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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.47  São Paulo  2021  Epub 09-Jun-2021

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202147229256 

Artigos

Pedagogia do seminário universitário: proveniência histórica e tradução contemporânea

The pedagogy of the college seminar: historical background and contemporary interpretation

1- Universidade de Lisboa, UIDEF, Instituto de Educação. Lisboa, Portugal. Contato: jorge.o@ie.ulisboa.pt


Resumo

O artigo centra-se no seminário universitário, criado na Alemanha do século XVIII e que veio a afirmar como o instrumento pedagógico por excelência capaz de operar uma articulação objetiva entre investigação e ensino, possibilitando, desse modo, a emergência e afirmação da figura do pesquisador moderno e contemporâneo. Procura dar uma contribuição, tanto teórica quanto prática, para uma discussão, sempre por concluir, acerca da pedagogia da criação científica. O texto divide-se em duas partes: uma inicial, que procura capturar a essência do seminário; e uma subsequente, na qual se apresenta uma experiência de seminário em curso na atualidade. O artigo procura, em uma palavra, identificar a pedagogia do seminário, ontem e hoje, como consubstanciando uma espiral aventurosa em que o estar-a-ser-junto acadêmico se liga intrinsecamente à construção de um pensamento inventivo. É assim desenvolvida uma metodologia que procura superar o tempo e a distância. Insiste, por um lado, na importância da troca da palavra oral entre alunos e professores; e, por outro, no trabalho, lento e sistemático, de apropriação intertextual. São essas duas grandes operações que aproximam todos os que, ontem e hoje, se identificam com uma pedagogia da criação escrita e procuram refletir sobre ela no interior da universidade.

Palavras-Chave: Pedagogia do seminário; Universidade da investigação; Escrita acadêmica

Abstact

This article focuses on college seminars, created in eighteenth-century Germany, which was consolidated as a quintessential pedagogical tool, capable of objectively combining research and teaching, consequently giving rise to the emergence and assurance of the modern and contemporary researcher. It seeks to contribute, both theoretically and practically, to what is an always-unfinished discussion about pedagogy and scientific creation. The text is divided into two parts, the first of which attempts to capture the essence of the seminar, while the second describes an ongoing seminar experience today. In short, the article aims at identifying seminar pedagogy, then and now, as the expression of an adventurous spiral in which the academic “coming-to-be-together” is intrinsically connected to the creation of inventive thinking processes. A methodology attempting to overcome both time and distance is thus developed. On the one hand, it emphasizes the importance of oral exchanges between students and teachers; on the other, it focuses on the slow and systematic labor of intertextual appropriation. These two fundamental practices bring together all those who, past and present, identify themselves with a pedagogy of inventive writing and seek to reflect on it within the higher education.

Key words: Seminar pedagogy; Research university; Academic writing

Introdução

Falar de seminário é falar de uma prática acadêmica que se disseminou pelos quatro cantos do mundo a partir da Alemanha do século XVIII e que hoje adquire a mais ampla e contraditória significação. É sem dúvida uma designação atraente e que vende bem a chamada excelência acadêmica que se promete em todo o lado; não raro surge até como cosmética para esconder formas tradicionais e normalizadas de ensino. Torna-se assim importante fazer a discussão em torno dos pressupostos e da gênese dessa prática que, historicamente, identifica a possibilidade de uma pedagogia da pesquisa e do próprio ato da criação no interior das instituições acadêmicas. Este texto toma-se dessa ambição de alcançar a essência da missão da universidade – recorre para isso a textos e autores emblemáticos e de ampla circulação – como estando ligada à produção e à exposição de saberes especializados, por meio da assunção da razão livre e do poder de julgar com autonomia. Constata-se que a instituição do seminário surge justamente como um acelerador histórico desse princípio que produz uma universidade questionadora.

A segunda parte do artigo sistematiza uma proposta concreta de um seminário de doutoramento centrado nos processos de escrita acadêmica – que é oferecido atualmente na Universidade de Lisboa pelo signatário nas áreas das Ciências Sociais, Artes e Humanidades – e no qual se procura capturar, relançando-o, esse mesmo espírito da afirmação da palavra livre, plural e autônoma que antes se descortinou na tradição acadêmica ocidental da época contemporânea. Essa experiência contemporânea procura assim, na sua especificidade e alcance local, valorizar a interrogação problematizadora e crítica vinda do passado e defender igualmente o estar-a-ser-junto acadêmico como sine qua non de emergência e de consolidação da persona investigador.

O artigo procura numa palavra identificar a pedagogia do seminário, ontem e hoje, como consubstanciando uma espiral aventurosa em que o estar-a-ser-junto acadêmico se liga intrinsecamente a uma prática texturante na qual a própria escrita diferenciada e única se revela a si mesma. A premissa pedagógico-existencial assume também um alcance teórico e o conceito de intertextualidade torna-se central na proposta de seminário que é aqui apresentada. Assim, estamos em presença tanto de um método pedagógico como de uma prática de escrita caraterizada pela multiplicação de referências, por cadeias de palavras e de significados retirados do solo textual comum.

A essência do seminário universitário: palavra plural e interrogação infinita

A instituição pedagógica do seminário surge como uma das grandes astúcias criadas pela universidade, senão mesmo a maior de todas elas. O figurino da universidade moderna, que se tornaria clássico em vários Estados demoliberais desde há cerca de dois séculos para cá – distinto do modelo napoleônico-latino, que marcaria longamente a tradição das instituições de ensino superior dos países da Europa do sul logo a partir do primeiro quartel do Século XIX e que ainda a mantém em boa medida ligada à função conservadora de desvelar a verdade nos seus começos, satisfazendo-se amiúde no papel de guardiã, intérprete e comentadora de textos sagrados –, postula, para além da independência acadêmica, vinda da Idade Média, uma prática de afirmação problematizadora de todo o conhecimento, de busca da verdade sem constrangimentos ou limites de partida. Mesmo se ocultada, a crença fundamental que a atravessa é a da discussão desassombrada e sem restrição.

Devemos a esse respeito começar por atentar em dois textos de Jacques Derrida (2001, 2002), O olho da universidade e A universidade sem condição. Em ambos, esse filósofo faz uma sistemática profissão de fé na instituição, na figura do professor e no que chama as “humanidades de amanhã”. Para ele, importa que nos sintamos no essencial herdeiros de uma organização social que, mau grado todas as contradições e misérias que a têm atravessado, nunca deixou de se querer afirmar historicamente como um lugar comunitário e de vínculo social às configurações sem fim da investigação científica. As análises de Derrida a esse respeito partem, com efeito, do princípio de que o passado da universidade “exige” e reclama para ela “uma liberdade incondicional de questionamento e de proposição”, ou seja, “o direito de dizer publicamente tudo o que uma pesquisa, um saber e um pensamento da verdade exigem” (DERRIDA, 2001, p. 13-14). Aqui se encontra legitimado o que ele mesmo define como a vocação da universidade em função da sua “essência”: a de ocupar “o derradeiro lugar de resistência crítica – e mais do que crítica – a todos os poderes de apropriação dogmáticos e injustos”; a universidade tem, portanto, o “direito incondicional de colocar questões críticas, não somente à história do conceito de homem, mas à própria história da noção de crítica, à forma e à autoridade da questão, à forma interrogativa do pensamento” (DERRIDA, 2001, p. 16-18). E para Derrida tudo isso traz implicado, igualmente, “o direito de fazê-lo afirmativamente e performativamente, ou seja, produzindo acontecimentos, por exemplo, ao escrever, e ao dar lugar (isso até aqui não dependia das humanidades clássicas ou modernas) a obras singulares”. Na universidade, nada deveria estar fora do questionamento, da discussão, da reelaboração. É preciso que saibamos, cada um a seu modo, assumir “não apenas um princípio de resistência, mas uma força de resistência – e de dissidência” (DERRIDA, 2001, p. 17).

Não é, porém, de hoje que a universidade afirma a justiça da heteronomia, da dúvida radical e do dissídio que nela têm origem. Daí os conflitos regulares com os diferentes governos políticos do Estado moderno e com a fantasia desse de que a sua soberania é indivisível. O texto fundamental e que primeiramente defendeu de forma desassombrada esta independência da instituição é, como se sabe, O conflito das faculdades, de Kant, publicado em 1798, e a que se seguiriam vários outros (de Schelling, a Fichte, a Schleiermacher ou a Humboldt, de Hegel a Heidegger) em torno da Universidade de Berlim, estabelecida entre 1807 e 1810, e da universidade alemã de um modo geral, fundadora de uma relação inseparável entre investigação e ensino, da clausura dos universitários a partir de um contrato que referencia o Estado e o povo a uma prática política que estrutura, produz, arquiva e transmite saberes e técnicas as mais diversas. Sob o impulso de Humboldt, o projeto científico alemão ficou conhecido por visar “não apenas a aquisição de conhecimentos pelos indivíduos, mas a formação de um sujeito de saber” (LYOTARD, 2003, p. 71). Sublinhe-se que o problema fundamental de Kant era já o de fazer da instituição universitária um lugar de resistência ativa, por meio do pensar e do dizer verdadeiro, ao despotismo e a qualquer abuso de poder totalitário justificado em nome da verdade. Como se pudéssemos afirmar, a partir dele, que o saber – rigoroso e construído em consciência – não se pode sujeitar a nenhuma outra autoridade que não a que a sua comunidade delimita e prescreve. Em Kant, encontramos essa arkè da liberdade absoluta da palavra do universitário como estando ligada a juízos essencialmente teóricos, ou seja, à filosofia.

Podemos, pois, reivindicar que a essência da universidade se reativa a cada dia na cena do diálogo, no recomeço da palavra plural. Ora, é justamente esse o território que a instituição seminário delimita e afirma a cada sessão. Com efeito, é nesse chão comunitário, absolutamente exíguo e fechado sobre si mesmo, que é dado experienciar ao universitário como a erudição e o saber diferenciado se desenvolvem nos interstícios entre uma interrogação e outra.

Quem participa em um seminário transporta a fantasia de vir um dia a tomar posse do ato da criação, a produzir uma escrita fecunda e aos poucos vai compreendendo que o trabalho da invenção se alimenta da constante transitoriedade de pontas que se vão soltando entre um ponto e outro, entre uma fala e outra fala. A questão de saber como as ideias encaixam umas nas outras afirma-se a cada momento, mas permanece igualmente em aberto no interior do seminário. Por isso se pode defender que um princípio geral da enunciação, e talvez o mais importante de todos, se produz no interior desse espaço pedagógico – o de que o ato de conhecer tem somente como seu intermediário a medida do desconhecido. Efetivamente, naquelas quatro paredes não se trata tanto de responder, de reiterar coordenadas, fornecer chaves ou sequências explicativas, mas sim de interpolar para produzir as componentes ontológicas ainda não discerníveis de uma pesquisa. De intervir para interpor, para pausar, ou até para quebrar, mas também para aceder com outra força e nitidez às suas próprias questões de investigação.

Como se, naquela situação tão concreta e tornada banal por meio do processo da sua repetição quase sempre semanal, se consumasse afinal um grande e velho princípio existencial, ético e político da cultura ocidental: que é pela constante articulação da palavra oral com a palavra escrita que os universitários se convidam, de direito e de fato, a fazer parte do movimento de produção do discurso e da construção do sentido, nesses territórios tão vastos como os que as humanidades, as artes e ciências sociais cobrem. Convidam-se não somente a viver, mas a participar na composição da vida, trabalhando com afinco nessa elipse que os conduzirá ao incógnito a partir de necessidades e problemas gerados no interior de si mesmos.

A pedagogia do seminário: definição geral e origem histórica

Nos domínios disciplinares das Ciências Sociais, Artes e Humanidades, seminário é uma prática acadêmica que se caracteriza pela socialização de textos – sua análise e discussão, apropriação e produção – e por se centrar mais na realização dos trabalhos escritos intermédios de cada um dos seus participantes do que, propriamente, em um produto final individualizado, embora estabeleça como seu horizonte a construção de uma tese original. É um espaço pedagógico constituído por pequenos grupos de estudantes em torno de um professor, estruturalmente associado ao processo da pesquisa a partir de uma perspetiva analítica e metodológica particular. Destina-se a fazer emergir e consolidar a figura do investigador por sobre a do aluno, através da continuada imersão no discurso de uma comunidade científica específica.

Desde a primeira hora o seminário universitário é concebido para a procura afincada do saber, mas a dimensão ensinante e a transmissão de conteúdos são postas em plano recuado ou podem ver-se mesmo abandonadas. Não se confunde, por isso, com uma aula magistral, nem ainda com o acompanhamento tutorial feito pelo orientador. Nesses termos, sempre que alguém quer descrever uma modalidade de troca na academia, em que as ideias e o próprio conhecimento estão em estado de desmultiplicação, sempre que se procura identificar um espaço de aprendizagem fora de um modelo pré-fabricado e da replicação de uma trajetória já estabelecida, sempre que a palavra docente não se fixa no monólogo, não procura a síntese ou o acordo final entre posições – então é a palavra seminário que invariavelmente encontra.

Seminário é, ainda, a instituição pedagógica de que a cultura universitária europeia oitocentista se apropriou, a partir da Alemanha, a fim de sublinhar a dimensão capital da figura do interlocutor – aquele que impede a exposição teórica e dogmática de uma doutrina – para afirmar que há sempre, no mínimo, duas palavras para dizer o mesmo. Por isso, cabe desde logo entender que esse “avançar para a familiaridade das coisas mantendo a sua estranheza”, esse referir-se a tudo por intermédio da própria experiência da interrupção das relações, como amiúde recordou Maurice Blanchot, “nada mais é do que ouvir falar e aprender a falar; a relação mestre-discípulo nada mais é que a própria relação da palavra, quando nela o incomensurável se faz medida” (BLANCHOT, 2001, p. 33). O mesmo autor de A conversa infinita põe em cima da mesa a grande questão que se apresenta a todo aquele que anima um seminário de investigação ou dele toma parte enquanto aluno iniciante ou pesquisador já credenciado:

Como pode afirmar-se a busca de uma palavra, fundada não mais na igualdade e na desigualdade, nem na predominância nem na subordinação, tão-pouco na mutualidade recíproca, mas na dissimetria e na irreversibilidade, de tal modo que, entre duas palavras, uma relação de infinidade esteja sempre implicada com o movimento da própria significação? Ou, ainda, como escrever de tal maneira que a continuidade do movimento da escrita possa deixar intervir a interrupção como sentido e a rutura como forma? (BLANCHOT, 2001, p. 36-37).

Mesmo que no figurino do seminário nos seja ainda devolvida a dissimetria de comunicação escolar, reiterando-se nele o quadro da divisão clássica mestre-discípulo, orientador-orientando, professor-aluno, o que permanece sobre a mesa é a possibilidade de se abrir um diferendo pelo diálogo, uma rutura para o desconhecido, envolvendo-se nesse trabalho da heterogeneidade todo o coletivo, do menos iniciado ao mais experimentado e até ao próprio professor. É a voz do outro que convoca a minha e me faz, ao mesmo tempo, adentrar no que penso e posso pensar. Uma mesma pressão do interior da comunidade determina o avanço da espiral do conhecimento e a ela submete, à vez, cada um dos seus membros.

Se foi a partir do “estilo-seminário” como, aliás, sublinha William Clark (2007) em Academic charisma and the origins of the research university que o próprio “estilo de ensinar” se veio a associar à pesquisa, é fato que a nova exigência da criação de conhecimento nos estabelecimentos de ensino superior teve de encontrar forma de vincular a esse mesmo objetivo estrutural tanto os alunos quanto os docentes. No seminário, cultiva-se o saber e não há nenhum tipo de autoridade que possa dispensar alguém da tarefa de continuar a pensar, de falar e de ouvir para se entender a si mesmo. Os alunos obrigam-se a recuidar as ideias, mas os professores estão, também eles, submetidos à mesma regra. Por isso parece-me defensável que no seminário se reatualiza e dá corpo a uma agonística política interminável, um combate sem tréguas a essa falha inaugural da representação, a essa violência fundadora tão própria da escola de massas, que reduz o Outro à mera condição de destinatário, o ensino ao monólogo e, no limite, o leitor ao leitor. Aqui trata-se, ao contrário, de dar corpo ao desejo da escrita, à possibilidade de produzir obras singulares e de as dispor no mundo.

Essa forma de interação pedagógica devolve-nos um aluno que está a pensar alto a sua pesquisa, a tese, um paper ou até uma passagem entre partes de um qualquer texto em andamento; que inclusive se sente capaz de colocar na discussão coletiva essas peças antes do seu termo, porque precisa da voz do próprio seminário para sentir o pulsar do que tem entre mãos, as transições e os suplementos de que a sua narrativa carece no momento. A exigência que impende sobre aquele que conduz o seminário é a da hospitalidade ao outro e ao infinito do saber; por isso, o acúmulo do seu próprio trabalho representará para aquela comunidade não mais do que uma aptidão antiga, porventura bastante desenvolvida e ágil, no processo inacabado do perguntar. É assim que um professor, mesmo quando colocado na posição de comunicar um saber – de falar mais longamente, tal qual o faria se estivesse numa aula ou numa conferência –, não deixará, como insiste o filósofo Emmanuel Levinas (2007, p. 43), de permanecer “ao lado” daqueles que serão a sua audiência; dir-se-ia até que, em lugar do confronto ou da “verticalidade do em frente”, o professor depende do feedback do seminário para sentir, também, o pulso da sua própria pesquisa e a fazer avançar.

Cumpre doravante compreender que o regime do seminário não começa nem se mantém fora de uma intensíssima relação com a história – seria mais correto dizer: de um regime de relação com o antigo e com a palavra originária. Além disso, foi esse movimento regressivo que permitiu à universidade renovar-se, inscrevendo duradouramente a investigação no centro da sua missão. Apesar de uma curiosidade com mais de dois séculos para tentar descodificar as virtudes que põem em andamento as vocações científicas dos jovens universitários, as finalidades expressas pela instituição seminário são razoavelmente estáveis, fáceis de identificar e até de elencar. O seminário é o locus onde o conhecimento se produz de raiz, em que todos os participantes estão diretamente implicados no seu advento, a ele assistem e nele intervêm quer como parceiros quer como autores. A persona investigador, que a universidade tem procurado ali universalizar, resulta historicamente da articulação do princípio da discussão com a explicação textual e o exercício estilístico: todos os participantes são convidados a expor, por escrito, os resultados da sua pesquisa ou estudo, e em seguida a analisá-los oralmente tanto com os pares como com o orientador.

Desse modo, incorpora-se se um espírito objetivo, comum e normalizado, tendo em vista a afirmação de um espírito subjetivo (CLARK, 1989, p. 134). O seminário retoma e retém as regras retóricas da disputa e da amplificação do discurso advindas da Antiguidade Clássica, mas, ao transformar a escrita na forma mais elevada do trabalho acadêmico, foi-se afastando da tradição posterior, isto é, da prática universitária medieval da lectio-disputatio que tornava o ensino e a aprendizagem de exercícios orais, deles partindo e a eles regressando. No seminário da contemporaneidade, mais do que comunicar, trata-se de encontrar forma de conduzir, sustentar e julgar diretamente um texto. Alunos e professores gozam das mesmas prerrogativas e direitos sobre os conteúdos expressos, e essa é a sua marca distintiva face a todas as outras modalidades de ensino. O princípio subjacente é o de que só investigando e criticando se aprende a investigar e a criticar. A forma que temos hoje de despertar uma vocação científica continua a ser a da discussão, mas essa toma a palavra escrita como o seu chão.

O seminário encontra as suas raízes históricas na Universidade de Halle, criada em 1690, instituição em que se implantaria cinco anos mais tarde o primeiro seminário público protestante, o Seminarium praeceptorum, no quadro de expansão do Estado prussiano e que tinha como objetivo formar os novos professores de ensino secundário que iriam substituir os pastores; as suas origens encontram-se, igualmente, na Universidade de Göttingen, na qual o pedagogo, filólogo e bibliotecário Johann Mathias Gesner criou em 1738 o Seminarium philologicum. Na realidade, foi a partir dos estudos filológicos clássicos que se vulgarizou uma modalidade de fusão do ensino com a pesquisa e, com ela, se afirmou também um modelo de renovação profunda da própria universidade, que a vem marcando desde então até a atualidade. A meu ver, é essencial verificar que todo um novo ethos do trabalho acadêmico, conduzido sob o signo da industriosidade e capaz de lançar as bases ideológicas-organizacionais da universidade da investigação, resultou, já nessa altura, da generalização de hábitos aplicados à análise gramatical, à exegese, à interpretação e à crítica textual dos autores gregos e latinos. Podemos, e devemos, então falar de uma nova missão para a universidade, de uma nova centralidade da educação liberal e da faculdade das artes face à faculdade de teologia, como resultado direto de um neo-humanismo que se consubstanciou em um mergulho vertical, intensivo e especializado às fontes clássicas e na generalização prática da disputa a partir da composição textual (CLARK, 1989, p. 112, p. 130). O investigador e o ato de investigar estão, assim, historicamente associados às gradações de sentido de uma única palavra ou conceito advindos da Antiguidade. À busca da palavra primeira. O mesmo se dirá sobre a convergência entre o ensino e a procura da verdade, entre a função ensinante e a investigação.

Nos seminaria philologica do Século XVIII deixou de haver a preocupação, por parte dos seus diretores, em providenciar uma panorâmica da cultura humanística em geral e tão-pouco de produzir um levantamento dos estudos entretanto acumulados. Os instrumentos de que se quiseram rodear para alcançar os seus objetivos passaram a ser as fontes primárias, as enciclopédias e outras monografias auxiliares da pesquisa depositadas nas bibliotecas dos colégios ou em estruturas embrionárias equivalentes, que foram sendo anexadas aos próprios seminários. Qual arqueólogo, o investigador dos estudos clássicos passou a relacionar-se com um arquivo cujo acervo ele próprio teve de ir constituindo. Produzir o seu próprio arquivo.

O seminário tornou-se uma peça central na universidade alemã entre 1738 e 1838. Cabe assinalar que extravasou para lá dos estudos clássicos, cobrindo praticamente todos os ramos do saber existentes à época, e esteve na origem da própria reorganização das faculdades, com base na separação de corpos de conhecimento, na criação de institutos e no desenvolvimento de departamentos disciplinares. Com os seminários germânicos tratava-se, fundamentalmente, de começar a instilar a moderna disciplina burocrática por meio dos valores da Wissenschaft – espécie de cosmos que cobria e entrelaçava tanto os territórios das humanidades quanto os das ciências –, de dar sustento quotidiano a certas características que procuravam se acercar de um ideal de responsabilidade e de supervisão científico-profissional, convergindo para uma aprendizagem dirigida, é certo, mas também autonomamente conduzida. Eram essas características que os distinguiam de outro tipo de experiências pedagógicas em curso no passado mais próximo, como as que eram protagonizadas pelas academias e sociedades privadas e tinham por base o projeto iluminista.

No seminário alemão, o ensino e o tipo de procura da verdade postos a caminho convergiam já em uma rotina aproximada do brainstorming, em uma nova dinâmica em que professores e alunos se inspiravam e corrigiam mutuamente em direção à descoberta. O vínculo a essa visão ideal trouxe igualmente consigo, fora de dúvida, a reivindicação da liberdade de ensinar e aprender, incluindo, em vários seminários universitários, o fim dos “constrangimentos dos programas disciplinares fixos, dos exames e dos manuais” (McCLELLAND, 1980, p. 60). E é igualmente certo que, diversamente da minúcia curricular da universidade napoleônica coeva, na Alemanha os professores puderam prosseguir vias particulares de investigação sem lições compulsórias e sem a necessidade de provas intermédias de avaliação, com exceção das faculdades de medicina; e que foi também dada aos estudantes da licenciatura a possibilidade de, numa mistura de estudos clássicos com filosofia e matemática, fazer as próprias escolhas entre aulas e seminários (RUËGG, 2004, p. 21-22; ANDERSON, 2004, p. 28).

A definição da instituição universitária como um local que funde a investigação e o ensino disseminou-se a partir da criação da Universidade de Berlim, em 1810, por Wilhelm von Humboldt. Foi a prática do seminário que identificou essa nova missão dos estabelecimentos de ensino superior como um local onde o conhecimento científico se produz de raiz e onde o aluno assiste, durante as sessões, ao seu advento, circunstância que o conduzirá ele próprio a assumir-se como investigador. Para tanto, a aula de cátedra foi considerada uma modalidade imprópria – embora permanecesse a forma mais popular de dar aulas – e, assim, o formato pedagógico dos seminários passou a ser o modelo que viria a identificar sobretudo a pós-graduação, a produção de teses científicas e outros trabalhos de investigação acadêmica.

Apropriação e vivificação

Nesse ponto da narrativa, cumpre convocar o filósofo Martin Heidegger, posto que, a meu ver, é ele quem melhor nos obriga a refletir acerca da essência do ser do pensamento como um pensar de novo o já pensado, e do próprio conhecimento enquanto um estar a caminho no interior da linguagem. Além disso, nos primeiros escritos de Heidegger há um forte posicionamento crítico e autorreflexivo acerca da própria instituição, condição fundamental para a sua renovação. Heidegger entendia que a ciência era um dos poderes que determinavam o que “em certa medida se pode chamar a atmosfera da universidade”, mas também afirmou que ela não podia continuar a ser vista como “uma acumulação ou um amontoado de saber ensinado e aprendido de maneira técnico-disciplinar”; ao contrário, pertencia primeiramente “ao conceito de ciência” que ela fosse “investigação” (HEIDEGGER, 2008b [1928-1929], p. 16). Tudo para avançar com a tese segundo a qual “a ciência só existe na paixão do perguntar, no entusiasmo do descobrir, na inexorabilidade da prestação de contas crítica, da demonstração e da fundamentação.” (HEIDEGGER, 2008b [1928-1929], p. 16).

Havia que passar a interrogar a ciência na sua própria significação e, sobretudo, no processo do seu acontecer. Nesses termos, e ao defender sempre que a ciência transportava em si uma inquietude fundamental, Heidegger afastava-se do princípio da valorização dos resultados úteis que, tanto no seu tempo como no nosso – a ideia recorrente de que se quer “tornar a ciência prática [e útil] sem que se compreenda propriamente em que consiste o carácter prático da ciência [e útil]” –, dominava o debate acerca da produção de conhecimento e das respectivas políticas de investimento na universidade; em seu entender, “a essência da ciência não reside no que é meramente transmissível, no que pode ser passado de mão em mão, mas no que é sempre apropriado novamente” (HEIDEGGER, 2008b [1928-1929], p. 34-35). Para o autor de “O que quer dizer pensar?” (HEIDEGGER, 2008a, p. 111-124), o que estava em cima da mesa quando se falava de crise da ciência apontava para a necessidade de configurar uma autocompreensão do valor do processo questionante de todo aquele que se dizia investigador. Da mesma maneira que defendeu que uma ciência não pode jamais ser equiparada aos seus resultados, também era de parecer que ela não precisava de ser exata para ser rigorosa. O rigor surgia-lhe como o que pode ser conquistado, o que permite adequar o conhecimento ao objeto. Esse “modo de conquista da verdade” era propriamente o trabalho de apropriação; de fato, era apenas quanto ao “modo determinado de buscar, de encontrar, de manter e de comunicar a verdade, e bem assim como dela se apropriar”, que a pesquisa e a doutrina científica se constituíam num “conhecimento investigador”; assim, a propriedade da verdade dizia antes de tudo o mais respeito ao “enunciado e ao juízo”, o qual, por sua vez, se exprimia e se sedimentava “linguisticamente em proposições” (HEIDEGGER, 2008b [1928-1929], p. 47).

Nesse quadro analítico, a linguagem adquiriria a primazia absoluta. Heidegger tomou-a mesmo como o locus da relação sujeito-objeto, postulando que o ser está constantemente a caminho da linguagem e se ilumina através dela. Se era certo que o homem se vinha comportando, na avalanche desenfreada das palavras que profere e dos escritos que produz, como “o criador e o senhor da linguagem”, o real assenhoreamento fazia-se justamente em sentido inverso: não somos nós que nos servimos da linguagem como um meio de expressão; é antes a linguagem “que permanece sendo a senhora do homem”, afirmaria ele em um artigo denominado Construir, habitar, pensar (HEIDEGGER, 2008c [1951], p. 126). Esse entendimento da força instituinte da linguagem levá-lo-ia igualmente a produzir a conhecida afirmação segundo a qual “o artista é a origem da obra” e a “obra é a origem do artista”, não podendo o primeiro existir fora da segunda (HEIDEGGER, 2002b [1935-36], p. 8). Noutro escrito influente, a Carta sobre o humanismo, redigida também no rescaldo do segundo pós-guerra, Heidegger foi sucessivamente afirmando que a linguagem é “a casa do ser” e que morar nela constitui “a essência do ser no mundo” (HEIDEGGER, 2010 [1945], p. 81).

A consciência de que a linguagem edifica, num constante jogo de desvelamento e abertura do pensar, levou também Heidegger, como os filólogos das gerações anteriores, a propor uma metodologia que o conduziria aos primórdios do filosofar, posto que somente aí se poderia aceder à essência do ser e da verdade. Defendeu sempre que, nas raízes da Antiguidade, se encontrava depositada uma sensibilidade tão “originária e plena de frescor” que permitiu ao longo de séculos, e continuava a permitir, objetivar no presente qualquer pergunta acerca da natureza do conhecimento. Os gregos encontraram todas as respostas “na palavra audível e escrita”, razão esta que os terá levado a viver “intensamente na linguagem”, muito mais do que nós estamos acostumados a fazer. “Pensar, para eles, significava propriamente discutir em público”, confrontar pontos de vista e decidir casuisticamente acerca da verdade e da falsidade. Nestes termos, e para os antigos, tudo o que era palpável residia no discurso proferido, sendo que tanto a lógica como a retórica apresentavam já a “verdade na proposição falada”. Então, quem mergulhasse nos textos desses tempos, e fosse qual fosse a articulação das palavras em que se detivesse, era forçado a compreender que o propósito se mantinha invariável – fazer com “que a verdade viesse à luz”, conseguir produzir um conhecimento fundamental através da sequência de palavras. A questão que se inscreve no coração da pedagogia universitária é também esta que Heidegger nos traz aqui: a de pensar alto e procurar entender como as palavras, por múltiplas e variadas e obscuras que sejam, podem encontrar uma relação interna, uma unidade entre si (HEIDEGGER, 2002b [1935-36], p. 59-61).

O mesmo princípio geral de que as palavras e as frases antigas continham as mais ricas unidades de significação, um verdadeiro testemunho existencial, terá feito com que Heidegger se determinasse em não afastar nunca a sua reflexão das nascentes da linguagem, da força de compressão e de condensação que essas exibiam. Para tanto, não cessou de desenraizar palavras, redefinir termos e formas gramaticais, tanto da Grécia antiga quanto da sua própria língua-mãe, mas sempre com o objetivo de criar um vocabulário novo. Como se a investigação e os respectivos argumentos pudessem continuar a avançar a partir da linguagem direta e vulgar que a comunidade utiliza há milênios, como se o tema da anterioridade histórica o levasse a produzir a exterioridade do próprio pensamento.

A sensação que experimentamos quando, por exemplo, regressamos a Platão ou a Aristóteles por meio dos livros, ensaios e preleções que Heidegger produziu entre 1912 e 1970, é a de que não há doutrinas milenares, mas tão-somente problemáticas atuais. Que, ontem como agora, há vida no pensamento e que esse vivifica. Conseguimos, dessa forma, estabelecer uma “relação singular” com o nosso próprio tempo, na medida em que assumimos a contemporaneidade de todos aqueles que quiseram tomar posição a respeito do presente. É a dimensão da crítica e do intempestivo que permite esse encontro secreto entre o ontem e o hoje, como sublinha Agamben (2010, p. 19-29).

O regresso às fontes e a releitura do passado não podem, assim, confundir-se com nenhum tipo de compulsão pela repetição; tão-somente com o trabalho de elaboração que permitirá construir uma memória inteligível sob o signo do amanhã, uma história não das coisas já feitas, mas uma história com os atores e respectivas ideias ainda em curso. Heidegger não podia deixar de ser convocado aqui como testemunho fundamental da reflexividade e da autoconsciência que hoje temos acerca da força performativa da linguagem e da correlata necessidade de nos batermos para que a universidade – e toda a educação escolar – se consiga reconstruir enquanto espaço da discussão referenciada e de permanente adesão à enunciação da crítica.

Podemos nesses termos falar de seminário como sinônimo de comunidade dialógica, a fim de melhor explicitar uma possibilidade concreta do viver junto e do criar-se a si próprio dentro do espaço da universidade, na linha do que Jacques Rancière definiu como sendo a “fábrica do sensível” ou a “partilha do sensível”, isto é, aquele “sistema de evidências que dá a ver, em simultâneo, a existência de um comum e os recortes que definem, no seio desse comum, os lugares e as partes respetivas” (RANCIÈRE, 2010, p. 13, p. 17).

Haverá certamente um ponto de observação que nos fará descobrir que é lá, nesse exercício da retrospeção e da afiliação, que reside a grande dimensão estratégica de todas as comunidades de intelecto. E isso no sentido em que a utopia da criação, seja ela qual for, se reporta fundamentalmente ao relançamento de uma herança, não cessando jamais de reivindicar uma aliança específica com determinado pensamento, problema ou procedimento técnico, para, logo em seguida, o procurar reinterpretar, filtrar, criticar, deslocar e desdobrar. Que se trata de intervir ativamente sobre a tradição, trabalhando para que alguma coisa do imprevisível amanhã se possa anunciar como estando já em andamento na hora atual. Postular-se-ia, desse modo, a prática problematizadora e crítica de todo o conhecimento, evento ou lei singular, e que consiste na abertura incondicional do pensado, do dito e do feito, sem outros constrangimentos ou limites de partida que não os que o estado da arte do investigador ou o seu próprio território de pertença tem sido capaz de pensar, acumular, sedimentar e cruzar.

Nesses termos, o ponto será, para o habitante do seminário, o de pôr o texto a trabalhar a fim de evidenciar que a criação de conhecimento não é possível fora da prática e do tempo lento da marcação da aliança com uma assinatura pré-existente, e que é essa ousada determinação em produzir uma abertura na tradição levará, de fato, o investigador a produzir um conhecimento de tipo novo, o qual, por seu turno, mais não fará do que complexificar e relançar perpetuamente a resposta que há de conseguir alcançar. Nessa procura do gesto atemporal da investigação e da criação acercar-nos-íamos, acredito, da essência de um pertencimento, aquele que instaura a cada momento a necessidade da incorporação do existente e do seu deslocamento. Então, uma ideia, uma tese, um artefato criativo vivificam-se plenamente quando alguém declara a sua morte, quero dizer, quando outro sujeito e outro presente os tomam, remisturando-os no interior de outros conjuntos e sistemas de relações que se consideram pertinentes para o seu trabalho atual.

O seminário de investigação e orientação: a escrita acadêmica e a formação avançada

Este texto prossegue agora por meio da apresentação, nas suas linhas programáticas, de um seminário que é conduzido a partir do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Desse modo, pretende mostrar-se como uma prática de trabalho pedagógico localizada no âmbito da orientação de alunos de doutoramento vem procurando interpretar e objetivar o espírito e o sentido do que é um seminário de investigação em domínios disciplinares circunscritos. Embora se trate claramente de um caso, de uma experiência particular, o propósito não é o de sugerir um modelo e, menos ainda, de procurar fornecer ao leitor uma proposta pronta e a ser replicada. Longe disso. A ideia é bem outra: prestar contas de um desígnio perseguido pelo autor destas linhas no sentido transpor para um domínio específico da sua atividade pedagógica – com opções teóricas também elas assaz singulares – uma leitura particular de uma tradição intelectual e acadêmica caraterizada pelo livre questionamento; a possibilidade real de dar corpo a uma prática de escrita acadêmica tão pessoal quanto referenciada e dialógica. Trata-se do gesto de assinalar uma tradição para a querer continuar e relançar. É o velho tema do herdeiro que escolhe e reclama a sua própria herança. É a defesa de que a pedagogia universitária pode transmutar-se perpetuamente no convite feito tanto ao enraizamento profundo quanto à firme procura do que está por acontecer.

O seminário A escrita acadêmica e a formação avançada é oferecido semanalmente e recebe estudantes de três Cursos de Formação Avançada – História da Educação, Artes (Artes Performativas e da Imagem em Movimento) e Educação Artística –, no decurso do seu segundo ano, ao longo de trinta e sete sessões com duas horas cada. Corresponde, portanto, à fase em que se iniciam os trabalhos de orientação conducentes à realização das respectivas teses de doutoramento, o que significa que existe uma afinidade eletiva e uma cumplicidade de raiz que estão na base da formação do grupo. A identidade acadêmica desse grupo-seminário é forjada na vivência dos processos de produção da narrativa, tomando para tanto os pressupostos analíticos do chamado pós-estruturalismo, uma teorização que se baseia em formas textuais e discursivas de análise, melhor dito, que afirma a força construtiva e constitutiva da linguagem na configuração do mundo social. Acredita-se, assim, que o grande objetivo que o seminário traça para si será atingido no final do ano letivo: que o aluno tenha nessa altura expandido consistentemente o seu projeto de investigação de doutoramento ou pós-doutoramento, no que se refere quer à mecânica da sustentação referenciada do seu problema, quer no que respeita às ferramentas conceptuais que melhor conduzirão o trabalho no seu conjunto e o hão de tornar, no final, pertinente em face ao estado da arte e dos conhecimentos sobre a temática.

Trata-se de um pequeno coletivo composto por elementos com proveniências variadas e que cobre o grande arco das ciências sociais, das artes e das humanidades, como logo faz supor a denominação dos Cursos de Formação Avançada que os alunos frequentaram no ano anterior. Essa marca específica e distintiva é, também, reforçada pelo fato de vários dos participantes terem de complementar a sua tese escrita – no caso do doutoramento em Artes – com um trabalho prático, nas áreas da música, do cinema, do teatro ou da dança. Além disso, e conferindo-lhe uma dimensão ainda mais flutuante, o seminário recebe estudantes estrangeiros, que ali desenvolvem uma parte do seu doutoramento intercalar, e outros investigadores já em fase de pós-doutoramento. O grupo fixa, portanto, quer na sua proveniência disciplinar, quer ainda na conformação dos respectivos projetos de pesquisa, a imagem da heterogeneidade – que é tida como o principal patrimônio do próprio Seminário de investigação e orientação e se transforma também no seu recurso pedagógico mais importante –, mas que converge para uma mesma opção de cunho essencialmente teórico-metodológico.

Os alunos elegem um orientador por se reverem nos modelos da sua investigação e esse trabalha também com eles para seguir em frente com os seus próprios escritos, metamorfoseando-os a partir de uma mundividência conjunta e revendo-se nos mesmos pressupostos analíticos. No decurso do ano, cada participante apresentará um draft consistente de um texto seu e recolherá um feedback extensivo e detalhado tanto dos colegas quanto do seu orientador; e este está também submetido à mesma regra de apresentar ao coletivo um trabalho seu também em desenvolvimento, encerrando-se o ano letivo com a sua apresentação e discussão coletiva. A escuta ativa dos conteúdos, das potencialidades e dos sentidos possíveis de uma narrativa objetiva um tipo de relação completamente fora de um juízo a priori e constitui uma importante mais-valia desse Seminário de investigação e orientação.

Esse seminário visa, assim, a familiarizar os orientandos mais extensivamente com a metodologia que eles próprios escolheram e autorizá-los a interagir com exemplos teóricos e práticos, a fim de que o rumo do processo vá aprofundando e diferenciando a investigação. A aposta consiste em desenvolver a reelaboração do próprio pensamento in vivo juntamente com os colegas e com o orientador; trata-se de trabalhar a performatividade da linguagem, tomando-a e compreendendo-a como estando fundamentalmente ao serviço da construção de enunciados inventivos, marcados pela hibridez e pela múltipla filiação. Enunciados esses que um dia se hão de oferecer à academia ou ao público, como artigos, capítulos de livros e teses terminadas, mas que, no seminário, se estão ainda a construir como positividades em devir, reclamando por novos desdobramentos, por novas direções, por novas formas de existência. Os textos que se discutem e se submetem ao seminário não são reflexo de um pensamento já concluído, merecendo a aprovação ou a reprovação do orientador ou dos pares, mas, antes, artefatos a tomar corpo, em fase de deslocamento e de atravessamento de fronteiras pelas circunstâncias e necessidades da sua respectiva composição. O seminário produz o entremeio, o já estar a caminho.

Uma outra economia da aprendizagem: a relação dialógica e a afinidade eletiva

Há uma importante aprendizagem, porventura a mais distintiva de todas, que a experiência do Seminário de investigação e orientação: a escrita acadêmica e a formação avançada procura. É a que associa o entrar em relação com o outro, a alteridade, com a própria fabricação textual. Desenvolver uma intensidade da escuta e um estado de pura exposição de um rosto com outros rostos. Ninguém está entregue à passividade, mesmo que não tome a palavra e permaneça em silêncio. Todos apresentam-se em estado reflexivo acerca do seu próprio projeto de pesquisa.

Também a reaparição do professor como representante da verdade ou seu árbitro se encontra aqui conscientemente interditada; o seu lugar deve dar agora conta de uma exigência heteronômica: que o devir-investigador se cumpra, se desenvolva e se consolide no estar a ser do pensamento referenciado, razão pela qual a experimentação, a variação e a incerteza metodológica não podem cessar e se têm de reatualizar, a cada sessão, através da sua posição liderante.

Nesse Seminário, o professor deve saber partir e regressar aos tópicos sobre os quais se busca ou se pode entravar a alteridade do conhecimento, sabendo que lhe cabe, em última instância, narrativizar a busca do saber e o pôr em prática desse processo de pensamento através dos escritos que ele mesmo vai compondo. Mas, em qualquer caso, a sua missão está agora do lado da atenção à heterogeneidade dos idiomas, obrigando-se àquele tipo de silêncio de quem se dispõe a ouvir atentamente o que ainda não conhece. Na economia de troca que se adota no seminário, não há, já se vê, o bom emissor, o bom receptor ou mesmo o bom trajeto da ideia; é a conversa como acontecimento e modelo de conhecimento que se impõe. O sentido de comunidade obrigará a reconhecer, nesse pequeno espaço semanal, a função cultural da universidade abdicando radicalmente das noções de unidade, consenso, conteúdo, supra-individualidade e comunicação vertical; a trabalhar ativamente para que a dispersão das existências e o dissenso crítico continuem a acompanhar-nos (READINGS, 2003).

Temos, então, uma cena do ensino em absoluto afastada daquela que a imagem da classe delimita. É composta por um grupo restrito de participantes que concorda em tomar para si a necessidade de jamais abandonar a empreitada das leituras teóricas, porque sabe não ter ao seu dispor outro domínio do discurso capaz de fazer repercutir, a cada passo, o exercício de remissão, assimilação e entrelaçamento necessário ao processamento de toda e qualquer escrita que se tome sob o signo da inventividade. Exigir para si mesmo uma investigação que se desenhe sob a forma de uma cartografia daquilo que lhe cabe tomar posse e que pode, também, não lhe pertencer. Operação decisiva, esta, destinada a que cada um dos elementos da comunidade-seminário desenvolva uma tenacidade em torno da hipótese específica do próprio trabalho, encontre maneiras de ir compondo articulações a partir do material entretanto amealhado e, através delas, busque novos aditamentos, a fim de que o argumento continue a desenvolver-se a cada dia como uma dobra, um desvio ou mesmo uma desterritorialização sobre o que já reuniu e afirmou, tendo sempre o fito da saída, do termo, da conclusão do trabalho que se tem entre mãos. Um mesmo texto lido e trabalhado à sua maneira por todos os participantes do seminário transforma-se, assim, num verdadeiro acontecimento do exterior e constitui-se na passagem ou na rutura instauradora que dará acesso à palavra diferenciada e diferenciadora do próprio pesquisador. Passagem da potência ao ato, da partilha de um texto comum à escrita individuada. Nesse desenhar de uma topografia que será a sua, todos os participantes vão reaprendendo a ler tendo em conta os seus interesses e necessidades, uma vez que é o desejo de escrever que agora conduz a cabeça e os olhos e faz a mão parar, retendo e indexando esta ou aquela passagem particular. A energia é canalizada para capturar, organizar, arrumar, classificar e gerir massas de enunciados que evidenciam grandes níveis de atração e aderência, que estabelecem níveis diversos de distância e proximidade entre si.

Destarte todos, a seu ritmo particular, se vão paulatinamente afastando das velhas práticas, aprendidas desde a infância, de reiteração do sentido canônico de um texto, da sua sistematização e imitação pura e global, para regressarem a outra dimensão que é consubstancial ao desenvolvimento do ato da criação – a da afinidade eletiva, da armazenagem somente do que pertence ao investigador e lhe será próprio e pertinente para o desdobramento do seu discurso. Cada peça textual é mobilizada enquanto arquivo e a citação renuncia à sua intransitividade e passa a ser tomada na qualidade de veículo de outra escrita, que abre e bifurca o espaço semântico.

O gesto texturante que revela a escrita

A operação que se procurará concretizar a cada sessão de seminário supõe a prioridade absoluta do escrever sobre o ler, mesmo se a inversão da precedência, mercê da formação escolar anterior, seja desconhecida e até possa surgir altamente estranha e assustadora a quantos se adentram nesse tipo de experiência pedagógica. A hipótese apresentada é a de que as propriedades analíticas dos signos escritos se abrem à descoberta quando aprendemos a associar, nos nossos próprios pensamentos e enunciados, com plena consciência de o estarmos a fazer, inscrição com distanciação. Ora, o acontecer em nós desse poder combinatório, a fim de que exteriorizemos o pensamento, é assegurado pelo vínculo estreito e permanente da leitura à escrita. Da anterioridade desta sobre aquela. O ler faz-nos tomar posse do que vem de outrem e nos é alheio, residindo no trabalho da acoplagem específica de trechos, nessa incorporação do que se fragmentou, a condição primeira da extensão do nosso próprio conhecimento já em andamento.

Como todos os figurinos pedagógicos que se inscrevem na tradição do seminário, também esse se concebe enquanto espaço da circulação e do comentário horizontal de textos, a fim de que a produção da diferença interpretativa se vá ensaiando, a cada sessão, através do exercício da tomada da palavra sobre a palavra vizinha; mas insiste na anotação e na captura de fragmentos individualizados sobre uma mesma base de leitura. O participante é insistentemente convidado, ao longo do ano letivo, a ensaiar e a explicitar de viva voz o gesto da apropriação, compreendendo o que num texto trabalhado por todos parece comunicar diretamente com os seus próprios interesses de investigação.

Nesse Seminário de investigação e orientação: a escrita acadêmica e a formação avançada, a operação que mais se desenvolverá é a da absorção do fragmento textual e sua mobilização para o armazém ou arquivo do aluno. Incorporar, enraizando-a bem fundo, a noção de que toda a escrita se refere a outras escritas e que escritor é aquele que singulariza a leitura. Os textos oferecidos no seminário têm uma matriz assumidamente polifônica, espelhando com a sua materialidade uma longa formação discursiva que se dirige para os fundamentos da ideia e os seus desdobramentos conceptuais. Trata-se de escolher, de canibalizar e citar, de articular e relançar. Parte-se do pressuposto de que é no jogo da permuta intertextual – da filiação e da reverberação – que os problemas da pesquisa começam a ganhar corpo e a própria estrutura da dissertação a tomar a forma de um argumento científico. Com o enraizamento desses procedimentos, a escrita acadêmica funda-se e desenvolve-se no espaço da referencialidade e, ao mesmo tempo, sedimentando a sua marca crítica diferenciada. A citação inaugura e é também o motor da própria investigação.

O chão das leituras comuns

O Seminário de investigação e orientação: a escrita acadêmica e a formação avançada alimenta-se, assim, da análise de textos. Os alunos recebem no início do ano uma lista de artigos ou capítulos, com o respetivo pdf, e a indicação de que o documento sugerido para leitura ocupará uma ou duas sessões. Não são textos longos, mas exigem um contato assíduo, um estudo aprofundado prévio, para que a conversa possa ser útil e a metodologia pedagógica proposta se concretize.

O seminário vai-se desenrolando a partir de intervenções feitas com base em textos concretos; vive ainda intensamente da apresentação e discussão de textos do punho dos alunos. Existirão ao longo dos dois semestres trinta e sete sessões, das quais dez serão inteiramente dedicadas a esses textos inéditos e em fase de construção. Os artigos, capítulos e livros fornecidos para leitura procuram afirmar três eixos metodológicos: o perguntar, o articular e o estar a fazer. A primeira sessão é constituída por uma intervenção do responsável e traduz-se numa verdadeira aula de apresentação dos pressupostos pedagógicos teóricos e metodológicos do seminário, assim como dos objetivos a alcançar ao longo dos dois semestres. Pretende aprofundar as questões que se apresentam nesse documento programático, vincando de forma intencional a importância das intervenções se desencadearem para exprimir uma ligação pessoal e particular a parcelas específicas dos textos em cima da mesa e, também, a necessidade de se ligarem às falas que estão a acontecer. O orientador dos trabalhos assume, desde logo, uma posição pedagógica firme, que defende que os alunos se desenvolvem e aprendem fundamentalmente uns com os outros, razão pela qual o seu silêncio e a sua prática de ouvinte terão um papel tão importante quanto as afirmações que fizer. Reciprocidade e singularização, hospitalidade e maleabilidade são os dois pares que identificam esse seminário.

Nesse quadro, torna-se fundamental precisar de que se fala quando se fala de literatura teórica. É aquela que, referindo-se ou sendo referida às humanidades, artes ou ciências sociais, não importa aqui o selo disciplinar, se dirige aos fundamentos do respectivo campo científico para os problematizar mais uma vez, que não se ocupa somente do que é revelado através da linguagem, mas também da revelação da sua própria linguagem. Uma literatura em que os respectivos autores, de forma autoconsciente, encontram sempre maneira de fazer multiplicar os conceitos – ajustando e recortando outros advindos das zonas de vizinhança para conseguirem compor os próprios –, e cujo valor interpretativo reside mais na orquestração dos componentes, na produção de pontes móveis, do que na unidade da análise que possam exprimir. São textos que, por essa importante característica da redistribuição, deixam rastros impressivos e se encaminham céleres ao encontro dos interesses particulares do investigador, não importa o tempo-espaço em que este se encontre. Traduz-se neles, portanto, um campo de coexistência, em que se observam em permanência efeitos de série e de sucessão, de cruzamento e desfasamento. Os fins – o já escrito – são chamados a desempenhar o papel de meios do que está a ser enunciado e, por essa razão maior, a única lei aqui conhecida é a da infinidade do recomeço; não mais a da verdade convincente.

Acabados de escrever ontem, há décadas – e até podiam ter sido produzidos mesmo há séculos –, todos permanecem assim nossos contemporâneos, uma vez que o que neles se ambiciona e concretiza é a tese geral de que não podemos aceitar de terceiros as ideias e os conceitos já prontos, mas que recorremos a eles para os reinventar, assumindo que estamos imersos num regime permanente de vizinhança, de variação ordenada e de cocriação. Não há aqui desconexão, afastamento ou anacronismo; antes intercessão e incitamento ao caminhar adiante. Tenham origem onde tiverem, a escolha dos textos do seminário faz-se pelo construtivismo essencial que os atravessou e pelo artesanato metodológico que transportam no seu interior. Neles sustentam-se o vigor e a frescura de uma metodologia científica de circunstância, neles se alimenta uma pedagogia do conceito. Esse é o treino e o tipo de contato que cumpre desenvolver adentro do seminário.

Reiterando a cada semana esse ethos do trabalho do ler para si mesmo, fica-se cada vez mais ciente da importância da fabricação da questão de partida, dessa velha e entusiasmante arte científica de construir um problema, uma posição do problema, antes de se encontrar uma solução. Essa comunidade-seminário, sendo constituída por uma população assumidamente variada nas suas origens, motivações e interesses, como já afirmei, descobre-se assim ante uma mesma posição crítica e de ordem essencialmente política: substituir o dogmatismo transcendental do conhecimento irrefutável pela procura das condições imanentes ao pensamento específico de cada um. Elucidar hipóteses, encontrar formas de explicitar combinatórias, compreender os sistemas que vão paulatinamente emergindo na investigação, refletir sobre os passos e os processos que estão supostos no andamento da análise de cada um – eis, em traços largos, como a topografia do seminário se opõe assim a uma pedagogia da exposição magistral e da confeção escondida.

Estudantes e orientador hão de desenvolver-se por meio de uma crescente sensibilização e intimidade com aqueles textos que se aproximam das nascentes do pensamento, que não invocam a alegria da criação mas, sobretudo, explicitam as modalidades do seu estar a acontecer permanente. Uma comunidade que assume o luxo que se origina no seu interior: porque a sua morada se faz no entrelaçamento constante da palavra oral e escrita, o seminário promete garantir a cada um o sossego necessário – esse tempo da espera e do trazer a si do texto, – tanto para sonhar alto com a sua produção escrita quanto, sobretudo, para visitar os demônios, as dificuldades e os problemas que envolvem a sua respetiva tessitura.

Tais pressupostos conduzirão esse seminário ao coração da experiência filosófica do chamado pós-estruturalismo, que se expandiu a partir do início nos anos 60 do século passado, posto que aí se foi sedimentando uma intensa reflexão dirigida aos fundamentos e limites do conhecimento. Visitaremos a cada semana a produção de autores como Roland Barthes, Gilles Deleuze, Félix Guattari, Jacques Derrida, Michel Foucault, François Lyotard, Julia Kristeva, Antoine Compagnon, Jacques Rancière ou Giorgio Agamben – e recuaremos um pouco mais no tempo até Walter Benjamin e Martin Heidegger – porque com eles os processos escriturais passaram a ser discutidos como uma prática indefinidamente recomeçada de diferenças, o que implicou que a reflexão acerca da criação se tenha dirigido para os procedimentos da sua própria organização, para os planos de imanência, as fronteiras e os limiares do discurso.

Percorreu e percorre essa geração de investigadores – que soube sempre como encontrar forma de interpenetrar temas e problemas advindos da filosofia, da literatura, da arte, do cinema, da psicologia, da etnologia, da história... – uma mesma compreensão teórica da produção textual, razão pela qual os elementos linguísticos e simbólicos começaram a ser tomados a partir das respectivas interrelações e não mais isoladamente ou numa situação de dependência sistémica. Nessa medida, o pós-estruturalismo não se limitou a defender o caráter incerto, indeterminado e instável de qualquer discurso, mas, para fazer explodir as teses então absolutamente prevalecentes da linearidade do enunciado – das estruturas fixas e rígidas de significação, de um conhecimento produzido por um eu racional, autotransparente, capaz de fornecer verdades objetivas e universais sobre o mundo –, o pós-estruturalismo, dizia, questionou e pôs a nu também os códigos e as regras de construção da narrativa. Nas suas múltiplas abordagens, esses autores tomaram o ato de criação como correspondendo ao trabalho de assimilação, de transformação e de deslocamento do pensar e do escrever, numa posição epistemológica profundamente antirrealista, ou seja, que se recusou a ver o conhecimento como uma representação precisa da realidade.

Ora, tudo o que obrigue a rever radicalmente as conceções universais que incorporamos, e que se tornaram perduráveis, acerca da natureza do trabalho que fazemos enquanto investigadores e professores aprendizes só nos pode beneficiar e fazer crescer. A operação crítica que esta geração dos anos 60 do século passado concretizou continua, no meu entendimento, a ser cativante, porque jamais abandonou uma posição de princípio: a de que o conhecimento se renova e afirma performaticamente, ora tanto a partir de uma prática da desmontagem e do desmantelamento dos sistemas de estabilização da significação, que se vão gerando no seu próprio interior, ora admitindo que as noções de confluência, colagem, ambivalência, hibridização, e não as de unidade ou totalidade, são as que mais e melhor definem a natureza do conhecimento. O que nos conduz ao coração do texto, às figuras do seu produtor e leitor, a um tipo de experiência da heterogeneidade que supõe que o método se vá construindo a si mesmo, porque não tem atrás de si nenhum privilégio epistemológico fundacional, a estabilidade de qualquer sistema de pensamento ou modelo textual; tão simplesmente imbricação, textura e trama.

É a tal obra em andamento e o andamento da obra que, também para este punhado de teóricos, parece estar sempre a convocar o pensar da obra. É por aí que esse seminário mais se quer aproximar de um entendimento alargado e aberto da noção de texto, daquela postura de que estamos sempre carentes para dar curso ao desejo de escrita que transportamos em nós mesmos. A fome de compreensão dos mecanismos de composição textual, dos instrumentos que permitem a sua reinvenção, assim como das armadilhas que se apresentam ao caminhar, não se extingue e está sempre necessitada de novas precauções, de novos aditamentos.

Conclusão: uma comunidade de iguais

A evidência pedagógica de que se parte num seminário é a de que ninguém pode nada sozinho. Qualquer forma de resistência e abertura do pensamento na universidade supõe a edificação de uma comunidade de iguais. De fato, é o grupo de pares que consegue potencializar e multiplicar a ação reflexiva acerca dos saberes. A parábola de um mundo dividido entre espíritos sábios e espíritos ignorantes, insista-se, tem servido para negar a simetria de duas vontades, a possibilidade de um encontro feliz entre duas inteligências. Ora, ensinar e aprender não constituem uma potência divisível quando todos pudermos compreender que todo o saber se ergue a partir da cooperação e do entrecruzamento de textos, ideias e pontos de vista. Que o cerne de todo o método consiste em procurar e que, no processo da procura, alunos e professores coincidem por inteiro.

Como também afirmou tantas vezes Heidegger, “a comunidade só se torna possível sobre a base um-com-o-outro” e não se explica como um somatório de “eus” ou pela relação “eu-tu”. (HEIDEGGER, 2008b [1928-1929], p. 157). E como nas relações de amizade, o ser reflexivo e crítico encontra possibilidades de se tornar num si próprio quando está co-originariamente junto a outro alguém. Precisa do diálogo com colegas e mestres para saber quem é, para se desenvolver e afirmar como investigador. Professores e alunos têm de reconhecer-se também como iguais na procura do saber, mesmo se a relação seja fundada na aquisição e domínio das linguagens e das técnicas por parte dos segundos. Ninguém sabe tudo e em todas as ocasiões; uns e outros se devem entregar a uma prática volátil, contudo inteiramente revivificante, que consiste em aceder, ocupar e moldar o conhecimento em simultâneo. Tudo está feito; tudo está por fazer. É na exigência de um labor instante, destinado a fundir as fronteiras e os limites físicos de ontem, que cada um aprenderá se adaptar a um amanhã imprevisível e incerto. Precisamos de ficar bem cientes de que são os conceitos de reciprocidade e de cooperação os que mais importam na relação educativa e os que estão na origem do ato da criação, na afirmação do sujeito investigador.

Outro grande desafio que alunos e professores têm pela frente é o de se conseguirem assumir também como uma comunidade de escritores. As noções de ludicidade, de reelaboração, de troca são as que evidentemente mais importam sublinhar no plano pedagógico. Afirmar sempre que não há possibilidade de construção da informação fora da troca, dos canais, das redes, dos servidores, dessa poética da fluidez que torna todo o pensamento híbrido e cada texto um intertexto. Formação e mestiçagem deveriam, nesta perspetiva, tornar-se, através da vivência universitária, palavras sinônimas. Nos estabelecimentos de ensino superior, é mister afirmá-lo, o seminário é o lugar em que se reativa essa cena da criação há mais de duas centúrias; é nesse pequeno espaço, com efeito, que os participantes vão compreendendo que a escrita acadêmica constitui, na verdade, também ela, uma grande máquina de agenciamento da pluralidade, uma força ao mesmo tempo de referenciação e de exteriorização do pensamento. Eis a grande aprendizagem do ofício de pesquisador: tomar posse do princípio de que escrita é nômade, que produz o salto e a viagem.

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Recebido: 26 de Setembro de 2019; Revisado: 24 de Março de 2020; Aceito: 09 de Abril de 2020

Jorge Ramos do Ó é Professor Associado com Agregação do Instituto de Educação da Universidade de Lisboa. Tem escrito sobre história da educação, da cultura e da arte. Os seus atuais interesses de investigação centram-se nos processos de escrita inventiva na universidade.

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