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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.47  São Paulo  2021  Epub 23-Jun-2021

https://doi.org/10.1590/s1517-97022021470100302 

Seção: Traduções

Um balanço do conceito de capital cultural: contribuições para a pesquisa em educação

A review of cultural capital´s concept: contributions to educational research

1- Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil. Contato: dcpiotto@usp.br.

2 - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. Contato: malicen@terra.com.br.


Resumo

O texto apresenta o artigo “Capital cultural e reprodução escolar: uma revisão crítica”, de autoria de Hugues Draelants e Magali Ballatore, professores da Universidade Católica de Louvain, na Bélgica, traduzido pelas autoras. Seu objetivo é explicitar os motivos pelos quais consideramos importante sua difusão no meio educacional brasileiro. O artigo realiza um balanço crítico da contribuição do conceito de capital cultural, com a finalidade de avaliar sua pertinência para a compreensão dos processos contemporâneos de reprodução social por meio da educação escolar. Para isso, seus autores propõem uma discussão sobre a definição do conceito de capital cultural e sobre sua rentabilidade escolar atual. Eles discutem, também, a importância crescente de outros tipos de capital, como o econômico e o social e colocam em relevo a questão de sua conversão em capital cultural. Considerando que tão importante quanto as conclusões às quais Draelants e Ballatore chegaram foi o caminho percorrido até elas, o texto traz alguns destaques do artigo, na intenção não de resumir ou simplificar a riqueza da discussão empreendida, mas, antes, de fazer um convite à sua leitura.

Palavras-Chave: Capital cultural; Desigualdades escolares; Pesquisa educacional

Abstract

The text presents the article “Cultural capital and school reproduction: a critical review”, by Hugues Draelants and Magali Ballatore, professors at the Catholic University of Louvain, in Belgium, translated by us. Its objective is to explain the reasons why we consider important its diffusion in Brazilian educational environment. The article makes a critical review of the contribution of the cultural capital´s concept, in order to assess its relevance for understanding contemporary processes of social reproduction throughout school education. For this, the authors propose a discussion on the definition of the cultural capital´s concept and on its current school profitability. They also discuss the growing importance of other capital´s types, such as economic and social, and highlight the issue of their conversion into cultural capital. Considering that as important as the conclusions reached by Draelants and Ballatore was the path taken to them, the text brings some highlights of the article with the intention not to summarize or simplify the richness of the discussion undertaken, but instead making an invitation to read it.

Key words: Cultural capital; School inequalities; Educational research

Apresentação

Nesta breve apresentação do artigo Capital cultural e reprodução escolar: uma revisão crítica, de autoria de Hugues Draelants e Magali Ballatore, professores da Universidade Católica de Louvain na Bélgica, nosso intento é, sobretudo, responder à pergunta: por que nos propusemos a traduzir este texto para a língua portuguesa? Ou, em termos mais precisos, por que consideramos importante sua difusão no meio educacional brasileiro?

Nele, os autores realizam um balanço crítico da contribuição do conceito de capital cultural, com a finalidade de avaliar o seu poder heurístico e a sua pertinência para a compreensão dos processos contemporâneos de reprodução social por meio da educação escolar.

Como se sabe, o conceito de capital cultural foi formulado pelo sociólogo Pierre Bourdieu, no contexto da sociedade francesa de meados dos anos 1960, como uma ferramenta conceitual que pudesse explicar as desigualdades de rendimento escolar verificadas entre os alunos, deslocando o eixo explicativo dos fatores de ordem individual (o “dom”, a inteligência, a aptidão, etc.) para os fatores de ordem social, em particular, o meio sociocultural de pertencimento da criança.

Desde seus trabalhos pioneiros realizados em coautoria com Jean-Claude Passeron – Os herdeiros, de 1964, e A reprodução, de 19703 –, e no decorrer de sua obra, Bourdieu dedicou-se ao debate sobre o peso diferenciado dos fatores econômicos e culturais no destino acadêmico dos estudantes, concluindo pela preponderância que o peso do fator cultural exerce sobre o desempenho escolar. Em artigo publicado em 1966, baseando-se em dados emanados da demografia francesa da época, ele afirmava claramente o papel central desempenhado pela distribuição desigual dos bens culturais entre as classes sociais para as diferenças de rendimento escolar: “com renda igual, a proporção de bons alunos varia de maneira significativa segundo o pai não seja diplomado ou seja bacharel, o que permite concluir que a ação do meio familiar sobre o êxito escolar é quase exclusivamente cultural” (BOURDIEU, 1998, p. 42).

Passados mais de 50 anos, tal afirmação ainda é válida? Diante das transformações econômicas, políticas, sociais, culturais, educacionais ocorridas desde então, ainda se pode afirmar que a dimensão cultural da posição social ocupada é determinante para o rendimento escolar? Ou, colocando a questão nos termos em que Hugues Draelants e Magali Ballatore a formulam: na contemporaneidade, a reprodução social ainda passa pela questão cultural por meio da ação escolar?

Para responder a essas e outras questões correlatas, os autores procedem, no texto, a uma revisão crítica da literatura sociológica de língua francesa. Com base nela, propõem, inicialmente, uma discussão em torno da própria definição do conceito de capital cultural e de como ele vem sendo apropriado por seus diversos utilizadores; e, posteriormente, trazem à luz o debate acerca de sua rentabilidade escolar no momento histórico atual. A essa discussão, os autores acrescentam a importância crescente – para as desigualdades educacionais – de outros tipos de capital, como o econômico e o social, e colocam em relevo a questão de sua conversão em capital cultural.

Considerando que tão importante quanto a chegada é o caminho percorrido, propomo-nos a trazer aqui alguns destaques do texto, na intenção, não de resumir ou simplificar a riqueza da discussão empreendida, mas antes de fazer um convite à sua leitura.

Os autores começam a discussão acerca do capital cultural debruçando-se sobre dois tipos de definição do conceito, verificados nos trabalhos revisados: uma definição restrita e outra ampla. A primeira restringe a noção de capital cultural às obras culturais ditas legítimas que emanam de e circulam nas diferentes instâncias de legitimação que são as academias, laboratórios, bibliotecas, museus, conservatórios, etc.

Já a segunda definição alarga consideravelmente o conteúdo do conceito, estendendo-o às disposições dos indivíduos e a suas relações com os bens de cultura. E observam que quando se adota a definição restrita de capital cultural, é possível colocar em dúvida seu papel central na explicação das desigualdades escolares atuais; em contrapartida, afirmam que esse não é o caso quando se adota a definição mais ampla, a qual estaria, aliás, segundo eles, em maior conformidade com o próprio pensamento de Bourdieu. Nesse sentido, e mencionando o trabalho do sociólogo da cultura Philippe Coulangeon (2011), Draelants e Ballatore abordam as teses atuais do enfraquecimento da legitimidade e das hierarquias culturais, em favor de certo ecletismo cultural verificado nos indivíduos contemporâneos, argumento de que se servem hoje boa parte dos céticos em relação ao poder explicativo do conceito de capital cultural. Sem discordar dessas teses, Draelants e Ballatore defendem que o capital cultural deve ser compreendido como um processo e não como um atributo dos sujeitos. E citando o trabalho de J-L. Fabiani (2013), defendem que é preciso considerar centralmente a dimensão relacional que Bourdieu sempre atribuiu à sua sociologia da cultura. Assim, segundo os autores, mais importante, na contemporaneidade, seria o modo de se relacionar com o objeto cultural do que o objeto em si mesmo. Dessa forma, em defesa de uma acepção mais alargada do conceito de capital cultural, eles concluem que foram os contéudos culturais mais rentáveis na escola contemporânea (a cultura eletrônico-digital, o multiculturalismo, o multilinguismo, etc.) que sofreram mudanças, e não o fenômeno em si de sua maior rentabilidade escolar que beneficia (mais) a uns do que a outros. É nesse sentido que eles insistem na emergência atual de “novas formas de capital cultural”.

No bojo dessa discussão, os autores levantam uma questão que consideramos de especial importância para a pesquisa educacional brasileira: o papel da leitura/escrita no sucesso escolar. Ao abordar a questão da eficácia e da transmissibilidade do capital cultural familiar, e com base em um conjunto de pesquisas, eles afirmam que se a alta cultura não ocupa mais o lugar de outrora nos currículos, a socialização escolar, por sua vez, nunca deixou de passar pela escrita e, por isso, a leitura continua a desempenhar papel fundamental no sucesso acadêmico. E eles concluem: mais do que a familiaridade com a cultura legítima, são as práticas de leitura dos estudantes que se revelam escolarmente eficazes na medida em que elas produzem efeitos linguísticos e cognitivos.

Os autores afirmam também que se a cultura considerada legítima dá sua parte de contribuição para a construção do sucesso escolar, não é unicamente por uma razão arbitrária. Ou seja, os conteúdos curriculares transmitidos pela escola não emanam, em sua integralidade, de um “arbitrário cultural”, como acreditava Bourdieu. Essa crítica a ele já havia sido feita na década de 1970, pelo filósofo francês Georges Snyders, que se contrapunha com veemência a esse traço do pensamento bourdieusiano. Segundo Snyders (1976), o fato de as classes dominantes deterem certos conteúdos culturais não seria suficiente para afirmar ser essa a razão deles serem os conteúdos selecionados pela escola como legítimos e dignos de serem transmitidos às futuras gerações. Ao contrário, defende o autor, é por serem epistemologicamente relevantes, em razão de suas características intrínsecas, que esses conteúdos foram valorizados socialmente e apropriados pelos grupos dominantes.

Sem citar o filósofo, Draelants e Ballatore discutem, contudo, resultados de pesquisa que vão nessa mesma direção. Isto é, indicam que, se a cultura tem um papel na reprodução social por meio da escola, não é (unicamente) em razão de sua imposição (a todos) como um arbitrário cultural. Diferentemente, é porque a escolarização produz dispositivos e efeitos cognitivos e comunicacionais que favorecem o êxito acadêmico de certos grupos sociais. No caso específico da leitura, segundo eles, ela contribui para o sucesso escolar na medida em que permite desenvolver competências cognitivas e linguísticas úteis para a aprendizagem em geral.

Assim, de acordo com Draelants e Ballatore, a análise das desigualdades não deve parar na constatação das consonâncias e dissonâncias entre modelos familiares e exigências escolares, fazendo dessas diferenças algo puramente arbitrário. Apoiando-se em Bernard Lahire (1998), os autores afirmam que é preciso explorar as consequências psíquicas da socialização, e sugerem uma volta aos trabalhos de Basil Bernstein a fim de compreender as repercussões cognitivas da socialização linguística. Eles indicam, também, a necessidade de se desenvolver pesquisas que descrevam e analisem processos concretos de transmissão do conhecimento e de produção do fracasso escolar. Apontam, porém, que embora pouco numerosas4, essas pesquisas já existem, citando, como exemplo, aquelas realizadas pelo grupo ESCOL (Éducation, Socialisation et Collectivités Locales), originalmente composto pelo sociólogo Bernard Charlot, pela linguista Elisabeth Bautier e pelo psicólogo Jean-Yves Rochex, e que ficou conhecido no Brasil pela introdução do conceito de “relação com o saber” (CHARLOT; BAUTIER; ROCHEX, 1992)5.

Por outro lado, Draelants e Ballatore destacam que se Bourdieu sublinhou a importância da relação dos alunos com a cultura a fim de compreender suas eventuais dificuldades escolares, defendeu igualmente que não se pode conceber a produção das desigualdades escolares sem a compreensão do modo de funcionamento da escola e das relações com o saber que essa instituição e seus agentes mantêm.

Essas duas últimas questões – o papel da leitura e do funcionamento escolar no desempenho acadêmico dos estudantes – levam os autores a defender o desenvolvimento de pesquisas no campo, respectivamente, da sociologia do desenvolvimento cognitivo e da sociologia das práticas de ensino.

As pesquisas analisadas criticamente por Draelants e Ballatore, bem como as conclusões a que chegam no que respeita à adequação, pertinência e atualidade do conceito de capital cultural para a compreensão das desigualdades escolares contemporâneas, referem-se, por certo, a um contexto diverso do brasileiro. Todavia, o uso intenso do conceito feito no Brasil, não apenas pela pesquisa sociológica em educação, mas por outros subcampos da pesquisa educacional que busca compreender nosso desigual acesso aos saberes escolares, torna a publicação desse artigo não somente oportuna, mas também necessária.

Referências

BOURDIEU, Pierre. A escola conservadora: as desigualdades frente à escola e à cultura. In: NOGUEIRA, Maria Alice; CATANI, Afrânio (org.). Escritos de educação. Petrópolis: Vozes, 1998. p. 39-64. [ Links ]

CHARLOT, Bernard; BAUTIER, Élisabeth; ROCHEX, Jean-Yves. École et savoir dans les banlieues... et ailleurs. Paris: Armand Colin, 1992. [ Links ]

COULANGEON, Philippe. Les métamorphoses de la distinction. Paris: Grasset, 2011. [ Links ]

FABIANI, Jean-Louis. Distinction, légitimité e classe sociale. In: COULANGEON, Philippe; DUVAL, Julien (org.). Trente ans après la fistinction. Paris: La Découverte, 2013. p. 69-82. [ Links ]

LAHIRE, Bernard. L’homme pluriel: les ressorts de l’action. Paris: Nathan, 1998. [ Links ]

SNYDERS, Georges. École, classe et lutte des classes. Paris: PUF, 1976. [ Links ]

3 - As duas obras encontram-se traduzidas no Brasil: BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. Os herdeiros: os estudantes e a cultura. Florianópolis: UFSC, 2014. BOURDIEU, Pierre; PASSERON, Jean-Claude. A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975.

4 - É preciso lembrar que os autores referem-se ao contexto francês, uma vez que, no Brasil, essas pesquisas existem e não são em pequeno número.

5 - Com a saída de Bernard Charlot da Universidade Paris VIII, Jean-Yves Rochex passou a coordenar o grupo de pesquisa que, ampliado, tornou-se o Centre Interuniversitaire de Recherche “Culture, Éducation, Formation, Travail” (CIRCEFT).

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