SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.47Tempo de trabalho e de ensino: composição da jornada de trabalho dos professores paulistasA docência entre o ideal republicano e as violências do cotidiano índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.47  São Paulo  2021  Epub 26-Nov-2021

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202147236053 

Artigos

Educação na aldeia e escola indígena de Muã Mimatxi: o tehêy de pescaria de conhecimento

Werymehe Alves Braz1 
http://orcid.org/0000-0003-4142-0880

Juarez Melgaço Valadares2 
http://orcid.org/0000-0001-8950-1490

1- Escola Estadual Indígena Pataxó Muã Mimatxi, Itapecerica, MG, Brasil. Contato: werymehepataxoop@gmail.com

2- Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil. Contato: juarezm@ufmg.br


Resumo

Atualmente, no que se refere à educação indígena, as legislações no Brasil trazem, em seus textos, tanto a necessária construção de uma escola diferenciada nas aldeias quanto a inclusão da temática indígena em escolas urbanas. Neste trabalho buscamos compreender a cultura do povo Pataxoop, cuja aldeia Muã Mimatxi localiza-se no município de Itapecerica, Minas Gerais. A nossa intenção é buscar elementos que auxiliaram na construção da identidade cultural desse povo, fortalecendo o sentimento de pertencimento. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, cujo objetivo é compreender o passado em suas conexões com o presente, diferenciando os tempos subjetivos da temporalidade do conjunto. Para tanto, entrevistamos o cacique e a professora da disciplina “Usos do território”, que tem construído desenhos-narrativas denominados tehêys de pescaria de conhecimento. Nos tehêys representa-se a formação do povo Pataxoop, suas cosmogonias, os mitos, as interações geracionais e as formas de resistência, além de se constituir como material didático para a escola da aldeia. Percebemos, nas duas entrevistas, uma narração espontânea, sem cortes, na qual os entrevistados desenvolveram as suas histórias com grande compromisso afetivo. Aumentamos a nossa compreensão sobre as interações entre educação, cultura e identidade desse grupo indígena, o que nos fez compreender melhor tanto a formação social do povo brasileiro quanto a importância dos mitos na construção da história da aldeia. O fato de compreender o modo de viver, de pensar, os rituais e as práticas sociais contribuiu para se pensar na seleção de temas para serem trabalhados nas escolas indígenas e urbanas.

Palavras-Chave: Cultura Pataxoop; Saberes tradicionais; Tehêys de conhecimento; Educação indígena

Abstract

Nowadays, Brazilian laws on Indigenous education highlight the need to build differentiated schools in the villages and the inclusion of Indigenous theme in urban schools. In this work, we aim to understand the culture of Pataxoop, whose village Muã Mimatxi is located in the city of Itapecerica, Minas Gerais , Brazil. We intend to seek elements that help build the cultural identity of this people, strengthening their sense of belonging. It is a qualitative research aiming to understand the past and its connection to the present, distinguishing the subjective times of the ensemble. To do so, we interviewed the cacique and the teacher of the subject ‘Uses of the Territory’ who has been creating narrative-drawing, called tehêys of knowledge fishing. In the tehêys , the formation of Pataxoop people, their cosmogonies, myths, generational interaction, and forms of resistance are represented. It is also a didactic material for the village school. We could see, in both interviews, a spontaneous narration, with no cuts, in which interviewees developed these stories with a strong affective commitment. We have increased our understanding of the interactions among education, culture, and identity of these Indigenous groups, thus better understanding the social formation of Brazilian people and the importance of myths to build the history of the village. Understanding the way of living and thinking, their rituals and social practices, helps to think about the selection of themes to be studied in Indigenous and urban schools.

Key words: Pataxoop Culture; Traditional knowledge; Tehêys of knowledge; Indigenous education

Introdução

Em comparação com as legislações anteriores, cujo texto público tinha uma visão colonialista sobre os povos indígenas, a Constituição de 1988 assumiu o direito à diferença cultural, isto é, o direito a serem índios, a terem seus territórios, e a preservarem seus saberes tradicionais, seus modos de vida e as línguas nativas. Essa mudança foi alcançada pela resistência e luta de toda a população indígena ao longo de vários anos, culminando na demarcação de terras, nas diretrizes de uma educação escolar indígena e resgate e uso da língua materna. Todos esses aspectos, discutidos pela sociedade na construção da Constituição Cidadã, também marcaram as diretrizes educacionais para as escolas indígenas. Podemos ler o artigo 2° do Decreto 6.861, de 2009, quando se refere aos objetivos da educação escolar indígena:

  1. Valorização das culturas dos povos indígenas e a afirmação e manutenção de sua diversidade étnica;

  2. Fortalecimento das práticas socioculturais e da língua materna de cada comunidade indígena;

  3. Formulação e manutenção de programas de formação de pessoal especializado, destinados à educação escolar nas comunidades indígenas;

  4. Desenvolvimento de currículos e programas específicos, neles incluindo os conteúdos culturais correspondentes às respectivas comunidades;

  5. Elaboração e publicação sistemática de material didático específico e diferenciado; e

  6. Afirmação das identidades étnicas e consideração dos projetos societários definidos de forma autônoma por cada povo indígena. ( BRASIL, 2009 ).

Desde a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional ( BRASIL, 1996 ), o sistema escolar foi reformulado de maneira a se criar uma educação escolar indígena, incorporada aos sistemas escolares públicos. Uma reivindicação dos povos indígenas era que se formassem professores indígenas para que eles lecionassem nas escolas da aldeia: escola indígena, professor indígena. Esperava-se, sobretudo, a construção de uma escola indígena diferenciada, principalmente no que se refere ao contato com a língua materna e com a cultura de cada povo, já nos anos iniciais de escolarização. Cada povo, em cada aldeia, foi costurando os impasses decorrentes do encontro entre saberes tradicionais e conhecimento científico nas escolas. Em diversas aldeias o impasse levou à distinção entre educação indígena e educação escolar indígena. Perguntamos: como podemos pensar contextos formativos nas aldeias cujo eixo possa ser a interculturalidade? Como os povos indígenas selecionam aspectos de sua cultura para desenvolver como conteúdos escolares?

Por sua vez, em direção oposta às práticas de silenciamento da cultura indígena em nossas escolas, em 2008 foi promulgada a Lei nº 11.645, que tornou obrigatório em todas as escolas de ensino fundamental e médio o estudo da história e cultura afro e indígena. Podemos ler, no parágrafo 1º do artigo 27:

O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura que caracterizam a formação da população brasileira, a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo da história da África e dos africanos, a luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da sociedade nacional, resgatando as suas contribuições nas áreas social, econômica e política, pertinentes à história do Brasil. (BRASIL, 2008).

Lembramos que, nas escolas urbanas, a cultura indígena normalmente esteve relacionada com o dia do índio, na maioria das vezes apresentando uma cultura romantizada, estereotipada e preconceituosa. Existiria, nessa concepção, indígenas de verdade e índios que não são índios , pois não protegem a natureza, não andam nus, usam celular etc. Ao tornar obrigatório o ensino da cultura indígena nas escolas urbanas, perguntamos: que cultura indígena devemos apresentar nessas escolas? Como a interculturalidade pode ser pensada a partir de um olhar diferente para a cultura do outro?

Percebemos, assim, que a compreensão dos modos de ser e viver dos diversos povos indígenas deve fazer parte tanto dos processos formativos de futuros docentes indígenas quanto da formação inicial e continuada de professores de escolas urbanas, cujas disciplinas lecionadas devem incluir a temática indígena na educação básica, conforme previsto na legislação. Nas duas situações, conhecer um pouco mais as culturas dos povos indígenas nos auxiliaria a ter uma maior proximidade com o tema e, consequentemente, maior segurança em nos posicionarmos no que se refere às tensões e impasses que mencionamos anteriormente. Rodrigo Crepalde (2017) sugere, em seu texto, a importância de se ter um programa de pesquisa que promova uma investigação sobre a inserção do conhecimento tradicional, e as práticas associadas a ele, nas escolas da educação básica. O autor acredita que tal programa pode contribuir para uma proposta de educação intercultural:

Nesse contexto, a formação de professores de ciências para o campo não pode ficar subsumida aos conhecimentos canônicos da ciência escolar sob pena de silenciar e colocar em segundo plano a cultura e as práticas sociais camponesas. Essa afirmação parece mera redundância, pois estamos tratando de novos sujeitos que chegam à universidade e, portanto, exigem, por direito, novas pedagogias. No entanto, a articulação entre a pesquisa e prática pedagógica em ensino de ciências e a área da educação do campo ainda é recente. ( CREPALDE, 2017 , p. 3).

Fazemos parte de um grupo de pesquisadores que acredita e valoriza o saber da tradição. Temos, como metas, resgatar as construções culturais e sociais que envolvem os saberes dos povos indígenas e do campo, e colocá-las, em contextos de sala de aula, como conteúdos didáticos, relacionando-as com os conhecimentos científicos ( VALADARES; SILVEIRA JÚNIOR, 2016 ; VALADARES; PERNAMBUCO, 2018 ).

Esperamos, assim, entender melhor as interações escola/aldeia/sociedade, além do impacto que a cultura local pode ter na construção de um currículo nacional, sem subestimar a dimensão política e a lógica de mercado que caminham juntas com a cultura hegemônica. Lembrando Paulo Freire (1982) , as questões colocadas na escola pela interculturalidade referem-se muito mais às interações e dimensões subjetivas que atuam na humanização dos sujeitos, processo que possibilita romper as situações-limites pela gestação do inédito-viável . Nas palavras de Fleuri (2003 , p. 31), essas invenções permitem o (re)conhecer mútuo das culturas em contato:

[…] que a educação intercultural se preocupa com as relações entre os seres humanos culturalmente diferentes uns dos outros. Não apenas na busca de apreender o caráter de várias culturas, mas sobretudo na busca de compreender os sentidos que suas ações assumem no contexto de seus respectivos padrões culturais e na disponibilidade de se deixar interpelar pelos sentidos de tais ações e pelos significados constituídos por tais contextos.

Neste trabalho, olhamos para as mudanças curriculares que têm ocorrido na comunidade indígena Pataxoop, que vive na aldeia Muã Mimatxi, localizada no município de Itapecerica, Minas Gerais. Originários do sul da Bahia, o povo Pataxoop chegou na aldeia em março de 2006, ano em que a União liberou a terra depois de grandes lutas das lideranças. Hoje o território é delimitado pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A aldeia Muã Mimatxi é constituída por doze famílias e aproximadamente cinquenta pessoas, distribuídas em um território de 97 hectares. O povo Pataxoop procura fortalecer a cultura da terra, a natureza e as tradições nas vivências do cotidiano. A língua Pataxoop pertence à família Maxakali, do tronco Macro-jê.

À medida que se fortaleciam com a posse do novo território, os indígenas Pataxoop foram se apropriando da importância da educação escolar indígena, mostrando que podem gerir, de maneira inovadora, a organização do trabalho escolar na escola da aldeia. Resultante de processos bem criativos, em nossa interpretação, temos visto nas práticas docentes metodologias diversas e inovadoras, tais como alfabetizar cantando, ensinar por meio de jogos, aulas dialogadas, além de uma vasta produção de materiais didáticos que são utilizados em sala de aula. A mudança curricular é um processo político-pedagógico, a partir de pessoas que vivem, escrevem e reescrevem o cotidiano escolar.

Nos deparamos com os tehêys de pescaria de conhecimento inseridos nesse conjunto de práticas e recursos didáticos existentes na escola indígena da aldeia. Um tehêy é, de maneira superficial, um desenho-narrativa, feito por D. Liça3 , professora que leciona a disciplina “Cultura e usos do território” na escola da aldeia. Trata-se de um desenho que conta uma história ou uma cena da aldeia, fala de seus valores, de suas relações pessoais, de seus mitos e ancestralidades. Além disso, o desenho-narrativa transmite conhecimentos e saberes da cultura indígena, tanto na escola quanto nas práticas sociais. Assim, liga o que anteriormente estava separado – educação indígena e educação escolar indígena –, além de problematizar as interações da aldeia com o mundo.

A ideia de um desenho-narrativa resgata o papel e a função da língua, tal como a concebe Gersem José dos Santos Luciano (2017) . Para o autor, a língua tem o propósito de estabelecer conexões com a natureza e com o mundo, de vital importância na relação de reciprocidade entre sociedades humanas e seres não humanos da natureza. Segundo Luciano (2017) , a aldeia está, pelo lado externo, envolta por conhecimentos globalizados, universais, hegemônicos e tecnológicos. Internamente, cada povo indígena procura resgatar as suas tradições, os seus mitos, a sua cultura e a sua língua. Começamos a entender a frase do cacique de Muã Mimatxi, Kanatyo Pataxoop: “Com o pé no chão da aldeia e com o pé no chão do mundo” (informação verbal)4 .

Os tehêys são exclusivos dessa aldeia e por isso achamos importante conhecê-los, saber o papel e a função que desempenham no cotidiano do povo Pataxoop.

Construindo teorias e metodologias

Não temos dúvidas de que o papel da educação escolar indígena é afirmar os direitos do povo indígena, valorizando a sua língua, a sua cultura e os saberes tradicionais que são passados nas práticas sociais do cotidiano. Todos esses aspectos fazem parte da (re)construção da identidade indígena. Se, por um lado, essa cultura indígena esteve subjugada por uma cultura hegemônica e eurocêntrica por quinhentos anos, por outro, as vitórias recentes na educação, na demarcação de terras, na chegada de energia elétrica nas aldeias são o resultado da luta travada pelos povos indígenas. O eixo estruturador dessa investigação se assenta na possibilidade de resgatar e conhecer os saberes tradicionais desse povo, e os modos singulares de compreender a realidade e a visão de mundo do próprio grupo indígena.

No campo específico da educação, a conquista de diretrizes que promovem a construção de uma escola indígena diferenciada trouxe novas práticas e recursos didáticos que funcionam como mediações entre, por exemplo, a educação escolar indígena e as práticas e vivências do cotidiano da aldeia. Em nosso entendimento, um desses mediadores seria o tehêy de pescaria de conhecimento.

Sobretudo, as diretrizes educacionais no Brasil trazem, por um lado, a liberdade de se construir uma educação escolar indígena diferenciada, que respeite os saberes e a tradição da cultura local e, por outro, a incorporação dos costumes e práticas indígenas no ensino regular das escolas da cidade, compreendendo esses costumes como parte da formação da sociedade brasileira. Diante dessa legislação, alguns objetivos se tornam importantes para nossa reflexão sobre os processos educacionais. Em primeiro lugar, compreender melhor as culturas dos povos indígenas e como se manifestam em diversos momentos da vida pública e em seus rituais específicos. Em segundo, como esses valores culturais estão presentes na escola, tanto em suas configurações curriculares quanto na elaboração de um roteiro utópico para as práticas cotidianas e os objetivos propostos para serem alcançados pela educação. Por fim, como interagem esses processos que ocorrem dentro da escola e na aldeia, isto é, quais elementos são intermediários nessas interações.

A autora principal deste texto é indígena, reside na aldeia, é professora da escola local e desde o início de 2020 é mestranda em Educação e Docência do Mestrado Profissional da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, além de ser uma defensora atuante de sua cultura, participando de diversos eventos relacionados aos movimentos dos povos indígenas. Assim, ela carrega consigo informações e conhecimentos importantes sobre a aldeia, a escola e a vida na comunidade. Mas não temos dúvidas de que a memória e a narrativa individual se expressam apoiadas em tempos e espaços institucionais. Podemos dizer que este texto carrega a marca da identidade e das práticas sociais vivenciadas no território, tanto de novas ações quanto de resistência histórica contra a cultura hegemônica. Os autores possuem implicações nas narrativas que foram recolhidas, uma vez que estão em jogo as suas próprias subjetividades ( CORVALÁN DE MEZZANO, 1998 ).

Este texto se apoiou em dados coletados para o trabalho de conclusão de curso (TCC) da graduação em Formação Intercultural para Educadores Indígenas, na área de Ciências da Vida e da Natureza, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais. Para construção e elaboração dos dados, ficamos durante um dia na aldeia para a escolha de dez tehêys que, em nossa leitura, tivessem relações com nossa proposta de investigação. A seguir, fotografamos os tehêys e assistimos a duas aulas nas quais a professora D. Liça fez um tehêy em conjunto com as crianças daquela turma. Seis meses depois, assistimos a uma aula coletiva, ministrada por todos os docentes e com a presença de todos os alunos, mostrando como o uso e a construção dos tehêys pelas crianças se aproximava de outras práticas e projetos escolares, como o alfabetizar cantando e os jogos pedagógicos. A aula coletiva foi conduzida pelo cacique Kanatyo.

Para conhecer a importância e o valor associado a cada tehêy , entrevistamos inicialmente D. Liça, professora da escola e autora dos tehêys . Tínhamos como meta um texto explicativo para os tehêys escolhidos. Apesar de considerarmos as entrevistas realizadas suficientes para a realização do TCC, decidimos entrevistar também o cacique da aldeia, Kanatyo Pataxoop. Ele foi convidado por possuir um amplo conhecimento guardado na memória e muitas experiências vividas. Em razão das perguntas a ele destinadas, o cacique trouxe em sua fala os processos de inovação na educação da aldeia de maneira mais ampla. Eles não ofereceram dificuldades para a disseminação de seus saberes, pois reconhecem a importância da pesquisa para os povos indígenas. A facilidade de comunicação entre as gerações durante as entrevistas não surpreendeu e as falas dos dois foram gravadas e transcritas a posteriori. Em nossa compreensão,

A história está conformada por histórias de vida singulares, que transcorrem no seio das instituições. Nelas se enlaçam acontecimentos de trabalho, questões de poder, vínculos libidinais individuais e grupais, inseridas na cultura recortada de cada organização particular, que é sustentada por mitos através de ritualizações cotidianas. Quem senão os que vivem essa história são as testemunhas principais dela? Quem senão os que a ‘fazem’ podem narrar, testemunhar, através de seus relatos orais, o que sucede nas instituições? ( CORVALÁN DE MEZZANO, 1998 , p. 37).

Compreendemos os tehêys como materiais de aprendizagem, porém usados tanto dentro quanto fora da escola, isto é, são elementos de transicionalidade ( KAËS, 2005 ), de passagem entre a escola, a realidade externa e a ancestralidade; a narrativa construída a partir das entrevistas é marcada também pela construção mítica. Assim, a história contada envolve o povo Pataxoop, mas surge também nas narrativas um mito originário chamado Yãmixoop, criador dos homens, plantas e bichos. O mito sempre conta uma história sagrada, que teve lugar no tempo da criação e transporta as representações de causalidade das vivências de cada um, bem como as representações que fornecem de seus laços com um grande número de outros sujeitos ( KAËS, 2005 ). Em concordância com esse autor, a mítica assegura as inclusões mútuas e de reciprocidade do sujeito e do grupo. Falar sobre um mito é construir uma narrativa daquilo que um ser transcendental fez e, uma vez dito, proclama-se uma verdade, um caminho inicial, a origem: “É assim porque foi dito que é assim” ( ELIADE, 1992 , p. 50). Segundo a autora,

O mito proclama a aparição de uma nova “situação” cósmica ou de um acontecimento primordial. Portanto, é sempre a narração de uma “criação”: conta-se como qualquer coisa foi efetuada, começou a ser. É por isso que o mito é solidário da ontologia: só fala das realidades, do que aconteceu realmente, do que se manifestou plenamente. ( ELIADE, 1992 , p. 50).

Conhecimentos e sentimentos de pertencimento fazem parte de cada um dos tehêys desenhados: conhecimento dos mitos que acompanham o povo Pataxoop, o uso dos saberes tradicionais e o conhecimento científico, a importância da terra e dos processos demarcatórios, a resistência contra a cultura hegemônica, enfim, é a vida expressa em desenhos-narrativas. Para este trabalho, apresentaremos um dos tehêys , intitulado A origem do povo Pataxoop . Buscamos, sobretudo, os valores e ideais que esse tehêy carrega e que definem, em nossa interpretação, identidades próprias.

Não temos dúvidas de que cada povo usa essas construções para modelar a sua ação no mundo cotidiano ( CAPIBERIBE, 2014 ). Um dos motivos para a realização deste trabalho é conhecer um pouco mais das cosmogonias e cosmologias dos povos. São conhecimentos vividos como parte essencial do cotidiano, com importância para a religiosidade, explicação de mundo e para a compreensão de parte da racionalidade do povo indígena. Isso implica a possibilidade de trabalhos integrados que possam trazer uma nova compreensão dos fenômenos naturais e sobre a preservação da natureza, além de falar a partir da cultura do outro e, ao fazer tal ação, decodificar a nossa própria cultura, tornando-a visível para o não-indígena.

Os tehêys de pescaria de conhecimento

Segundo as entrevistas, o povo Pataxoop veio de um território sadio, onde tudo acontecia de uma forma partilhada e equilibrada entre os vários tipos de seres vivos. Vieram, assim, de um tempo muito antigo e, com o conhecimento acumulado ao longo do período, aprenderam a viver dentro de um território como uma grande irmandade; antigamente, era o povo papagaio, que veio do tempo ancestral, durante o surgimento do mundo. Povo e mito são partes da história, segundo os entrevistados. É o povo que veio das águas, da mata grande e morava em um grande território que começava no Sul da Bahia, entrava no estado do Espírito Santo e vinha até Minas Gerais; era um território imenso, onde não se tinha limite para morar e caminhar. Nesse tempo, caçavam, pescavam e coletavam frutas e plantas. Era um povo que vivia caminhando nas beiras dos rios e nas montanhas, buscando os conhecimentos das matas, do rio e da terra, em ligação profunda com o Yãmixoop. Em nossa compreensão, esses são tanto os seres que personificam as forças que originaram os fenômenos e a natureza como as imagens espirituais e religiosas que guardam o mundo material. Vejamos um dos tehêys feito por D. Liça e os significados que ele possui na visão dela. Este tehêy foi denominado A construção do povo Pataxoop.

Fonte: Foto dos autores, 2018.

Figura 1 – Valor do tehêy: a construção do povo Pataxoop 

A história do povo Pataxoop se confunde, como veremos, com seu mito fundador, o Yãmixoop. Como mito, Yãmixoop nos diz como uma realidade foi criada, como ela passou a existir e instaurou a vida naquele local. Nesse sentido, D. Liça nos disse na entrevista que o tehêy conta a narrativa das origens, das relações entre dois povos diferentes, Yãtihi (homem branco) e Txihy (Pataxoop), mediadas por Yãmixoop:

Esse é um tehêy que conta a história do povo Pataxoop e de Yãtihi. É um tehêy que tem o nosso conhecimento da construção de vida. Quando Yãmixoop formou o mundo ele formou para todos, para o Yãtihi, que é o homem branco, e o Txihy, que é o Pataxoop; é um tehêy de construção de vida de cada um no seu lugar porque nós viemos de um outro lugar, viemos de uma terra para lá do céu, e tem a chegada do branco e do Pataxoop na terra e o caminho foi formado para que todos viessem para a terra. (D. Liça).

Nesse caso, Yãmixoop criou uma comunicação entre dois níveis da natureza – terra e céu – por meio da figura representada no tehêy . Nas palavras de D. Liça, tudo o que existe na natureza foi também preparado com antecedência por Yãmixoop, que veio primeiro, fez tudo na natureza:

E quando foi para vir para a terra, Yãmixoop veio primeiro. Ele fez a terra, fez tudo na natureza. Yãmixoop formou o chão de vida, mas primeiro Yãmixoop veio na terra e viu que dava pra Pataxoop e Yãtihi virem, então ele formou o chão e fez a terra, fez a mata, fez o rio, fez o mar, fez a montanha. Yãmixoop fez tudo que a gente vê na terra, e esses foram os primeiros parentes que chegaram na terra. Depois Yãmixoop sonhou que poderia mandar alguém para viver nesse chão da terra, mas Yãmixoop ficou imaginando como a gente caminhava, como vinha para a terra, e Yãmixoop via que o Pataxoop e o Yãtihi eram diferentes, cada um de um jeito. (D. Liça).

A primeira manifestação de realidade se revela no nascimento, que ocorre a partir de um ser divino que constrói tudo para se ter harmonia na continuidade da vida social. Para conseguir tal harmonia, Yãmixoop formou um caminho por onde cada povo passaria. Ele gastou muita energia, pois não foi tarefa fácil colocar povos com objetivos diferentes tão próximos, mesmo que o mar estivesse entre eles:

Então Yãmixoop pensou e formou um caminho no céu: uma grande esfera, tipo um túnel, onde teria uma força maior do universo que poderia trazer a gente. Então Yãmixoop formou esse caminho, na hora que Pataxoop e Yãtihi iam entrar no caminho. Yãmixoop conversou com eles. Primeiro Yãmixoop falou o caminho do Pataxoop: ele entra e segue, mas tem um atalho e o Yãtihi caminhava mais um pouquinho, então Pataxoop ia sair em uma terra e Yãtihi saía em outra, então Yãmixoop fez a divisão, e colocou cada um no seu quadrado, em sua terra. Yãmixoop fez a terra que hoje nós vivemos e a outra terra que é do outro lado do mar, então a divisão das terras foi o mar e lá na terra do Yãtihi ele colocou tudo que colocou aqui na nossa terra, mas aí que aconteceu a invasão dentro do nosso território de vida. (D. Liça).

Assim, olhando o tehêy , percebe-se claramente as passagens: dois grandes braços ou pernas estão, por um lado, fincados no chão, determinando um local de moradia para cada grupo. Por outro lado, a parte mais alta está nos céus, onde túneis ligam as diversas partes. Como mito, inferimos que a figura desenhada no tehêy pode representar um eixo cósmico, pois foi ao seu redor que o território se tornou habitável, transformando-se em um mundo ( ELIADE, 1992 ). Pensando na própria aldeia, nos deparamos com uma distribuição espacial a partir da rua principal. Vemos a casa do cacique, em um ponto alto e próxima à entrada da aldeia; à direita, em uma parte mais baixa, a casa dos filhos. Seguindo em frente, encontramos o local da prática de rituais, onde se localiza o fogo que nunca se apaga. A rua principal termina na floresta de árvores frondosas onde vivem os Yãmixoop, protetores da mata e do povo Pataxoop. Nesse ponto, temos o caminho das matas, onde encontramos as plantas nativas e algumas ervas. Todos esses locais são sagrados e, possivelmente, estabelecem relações com o eixo cósmico, mencionado por Mircea Eliade (1992) .

A construção da existência de Yãmixoop e a instauração de uma origem para o povo Pataxoop têm um valor existencial muito forte, gerador de identidade. Pudemos ler, nos excertos, a história da obra realizada por Yãmixoop para colocar cada povo em seu pedacinho de terra. É preciso reconhecer que, nessa visão, o Yãmixoop guiou e ordenou o mundo. Depois de ter construído toda a natureza, trouxe Pataxoop e Yãtihi para iniciarem a vida aqui. No excerto, esse é o momento em que Yãmixoop conversou com os novos habitantes, indicando o caminho adequado para chegarem aos seus pedaços de terra.

Ao se definir um mito para as origens, afirma-se a construção de uma identidade e pertencimento ao território onde vivem, pois é o lugar de fixar a raiz da cultura. Por meio de rituais retornam ao tempo ancestral, vivendo essa vida com a floresta, rios, animais, frutas e sementes. Toda essa irmandade é construída pela música, pela arte, com a poesia, com as palavras, com o sentir a vida em todos os cantos da terra. Cada tempo é vivido de modo diferente um do outro; existe o tempo das águas, o tempo do frio, o tempo da seca e todos esses tempos têm sua ligação com o ciclo do universo ( BRAZ, 2019 ).

Conforme vimos, a origem Yãmixoop chegou a promover a união dos homens, momento em que os indígenas e brancos viveriam harmonicamente, cada um em seu pedaço de terra. Tal narrativa mostra Yãmixoop com grande poder e uma lei como instância transcendental, que todos deveriam seguir em condição de igualdade. Essas maneiras de ver o mundo são coerentes com as narrativas e as formas de explicação que remetem a uma não separação entre natureza e cultura: “e esses foram os primeiros parentes que chegaram à terra”. Jack Goody (2012) ressalta a importância de considerar que a separação entre o divino (transcendentalidade) e o natural possui significado em nosso sistema de pensamento. O conflito entre conhecimento transcendental e conhecimento empírico provavelmente está excluído na cultura desses grupos indígenas, ou em parte deles. Assim, o tehêy possui como valor a possibilidade da utopia, da esperança de futuro a partir do mítico, do inédito viável ( FREIRE, 1982 ). Como veremos a seguir, a indignação contra o Yãtihi Ketxee (Pedro Álvares Cabral) não imobilizou o povo em suas ações cotidianas, não tornou o povo Pataxoop fraco. A história e a lembrança fortalecem cada um, conforme narrou D. Liça:

[…] mas nós fomos fortes através dessa invasão, mas aí veio o Yãtihi Ketxee [Pedro Álvares Cabral], que estava caminhando no mar, mas ele, muito curioso, avistou nossa terra, mas Yãmixoop indicou para todo mundo onde era o lugar do branco e qual era o lugar do indígena e que nós íamos viver bem na nossa terra igual aos brancos também, só era para a gente cuidar, zelar e proteger e essa é a verdadeira história de produção dos povos que veio para viver na terra. O homem branco não tem imaginação, ele acha que Deus colocou o povo branco junto com a gente, mas ele não colocou. Deus, quando nos enviou para cá foi diferente, foi cada um no seu caminho. Como o branco foi curioso e ganancioso, mesmo Deus colocando-o na terra dele, ele ficou procurando formas de descobrir coisas para ele ter ganância, e foi onde ele encontrou nosso povo aqui. E ele chegou derrubando todo mundo, mas essa história dentro do nosso povo é muito forte e muito sagrada para a gente, porque cada um teve seu chão para viver. E esse túnel que aconteceu no céu foi nesse tempo, no tempo das águas que chegamos e nós chegamos felizes na terra, e aqui nós tivemos a nossa produção e o Yãtihi teve a produção dele, e Yãmixoop não escolheu a forma de cada um chegar, todo mundo chegou de um jeito só e nós continuamos a nossa vida do jeito que Yãmixoop colocou, mas depois Yãtihi estragou tudo, estragou a vida, a natureza, colocou outros costumes, mas não foi isso que nos enfraqueceu. (D. Liça).

Percebemos aqui como a ganância estabelecida pelo sistema de produção derrubou o povo indígena. Desde então, a traição de Yãtihi, liderado por Ketxee, foi atacando a cultura e o modo de viver dos indígenas. Assim, colocar outros costumes implica, em nossa interpretação, o silenciamento gradual da cultura indígena, em um claro processo de aculturação. A negação da alteridade abole as diferenças e é contra essa homogeneização que os indígenas lutam e resistem há anos.

O povo Pataxoop busca, na ancestralidade, as formas de romper com as situações-limite que aparecem como determinações históricas e, assim, percebidas como fronteiriças entre o ser e o ser mais ( FREIRE, 1982 ). Nessa concepção de mundo, a manutenção da paz não implica a abolição dos conflitos para o viver juntos, mas pelo confronto justo entre eles. Ao invadir as terras, o Yãtihi desrespeitou toda essa concepção, toda essa forma de viver com a natureza e com o outro. Mas tudo isso não enfraqueceu o povo Pataxoop. É o que D. Liça nos conta por meio do tehêy:

Cada vez mais lembramos das nossas histórias e nos fortalecemos, e ficou guardado na memória, e esse é um tehêy fortalecido na minha vida, ele é uma história de marca do povo Pataxoop: conta da chegada aqui na terra, porque às vezes, o homem branco, ele é o primeiro a desconsiderar o dono da terra porque o que é deles eles tiveram também e hoje aqui está cheio de brancos. Eles pensam que eles foram os primeiros donos da terra, os primeiros habitantes dessa terra, mas não é. Somos nós, porque temos essa história e não é isso que faz a gente ser fraco, nós somos um povo diferente, de resistência, de cultura. Somos o dono dessa terra. (D. Liça).

Os dois excertos anteriores nos mostram como foi tensa a formação social do povo brasileiro e a luta para saber quem é o dono da terra, quem tem mais direitos sobre ela. Nesse tehêy , percebemos a ancestralidade, a origem do universo e de todas as coisas existentes: um mito das origens. Mito que explica como foi distribuído o poder político a partir da chegada de Pedro Álvares Cabral e como se construiu a situação atual das relações sociais e de poder entre os povos indígenas e não indígenas (homem branco). Essa compreensão de uma desigualdade, que é uma distorção, e não destino dado, é que faz os Pataxoop se perceberem como sujeitos históricos, com a possibilidade de ser mais ( FREIRE, 1982 ): somos o dono desse território, possuímos nossos saberes e nossa cultura. Assim, os Pataxoop se apropriam das diversas coisas feitas por Yãmixoop, Deus protetor dos parentes-gente, parentes-planta e parentes-bicho, com os quais compartilham a vida ( BRAZ, 2019 ). É como se os povos indígenas tivessem uma predestinação divina: o passado contém a grandeza do sonho que constituiu esse povo. O trabalho é sempre comunhão do homem com todas as forças da natureza, e o povo de Muã Mimatxi tem uma profunda ligação com a terra e a natureza.

Segundo as entrevistas, ao chegarem em Muã Mimatxi, o povo Pataxoop tinha poucos animais e plantas em seu território. Atualmente, há animais que vieram de longe para esse pedaço de terra e plantas que antes não existiam no local. O povo Pataxoop carrega essa irmandade para perto deles, por meio da religião e da cultura. Nessas falas, podemos perceber que são os animais e as plantas que determinam a força do local. Assim, eles também são Yãmixoop, como as crianças também podem ser, dependendo da situação vivenciada.

Afinal, o que é um tehêy?

O que é um tehêy ? Segundo D. Liça, o tehêy é um instrumento, uma armadilha Pataxoop usada em pescaria, tecida com corda de tucum e cipó e utilizada para tehêyá , a pesca no rio. Quem mais usa o tehêy são as mulheres, que gostam de tehêyá . O tehêy também seleciona os peixes, uma vez que há vários tipos e tamanhos. Ele permite pescar a quantidade adequada para a alimentação, devolvendo ao rio os demais. Aqui nós percebemos que o tehêy pesca conhecimento, alegria, identidade, cultura, convivência e força.

Nos perguntamos: quem é D. Liça e o que ela pensa sobre a vida? “Como eu não tenho o conhecimento de leitura, o meu material tem a escrita, mas que é diferente daquilo que vocês conhecem e chamam de escrita.” Kanatyo, em sua entrevista, nos ajuda a compreender melhor essa passagem, bem como a força do tehêy:

Esse conhecimento das imagens passa para a escrita também porque ele é um material que te proporciona vários tipos de produção, vários tipos de escritas no tehêy ; a gente encontra a música, a brincadeira, as histórias, a ciência do nosso povo, encontramos vários trabalhos para desenvolver. O tehêy carrega uma imensidão de saberes, uma biblioteca viva de conhecimentos. (Kanatyo).

D. Liça conta sobre a origem dos tehêys , relatando que eles vieram dos sonhos tranquilos após a chegada de sua família em Muã Mimatxi. Para ela, “a sua escrita” é capaz de passar os conteúdos e valores de seu povo e “a ideia de tehêy como pescaria veio do sonhado”, repete. Que entendimento D. Liça tem de sua escrita? Vejamos:

Vemos que a escrita que faço do meu ensino é um Tehêy , um instrumento da pescaria, porque nele eu desenho tudo o que eu quero falar, apresentar e mostrar. Eu desenho tudo em uma folha, mas tem o nome de Tehêy ; para o meu povo Pataxoop, o Tehêy é um instrumento de pescaria, mais aqui chama Tehêy de pescaria de conhecimento. São conhecimentos que eu aprendi, do que eu sei fazer, e no Tehêy tem vários tipos de conhecimentos que eu quero ensinar e apresentar, então vai tudo para dentro daquele material. (D. Liça).

D. Liça ainda faz uma comparação entre tehêys de pesca e os tehêys de pescaria de conhecimento “são as imagens que cada conhecimento possui e cada imagem é diferente uma da outra, então o tehêy para Muã Mimatxi é esse e também para não acabar com a cultura e valor nas imagens de cada tehêy ” (informação verbal)5 .

Assim, D. Liça esclarece que seus tehêys representam a cultura e os modos de vida do povo Pataxoop, e são as imagens e as narrativas que figuram em cada um, unidos por Yãmixoop, que os diferenciam de outros povos. Kanatyo completa, com uma visão mais pedagógica:

O tehêy de pescaria de conhecimento é uma prática pedagógica da escola da minha aldeia. Ele é um livro, onde o professor registra toda sua pesca de conhecimento que ele pescou durante a vida cultural, ele é um livro vivo que guarda histórias vivas […] que viram conhecimento. (Kanatyo).

Ao dizer que os tehêys são experiências de vida singulares, Kanatyo não perde de vista o coletivo, o grupo de pertencimento. Nessa concepção, vemos o cacique enunciar a função dos tehêys:

Os tehêys vão guardando toda essa experiência de vida e o importante é que o tehêy ele não morre e não finda, o tehêy liga as várias histórias da vida, ele liga um conhecimento a outro conhecimento, liga um valor a outro valor, liga um tempo a outro tempo, liga uma geração a outra geração, o tehêy ele é importante porque ele não deixa morrer a cultura e os conhecimentos ancestrais. (Kanatyo).

Chegamos até aqui percebendo o papel de intermediação do tehêy: ele liga a oralidade à escrita, a escola com a comunidade, as experiências de cada um com o território, além de estabelecer passagens entre o passado e o futuro. Nessas passagens entre o passado e o futuro é que encontramos um elemento atemporal: Yãmixoop. Atemporal inclusive porque é reatualizado pelos rituais que são repetidos ano após ano. Kanatyo nos diz em sua entrevista:

Com o tehêy trabalhamos valores de busca da sabedoria para alcançar melhoria e bem-estar de vida, podendo ter uma visão ampla da vida e do nosso mundo, onde buscamos esses valores da ancestralidade com a nossa religiosidade, com as imagens que são desenhadas. Tehêys são sagrados, onde os valores guardam conhecimentos com força da vida da natureza e busca do saber do conhecimento que nos serve para vida e trazer tudo para o nosso centro de vida buscando alegria do brilho e da luz dos conhecimentos de tudo que fez parte da vida ancestral e da vida de hoje, assim vamos saber fazer a leitura das histórias das imagens e isso é muito importante, aprendendo a fazer a leitura da natureza e da vida sem estar escrito com letras e palavras. (Kanatyo).

Estamos aqui diante da força da oralidade e da narrativa que faz e transmite a história, bem como da forma como o mito se desdobra em cada um que é membro desse coletivo, fornecendo os elementos da cultura indígena, que são significativos para uma vida na atualidade. É esse contrato que os rituais religiosos e sociais trazem a cada vez que acontecem, evidenciando que cada indígena, ao chegar na sucessão das gerações, se incumbe de dar continuidade a essa visão de mundo social, étnico e cultural. Assim, o povo indígena atribui um lugar a esse novo membro que chega, lugar que até então era mantido pelas múltiplas vozes que manifestam um discurso em ressonância com a ancestralidade e com o mito fundador do grupo ( KAËS, 2005 ). Isso, em nossa interpretação, representa o valor desse tehêy.

Considerações finais

Não temos dúvidas de que provocamos certo estranhamento ao falar e escrever sobre as culturas indígenas. Neste trabalho, contamos histórias do povo indígena da etnia Pataxoop, cuja aldeia se chama Muã Mimatxi, localizada na região Centro-Oeste de Minas Gerais, no município de Itapecerica. Por um lado, para o povo Pataxoop, o ensinamento ocorre por meio do cotidiano e pela convivência entre adultos e crianças, buscando transmitir os valores da vida e dos modos de convivência. Por outro lado, a escola tem seu próprio jeito de ensinar, suas próprias pedagogias nas quais se fortalece a identidade da comunidade e do território: alfabetizar cantando, jogos Pataxoop, uso do território, cultura Pataxoop, material didático produzido pelos docentes, e em todos esses métodos são trabalhadas as matérias (matemática, português, ciências, geografia e história). Uma escola comprometida com a preservação da identidade Pataxoop, tão apagada pelas imposições de outras raças ( BRAZ, 2019 ), e próxima da comunidade e das práticas sociais que acontecem na aldeia, se transforma em centro de convivências. Desse modo, os espaços de lazer da comunidade se alteram para espaços de aprendizagem, isto é, apesar de existirem fronteiras, escola e aldeia estão profundamente relacionadas. É dentro dessa lógica que percebemos os tehêys de pescaria do conhecimento, ligando espaços heterogêneos.

A formatação e a organização do trabalho escolar na escola de Muã Mimatxi têm fortalecido as práticas que buscam na história tanto seus mitos quanto as transformações pelas quais passam a aldeia e os modos de vida de seus habitantes ao longo do tempo. São utilizados práticas e recursos materiais que buscam na tradição, na memória e nos saberes tradicionais novas maneiras de se relacionarem com o mundo, seja na discussão da sustentabilidade ou na resistência e luta contra uma cultura hegemônica.

Os tehêys são utilizados nos processos de alfabetização e letramento das crianças. Elas aprendem a ler com as imagens e a conhecer os valores da vida e da natureza que integram a cultura indígena, o território, as tradições, a saúde e a vida do povo de Muã Mimatxi. A leitura do mundo precede a leitura da palavra, já dizia Paulo Freire (1982) . O tehêy de pescaria de conhecimento é simultaneamente recurso e estratégia didática, sendo trabalhado em diversos momentos da vida na aldeia. Os tehêys têm se mostrado uma maneira própria e extremamente criativa de contar as suas artes, costumes, tradições, conhecimentos e maneiras atuais do povo Pataxoop de conviver entre si e com outros povos. As crianças da aldeia são extremamente envolvidas na construção de suas histórias e realização de desenhos-narrativas.

O tehêy escolhido – A construção do povo Pataxoop – trouxe explicações tanto sobre as experiências atuais quanto sobre as histórias fundacionais desse povo: as origens, seus mitos e ritos. Nosso objetivo é claro: pretendemos identificar as condições míticas e históricas que promovem tanto a preservação de aspectos e saberes tradicionais, que garantem identidade e pertencimento, quanto as possíveis reinvenções que proporcionam a criação de inovações na construção de uma escola viva e diferenciada, altamente coesa com a realidade externa.

No que se refere à distribuição da terra inicial por Yãmixoop, cada povo tinha o seu lugar. Com as transformações e ataques ao território por Ketxee, não há variação nos lugares: ou se está dentro ou fora, com a segregação dos indígenas. Não foi possível dividir esse espaço com o Yãtihi, devido à ganância que esse povo carregava. A natureza foi saqueada pelos brancos, que se acharam hierarquicamente superiores. Decepcionados quanto a esse modelo de referência, houve por parte do povo Pataxoop um descentramento relativo às concepções do mundo ocidental. A terra, a cultura e a tradição passaram a ser elementos de resistência, parte do sagrado. Constituem, assim, parte da forma de selecionar os conteúdos para uma educação diferenciada, na qual valorizar, debater e compreender a interculturalidade auxilia no fortalecimento da cultura indígena, da música, da dança, dos ritos e pinturas.

Nas entrevistas sobre esse tehêy , encontramos a dimensão social, econômica e política, isto é, eles nos contam não apenas as vivências, mas aquilo que funda e organiza o que é passado e como ele foi construído, inclusive as práticas discriminatórias. Esses aspectos mostram as diversas situações vivenciadas e experimentadas pelos Pataxoop no dia a dia, impregnados de sua ancestralidade e mitos fundacionais. Recuperada essa intermediação das crenças e mitos ( FERNANDES, 2005 ), espera-se uma vida harmônica, com a presença dos parentes-homem, parentes-planta e parentes-bicho.

A construção da identidade se origina a partir da apropriação das histórias e mitos, num processo de conhecer e aderir à cultura. Ela deriva do início dos tempos, quando Yãmixoop deu origem a tudo e formou a natureza em forte coesão com o indígena. Assim, no plano da experiência, cada indivíduo revive a relação com o outro, com o grupo e com a ancestralidade. As conexões com o passado, com a ancestralidade, com as origens e com o momento presente ressurgem por meio dos desenhos-narrativas. Estamos, muitas vezes, diante de coisas que evidenciam as vitalidades, o belo, a cultura, assim como os animais, o cultivo, o dual e os pássaros, que atestam a veracidade dos conhecimentos. Segundo os Pataxoop, eles vivem com essa grande espiritualidade da terra e do universo para fortalecer a existência aqui. A centralidade maior da aldeia é a educação e ela está no centro das vivências.

Yãmixoop, sobretudo, carrega a ilusão, um discurso que seduz, pois desempenha uma função reguladora: o que é, atualmente, foi diferente em algum momento. O que foi poderá voltar a ser, no futuro. Ele liga a realidade subjetiva e singular à realidade exterior, coletiva, política, sociocultural. Yãmixoop não pertence à ordem da realidade exterior, apesar de se materializar, em diversas situações, aos elementos da natureza. Isso implica que ele é e não é real ( KAËS, 2005 ). É real porque cada sujeito da aldeia lhe concede existência, o que é inegável, conforme vimos nas explicações do tehêy . Não é real porque não faz parte das prerrogativas que caracterizam os objetos do saber científico. Ao mesmo tempo, é sabedoria, pois formaliza e estrutura o mundo.

Em registro feito pelo autor ameríndio Kaká Werá Jecupé (1988 apudBERGAMASCHI; MEDEIROS, 2010 , p. 63), podemos ler uma fala de um indígena sobre a história do Brasil:

Ao contar a sua história, um índio, um clã, uma tribo parte do momento em que sua essência-espírito permeou a terra e relata a passagem dessa essência-espírito pelos reinos vegetal, mineral e animal. Há tribos que começam a sua história desde quando o clã eram seres do espírito das águas. Outros trazem a sua memória animal como início da história, assim como há aqueles que iniciam a sua história a partir da árvore que foram.

O que aprendemos com este trabalho ao nos prendermos na história fundacional e nos mitos de origem? Os povos indígenas sempre conviveram, desde Katxee, com uma violência de Estado e de certos grupos privados. Achamos que, depois dessa pesquisa, a busca por conhecimento e pela verdade tem se transformado em instrumento contra as práticas discriminatórias, pois nos tornamos mais abertos e disponíveis para outras concepções e outras culturas. Se nas escolas urbanas o sujeito é reduzido a um papel que exclui a dimensão intersubjetiva, levando a uma neutralidade em suas ações, com a negação de si mesmo e do outro como portador de lógicas próprias, aqui nos deparamos com a heterogeneidade, a subjetividade e o local com suas regras e manifestações pela vida.

Essas abordagens, diferentes das científicas, podem proporcionar grande aprendizagem, principalmente na compreensão da importância dos mitos na construção da cultura indígena. A escola, em conjunto com a aldeia, muda a sua pedagogia, se voltando mais para o aluno que aprende, um sujeito integral, um indígena. Essa mudança exige temporalidades mais lentas, para que cada um encontre um lugar para acomodar seus aprendizados. Como vimos no tehêy, as temporalidades próximas daquelas do consumo desconsideram uma outra, intergeracional ( FERNANDES, 2005 ).

Para se alcançar mudanças de longa duração, Gersem José dos Santos Luciano (2017) também acredita numa educação intercultural que valoriza o pertencimento étnico, sustentada por diretrizes educacionais e culturais presentes nas reformas de Estado. Por sua vez, a hegemonia que a racionalidade científica assume na atualidade contribui para que problemas éticos, subjetivos e políticos se transformem em problemas técnicos ( FERNANDES, 2005 ; KAËS, 2005 ). Os tehêys mostraram um caminho oposto, principalmente quando apoiados no conceito de sustentabilidade tal como proposto e vivido pelo povo Pataxoop. O mito de Yãmixoop atua em oposição ao mito de Brasil, um país do futuro ou mesmo Brasil, esse é um país que vai para frente, ideais tão propalados desde a década de 1930.

Referências

BERGAMASCHI, Maria Aparecida; MEDEIROS, Juliana Schneider. História, memória e tradição na educação escolar indígena: o caso de uma escola Kaingang. Revista Brasileira de História , São Paulo, v. 30, n. 60, p. 55-75, 2010. [ Links ]

BRASIL. Decreto nº 6.861, de 27 de maio de 2009. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 27 maio 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6861.htm. Acesso em: 22 out. 2021. [ Links ]

BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 20 dez. 1996. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 22 out. 2021. [ Links ]

BRASIL. Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008. Diário Oficial da União , Brasília, DF, 10 mar. 2008. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.htm. Acesso em: 22 out. 2021. [ Links ]

BRAZ, Werymehe Alves. Tehêy de pescaria de conhecimento . 2019. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Formação Intercultural para Educadores indígenas) – Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2019. [ Links ]

CAPIBERIBE, Artionka. Não cutuque a cultura com vara curta: os Palikur e o projeto “Ponte entre povos”. In: CUNHA, Manuela Carneiro da; CESARINO, Pedro de Niemeyer (org.). Políticas culturais e povos indígenas . São Paulo: Cultura Acadêmica, 2014. p. 165-194. [ Links ]

CORVALÁN DE MEZZANO, Alicia. Lembranças pessoais – memórias institucionais: para uma metodologia de questionamento histórico-institucional. In: BUTELMAN, Ida (org.). Pensando as instituições: teorias e práticas em educação. Porto Alegre: Artmed, 1998. p. 35-66. [ Links ]

CREPALDE, Rodrigo dos Santos. A lua na vida no/do campo: contribuições do conhecimento tradicional para a educação intercultural em ciências. In: REUNIÃO NACIONAL ANPED, 38., 2017, São Luís. Anais […]. São Luís: Anped, 2017. p. 1-17. [ Links ]

ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano . São Paulo: Martins Fontes, 1992. [ Links ]

FERNANDES, Maria Inês Assumpção. Negatividade e vínculo: a mestiçagem como ideologia. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. [ Links ]

FLEURI, Reinaldo Matias. Intercultura e educação. Revista Brasileira de Educação , Rio de Janeiro, n. 23, p. 16-35, 2003. [ Links ]

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1982. [ Links ]

GOODY, Jack. O mito, o ritual e o oral . Petrópolis: Vozes, 2012. [ Links ]

KAËS, René. Os espaços psíquicos comuns e partilhados: transmissão e negatividade. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2005. [ Links ]

LUCIANO, Gersem José dos Santos. Língua, educação e interculturalidade na perspectiva indígena. Revista de Educação Pública , Cuiabá, v. 26, n. 62/1, p. 295-310, 2017. [ Links ]

VALADARES, Juarez Melgaço; PERNAMBUCO, Marta Maria Castanho Almeida. Criatividade e silêncio: encontros e desencontros entre os saberes tradicionais e o conhecimento científico em um curso de licenciatura indígena na Universidade Federal de Minas Gerais. Ciência e Educação , Bauru, v. 24, n. 4, p. 819-835, 2018. [ Links ]

VALADARES, Juarez Melgaço; SILVEIRA JÚNIOR, Célio da. Entre o cristal e a chama: a natureza e o uso do conhecimento científico e dos saberes tradicionais numa disciplina do curso de formação intercultural para educadores indígenas da Universidade Federal de Minas Gerais (FIEI/UFMG). Ciência e Educação , Bauru, v. 22, n. 2, p. 541-553, 2016. [ Links ]

3- A professora D. Liça e o cacique Kanatyo autorizaram o uso dos nomes pelos quais são conhecidos, bem como o nome da aldeia, Muã Mimatxi.

4- Frase dita pelo cacique Kanatyo Pataxoop em relato oral para esta pesquisa.

5- Frase dita por D. Liça em relato oral para esta pesquisa.

Recebido: 04 de Abril de 2020; Revisado: 02 de Junho de 2020; Aceito: 30 de Junho de 2020

Werymehe Alves Braz é professora indígena na Escola Estadual Indígena Muã Mimatxi, aldeia Pataxoop, graduada pelo curso de Formação Intercultural para Educadores Indígenas e, desde 2020, mestranda do Mestrado Profissional Educação e Docência (Promestre) da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.

Juarez Melgaço Valadares é doutor em educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor associado do Departamento de Técnicas e Métodos de Ensino (DMTE) e do Mestrado Profissional Educação e Docência (Promestre) da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais.

Creative Commons License  This is an Open Access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution Non-Commercial License, which permits unrestricted non-commercial use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original work is properly cited.