MAUSS, 2003, p. 407).

Nas artes marciais em geral, principalmente as de cultura oriental, exige-se uma configuração técnica muito rigorosa. Existe um padrão, uma estética que habita os movimentos e que dá características únicas a cada uma delas. No Taekwondo, essa configuração de movimento está fortemente ligada às técnicas de mãos e de pés, como aponta a própria significação do termo. Porém, a gênese do movimento configura-se desde a posição do dedo do pé em contato com o solo até a finalização de cada movimento. Afirmamos, assim, que o corpo que se movimenta no Taekwondo abre um horizonte de significados que a partir da técnica se anuncia para o mundo enquanto expressão do próprio corpo. Como afirma Merleau-Ponty:

A expressão estética confere a existência em si àquilo que exprime, instala-o na natureza como uma coisa percebida acessível a todos ou, inversamente, arranca os próprios signos [...] de sua existência empírica e os arrebata para um outro mundo. (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 248).

É pelo caminho do Taekwondo que afirmamos o fenômeno educativo, vinculando-se à experiência do corpo na relação com o outro e com o mundo. Há, portanto, nessa experiência, a expressão da técnica, do gesto. Como afirma Nóbrega (2008), a técnica é uma educação figurada do corpo “[...] haja vista que a técnica, as ferramentas, os signos surgem nessa relação com o corpo” (NÓBREGA, 2008, p. 396).

A expressão engaja o corpo, os movimentos e as sensações em uma espécie de coreografia, na qual os gestos criam novos esquemas corporais, novas maneiras de expressão e comunicação que se tornam então disponíveis e ultrapassam a linguagem instituída, pois as sensações nos oferecem novos espaços de criação (poièsis) e de metamorfoses [...]. (NÓBREGA, 2015, p. 116).

Assim, os professores de Taekwondo, os Mestres que são narradores em nossa pesquisa, disponibilizam a experiência vivenciada no próprio corpo, ao longo da vida. Retratando essa experiência do ponto de vista cronológico, como podemos observar nos relatos, Mestre Roni conta com 35 anos de prática no Taekwondo. O professor Cleiton tem 27 anos “de prática ininterrupta”. Há uma vida dedicada à construção dessa obra, sendo que essa prática se confunde com a própria vida, entrelaçando vida e obra na experiência com a arte marcial. Nossos narradores são uma referência. Carregam ensinamentos e experiências vividas nos próprios corpos a partir do Taekwondo. Essa experiência do corpo, aportada na técnica corporal, ancora seus fundamentos nos movimentos, nos golpes, nos chutes, nos socos, na defesa, no gesto, enfim, no caminho dos pés e das mãos:

[...] essa técnica... esses movimentos básicos, que a gente treina hoje em dia dentro da Arte Marcial foram estudados, treinados centenas de anos, certo? Serve realmente pra isso que eu dizendo, pra dar ao corpo saúde e à mente... e pra defesa pessoal do seu próprio corpo... e foi esquecida pelos praticantes, os mestres deixaram de praticar isso, pra mudar por tática de competição, em busca de medalha ou de troféus. Eu não sou contra medalha e ou troféu, né? Mas que a gente vise também, o Taekwondo, ainda como Arte Marcial pra aqueles que não gostam de competição também praticar uma Arte Marcial pra melhorar o seu próprio corpo e autodefesa, né?! Então... no mundo que a gente vive hoje, no mundo de violência... pra mim é... parece... uma Arte das melhores para se praticar como Arte de defesa pessoal. Deixa você alerta, firme, rápido, preciso... (MESTRE RONI, entrevista, 2016).

Esses corpos no Taekwondo não expressam somente movimentos direcionados a um único objetivo, é gesto, ao mesmo tempo em que é expressão, ao mesmo tempo em que é movimento, ao mesmo tempo em que é a experiência do corpo como educação. É sutil, é belo, é harmônico, é tradição. Também é doloroso, é árduo e trabalhoso. Trata-se de uma dialética de compreender o corpo e o movimento no Taekwondo, por meio de uma lógica recursiva em que as ações são complementares.

Para Merleau-Ponty, em O olho e o espírito, “toda técnica é ‘técnica de corpo’. Ela figura e amplifica a estrutura metafísica de nossa carne” (MERLEAU-PONTY, 2013, p. 26). Nessa relação do corpo com o mundo, a carne constantemente passa por ressignificações, inaugurando novos horizontes do Ser no mundo. Corpo e carne são noções fundamentais na filosofia de Merleau-Ponty, cuja trajetória conceitual da percepção fenomenológica à perspectiva ontológica é mediada pelo movimento, pelos afetos, pela cultura, pela historicidade.

O corpo em movimento produz sentidos sobre o ser no mundo. Esses sentidos inscrevem-se na cultura, como podemos perceber nos ensinamentos que são passados no Taekwondo. Eles são carregados de sentidos pela busca do movimento com exatidão, do padrão de técnica singular, mas também pela transmissão dos ensinamentos, a perfeição seja nos golpes, nas bases, nos socos, nos chutes, nas defesas, em todos os movimentos provenientes dessa arte. Essa característica apresenta-se fortemente quando observamos a autoconfrontação feita com o Mestre Roni. Ao assistir ao vídeo, foi possível observar partes da entrevista e da aula que ministrou na academia. Ele fez algumas considerações acerca do modo como ele viu e se viu, a partir do vídeo, em que um de seus alunos faixa preta estava fazendo o movimento de maneira não satisfatória com relação ao que foi ensinado por ele:

Não fiquei mais feliz por causa dos problemas nas pernas que eu não posso mostrar a Arte como deveria ta mostrando, porque não é desse jeito. E não gostei também de um faixa preta, é o mais antigo, o Jailton, por não mostrar aquilo que eu ensino, porque ali era pra ter mostrado o movimento mais firme, de firmeza, de domínio. E eu vendo ali ele fazendo o movimento com o professor Cleiton, e ele não fez o que eu ensinei pra ele. Então tinha de ser corrigido. (MESTRE RONI, autoconfrontação, 2017).

Mesmo sem nos darmos conta, o corpo está o tempo todo se reorganizando, gerando sempre novas interpretações para o movimento, novas considerações, até chegar ao padrão de técnica estabelecida. No Taekwondo, muitas vezes, essa organização é mediada pelo professor que está à frente da aula, exatamente pela responsabilidade que ele sente em estar ali para dar a assistência necessária a todos naquele espaço. Enquanto observador da própria aula, o Mestre Roni, na autoconfrontação, pôde também se reorganizar enquanto professor, passando a perceber algumas melhorias que ele poderia ter durante a administração de seus treinos.

Os costumes e as tradições que existem dentro da academia não as delimitam somente naquele ambiente. O praticante de Taekwondo aprende a ter respeito a partir de todos esses elementos educativos e enraíza esses hábitos em sua formação, pois a vida fora da academia é a extensão da própria existência6. Acerca desse processo educativo, Martins (1992) reflete:

Portanto, entre os deveres que o homem tem para consigo está o “cuidado” (sorge), que significa o zelo em não permitir que os seus talentos permaneçam emperrados, de forma oxidada, ou seja, que não venham a se expressar. Deverá zelar, ainda, para que a partir do conhecimento e dos sentimentos sejam formadas atitudes, que como um todo deverão influir harmoniosamente para a abertura do Ser em sua plenitude. (MARTINS, 1992, p. 75).

É a partir do corpo que ocorre a abertura para se perceber as situações do mundo. Nesse ponto, destacamos a importância de trazermos mais uma vez o viés do cinema-verdade, possibilitando assim a abertura de horizontes de reflexão. Como aponta Morin (2003):

[...] Os autores se misturam aos personagens; não há um fosso entre eles – ao contrário, há livre circulação entre um lado e outro da câmera. Os personagens ajudam na busca, depois se dissociam, para em seguida voltar a buscar e assim por diante. [...] não é uma sequência de cenas representadas ou de entrevistas, mas uma espécie de psicodrama coletivo entre atores e personagens. Esse é um dos mais ricos e menos explorados universos da expressão cinematográfica. [...] Esse método tem por objetivo fazer com que a realidade de cada pessoa possa emergir. (MORIN, 2003, p. 8-9).

A partir da descrição das experiências dos Mestres, no momento da autoconfrontação aqui entendido como fenômeno educativo, pautado na sensibilidade, na reflexão, no conhecimento e no autoconhecimento, os sujeitos encontram-se com seu próprio eu, em cena, mas sem encenação; sendo direcionados a se ver sem máscaras. Trata-se de um Mestre que assiste a uma aula e torna-se discípulo de si mesmo, como relata o Mestre Roni (2017):

Aqui eu to sendo quase aluno dele, sabe, porque pelo o tempo que ele... é como eu acabei de dizer eu tava dando aula todo dia, tava firme, tava tudo na cabeça aqui, tava, é o dia a dia dele aí, tava todo dia dando aula ali, tava tudo encaixadinho. Como ele se afastou, eu estou tendo ele (apontando pra TV) como professor agora, porque eu esqueci de um bocado de coisa agora que eu disse aí, porque você só ta firme, porque ta fazendo todo dia, se você se afastar um pouquinho já deixa um pouco a desejar. [...] Então eu, eu só tenho a parabenizar aí e ficar orgulhoso, né, de Mestre Roni para Mestre Roni. Espero que quando eu voltar, volte mais amadurecido, mais experiente e talvez mais... explicativo. As vezes a gente... a gente não é Deus pra fazer tudo certinho, deixa... as vezes, até os melhores repórteres gagueja, né? [...] Então, eu não sou acostumado com isso, se eu realmente falei alguma coisa que eu não entendo ou nada disso, eu sei que eu acho legal, mas aqueles que falam bem, pessoal formado, que falam bem, entendeu? Talvez descriminem o que eu fale aí, se eu falei mal, falei certo, só quem pode analisar isso aí é um especialista, eu não sou especialista em fala, por isso que eu to achando legal, meu modo de dar aula, meu modo de, de ser, no que eu faço, eu to achando legal, eu to achando legal! [...] Então, eu não sabia que eu era assim (risos), então parabéns pra ele, pra esse cara que ta aí, e parabéns pra mim, porque eu aprendi muito com ele também agora e quando eu me levantar dessa cadeira e voltar pra academia eu vou voltar com outro pensamento melhor ainda, porque eu aprendi muito aí e quem sabe a próxima, se eu ainda for fazer, eu faça de outra forma mais... menos avexada, um pouco mais calmo, um pouco mais, né, a gente vai aprendendo e quando for mostrar o movimento, mostrar o movimento um pouco mais firme, entendeu, talvez melhor. (MESTRE RONI, autoconfrontação, 2017).

O professor Cleiton (2017) afina-se com essa compreensão:

Eu me confrontando, como a gente disse aqui, eu olhando pra mim mesmo... Eu passei o tempo todo só me observando, sabe?! Olhando o que eu tava falando e é como se não fosse a minha pessoa aí. É como se fosse outra pessoa lá na frente explicando e eu aqui aprendendo com ela. E foi bom isso aí, a experiência de ver isso daí, foi bom. E você se confrontar com a sua própria pessoa falando é um negócio muito diferente, é emocionante. É como se eu tivesse aprendendo com aquela pessoa ali, aquela pessoa está me explicando alguma coisa, explicando uma coisa que eu nem sabia o que era, mas a pessoa ta me explicando e eu to achando interessante. Como no primeiro dia que eu fui praticar Taekwondo, né, que eu fui... que eu era militar na época, pronto, foi da mesma forma: o professor lá falando e eu aprendendo, fazendo. [...] Eu fiquei satisfeito e muito grato por Cleiton lá passar o que ele passou, achei muito interessante o que ele falou, porque o Taekwondo é isso ai. O Taekwondo é uma Arte Marcial que ela preza muito por isso, pela honra, pela fidelidade, pela amizade, pela educação, pela formação do caráter do homem, entendeu? [...] Cleiton, realmente ele falou um negócio muito bom, realmente gostei bastante do que ele disse. (PROFESSOR CLEITON, autoconfrontação, 2017).

O momento da autoconfrontação nessa pesquisa foi fértil, pois os relatos permitiram compreender o fenômeno educativo em sua relação com o corpo, a experiência, a sensibilidade e a reflexividade. Merleau-Ponty, em seu texto O corpo como expressão e a fala, enfatiza que “o fato é que temos o poder de compreender para além daquilo que espontaneamente pensamos” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 243). Assim, consideramos que esse momento da autoconfrontação faz disparar nos sujeitos o processo de se autocompreender a partir da própria fala. Nesse processo, percebemos a possibilidade de reflexão e de autoconhecimento, fundamental em uma prática educativa.

Um aspecto importante que deve ser destacado é que durante o processo da autoconfrontação, o Mestre Roni e o professor Cleiton assistiam a seus vídeos atentamente e por longos espaços de silêncio, observando os movimentos que realizavam, as instruções que passavam na aula ministrada, bem como os próprios relatos na entrevista. Essa experiência silenciosa faz despertar o espectador para que ele encontre significações em seus caminhos, norteando os ensinamentos passados, o gesto demonstrado e a técnica que está sendo mostrada. Acerca do sentido do gesto, Merleau-Ponty (2011) coloca que é “o gesto que rompe esse silêncio. A fala é um gesto, e sua significação um mundo” (MERLEAU-PONTY, 2011, p. 250), assim como a técnica do Taekwondo é considerada o gesto dessa arte marcial. Nesse momento, ocorre um processo de educar a si mesmo, uma ação em que a educação é transmitida pelo referencial primordial do próprio corpo em cena, esse corpo que se ergue para ver, perceber e aprender os ensinamentos que fazem parte do caminho dessa arte.

A busca de si-mesmo frente ao mundo e as entidades que aí estão, compreende-se bem como àquilo que se lhe mostra estranho e vir aí habitar se constituem no movimento básico de consciência nesse ir e retornar a si-mesmo. [...] A educação, nessa perspectiva, não é apenas um processo de elevação histórica da mente, do natural para o universal, mas é a condição mesma na qual o homem se humaniza. O sujeito “educado”, ou a consciência cultivada, possui um sentido de ver, de olhar que já é um sentido universal abrangendo toda uma esfera que permanece aberta a um campo particular visando a diferenças neste campo já percebido (MARTINS, 1992, p. 70, grifo nosso).

Destacamos que tudo aquilo que foi vivido pelo Mestre, antes de tornar-se pauta para a aprendizagem de outro, é ensinamento para ele mesmo. Entendemos esse fenômeno quando, especialmente, estende-se para contemplar outra vida, outro indivíduo. Nesse processo, há um ato reflexivo que penetra o indivíduo em seu mundo, fazendo-o reorganizar sua estrutura corporal. Merleau-Ponty (1991), em seu texto A linguagem indireta e as vozes do silêncio, afirma:

A unidade da cultura estende para além dos limites de uma vida individual o mesmo tipo de envolvimento que reúne antecipadamente todos os seus momentos no instante de sua instituição ou de seu nascimento, quando uma consciência (como se diz) é chumbada ao corpo e aparece no mundo um novo ser a quem não se sabe o que acontecerá, mas a quem algo não poderá deixar de acontecer, ainda que seja o fim dessa vida que mal começou. (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 72).

Com base na escuta dos sujeitos participantes da pesquisa, sublinhamos que a dimensão educativa se baseia não somente em ensinar, mas em despertar nos discípulos, alunos, a sensibilidade para que possam compreender de forma subjetiva suas atitudes. Na experiência relatada do Taekwondo, o Mestre ensina o discípulo a ver, à sua própria maneira, e também o leva a compreender que continuamente ele é discípulo de seus ensinamentos. Com base na atitude fenomenológica, podemos compreender que Mestre, discípulo, Homem e Mundo estão entrelaçados de forma subjetiva e intersubjetiva, ambos dependem um do outro para existir. A figura do Mestre no Taekwondo deve ser pensada como aquele que ensina seu discípulo, primeiramente, a aprender, a estar aberto para se modificar, como foi visto no processo da autoconfrontação.

Então é isso que eu não quero perder. Essa parte que enriquece a quem o pratica, em valores de educação, de respeito, certo? De ser um homem de caráter... na formação do caráter do homem, certo? Que é isso que o homem tem de preservar mais na vida, que é a formação do caráter dele, se praticar uma arte dessa sério, fortalece o seu caráter. (MESTRE RONI, entrevista, 2016).

Da mesma forma, o Mestre Roni e o professor Cleiton confirmam esse pensamento na autoconfrontação:

A formação do homem, do respeito, né, porque eu falei que era um cara agressivo, mas que com um certo tempo o Taekwondo me reduziu a agressividade, quer dizer a gente tem que aprender esse tipo de coisa aí, porque o mal não leva ninguém a lugar nenhum, entendeu? (MESTRE RONI, autoconfrontação, 2017).

Tem um ditado que diz o seguinte: você deve fazer luta dentro da academia, para que na rua você desvie dela! Quer dizer que você tem que lutar bastante na academia pra que na rua você desvie, não tenha interesse nenhuma nela, desviar totalmente da violência, sair fora dela. E o movimento tudo que a gente faz aí ensina isso. (PROFESSOR CLEITON, autoconfrontação, 2017).

A noção de caminho que está na própria significação do Taekwondo (caminho dos pés e das mãos) referencia o papel do Mestre frente a seu discípulo e como essa relação baliza o campo da educação. O papel do Mestre/professor enquanto educador dessa arte marcial evidencia os princípios educativos da arte, tratando-se de questões que estão ligadas aos princípios de vida, de uma filosofia, na medida em que o mestre encaminha o aprendiz que vive constantemente aprendendo a aprender e a transformar esses ensinamentos em fundamentação para sua existência. Mestre e discípulo fundam-se nesse caminho, de modo que há a necessidade de um para a existência do outro, para que assim ambos possam caminhar juntos em uma jornada de aprendizagem para a vida.

Podemos dizer que o discípulo nas artes marciais é a vidência que torna presente a ausência do Mestre, pois um é o outro, não se pode precisar ao certo o momento em que o discípulo vira Mestre nem quando o Mestre deixa de ser discípulo. Assim, quando me vejo ensinando, na autoconfrontação, sou eu Mestre ou discípulo? Quem é Mestre e quem é discípulo? Os dois são um só, com seus caminhos entrelaçados pelo tempo e pela afeição, pela empatia, e separados pela mesma essência que os uniu a caminharem juntos.

Considerações finais (expressividades do corpo em movimento)

Com o objetivo de tornar expressiva a experiência do corpo no Taekwondo, o Mestre segue seu caminho junto ao seu discípulo. Por meio de um processo educativo, ambos são conduzidos a perceber que o papel do Mestre é, sobretudo, ensinar a aprender e aprender ensinando; tornando-se o Mestre aprendiz dos próprios ensinamentos e o aprendiz, futuro Mestre que desenvolverá a arte de aprender. Trata-se de um processo recursivo, circular, ou seja, é a experiência do corpo que se transfigura no próprio fenômeno educativo, na qual o Mestre se faz discípulo do próprio eu. É algo extremamente interior e muito rico de experiências.

Mestre e discípulo nas artes marciais nascem aberto a esse mundo de significados. A vivência com a prática vai apresentando campos de possibilidades disponíveis e mostrando-lhes meios de vivenciá-las durante esse processo educativo que move um corpo diante do outro. Dessa forma, ele não se torna unicamente determinado por esse mundo, mesmo que essas significações estejam tecidas em seu corpo. “Significa reconhecer que somos condicionados, mas não determinados”, como afirma Freire (2000, p. 21). A relação a qual norteia o fenômeno educativo entre Mestre e discípulo funda-se no sensível, no sentido das escolhas, tanto do Mestre quanto do discípulo, o que contribui para essa subjetividade. Dessa forma, o Taekwondo é uma expressão do corpo. É a partir de seus ensinamentos que cada discípulo encontra seu modo de caminhar, elaborando e construindo significações educativas em seu corpo.

Nessa reflexão, o Mestre vê a si mesmo, autoconfronta-se, assistindo à própria aula, vendo seus ensinamentos atravessar o corpo do outro ao mesmo tempo em que o atravessa da mesma forma, tornando-o discípulo de si mesmo. Pensar uma educação sensível, crítica e reflexiva convoca nosso corpo como referência primeira para sentir e atribuir sentidos, como nos ensina Merleau-Ponty em sua filosofia.

Por meio da atitude fenomenológica e da autoconfrontação foi possível construir um diálogo valoroso, escutando os Mestres e propiciando a reflexividade das experiências e a sensibilidade do corpo como expressões educativas. As narrativas constituem um material vivo para se pensar o corpo como fenômeno educativo por meio da experiência vivida, que cria vida no corpo, no corpo próprio e no corpo do outro pelo fenômeno intersubjetivo da intercorporeidade. Nesse processo, educa-se a si mesmo e ao outro por meio da técnica, mas também pela sensibilidade, filosofia de vida, exemplos, valores, vindos da experiência e afetos compartilhados ao longo do tempo. Trata-se de uma educação fenomenológica configurada no corpo da experiencia vivida.

Referências

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2- Taekwondo tem como significação o caminho dos pés e das mãos.

3 - Para cada momento foi levado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), o qual foi lido e devidamente assinado.

4- Essas defesas pessoais no Taekwondo são denominadas de Sambon Kyorugui e Hanbon Kyorugui. Cada graduação tem sua defesa pessoal especifica com dez movimentos que partem da configuração de defesa, seguido de imobilização ou finalização.

5- Ao citar o dobok como “segunda pele”, o professor Cleiton segura a manga do uniforme de treino e ergue frente ao peito.

6- Referimo-nos aqui ao tipo de “educação como cuidado” que pode ser apreciada, por exemplo, no filme Primavera, verão, outono, inverno... e primavera (2003), que remete à noção de aprendizados para a vida, destacando elementos simbólicos que formam a existência dos sujeitos. Uma discussão mais aprofundada sobre alguns elementos desse filme encontra-se no livro No caminho das artes marciais: a relação Mestre e Discípulo como educação sensível (SILVA, 2016).

Recebido: 04 de Outubro de 2019; Revisado: 18 de Fevereiro de 2020; Aceito: 24 de Março de 2020

Luiz Arthur Nunes da Silva é doutor em educação. Bolsista do Programa Nacional de Pós-Doutorado (PNPD/CAPES) pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Física (PPGEF) na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Terezinha Petrucia da Nóbrega é doutora em educação. Professora titular da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e dos Programas de Pós-Graduação em Educação (PPGEd) e Educação Física (PPGEF), Natal, RN, Brasil. Bolsista de Produtividade em Pesquisa do CNPq, nível 2.

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