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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.47  São Paulo  2021  Epub 23-Jun-2021

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202147233998 

Artigos

Apreciações valorativas de estudantes de mestrado sobre o ensino da leitura e da escrita

Marcela Tavares de Mello1 
http://orcid.org/0000-0001-7509-9189

Jéssica do Nascimento Rodrigues2 
http://orcid.org/0000-0002-5859-0571

1- Universidade Federal Fluminense (UFF). Faculdade Santo Antônio de Pádua, Santo Antônio de Pádua, RJ, Brasil. Contato: marcelatdm@gmail.com

2- Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil. Contato: jessica_rodrigues@id.uff.br.


Resumo

Este artigo apresenta reflexões acerca dos letramentos acadêmicos, compreendidos como práticas sociais, formas de ser, ouvir, escrever, ler, agir, interagir, acreditar, valorizar, sentir, usar recursos, ferramentas e tecnologias capazes de ativar e desenvolver a identidade própria da esfera acadêmica (FISCHER, 2007). Em uma abordagem qualitativo-interpretativista, busca analisar as apreciações valorativas que estudantes do curso de Mestrado em Comunicação e Sociedade de uma universidade pública desenvolvem a respeito do ensino da leitura e da escrita na esfera acadêmica, tendo em vista os expedientes pedagógicos adotados pelo professor universitário. Como evidências empíricas, utiliza excertos de relatos produzidos em entrevistas coletivas realizadas em 2019, em que os sujeitos revelam suas experiências relacionadas às práticas leitoras e escriturais dos gêneros discursivos acadêmicos. Com base nos dados gerados, é possível afirmar que, tendo em vista a existência de práticas pedagógicas que orientam a compreensão dos gêneros discursivos, as apreciações valorativas enunciadas indicam satisfação e contentamento na leitura dos textos. Em contrapartida, em se tratando da escrita, as apreciações valorativas sinalizam descontentamento e desagrado, em razão da ausência de encaminhamentos pedagógicos, e necessidade de formação contínua dos docentes universitários que: a) solicitam a produção de textos apenas para fins de avaliação; e b) não apresentam informações suficientes sobre o gênero discursivo em que a produção solicitada deva se materializar. Os resultados sugerem a necessidade da institucionalização das atividades de ensino da leitura e da escrita não só nos cursos de graduação, mas também nos de pós-graduação, considerando a natureza dialógica, situada e ininterrupta dos processos de letramento nessa esfera discursiva.

Palavras-Chave: Letramentos acadêmicos; Esfera acadêmica; Ensino; Gêneros discursivos; Pós-graduação

Abstract

This article presents reflections about academic literacies, understood as social practices, ways of being, listening, reading, writing, acting, interacting, believing, valuing, feeling and using resources, tools and technologies capable of enacting and developing the identity that is characteristic of the academic sphere (FISCHER, 2007). In a qualitative-interpretative approach, we aim at analyzing the evaluative appraisals that students in a master’s program in Communication and Society at a public university develop about the teaching of reading and writing in the academic sphere, considering the pedagogical means used by higher education teachers. As empirical evidence, we use excerpts of accounts from collective interviews conducted in 2019, where the subjects reveal their experiences with the reading and writing of academic speech genres. Based on data so generated, it can be affirmed that, considering the existence of pedagogical practices that guide understanding about speech genres, the students’ evaluative appraisals indicate satisfaction and contentment in reading the texts. On the other hand, with regard to writing, their evaluative appraisals signal dissatisfaction and displeasure, due to the absence of pedagogical directions and the need for continuing education for teachers who: a) request texts for assessment purposes only; and b) do not provide enough information about the speech genre in which the texts requested are expected to materialize. The results suggest it is necessary to institutionalize activities for the teaching of reading and writing not only in undergraduate programs, but also in graduate ones, considering the dialogical, situated and uninterrupted nature of literacy processes in this discursive sphere.

Key words: Academic literacies; Academic sphere; Teaching; Speech genres; Post-graduation

Introdução

Como apontam inúmeras pesquisas (MELLO, 2017; STEPHANI; ALVES, 2017; RODRIGUES; RANGEL, 2018), existe, no ensino superior, uma situação paradoxal. Por um lado, os docentes constatam, com perplexidade, desânimo ou indignação, que seus alunos enfrentam inúmeros desafios em produzir e compreender os textos exigidos na vida acadêmica: em geral, apresentam vários níveis de dificuldades nas práticas letradas voltadas à esfera acadêmica, desde a não intimidade com conhecimentos gramaticais que supostamente deveriam ter sido desenvolvidos na educação básica, até a insciência das convenções que regem a escrita de gêneros discursivos acadêmicos, não desvinculando as relações hierárquicas, ideológicas e de poder que os atravessam. Por outro lado, são raras as disciplinas ou atividades institucionalizadas voltadas ao ensino de gêneros discursivos acadêmicos, como espaço propiciador de vivências de leituras-escritas universitárias, obviamente atreladas a práticas formativas para a pesquisa e para a docência, no caso dos cursos de licenciatura.

Com base nesses dados, na tese Letramento de domínio acadêmico: teoria e prática (experiência em uma universidade pública), defendida em 2017, buscou-se identificar as principais ações promotoras do letramento acadêmico desenvolvidas pela instituição analisada, bem como os conflitos e as tensões com os quais os graduandos(as) de curso de Pedagogia se depararam quando ingressaram no ensino superior. Em se tratando dos resultados da pesquisa, os desafios vivenciados pelos estudantes eram comuns tanto àqueles que estavam iniciando os cursos como aos que estavam concluindo a graduação. Isso significa que, naquele contexto, grande parte dos estudantes concluiu o curso de graduação sem ter desenvolvido práticas significativas de produção e compreensão dos textos que circulam na esfera acadêmica.

Considerando os dados obtidos naquela ocasião, questiona-se, então: Ao ingressar na pós-graduação, são oferecidas disciplinas/atividades que visem a auxiliar os mestrandos a produzir e compreender os gêneros discursivos acadêmicos? Que gêneros discursivos circulam nos cursos de pós-graduação? Como se configuram, segundo as apreciações valorativas das estudantes, as atividades de ensino da leitura e da escrita dos gêneros discursivos? Tais indagações influenciaram as pesquisadoras a pensar este artigo cujo objetivo é analisar as apreciações valorativas3 que estudantes do curso de mestrado desenvolvem a respeito do ensino da leitura e da escrita na esfera acadêmica, tendo em vista os expedientes pedagógicos adotados pelo professor universitário.

Letramentos acadêmicos: ler e escrever na universidade

Os novos estudos do letramento (NLS) relacionam o letramento à ideia de que a escrita e a leitura são sempre situadas em práticas sociais específicas e influenciadas pelos contextos político, histórico, cultural e socioeconômico em que se concretizam. Além disso, diferentemente de abordagens que concebem o letramento como um conjunto de habilidades individuais, neutras e genéricas, assim como criticou Street (1995) ao formular o conceito de letramento autônomo, os pressupostos dos novos estudos do letramento – com base nos resultados obtidos por meio dos estudos realizados – passam a considerar a natureza do letramento como prática social específica, ou seja, dependente da esfera discursiva em que a língua está inscrita. Nesse sentido, compreender o letramento a partir da perspectiva dos NLS é reconhecer sua pluralidade e seu vínculo com os atores e seus papéis sociais, com espaço-tempo, com a cultura e com tudo aquilo que é inerente a uma determinada esfera discursiva, incluindo os aspectos político-ideológicos.

Com base nos pressupostos de que assumimos variados papéis e participamos de diversas práticas de letramento, surge, então, a noção de múltiplos letramentos. A esse respeito, Fiad (2011) destaca que:

[...] as práticas de letramento, como práticas sociais que são, têm caráter situado, ou seja, têm significados específicos em diferentes instituições e grupos sociais. Desse modo, assumindo que as práticas de uso da escrita são diferentes, é possível assumir que existem múltiplos letramentos, a depender das esferas e grupos sociais: escolar, religioso, familiar etc. (FIAD, 2011, p. 361-362).

Isso significa que, em cada esfera social por onde circulamos, precisamos vivenciar um letramento específico, tendo em vista seu caráter situado e, por isso mesmo, histórico. Daí a utilização do termo no plural: letramentos. Nota-se que considerar os letramentos como práticas sociais – proposta dos NLS – implica associá-los à perspectiva dos gêneros discursivos, uma vez que eles se constituem como formas concretas, mais ou menos estáveis, dos usos da língua.

Nesse sentido, evidenciam-se os gêneros discursivos que, segundo Bakhtin (2016), correspondem aos diversos textos (orais e escritos) que circulam na sociedade, por meio dos quais os falantes interagem – e aí está seu caráter discursivo. Interagimos mediante uso da linguagem materializada em enunciados, os quais se concretizam em gêneros discursivos, reconhecidos por meio do conteúdo temático (assunto, a mensagem transmitida), do plano composicional (estrutura formal dos textos pertencentes ao gênero) e do estilo (leva em conta as questões individuais de seleção e opção: vocabulário, estruturas frasais, preferências gramaticais). Assim, na perspectiva bakhtiniana, o domínio de um gênero é um comportamento socialmente construído. Bakhtin (2016) assinala que:

A riqueza e a diversidade dos gêneros do discurso são infinitas porque são inesgotáveis as possibilidades da multifacetada atividade humana e porque em cada campo dessa atividade vem sendo elaborado todo um repertório de gêneros do discurso, que cresce e diferencia à medida que tal campo se desenvolve e ganha complexidade. (BAKHTIN, 2016, p. 12 [2010, p. 60]).

Dessa forma, cada esfera discursiva (re)elabora e/ou seleciona, numa relação bidirecional, os gêneros discursivos que serão utilizados como meio ou forma de interação entre seus pares. Por essa razão, pode-se dizer que os gêneros discursivos organizam as ações de linguagem, uma vez que validam as atividades de comunicação das esferas discursivas. Isso significa que existe uma imbricação entre as esferas discursivas e os gêneros discursivos, como se esses costurassem as relações humanas naquelas, como espaço-tempo de produção de enunciados situados.

Considerando essas postulações, três aspectos merecem destaque no tocante aos estudos do letramento e dos gêneros discursivos. O primeiro é que os letramentos se relacionam à ideia de que a escrita, a leitura e a oralidade são sempre situadas em práticas sociais específicas, produzidas e concretizadas em um tempo-espaço político, cultural e socioeconômico. O segundo é que os gêneros discursivos não são isentos de índices sociais de valor, pois à palavra dirige-se sempre uma contrapalavra, por meio da qual os sujeitos enunciam suas apreciações valorativas sobre si, sobre o outro e sobre o mundo. O terceiro é que um letramento específico é sempre um letramento em algum gênero discursivo, visto que “podemos ser letrados em um gênero de relato de pesquisa ou em um gênero apresentação de negócios” (LEMKE, 2010, p. 457). Daí a natureza ininterrupta e situada dos letramentos.

Nessa direção, apresentam-se os estudos dos letramentos acadêmicos que visam a compreender questões sociais e textuais da esfera universitária, em outras palavras, apreender, como salienta Fischer (2007, p. 45), ancorada no conceito de discurso de Gee (1999): “as formas de ser, ouvir, escrever, ler, agir, interagir, acreditar, valorizar, sentir, usar recursos, ferramentas, tecnologias capazes de ativar identidades relevantes” específicas dessa esfera (FISCHER, 2007, p. 45).

Lea e Street (1998) desenvolvem três modelos não excludentes de uso da escrita nas práticas sociais da esfera acadêmica: a) o modelo de estudos de habilidades, que se refere ao desenvolvimento de habilidades mais genéricas de uso da escrita, as quais podem ser aplicadas/ transferíveis a outras esferas; b) o modelo de socialização acadêmica, que se reporta ao trabalho realizado pela comunidade discursiva, como os professores universitários, no processo de integração dos estudantes às práticas acadêmicas; e c) o modelo dos letramentos acadêmicos, que confere à esfera de uso da escrita um papel fundamental, já que cada área do conhecimento, considerando o espaço-tempo e os sujeitos históricos e ideológicos nela implicados, produz seus usos situados da escrita, atravessados por relações hierárquicas e de poder e por identidades sociais diversas. Entretanto, com relação aos letramentos acadêmicos, quando ingressa no Ensino Superior, o graduando se depara com alguns aspectos que causam e dificultam sua inclusão nessa esfera, tais como a mudança de nível de ensino (e, por isso mesmo, de esfera discursiva) e a diversidade das práticas letradas acadêmicas e, nelas, dos eventos de letramento.

Lea e Street (1998) definem o modelo de letramentos acadêmicos, em suma, para explicar as práticas escriturais produzidas na esfera acadêmica, bem como para tratar do ensino da escrita na universidade. Em linhas gerais, os dois primeiros modelos, se isolados, apresentam alguns limites. A perspectiva das habilidades enfatiza apenas os aspectos formais da escrita, tais como gramática, ortografia e pontuação, e, em consequência disso, desconsidera a função social da língua e o contexto em que emerge o processo da escrita, pressupondo que, uma vez apreendidos os aspectos formais da língua escrita, os alunos tornam-se hábeis para transitar em quaisquer práticas letradas. Já a perspectiva do modelo de socialização acadêmica focaliza a aculturação dos estudantes por meio da orientação sobre como devem falar, racionar, produzir e compreender as práticas privilegiadas na universidade e, para isso, focalizam os gêneros acadêmicos orais e escritos com ênfase à sua estrutura prototípica. É preciso pontuar que, embora os modelos de habilidades e de socialização compreendam aspectos relevantes para as práticas escriturais acadêmicas, não abrangem uma característica intrínseca à linguagem, a saber, a linguagem como prática social.

Indo mais além, o modelo dos letramentos acadêmicos compreende as práticas sociais situadas nessa esfera, considerando, para isso, situações concretas de usos da linguagem. Em outras palavras, enfatiza as questões, sobretudo, sociais da escrita, daí a necessidade de considerar as convenções que regem tais práticas. Ademais, acrescenta a necessidade de:

[...] focalizar a relação entre epistemologia e escrita não apenas na área temática geral, mas também nas exigências institucionais (por exemplo, sobre plágio, feedback), bem como em contextos mas específicos como variação por meio de exigências individuais de membros do corpo docente e até atribuições individuais de estudante. (LEA; STREET, 2014, p. 478 [2006, p. 369]).

Pesquisadores como Lea e Street (1998, 2014 [2006]), Gee (1999), Lillis (1999) e Russel (RAMOS; ESPEIORIN, 2009) vêm realizando estudos que comprovam que as dificuldades vivenciadas pelos estudantes se devem mormente ao fato de que as convenções que regem a esfera acadêmica são distintas daquelas que orientam a educação básica, dos gêneros discursivos às maneiras de agir e interagir. Além disso, segundo os autores, os graduandos deparam-se com inúmeras práticas letradas diversas daquelas que compunham outros níveis de escolarização, bem como de outros espaço-tempos pelos quais circularam antes de ingressar na academia. Isso significa que as barreiras relacionadas à leitura e à produção textual oral e escrita tendem a ser enfrentadas por qualquer sujeito que ingresse no ensino superior sem tê-lo vivenciado efetivamente.

A aprendizagem dessa nova linguagem que circula na academia é denominada por Gee (1999) como aprendizagem de novos Discursos – conceito elaborado no âmago das pesquisas do NLS. Segundo o autor, o discurso “é um kit de identidade que vem completo com instruções de como agir, falar e escrever, a fim de aceitar um papel social particular que outros reconhecerão” (GEE, 1999, p. 127). Logo, para que os estudantes se sintam insiders - este termo foi utilizado por Gee (2001) para tratar da inserção efetiva dos indivíduos nas esferas pelas quais circulam - e desenvolvem a condição letrada no discurso acadêmico, além de realizar um trabalho sistemático sobre as práticas letradas em eventos de letramento específicos, faz-se necessário, segundo o autor, esclarecer os porquês de tais práticas serem privilegiadas na referida esfera e quais são seus objetivos e significados. Ou seja, os alunos precisam conhecer e compreender as convenções que circulam e regem a academia (FIAD, 2011).

Diferente do conceito de iletrado, de acordo com os pressupostos dos NLS, os estudantes universitários são letrados; todavia, ainda não têm os conhecimentos necessários para se inserirem nas práticas do discurso acadêmico. Além disso, a maioria deles é exposta, ao longo da educação básica, a concepções de linguagem que muitas vezes são diferentes daquelas de que necessitam para interagir tanto no meio acadêmico como fora dele, uma vez que o ensino-aprendizagem da língua não tem uma relação direta com as práticas sociais.

Não diferente, muitos docentes universitários, não refletindo efetivamente sobre os usos da língua e sobre a necessidade de ensiná-los aos estudantes que estão se inserindo nesse espaço-tempo sui generes, partem do pressuposto de que eles já ingressam na universidade tendo desenvolvido o conhecimento necessário para compreender e produzir os textos que circulam na academia, instaurando, segundo Lillis (1999), o discurso de déficit.

A autora acrescenta que essa compreensão leva o docente universitário a adotar a prática do mistério, como se os alunos, muitos deles oriundos de escolas brasileiras sucateadas, pudessem descobrir por conta própria as convenções da escrita acadêmica. Em outras palavras, exige-se a produção de resumos, relatórios, resenhas e artigos científicos, para citar alguns gêneros, sem a criação de expedientes pedagógicos para que essa vivência se torne possível. A partir desse panorama, surgem os conflitos de identidade, pois “há muita diferença entre quem são e quem são solicitados a ser e a desempenhar na esfera acadêmica” (FISCHER, 2007, p. 113-114).

Após realizar uma breve incursão acerca dos estudos dos letramentos acadêmicos, percebemos a amplitude das questões que envolvem o ler-escrever, no caso em estudo, dos textos produzidos na esfera acadêmica. Essas questões envolvem dimensões de diversas ordens, tais como as relações de poder, as identidades e os papéis sociais ocupados, as convenções que regem as modalidades oral e escrita, a produção de conhecimento (STREET, 2014). Compreender os letramentos sob essa perspectiva significa reconhecer que, para cada esfera em que circula e para cada papel social que o sujeito assume ou é levado a assumir, é fundamental o desenvolvimento de letramentos situados.

Caminhos metodológicos

A presente pesquisa, de natureza qualitativa-interpretativista, ancorada nos Estudos dos Letramentos e na Teoria da Enunciação, objetiva analisar as apreciações valorativas de estudantes acerca do ensino da leitura e da escrita dos gêneros discursivos acadêmicos no âmbito do curso de pós-graduação (mestrado). Aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da instituição de origem, este estudo envolve oito estudantes4, graduadas em Jornalismo e atuantes nessa mesma área, cursistas do terceiro semestre letivo de um mestrado em Comunicação e Sociedade de uma universidade pública brasileira. As estudantes receberam nomes fictícios a fim de manter seu anonimato.

Para a seleção dos sujeitos da pesquisa, que assinaram um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, consideramos o fato de, em geral, no início do segundo ano do mestrado, os estudantes já terem cursado grande parte das disciplinas e iniciado a escrita de suas pesquisas. O corpus desta análise compreende, relatos produzidos por essas pós-graduandas, gerados em entrevistas coletivas (KAUFMANN, 2013), que foram realizadas com base em um roteiro semiestruturado. Tais entrevistas foram gravadas em áudio e, posteriormente, transcritas.

A fim de analisar as apreciações valorativas (BAKHTIN, 2010) acerca das questões de estudo aqui elaboradas, como dispositivo enunciativo, lançamos mão de entrevistas coletivas, as quais foram realizadas no primeiro semestre de 2019. Pontuamos que os enunciados das mestrandas foram analisados com a Teoria da Enunciação, que considera que “[...] a situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir de seu próprio interior, a estrutura da enunciação” (BAKHTIN, 2010, p. 113). Para o linguista, a esfera discursiva constitui forma à enunciação, como unidade concreta da cadeia da comunicação verbal/extraverbal.

Escrever sobre escrita exige escrever sobre leitura, as duas companheiras inseparáveis da vida acadêmica, como pontuam Rodrigues e Rangel (2018), ao cunharem a palavra-processo ler-escrever. Tendo em vista a importância da leitura para quem deseja e precisa produzir textos acadêmicos, a primeira parte da entrevista contemplou questões relacionadas à leitura, enquanto a segunda, à escrita.

Resultados e discussão

Antes de iniciarmos as análises dos dados gerados, abrimos um parêntese para discorrer brevemente a respeito das experiências que as alunas tiveram em relação aos usos da linguagem quando na graduação, a fim de conhecer suas histórias de letramento acadêmico. O modelo dos letramentos acadêmicos, defendido neste estudo, problematiza que as histórias de letramento dos estudantes devem ser valorizadas e utilizadas como subsídios para a elaboração do desenvolvimento de programas de letramento, considerando, como assevera Street (2014, p. 31), que “pessoas não são ‘tábuas rasas’ à espera da marca inaugural do letramento”. Como sujeitos históricos e ideológicos inseridos em sociedades que têm na escrita centralidade, os estudantes de graduação já chegam à universidade com um acúmulo de experiências com a escrita e de saberes sobre a escrita, os quais precisam ser considerados para a integração às práticas sociais acadêmicas.

No cenário da pesquisa, as personagens são mestrandas que passaram pelo ensino de graduação em Jornalismo. Como estudantes do ensino superior, segundo elas, leram bastante principalmente cópia de livros e de artigos, que foram objetos de aulas de discussão de textos em que o professor falava mais que o aluno. Prepararam seminários, ou seja, dividiram com dois ou três colegas a tarefa de apresentar oralmente um tema para a plateia composta pelo professor e os colegas de turma. Escreveram alguns trabalhos, que consistiram em compilações apressadas de leituras, cujo único destinatário era o professor da disciplina. Depois de entregar os trabalhos, receberam suas notas (foi assim alcançada a finalidade maior da tarefa), geralmente desacompanhadas de comentários. Esses procedimentos vão ao encontro do que fora apontado por Rodrigues e Rangel (2018) ao pesquisarem uma turma do curso de licenciatura em Pedagogia de uma universidade federal.

Chegando ao mestrado, tendo participado de práticas de leitura e escrita dessa natureza, as mestrandas têm diante de si a tarefa de escrever e compreender os inúmeros gêneros discursivos acadêmicos. Cabe, então, questionar como estudantes do curso de mestrado vivenciam as práticas cotidianas de leitura e escrita no que concerne ao ensino e a incidência dos gêneros discursivos acadêmicos. É o questionamento a que buscamos responder nesta pesquisa por meio do diálogo com essas mestrandas.

Em um primeiro momento, buscamos identificar que gêneros discursivos incidiram no curso de mestrado em relação à leitura e à escrita. Para isso, lançamos a seguinte questão: até aqui, que textos/gêneros discursivos vocês mais leram e escreveram? Em relação à leitura, as participantes afirmaram o predomínio de gêneros de natureza científica, tais como artigo científico, dissertação, tese, livro e resumo expandido. Em seguida, quando questionamos a recorrência dos gêneros discursivos solicitados para fins de escrita, as mestrandas enunciaram:

Joana: Apresentação de slide, seminário, artigo científico, projeto, dissertação.

Maria: Artigo científico, seminário, fichamento, resumo expandido.

Alice: Artigo, projeto de pesquisa, seminário.

Mariane: Resenha, artigos e seminário.

Aline: Artigo científico, seminário, projeto de pesquisa.

Rafaela: Seminário, produção de artigo.

Elis: Artigo, fichamento, seminário.

Lúcia: Seminário por meio de slides (conduzidos a ilustrar itens), artigos científicos e projeto de pesquisa.

Além de apontarem os gêneros discursivos solicitados para fins de produção, as mestrandas, em tonalidades dialógicas que manifestavam insatisfação, relatavam, no coletivo, a dificuldade de determinar e diferenciar os gêneros discursivos e o fato de os professores, em geral, solicitarem a produção de redação, conforme evidenciam esses enunciados.

Mariane: Na verdade, até hoje não sei bem diferenciar resumo de resenha, resumo de resumo expandido, projeto de relatório de pesquisa. Fico perdida.

Elis: A gente acaba não sabendo o que é o que, porque os professores, em geral, pedem redação. E quando pedem um texto específico, cada professor pede a resenha de uma forma também.

Rafaela: Eu acho que nem eles sabem, porque cada um pede de um jeito.

Como aponta Bakhtin (2010), tudo que é expresso ou possível de ser expresso tem um valor ideológico. Esses excertos sinalizam apreciações valorativas de desagrado por conta do desconhecimento das características dos gêneros discursivos não apenas por parte das alunas, mas também por parte dos próprios docentes, os quais, nas palavras da mestranda Aline, solicitam a produção desses textos “ora de uma forma, ora de outra”. Com efeito, sublinha Alice, “Fico perdida”, sugerindo uma crítica ao fazer pedagógico docente que, na visão dela, acaba potencializando a imprecisão das características dos gêneros discursivos acadêmicos solicitados.

Ao analisar a incidência dos gêneros discursivos, notamos que, no que concerne à escrita, focalizam-se os gêneros de caráter científico-acadêmico, tais como artigo científico e projeto de pesquisa. Esses dados sugerem que, diferente do cenário da graduação, em que, em geral, predomina a escrita dos gêneros resumo e resenha (RODRIGUES; RANGEL, 2018; MELLO, 2017; STEPHANI; ALVES, 2017), no mestrado, prepondera o gênero discursivo artigo científico.

A princípio, como base nesses dados, foi possível inferir que esse cenário seria reflexo da comunidade discursiva acadêmica e, claro, uma exigência da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) de que os mestrandos e doutorandos publiquem artigos científicos. Ademais, nos cursos de pós-graduação, os estudantes aprofundam e alguns até iniciam, de fato, seu ofício de pesquisador. De certa forma, isso tem levado os professores da pós-graduação a solicitarem aos alunos a escrita de artigos como trabalhos finais das disciplinas ministradas. Tal tarefa é geralmente temida pelos mestrandos e os textos por eles produzidos raramente publicados, como veremos posteriormente.

Entretanto, quando questionamos com que intencionalidades os gêneros acadêmicos solicitados eram produzidos, nossa hipótese foi descartada. No primeiro momento, a resposta foi unânime: a avaliação.

Mariane: Para avaliação.

Aline: É a forma de avaliação final da disciplina.

Rafaela: Para fins de avaliação.

Joana: Avaliação, apenas um artigo foi pedido para publicação, mas acho que ninguém chegou a publicar.

Posteriormente, nas interações, as mestrandas, aos poucos, conseguiram associar os objetivos aos gêneros específicos. Segundo elas, os gêneros solicitados para fins de avaliação e raramente publicação – pontuou uma das mestrandas sempre em tonalidades dialógicas de descontentamento - são o artigo científico e o resumo expandido; já para fins exclusivamente de avaliação, o seminário e o fichamento, este produzido também para facilitar a compreensão dos artigos científicos. Isso significa que há momentos em que os textos são solicitados ora para verificação de aprendizagem, ora, com menor incidência, para a socialização do conhecimento.

Maria: O artigo científico era pedido para publicação, pontuação, avaliação; o seminário para nos avaliar; o fichamento para facilitar as leituras para a dissertação; já o resumo expandido era também para avaliação e, às vezes, publicação.

Alice: O artigo é o instrumento de avaliação da disciplina; o projeto de pesquisa eles pedem para elaboração do esboço do capítulo do projeto de pesquisa e avaliação da disciplina; e o seminário serve para nos ajudar a compreender o texto e avaliação da disciplina. A gente não tem o hábito de publicar, não.

Elis: O artigo: produto da disciplina; fichamento: auxílio para as leituras; seminário: apresentação trabalhos para avaliação. Eu nunca publiquei nada.

Lúcia: Entendo que o objetivo dos seminários é a compreensão da estrutura e como cada autor adota metodologias e como aplicam. A identificação dos elementos do artigo ou da dissertação como problema, objetivos, método e resultados. Os artigos têm objetivo o aprendizado e de tornar às vezes capítulo da dissertação.

Tendo em vista os enunciados produzidos, é possível afirmar que, ainda que as mestrandas consigam estabelecer os objetivos dos gêneros específicos, a produção textual, em geral, resume-se a instrumento avaliativo, segundo suas apreciações valorativas. Essa informação encontra eco em Rodrigues e Rangel (2018) quando afirmam, baseadas em um estudo realizado com objetivo de analisar os obstáculos enfrentados pelos estudantes quanto à aprendizagem da escrita acadêmica, no âmbito da graduação em Pedagogia, que os textos solicitados eram produzidos apenas como requisito para o cumprimento das tarefas propostas nas disciplinas.

Os encaminhamentos pedagógicos citados pelas estudantes (re)afirmam os pressupostos internalizados (enraizados) pelos docentes acerca do ensino da escrita, e que guiam suas práticas em sala de aula há anos. Essa questão está na base da distinção feita por Street (2014) entre letramento autônomo, um conjunto de habilidades individuais, neutras e independentes do contexto, e a noção de letramentos (no plural), ou letramento ideológico, concebido como uma construção coletiva resultante da participação em práticas sociais. Sob este prisma, concordamos com Figueiredo e Bonini (2006, p. 418):

Os fenômenos linguísticos são sociais na medida em que, sempre que alguém fala ou ouve ou escreve ou lê, essas ações são feitas de formas socialmente condicionadas, e provocam efeitos sociais. Por outro lado, os fenômenos sociais são linguísticos na medida em que as atividades linguísticas que ocorrem em contextos sociais não são um mero reflexo ou expressão de processos e práticas sociais, na verdade elas são parte desses processos e práticas. Os analistas críticos do discurso acreditam que práticas sociais e práticas discursivas se apoiam mutuamente [...] a linguagem é tanto fonte quanto receptora de processos discursivos, sociais e ideológicos mais amplos. Devido a esta inter-relação entre discurso e sociedade, as instituições sociais dependem profundamente da linguagem. (FIGUEIREDO; BONINI, 2006, p. 418).

Tal afirmação leva a considerar que o ensino-aprendizagem de qualquer gênero discursivo precisa levar em conta o uso efetivo da língua, ou seja, em que situação mediata e imediata, por que e para que os textos são produzidos, que papéis os interlocutores assumem quando leem e/ou escrevem determinados gênero, quais os aspectos sociais e linguísticos desses textos (BAKHTIN, 2011). Assim, solicitar uma produção textual sem considerar a socialização dos textos produzidos “implica desconhecê-los como prática social” (FIGUEIREDO; BONINI, 2006, p. 418).

Indo mais adiante, Bakhtin (2011) destaca que o sujeito desenvolve a competência linguística quando vivencia as situações comunicativas e experimenta os diversos gêneros discursivos. Acrescenta, ainda, que são essas experiências de uso da língua(gem) que o torna mais experiente para identificar, diferenciar, compreender o sentido e a estrutura dos textos. No entanto, é comum encontrarmos pesquisas realizadas tanto na educação básica como nos cursos de graduação que constatam que a único objetivo da produção textual, quando solicitada, é a verificação da aprendizagem.

Infelizmente, por meio das vozes das estudantes produzidas em tom de insatisfação, percebemos que essa prática se repete em alguns cursos de mestrados. É preciso ratificar que esse dado vai de encontro a todos os pressupostos teóricos que compreendem a linguagem como prática social, propondo que os estudantes vivenciem a linguagem em sua totalidade, ou seja, participantes, ambientes, artefatos e atividades (HAMILTON, 2000), para que possam desenvolver consciência do funcionamento da prática de linguagem situada, neste caso, na esfera acadêmica.

Posteriormente, em diálogos com as mestrandas, perguntamos se existe alguma disciplina que vise a auxiliá-las a compreender e produzir textos. Em vozes produzidas coletivamente, em tonalidades dialógicas que expressavam descontentamento e angústia, as mestrandas discursaram:

Aline: Não existe. Inclusive os professores acham ruim, dizendo que queremos a receita do bolo, como se a gente já devesse saber.

Joana: Essas perguntas sobre ensino são fantasiosas. Nem na graduação eu tive.

Alice: Não existe algo voltado para o ensino da escrita científica.

Além de identificar que não há disciplina ou qualquer outra ação pedagógica voltada para o ensino da produção de gêneros acadêmicos no currículo do curso, como ocorre na maioria dos programas de pós-graduação, tais apreciações valorativas traduzem a ideia de que os docentes não se sentem responsáveis em orientar as estudantes na tarefa de produzir e compreender os textos por eles solicitados. Por essa razão, no discurso das participantes em interação, é possível perceber desagrado em razão da ausência de expedientes pedagógicos que as auxiliem na inserção do discurso acadêmico e, ao mesmo tempo, o desejo de encontrarem subsídios para a escrita de seus textos.

O posicionamento dos professores não é diferente do que aponta Andrade (2004, p. 1), para quem os professores universitários “abstêm-se de produzir uma racionalidade clara e tornar esta prática uma conduta regulada de forma explícita”. Do ponto de vista das pesquisadoras, se tais práticas letradas fossem explicitadas, alunos e professores teriam legitimados seus lugares específicos diante da escrita e da leitura. No entanto, é possível afirmar que, em geral, tanto na graduação como na pós-graduação, os docentes se desobrigam dessa tarefa, lançando mão do discurso enunciado/replicado por Alice: “vocês vão aprender fazendo”.

Dando sequência à entrevista, questionamos se no âmago das disciplinas os professores adotaram expedientes pedagógicos que, na visão delas, auxiliavam-nas no processo de produção e compreensão textual. No que se refere à leitura dos textos, as mestrandas apontaram, em tonalidade de satisfação, que, em geral, há orientação para a compreensão dos textos analisados. Como encaminhamentos significativos, apontaram a leitura coletiva realizada por meio de rodas, constituindo na análise e na discussão dos textos estudados, e a atividade de identificar aspectos previamente determinados pelos professores, como leitura orientada.

Além disso, uma estudante afirmou – neste momento, com expressão extraverbal sinalizando conforto:

Mariana: Na nossa turma, tiveram professores que liam o texto junto com a turma, cada um lia um pedaço e depois um cada dava sua opinião sobre o que entendeu. Isso facilitava muito. Aí se não fosse bem aquilo, ela (professora) fazia os apontamentos, tentando esclarecer sobre o que estava sendo discutido. Isso assim, foram umas três disciplinas dessa forma. Isso ajudava bastante.

A eficácia da leitura coletiva por meio de rodas de leitura também foi identificada por Mello (2017). Na referida pesquisa, cujo objetivo era analisar as ações que promovem o letramento acadêmico em uma universidade pública, especificamente nas aulas em que eram utilizados textos de caráter científico, uma das professoras adotou a mesma estratégia apontada pelas mestrandas como relevante: a leitura coletiva por meio de rodas. Na ocasião, foi possível perceber a relevância da estratégia adotada pela professora para trabalhar a leitura acadêmica, e que o simples fato de as carteiras estarem dispostas em círculo era uma maneira de dar espaço aos discentes e fazer com que eles compreendessem que os seus posicionamentos também eram legítimos. Verificou-se, ainda, segundo a pesquisadora, que os discentes compreenderam que o sentido dos textos era construído a partir de diálogos estabelecidos entre o leitor, a informação e o autor, sujeitos do discurso.

Seria desejável, então, que nós professores desenvolvêssemos uma consciência de nosso papel de produtores de leitura: mudam os leitores, mudam os suportes de textos, mas a leitura para fins de estudo continua a ser um exercício intelectual complexo, passível de ser ensinado. De modo geral, a leitura é conduzida na escola como se todos os alunos, por terem sido alfabetizados, fossem capazes de abordar diferentes estruturas textuais e compreender textos complexos. Percebe-se, pelas vozes das mestrandas, que, com o auxílio das docentes por meio de leitura coletiva e atividades de compreensão direcionadas, a leitura aconteceu de forma fluida, num movimento de (co)construção dos sentidos. Assim, os obstáculos relacionados às práticas de leitura foram minimizados por conta das estratégias adotadas pelos docentes e que, em decorrência desse quadro, as apreciações valorativas, enunciadas pelas mestrandas em tonalidades de conforto e segurança, expressavam satisfação, indicando que há orientação para a leitura dos textos acadêmicos.

Em contrapartida, as atividades de escrita não se configuraram da mesma maneira. As mestrandas afirmaram que a produção textual é solicitada desacompanhada de qualquer tipo de orientação, seja relacionada ao conteúdo, à estrutura, e, principalmente, ao gênero em que a “redação” devesse se materializar. Afirmaram, ainda, que, em raras situações, foram proporcionadas orientações para a escrita.

Mariana: Eles não ensinam como podemos fazer para produzir o texto solicitado. Isso me deixa angustiada. Sem saber o que fazer.

Joana: Na verdade, eles pedem que a gente escreva uma redação.

Alice: Agora que você está falando sobre essa questão de gênero, que percebe que eles queriam que a gente escrevesse uma resenha.”

Como afirma Bakhtin (2011), todo enunciado é produzido para alguém com intenções pré-definidas. Os enunciados produzidos pelas participantes, no intuito de expressar suas impressões sobre as práticas escriturais dos textos, reforçam e sinalizam dois pontos que merecem destaque: a) a confusão e o desconhecimento da natureza dos gêneros discursivos, já pontuados em outro momento; b) o descontentamento relacionado à ausência de expedientes pedagógicos para a escrita de textos acadêmicos. Esses fios ideológicos apontam a desorientação para escrita dessa esfera discursiva.

Tendo por referência as apreciações valorativas das mestrandas, pode-se inferir que as docentes não discorrem sobre as características dos textos solicitados, deixando implícitas informações essenciais para a produção de qualquer texto, tais como a de que gênero deve ser escrito, em que situação e suporte ele será socializado e qual o objetivo da proposta. Quando os professores propõem tarefas que não proporcionam aos alunos a possibilidade de planejar seus textos, de textualizá-los em função de leitores e objetivos determinados e de revisá-los, pouco contribuem para o (re)conhecimento dos gêneros discursivos acadêmicos. Em síntese, assevera Kersch (2014, p. 62), “falta dar a quem produz textos – alunos e professores – as orientações adequadas e completas”.

Levando em conta o exposto, pode-se afirmar, como aponta Street (2010), que há dimensões que permanecem escondidas no processo de ensino-aprendizagem da leitura e da escrita. Nessa mesma vertente, Rodrigues e Rangel (2018, p. 36) afirmam que há uma “desorientação desses sujeitos que parecem não compreender o que o professor universitário lhes solicita”.

Enquanto dialogávamos acerca das especificidades dos gêneros discursivos acadêmicos, Joana pediu licença para dizer que havia se lembrado de uma ação desenvolvida pelo professor de metodologia que, de certa forma, a auxiliou na produção da pesquisa.

Joana: Acabo de lembrar de uma coisa, não se trata de instrução para a escrita propriamente dita, não, porém o professor apresentou um modelo de pesquisa que coincidia ou aproximava do meu projeto de pesquisa.

Mariana: Verdade. Ele não ensinou as características dos textos antes de solicitar, mas apresentou um modelo.

Aline: Mas ele só mostrou o modelo, sem aprofundamento, mas ajudou mesmo.

Joana: Mas teve outra disciplina também que o professor solicitou apresentação de artigo e deu o exemplo, fazendo o primeiro.

Rafaela: Em poucas situações ocorreram orientação e encaminhamentos, mas teve professor que apresentou modelo para gente seguir. Isso ajudou bastante, sim.

Esse dado não é diferente do que aponta Mello (2018) em um relato de experiência produzido acerca do ensino do gênero resumo científico. Na ocasião, a pesquisadora apresentou vários resumos publicados em uma revista Qualis A1 aos estudantes, sujeitos da pesquisa, e discutiu/analisou algumas questões intrínsecas ao referido gênero, tais como a finalidade, a organização retórica e a variedade linguística. Posteriormente, os resumos científicos produzidos nessa experiência foram socializados em um evento acadêmico.

Os participantes entenderam que a estratégia utilizada, a leitura e a análise de textos do mesmo gênero, serviu de base para a escrita, assim como ocorreu com as mestrandas neste estudo, ainda que tal apresentação tenha acontecido desvinculada de uma análise mais aprofundada das características do gênero discursivo e, sobretudo, desvinculada das práticas, dos usos sociais dos quais essas alunas participam.

Embora não houvesse uma explanação acerca das características das produções textuais solicitadas, as estudantes disseram que os professores sempre ofereciam retorno de seus textos. A esse respeito, recuperamos a discussão de Mendonça e Johnson (1994):

A interação entre os pares que é proporcionada pelas atividades de feedback permite que os alunos, ao se engajarem em uma conversa exploratória, construam o significado dentro do contexto da interação social enquanto testam e trabalham novas ideias, conjugando, assim, os aspectos cognitivos e sociais da linguagem. (MENDONÇA; JOHNSON 1994 apudSOARES, 2008, p. 83).

Em outras palavras, as atividades de reflexão conjunta acerca dos textos são extremamente relevantes para o desenvolvimento da linguagem acadêmica. Entretanto, já que os docentes não explicitavam em que gênero a produção textual deveria se materializar, questionamos em que consistiam esses retornos: temática? conteúdo? forma? Segundo as mestrandas, a correção se restringia à interpretação dos conceitos abordados nos textos, ou seja, à compreensão dos conteúdos. Afirmaram, ainda, que esses retornos “até nos ajudam a entender um ou outro conceito, mas não na produção do texto”, enunciou Lúcia, em expressões que ratificam os dados analisados anteriormente: há orientação para a compreensão dos textos e desorientação para a escrita dos textos solicitados.

Diante dessas análises e com base em nossas experiências, destacamos que, em geral, os docentes apresentam dificuldades em orientar graduandos e pós-graduandos na escrita de gêneros discursivos acadêmicos, conformando práticas que não contribuem com o desenvolvimento da competência comunicativa adequada para a vivência autônoma e autoral na academia.

Em decorrência dessa visão, é possível perceber um grau de descompromisso ou incompreensão acerca da necessidade de ensinar a escrita de textos acadêmicos, tendo em vista que em suas práticas pedagógicas, comumente, docentes universitários: (a) não explicitam a finalidade das atividades de produção textual escrita, (b) não aprensentam informaçoes claras no que diz respeito à proposta de produção textual e (c) tomam o texto produzido como objeto de avaliação.

Comentários finais

Cientes dos limites e das possibilidades que esta investigação nos apresenta e inteirados de que, como nos diz Becker (2015, p. 76), “concluir não é terminar”, pontuamos aqui algumas considerações que o diálogo com as mestrandas nos permitiu produzir.

Assim, considerando as apreciações valorativas enunciadas coletivamente pelas estudantes de pós-graduação stricto sensu, é possível destacar alguns aspectos.

  1. As mestrandas expressam insatisfação e descontentamento em razão da ausência de disciplinas específicas ou de outras ações que visem a auxiliá-las, sobretudo, a produzir os gêneros discursivos que circulam na esfera acadêmica;

  2. As mestrandas reconhecem que no âmago das disciplinas são praticados expedientes pedagógicos que subsidiam a compreensão dos textos analisados. Como exemplo, citam: (1) a leitura em rodas coletivas, por meio das quais as estudantes expressam suas impressões, realizam conexões com conhecimentos desenvolvidos em outras áreas do conhecimento etc., e (2) as atividades direcionadas para a leitura do texto. Tais expedientes levam-nas a tecer enunciados que expressam satisfação e contentamento no que concerne às estratégias utilizadas pelos docentes; e

  3. Em contrapartida, decorrente da configuração das atividades de escrita que, comumente, resumem-se a instrumentos avaliativos, solicitadas sem qualquer reflexão acerca dos usos linguístico-discursivos dos gêneros, as mestrandas tecem apreciações valorativas que indicam desorientação e insatisfação em relação ao fazer pedagógico docente.

Fica evidente a proposição de uma revisão sobre as práticas de ensino com a língua(gem) na graduação e na pós-graduação. Emerge nesse cenário a indagação: no contexto de educação sistematizada, há possibilidades para exercícios de simulação de compreensão e produção de gêneros acadêmicos, ou é necessário ler e produzir tão somente com fins sociais, com o endereçamento definido? Essa discussão é necessária diante do descontentamento apresentado pelas entrevistadas com relação às práticas com os gêneros acadêmicos. Esse aspecto, por outro lado, pressupõe a revisão do currículo e das práticas pedagógicas na academia.

O desenvolvimento de letramentos acadêmicos implica, como afirmado no decorrer deste estudo, a iniciação a novos modos discursivos e a novas formas de compreender, interpretar e organizar o conhecimento (LEA; STREET, 1998). Quando ingressam nos cursos de mestrado, os estudantes, em geral, já tiveram contato com alguns gêneros discursivos acadêmicos, todavia, nem sempre suas experiências aconteceram de forma efetiva, sistemática e exitosa, justamente pela prática do mistério (LILLIS, 1999), a ausência do ensino sistematizado dos gêneros discursivos acadêmicos.

Por isso, neste estudo, defendemos que, consideradas as especificidades das práticas discursivas da esfera universitária, faz-se necessário promover o letramento acadêmico como meio de inclusão dos mestrandos, quiçá doutorandos, nessa esfera discursiva inerente a uma determinada área do conhecimento, vislumbrando o letramento como instrumento de poder, seu impacto na vida das pessoas e seu potencial de empoderamento (JAMES, 1990, p. 16 apudAUERBACH, 2005), além de sua estreita relação com a produção científica brasileira. Para isso, é de suma importância considerar as demandas valorativas expressas pelas entrevistadas, por meio de disciplinas, oficinas, palestras e minicursos que visem ao desenvolvimento do letramento acadêmico.

A partir do exposto, espera-se que a pesquisa realizada aponte alguns caminhos para construir alternativas para um problema que grassa nas universidades, a saber, a leitura e a escrita de gêneros discursivos acadêmicos e a concomitante inclusão nas práticas letradas desse universo, o qual precisa, por princípio, ser um espaço democrático.

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3 - Com base nos estudos do Círculo de Bakhtin, entendemos apreciações valorativas como índices sociais de valor inerentes a toda e qualquer palavra. Para Bakhtin (2010), todo conteúdo produzido na palavra é acompanhado de um acento apreciativo. Na composição do enunciado, os signos (palavras) não são neutros, mas sim objetos de disputas ideológicas que refletem e refratam a realidade material.

4 - No dia em que foi aplicado o instrumento, havia na sala de aula oito estudantes do curso de Mestrado em Comunicação e Sociedade e três estudantes do curso de Mestrado em Modelagem Computacional. Para fins de análise, foram excluídos os discentes desse mestrado, considerando o papel situado e característico da linguagem em cada esfera específica (BAKHTIN, 2011).

Recebido: 12 de Fevereiro de 2020; Revisado: 12 de Maio de 2020; Aceito: 02 de Junho de 2020

Marcela Tavares de Mello é mestre e doutora em educação pela Universidade Católica de Petrópolis (2014, 2018), tendo feito estágio pós-doutoral em 2019 pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É professora da Faculdade Santo Antônio de Pádua (FASAP) e professora substituta da UFF, Pádua, RJ. Pesquisadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Leitura e Escrita Acadêmica (GEPLEA/UFF).

Jéssica do Nascimento Rodrigues é mestre (2010) pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e doutora em educação pela UFF (2014), onde também fez estágio pós-doutoral (2017). É professora adjunta da Faculdade de Educação da UFF, Niterói, RJ. Líder do Grupo de Estudos e Pesquisa em Leitura e Escrita Acadêmica (GEPLEA/UFF).

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