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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 08-Jul-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248254863por 

SEÇÃO TEMÁTICA: 20 anos depois: pensar com e sem Bourdieu

Sobre a construção do objeto em sociologia: categorias bourdieusianas para compreender os “adeptos da sustentabilidade”

On the construction of the object in sociology: Bourdieusian categories to understand “sustainability adherents”

Bruno Costa Barreiros1 
http://orcid.org/0000-0002-7609-0001

1- Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil. Contato: barreirosbc@gmail.com


Resumo

O paper aborda o tema da construção do objeto sociológico a partir de uma pesquisa sobre a apropriação da ideia de “sustentabilidade” por agentes engajados no campo econômico. O objetivo principal é discutir, a partir de uma pesquisa em andamento, a relevância dos aportes de Pierre Bourdieu no que se refere às formas de construir, desenhar e operacionalizar pesquisas sociais. Trata-se também de minimizar a lacuna de trabalhos que explicitem diretamente os meandros do fazer sociológico, do rompimento com o senso comum até os desdobramentos analíticos derivados do processo de investigação. A investigação, iniciada em 2015, tem dimensões analíticas que enfatizam desde a sociogênese do fenômeno da chamada sustentabilidade empresarial e a formação de uma elite de top managers adeptos até os processos educacionais em escolas de negócios. Primeiramente, o artigo trata da necessidade de rompimento com as prenoções que baseiam o senso comum sobre a sustentabilidade empresarial e do caminho percorrido até a pergunta norteadora. Em seguida, destaca as categorias sociológicas que facilitaram a operacionalização das duas primeiras frentes de pesquisa: a análise sociogenética e a prosopografia de uma elite de adeptos. Por fim, os contornos atuais do objeto de pesquisa são apresentados, cuja aposta se dá na dimensão da reprodução social dos adeptos da sustentabilidade empresarial, que ocorre por meio da educação gerencial em escolas de negócios.

Palavras-Chave: Metodologia de pesquisa; Sociologia econômica; Escolas de negócios; Sociologia das elites; Pierre Bourdieu

Abstract

The paper addresses the issue of the construction of the sociological object anchored on a research about the appropriation of the idea of “sustainability” by agents engaged in the economic field. The main objective is to discuss - based on an ongoing research - about the relevance of Pierre Bourdieu’s contributions with regard to the methods of constructing, designing and operationalizing social research. The paper also intends to minimize the lack of publications that directly explain sociological specificities: from the rupture with common sense to the analytical developments derived from the investigation process. The research, started in 2015, has some analytical dimensions that emphasize the sociogenesis of the phenomenon of the so-called corporate sustainability, the formation of an elite of top managers adherents and the correspondent educational processes in business schools. First, the paper discusses the need to make a rupture with the preconceptions that base common sense on corporate sustainability and the path taken to the guiding research question. Then, it highlights the sociological categories that facilitated the operationalization of the first two research axes: the sociogenetic analysis and the prosopography of an elite of adherents. Finally, the current stages of the research are presented, whose focus is on the dimension of the social reproduction of adherents of corporate sustainability, which occurs mainly through management education in business schools.

Key words: Research methodology; Economic sociology; Business schools; Sociology of elites; Pierre Bourdieu

Introdução

Entre as principais motivações para a escrita deste texto, encontra-se o diagnóstico de que nas ciências sociais brasileiras há certa negligência das questões metodológicas (CANO, 2012; NEIVA, 2015; SOARES, 2005). É possível que a formação de sociólogos e sociólogas no Brasil ainda permaneça muito mais centrada na transmissão de uma disposição erudita do que no desenvolvimento de profissionais com habilidades para pesquisa dentro e fora do campo acadêmico (CANO, 2012; SOARES, 2005)2. Com tal afirmação, não se tem a intenção de menosprezar a erudição ou de reivindicar um certo utilitarismo como filosofia prática. Longe disso, trata-se de reforçar o desenvolvimento de práticas científicas nas ciências sociais, ainda que essa frase soe redundante para os desavisados. Isso ocorre porque estamos falando de um tipo de saber que geralmente reivindica sua cientificidade, um conhecimento prático.

Com Bourdieu (1998), passamos a valorizar uma capacitação em pesquisa social desvinculada da ideia de normatividade, ou de modelos considerados corretos. Em seu texto “Introdução a uma sociologia reflexiva”, Bourdieu (1998) chegou a comparar o professor de sociologia que busca transmitir uma disposição científica a um treinador esportivo, vendo então mais semelhanças entre estes ofícios do que com professores da Sorbonne, que davam aulas marcadas pelo primor da erudição.

Numa direção semelhante, Becker (1993) acusou os metodólogos de construir uma especialidade proselitizante que, segundo o autor, trata-se de variações de catecismos quantitativos ou qualitativos promovidos pelos referidos guardiões da metodologia. Tal modo de agir seria marcado por descrições técnicas, pela intolerância ao erro e por uma ansiedade com a elegância lógica de suas exposições; enquanto discussões acerca das facilidades e das dificuldades de entrada nos variados campos de pesquisa, dos critérios para escolher tal ou qual fundamentação teórica e dos modos de construção de hipóteses de pesquisa seriam marginais (BECKER, 1993).

Esse debate também se faz presente no espaço nacional brasileiro, ganhando um tom voltado à dicotomia entre qualidade e quantidade nas investigações. Soares (2005) denunciou a confusão entre ensaísmo e pesquisa científica, constatando, após uma análise da literatura, que o trabalho típico encontrado nas revistas brasileiras é ensaístico, o que favorece uma espécie de anarquismo metodológico não muito distante das propostas de Feyerabend (1977). Já Cano (2012) alertou para a necessidade de pautas mais transversais no ensino de metodologia em ciências sociais: os problemas epistemológicos enfrentados por um aluno dedicado à etnografia são os mesmos para outro que tenta realizar um survey. Os dilemas se caracterizam, por exemplo, pelas possibilidades de observação e de registro das ações, as fontes utilizadas, os vieses dos participantes e dos pesquisadores, o valor das hipóteses e as evidências ambíguas.

Na perspectiva bourdieusiana, nenhum objeto de pesquisa está estabelecido de antemão, uma vez que se assume, do ponto de vista epistemológico, a descontinuidade entre o senso comum e o conhecimento científico (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2002). Entre cientistas sociais, não é raro encontrar a crença de que os objetos são em si suficientes, urgentes e necessários, em termos de uma presumida importância social ou política. Deixar impensado seu próprio pensamento é condenar-se a ser apenas um instrumento daquilo que se quer estudar (BOURDIEU, 1998). Assim, os que abordam temas tidos como os mais consensualmente legítimos de serem investigados no espaço acadêmico tendem a negligenciar as justificativas para tais investimentos científicos. Em direção oposta, o fazer sociológico, do ponto de vista bourdieusiano, depende sobremaneira do modo como se elabora uma questão, sem a qual não há ciência. Desta maneira, construir objetos não é uma operação meramente conceitual, hermética ou escolástica, mas sim um trabalho de fôlego, que requer correções e revisões constantes (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 2002).

Inserido nesse debate, este artigo aborda o tema da construção do objeto sociológico a partir de uma pesquisa relativa à apropriação da ideia de sustentabilidade por agentes engajados no campo econômico. Este paper se inspira em trabalhos que, também fundamentados nos aportes de Bourdieu, explicitaram as opções dos pesquisadores acerca do modo como construíram seus objetos. Entre trabalhos exemplares no Brasil, podemos mencionar os de Seidl (2015), a propósito de seus estudos sobre a elite eclesiástica no Rio Grande do Sul, e o de Miceli (2001), em sua pesquisa acerca dos intelectuais no Brasil. Já entre os franceses, destacam-se: Pinto (2021), em sua obra organizada recentemente com diversos pesquisadores na França dedicada ao tema da construção do objeto; e Offerlé (2017), em pesquisa sobre os patrões franceses e suas práticas sociais3.

A preocupação aqui reside muito mais em apresentar a forma de construir um determinado objeto – e a relevância dos aportes de Bourdieu – do que em discutir os resultados analíticos da pesquisa. Assim, este paper foi organizado da seguinte maneira: primeiramente, tratamos da necessidade de rompimento com as prenoções que baseiam o senso comum sobre a sustentabilidade empresarial e do caminho até a pergunta norteadora. Em seguida, destacamos as categorias sociológicas que facilitaram a operacionalização das duas primeiras frentes de pesquisa: a análise sociogenética e a prosopografia de uma elite de adeptos. Por fim, são apresentados os contornos atuais do objeto de pesquisa, cuja aposta principal tem sido na dimensão da reprodução social dos adeptos da sustentabilidade empresarial que ocorre por meio da educação gerencial em escolas de negócios.

Das prenoções à pergunta norteadora

Já em uma primeira observação, a sustentabilidade empresarial pode ser percebida como um fenômeno ambivalente no sentido literal do termo: dois polos valorativos que organizam as representações espontâneas. De um lado, histórias positivas de empresas “afinadas com a sustentabilidade” forçam o senso comum a reconsiderar o papel das corporações nas sociedades, um papel talvez “relevante”, “benéfico”, “necessário”. Do outro, casos negativos de empresas que descumprem as regras, prejudicando recursos naturais ou comunidades, geralmente são descritos como “acidentes” e confirmam o tom dos céticos: desde que o capitalismo existe, as ações empresariais são explicáveis por uma atenção seletiva e direcionada à maximização dos lucros. Qualquer atitude diferente da busca por capital econômico seria meramente acessória.

Estamos adentrando aqui um terreno repleto de controvérsias em torno do “caráter genuíno” das empresas em matéria de engajamento em prol do desenvolvimento sustentável, da economia verde, do capitalismo verde, do capitalismo consciente. As controvérsias denunciam um campo de batalhas: governos exigem, consumidores demandam, mídias cobram, movimentos socioambientais atacam, mas sobretudo as próprias empresas competem por posições e tipos de capital, pelo maior poder simbólico. Algumas empresas despontam como pioneiras e respondem às críticas, outras negam a dita sustentabilidade, ainda que tacitamente, e seguem uma rota mais alinhada com o chamado business as usual (i.e., o modo tradicional de gerir negócios). Entre as que se engajam, a disputa é por se tornar “referência” no assunto – benchmark, na linguagem nativa do espaço empresarial.

Embora tal corrida pela sustentabilidade e as discussões sobre a genuinidade do comprometimento empresarial com o assunto possam ser o centro da atenção de algumas formas de saber, este não precisa ser o foco de interesse para uma pesquisa sociológica. Tal linha de reflexão, de caráter axiológico, é mais legítima aos agentes propriamente investidos no espaço empresarial, sejam eles defensores, sejam eles opositores do modelo “sustentável” de gestão. Poderíamos mapear as representações, os valores, as opiniões e as crenças, mas não exatamente julgá-las do ponto de vista valorativo. Tampouco é central, para uma sociologia, a discussão sobre a eficácia de ferramentas gerenciais do modelo “sustentável” de gestão ou mesmo sobre a questão propriamente de definição conceitual, que geralmente tomba na escolástica. Tal enfoque caberia mais a indivíduos posicionados como gestores empresariais, acionistas e professores de escolas de negócios. Mas como exatamente abordar sociologicamente este tema? E como os aportes de Bourdieu podem ajudar nesse sentido?

Um primeiro caminho para a construção do objeto seguiu em direção à moralidade emergente do modelo sustentável de gestão, partindo muito do diagnóstico de Grün (2005)4 de que trata-se de um conjunto de práticas preventivas de riscos morais aos negócios. Tal linha de construção se ancora também nos aportes clássicos de Weber — principalmente na obra A ética protestante e o espírito do capitalismo — e de Durkheim — sobretudo As formas elementares da vida religiosa—. A proposta de pesquisa teve uma segunda variante, também centrada na dimensão moral do fenômeno da sustentabilidade empresarial, mas com foco maior nas justificativas construídas pelos agentes engajados, entendidas como respostas mais ou menos sistematizadas às críticas de segmentos sociais céticos das práticas empresariais (e.g., movimentos ambientalistas). Nessa segunda variante, a maior inspiração foi a obra de Boltanski e Chiapello (2009): O novo espírito do capitalismo.

Aspectos como as justificativas para agir de tal ou qual maneira seriam a ponta de um iceberg que representaria o objeto de pesquisa, que viria a ser construído de outra maneira. São elementos importantes, sem dúvida, mas havia a sensação de que seria preciso ir um pouco mais a fundo. A base do iceberg, continuando com a analogia, poderia ser apreendida através de uma análise sociogenética da sustentabilidade empresarial, das propriedades sociais dos produtores, disseminadores e receptores. Entrariam então no radar da análise os itinerários de vida dos agentes promotores da agenda “sustentável”, as posições que ocupam no espaço empresarial, suas práticas distintivas e seus mecanismos de produção e de reprodução. Almejando dar conta de todo esse iceberg, observando de perto as dinâmicas no espaço dos “adeptos da sustentabilidade”, a pesquisa se estruturou a partir de dois grandes pilares: por um lado, ancorou-se na tradição sociológica disposicionalista derivada da obra de Pierre Bourdieu e, mais recentemente, de Bernard Lahire; por outro, de forma complementar, recorreu ao institucionalismo sociológico sistematizado por Peter Berger e Thomas Luckmann, que contemporaneamente tem sido revisitado por pesquisadores da sociologia política das instituições, como Lagroye e Offerlé (2010).

O primeiro desafio importante foi combinar estes dois pilares teórico-metodológicos. Apesar de ambos se fundamentarem em bases comuns, já que se apoiam consideravelmente nos aportes de Weber e de Durkheim, também possuem algumas diferenças: uma compreensão muito mais agonística acerca das relações sociais em Bourdieu; e uma aposta muito mais construtivista no caso de Berger e Luckmann. Talvez uma ponte já pavimentada entre as duas perspectivas seja a problematização das instituições, que também aparece claramente como uma preocupação de Bourdieu. Em diversos momentos de seu curso no Collège de France, de 1981 a 1986, intitulado Sociologie générale, Bourdieu (2015, 2016) tratou diretamente das categorias analíticas instituição e institucionalização, ancorando-se tanto na compreensão de Durkheim (2007), para quem a sociologia é a ciência das instituições, como na de Weber (2004), que destaca o processo de racionalização característico da modernidade. Em Bourdieu (2015, 2016), assim como em Berger e Luckmann (2014), a institucionalização é entendida como um processo de objetivação. Para ambas as perspectivas, os espaços de interação não existem a priori ou per se: são construídos socialmente e os agentes possuem certas tomadas de posição características (os papéis sociais, para os institucionalistas) condizentes com as suas posições, mobilizando recursos práticos e simbólicos (os tipos de capital em Bourdieu) nas lutas que travam entre si (FREYMOND, 2010).

No framework da pesquisa, a sustentabilidade empresarial foi entendida como uma instituição, uma propriedade emergente das relações sociais que, ao mesmo tempo, é relativamente anterior à existência de indivíduos específicos. Falar em institucionalização, por sua vez, pressupõe a existência de processos históricos passíveis de serem analisados, com destaque para o ganho de objetividade: os modos de pensar e de agir se desgarram pouco a pouco de uma dimensão meramente subjetiva (de pessoas específicas), tornando-se objetivos e transmissíveis como regras gerais de conduta. Ao mesmo tempo, falar em institucionalização também implica ressaltar certo ganho de subjetividade, no sentido de que a instituição se torna cada vez mais tácita – e, portanto, poderosa – na medida em que é interiorizada pelos indivíduos, tratada como algo “natural”, transformando até mesmo seus corpos.

Já nos primeiros registros coletados, foi possível perceber que os convertidos à sustentabilidade empresarial se entrelaçam em certos movimentos, que se transformam, sócio-historicamente, em entidades – inclusive com infraestrutura física – e podem ser entendidos como sinais do processo de institucionalização. Um primeiro exemplo é a criação do Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável (CEBDS) em 1997. O CEBDS é, de fato, um homólogo brasileiro do movimento internacional intitulado World Business Council for Sustainable Development (WBCSD). Através do CEBDS, top managers (i.e., chief executive officers, presidentes e diretores de sustentabilidade), representantes de grandes empresas atuantes no espaço nacional brasileiro, têm construído diretrizes e princípios gerais de conduta das empresas em matéria de atuação em prol do “desenvolvimento sustentável”.

O segundo caso é o surgimento do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas (GVces) em 2003. Seus programas são orientados para a formação de gestores, pesquisa e produção de conhecimento, articulação e intercâmbio, bem como mobilização e comunicação. A elaboração do Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE) da Bolsa de Valores do Estado de São Paulo, em 2005, uma carteira de ações das empresas que mais se comprometem com a “sustentabilidade”, com metodologia feita pela equipe do GVces, é o principal exemplo de intervenção externa desse centro. Internamente, o GVces vem promovendo uma educação gerencial heterodoxa na business school mais tradicional do país, sobretudo a partir de seu curso de Formação Integrada para a Sustentabilidade (FIS), que viria a se tornar foco desta investigação.

O terceiro caso é a mobilização em torno da Plataforma Liderança Sustentável (PLS), iniciativa liderada desde 2011 por um consultor especializado em comunicação corporativa, que se apresenta como um movimento de top managers pela “sustentabilidade” nas empresas. A PLS tem se consolidado como o principal espaço de consagração dos chamados, de forma nativa, de líderes sustentáveis, os enunciadores mais legítimos da sustentabilidade empresarial no Brasil e que ocupam posições elevadas nas hierarquias de suas empresas (e.g., presidentes, diretores de sustentabilidade). Numa seara semelhante, também em 2011, há um quarto desdobramento relevante: a fundação da Associação Brasileira dos Profissionais pelo Desenvolvimento Sustentável (ABRAPS), que reúne agentes investidos não apenas no espaço empresarial, mas também no poder público e no terceiro setor.

A partir da análise exploratória das ações destes movimentos, foi possível perceber então que ser convertido à sustentabilidade ganha um senso prático abrangente, capaz de abarcar os mais diversos âmbitos da vida dos participantes do espaço empresarial. De certa forma, um estilo de vida peculiar, no sentido de Bourdieu (2008a). No subespaço da sustentabilidade empresarial, a pesquisa começou a delinear algumas clivagens importantes: os enunciadores mais legítimos – os top managers mais notáveis adeptos da causa sustentável –, os profissionais da sustentabilidade de médio escalão, os educadores empresariais que veem na sustentabilidade um novo paradigma de ensino-aprendizagem e os jovens neófitos, que estão nos momentos iniciais ou intermediários de socialização institucional nas business schools. Em posições mais periféricas, já que estão mais investidos em espaços não necessariamente empresariais, podemos citar os gestores que atuam no terceiro setor (i.e., organizações não governamentais e fundações), lideranças de movimentos socioambientais, dirigentes de órgãos públicos e de organizações supranacionais.

A partir desta análise exploratória, a pergunta central da pesquisa foi estabelecida como sendo a seguinte: como é possível compreender e explicar o momento atual da institucionalização deste fenômeno no espaço empresarial brasileiro?

Primeiras etapas da operacionalização: a sociogênese e a elite de adeptos

Inicialmente, a questão norteadora abriu terreno para outras duas perguntas específicas: quando e como agentes do espaço empresarial passaram a tomar posições e a liderar de forma considerada “sustentável”? E quais propriedades sociais atuam como elementos distintivos do grupo de top managers adeptos da sustentabilidade? Deste modo, duas frentes de pesquisa começaram a ser empreendidas concomitantemente: a primeira é voltada à análise sociogenética do fenômeno; e a segunda, direcionada aos agentes com maiores montantes de capital simbólico.

A inspiração para trabalhar na primeira frente de pesquisa advém tanto do estruturalismo genético bourdieusiano como do institucionalismo sociológico. A perspectiva bourdieusiana assume que as estruturas sociais apenas podem ser compreendidas através de uma sociogênese dos espaços sociais, dos agentes e das práticas (BOURDIEU, 2004). Em direção similar, Berger e Luckmann (2014) advertiram no sentido de que não há como compreender uma instituição sem entender a sua história. Para oferecer uma compreensão histórica sobre o fenômeno da sustentabilidade empresarial, recorreu-se a uma pesquisa documental combinada a uma revisão da literatura acadêmica dedicada ao assunto.

O trabalho com essas fontes foi feito de modo reflexivo e sociológico sempre, a fim de garantir um uso contextualizado das referências escolhidas. Este tipo de sociologia das fontes é válido para evitar um erro, bem destrinchado por Le Goff (1990), a que todo cientista social está sujeito: transformar um documento em um monumento, acreditando que o documento não possui marcas das condições sociais do período histórico em que foi produzido. Para a pesquisa em pauta, perguntas como “quem são os autores de materiais especializados em sustentabilidade?” e “em que contexto histórico determinado material foi produzido?” sempre estiveram presentes. Neste ponto, também foram úteis as recomendações de Miceli (2001) acerca do trabalho sobre as fontes, sobretudo no que concerne à identificação dos princípios de produção dos materiais consultados, em termos de posição relativa dos produtores na estrutura social, nível de contribuição para a gênese e continuidade e ruptura do espaço social.

A interpretação dos achados históricos relativos à primeira etapa da pesquisa se inspirou largamente em uma das frentes de trabalho de Bourdieu: a dos processos de produção, exportação e importação que caracterizam a circulação internacional de ideias. Provavelmente, a tese bourdieusiana mais importante acerca do assunto seja a de que os textos transitam, mas seus contextos de produção não os acompanham: isso ocorre porque os campos de produção e os de recepção são diferentes (BOURDIEU, 2002). As ideias recebidas são sempre reinterpretadas segundo as categorias de pensamento utilizadas nos campos de recepção e, quando falamos em circulação internacional, esse processo de recodificação é marcado, na maioria das vezes, por adequações linguísticas decisivas nas traduções (BOURDIEU, 2002). O sentido de uma obra, ideário ou teoria estrangeira pode ser melhor compreendido tanto a partir do seu campo de origem como do seu campo de recepção: negligenciar um dos dois lados dessa dinâmica resulta em mal-entendidos (BOURDIEU, 2002).

A sociogênese da sustentabilidade empresarial revelou um processo coletivo de importação e tradução da ideia de desenvolvimento sustentável no campo econômico, que se tornou mais nítido a partir dos anos 1990. Tal processo foi catalisado por passeurs (e.g., John Elkington, consultor britânico), agentes capazes de transitar entre espaços supranacionais como as agências da Organização das Nações Unidas (ONU), movimentos socioambientais e as maiores corporações do mundo. Pouco a pouco, o modelo do desenvolvimento sustentável foi transformado em sustentabilidade empresarial. Esse processo de apropriação também recorreu às instituições anteriores, fazendo com que a sustentabilidade empresarial carregasse, tal como um passado incorporado, as referências norteadoras da filantropia empresarial e da responsabilidade social empresarial, para citarmos duas dessas instituições. Por isso, as formas de ser e de agir dos adeptos da sustentabilidade empresarial trazem consigo elementos dos filantropos da virada do século XIX para o XX, dos socialmente responsáveis no período posterior à Segunda Guerra Mundial e de todos que contribuíram com a emergência do ideário de desenvolvimento sustentável na ONU.

A segunda frente de trabalho desenvolveu uma prosopografia dos indivíduos mais notáveis da sustentabilidade empresarial, cuja maior referência foi o artigo “Le patronat” (BOURDIEU; SAINT-MARTIN, 1978). Semelhante a uma biografia coletiva, a prosopografia é feita a partir da investigação de certas dimensões que interessam ao estudo de indivíduos pertencentes a um mesmo espaço social (BROADY, 2002). Considerando a teoria bourdieusiana como pilar básico, foram privilegiadas as seguintes dimensões para a análise: origem social, itinerários, disposições e práticas. Tais dimensões são mobilizadas, por exemplo, também em A distinção: crítica social do julgamento (BOURDIEU, 2008a). Diferentemente das fontes de dados disponíveis acerca da elite de adeptos da sustentabilidade empresarial delimitada na pesquisa5, Bourdieu e Saint-Martin (1978) contaram com diversos materiais biográficos previamente disponíveis e organizados em forma de anuários sobre os dirigentes empresariais franceses, tais como o Who’s who in France. Bourdieu e Saint-Martin (1978) utilizaram como tipo de fonte mais acessível a mídia especializada sobre empresários e patrões, também usada nesta investigação, com a diferença de que não existem até o momento anuários sistematizados sobre estes agentes empresariais atuantes no Brasil.

Os achados desta frente de pesquisa revelaram que ser um adepto da sustentabilidade empresarial significa integrar um movimento social que, distintivamente, se contrapõe às normas mais convencionais de conduta do campo econômico, numa tomada de posição marcadamente heterodoxa. Não custa lembrar que a doxa6 do campo econômico é, ao menos desde os anos 1990, marcada pelas crenças neoliberais. A sustentabilidade empresarial, uma apropriação da proposta de desenvolvimento sustentável da ONU, emerge como uma via alternativa ao neoliberalismo, mas ao mesmo tempo possui certa imbricação no processo de avanço neoliberal. Isso ocorre porque agentes econômicos que reivindicam o chamado desenvolvimento sustentável geralmente tomam posições no sentido de desqualificar o intervencionismo estatal e de propor outros caminhos para solucionar problemas públicos, geralmente advogando por uma maior centralidade das empresas privadas (DEZALAY, 2007).

É importante salientar que o neoliberalismo emerge das disputas travadas no espaço dos economistas, mas transborda esse espaço. E, amparado por tecnologias (geralmente revestidas de “técnica” e “precisão matemática”) desenvolvidas pelos agentes dominantes da disciplina econômica, o neoliberalismo adquire um poder capaz de atravessar os mais diversos campos sociais (BOURDIEU, 2017). É assim que a teoria econômica adquire um poder performativo, um efeito de teoria: a forma neoliberal de compreender o mundo dos economistas mais matemáticos, que apresentam sua teoria como “pura” e “técnica”, é transmitida, pelo efeito simbólico da autoridade deste saber, aos banqueiros, contadores, empresários, gestores e jornalistas econômicos.

Para entender melhor essa questão do poder performativo no caso da sustentabilidade empresarial, a dimensão discursiva das práticas da elite de adeptos foi fundamental. Aqui, lembramos de uma das principais teses durkheimianas: as palavras constroem o social, ao elaborar as classificações das pessoas e das coisas (DURKHEIM; MAUSS, 2000). Bourdieu (2003b) concorda com essa perspectiva e avança: o discurso é resultado do habitus linguístico e do mercado linguístico. O ato discursivo pode ser definido como a manifestação prática de uma disposição social (i.e., um habitus) em um dado contexto ou situação pertencente a um mercado linguístico. Este existe sempre quando há agentes que produzem discursos e agentes receptores aptos a apreciá-lo. Esta dinâmica é marcada por relações de poder, que estruturam o mercado linguístico tal como um campo de forças, porque “[…] nem todos os produtores de produtos linguísticos, de palavras, são iguais” (BOURDIEU, 2003b, p. 132).

A análise revelou que o principal elemento de distinção dos líderes sustentáveis é de caráter linguístico. A linguagem também é a dimensão analítica mais importante para compreender suas disposições sociais. São seus atos de fala e de escrita que fazem com que esses agentes se diferenciem dos que não aderem ao “modelo sustentável” e, ao mesmo tempo, criem laços de solidariedade entre si, alavancando movimentos como a Plataforma Liderança Sustentável. Além disso, os discursos desses agentes atuam como importantes indicadores de capital simbólico: tanto no sentido de que falar em situações oficiais da sustentabilidade empresarial exige reconhecimento para tal quanto no sentido dos lucros simbólicos decorrentes dos atos de fala realizados.

A inspiração para seguir uma análise nesta direção dos enunciados performativos, que se concentrou nas práticas discursivas da elite de adeptos, deriva sobretudo da proposta de Saint-Martin (2008), que recomenda estudos voltados aos modos pelos quais as elites prescrevem ações. Mas se o foco analítico direcionado à elite de adeptos da sustentabilidade empresarial e suas prescrições estava sendo cumprido, tornava-se cada vez mais relevante mapear as estratégias de reprodução social deste grupo dirigente.

A aposta na dimensão da socialização: a educação gerencial

A prescrição de ações não é uma exclusividade dos mais notáveis da elite de adeptos. Os dados apontaram que a sustentabilidade empresarial está assentada em um conjunto de princípios que definem uma teoria leiga gerencial, disseminada em progressão geométrica desde o início dos anos 1990. Aqui também se recorreu a Bourdieu (2005), em seu artigo sobre o campo econômico, para compreender como os livros gerenciais são caracterizados por teorias leigas da ação estratégica, já que superestimam as estratégias conscientes dos agentes e subestimam as pressões estruturais do campo econômico. Tais teorias servem principalmente para auxiliar os dirigentes em seus processos de decisão, sendo ensinadas metodicamente nas escolas de negócios, em processos marcados pela normatividade (BOURDIEU, 2005). Aquelas mais legítimas e amplamente usadas no campo econômico têm seus pressupostos alicerçados nas práticas dos agentes mais bem posicionados, a saber, as empresas com maior presença de mercado e seus líderes representantes.

Considerando esta dimensão analítica, o objeto desta pesquisa começou a ser construído apostando-se em outra direção, a da socialização institucional: a educação de jovens quadros gerenciais. As duas primeiras frentes metodológicas – análise histórica do fenômeno e prosopografia do grupo dirigente – ofereceram elementos para a sociogênese da sustentabilidade empresarial e da ideia de liderança sustentável, do lugar que os adeptos ocupam no espaço empresarial brasileiro, dos processos que levaram determinados top managers a serem reconhecidos como enunciadores legítimos, incluindo suas prescrições normativas. A terceira frente da pesquisa, voltada aos mecanismos de socialização institucional, descortinou melhor os processos de produção e reprodução dos adeptos da sustentabilidade, esclarecendo a disseminação cultural, a transmissão de esquemas cognitivos e a incorporação de disposições sociais.

Tabela 1 Desenho metodológico geral 

Pergunta norteadora
Como é possível compreender e explicar o momento atual da institucionalização da sustentabilidade empresarial no espaço empresarial brasileiro?
Perguntas secundárias Técnicas Fontes
Quando e como agentes do espaço empresarial passam a tomar posições e a liderar de forma “sustentável”? Pesquisa documental Livros especializados, revistas e jornais voltados ao “mundo empresarial”, pesquisas realizadas dentro e fora das ciências sociais.
Quais propriedades sociais atuam como elementos distintivos do grupo de top managers adeptos da “sustentabilidade”? Prosopografia Livros especializados, revistas e jornais voltados ao tema empresarial, biografias, currículos disponíveis na internet, redes sociais virtuais, sites de empresas e associações empresariais, palestras e entrevistas disponíveis na internet.
Como as business schools atuam no sentido de formar novos adeptos ajustados às exigências institucionais da sustentabilidade empresarial? Observação assistemática, pesquisa documental e entrevistas semiestruturadas Docentes e discentes de escolas de negócios envolvidos com o tema da sustentabilidade, cursos relativos ao assunto.

Fonte: Elaboração própria.

A terceira frente de investigação se define como uma “sociologia da transmissão institucionalizada da cultura” (BOURDIEU, 2007, p. 205). O termo cultura é aqui utilizado como um “repertório comum de respostas a problemas recorrentes […], um conjunto comum de esquemas fundamentais previamente assimilados” (p. 208). Tais esquemas cognitivos e linguísticos são as próprias formas de pensar e de se expressar, respectivamente, sendo transmitidos principalmente via sistemas de ensino (BOURDIEU, 2007). Neste prisma, o produto final da atividade de ensino são os “indivíduos programados, quer dizer, dotados de um programa homogêneo de percepção, de pensamento e de ação, que constituem o produto mais específico de um sistema de ensino” (p. 206). Cursos de sustentabilidade empresarial se revelam como um ambiente propício para a transmissão cultural metódica, o que diz respeito diretamente ao que Bourdieu (2007) concebe como transmissão institucionalizada, ungindo assim os novos militantes da causa da sustentabilidade, conformando neófitos.

É neste ponto da análise dos dados que a dimensão disposicional ganhou centralidade, uma vez que se trata de apreender como instituições de ensino criam sistemas de incorporação de disposições capazes de engendrar práticas nos mais diversos campos (BOURDIEU, 2007). Em termos de viabilização da coleta de dados sobre a dimensão disposicional, foi muito importante não se restringir ao habitus bourdieusiano, recorrendo frequentemente aos aportes de Bernard Lahire. Além de ter uma compreensão mais plural sobre as disposições que carregamos, Lahire (1999) recomenda observar com atenção o que é transmitido e como se transmite em relações como as que ocorrem entre professores e alunos ou entre pais e filhos. Este insight aparentemente simples fez, por exemplo, com que perguntas fossem estabelecidas no roteiro de entrevista no sentido de averiguar como os discentes e egressos destes cursos de sustentabilidade em escolas de negócios se relacionavam com os professores: o que relatavam em termos de aprendizados mais significativos e como exatamente as vivências que envolveram os cursos transformaram ou não suas vidas.

Inicialmente, a investigação se voltou aos processos sociais que ocorrem em duas business schools que são protagonistas tanto em seus espaços nacionais (Brasil e França) como em suas regiões geopolíticas (América Latina e Europa). Do lado brasileiro, a principal disciplina relativa à sustentabilidade e voltada a alunos de graduação da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (FGV-EAESP), a “Formação Integrada para a Sustentabilidade”, coordenada pelo GVces. Do lado francês, a análise enfocou o caso do mestrado especializado em sustentabilidade da Hautes Études Commerciales de Paris (HEC-Paris), o MSc in Sustainability and Social Innovation (SASI), que também é coordenado por um centro especializado em modelos gerenciais heterodoxos, o Society and Organizations Institute (S&O).

A coleta de dados sobre os cenários de educação para a sustentabilidade nestas duas business schools ocorreu de modo sequencial: primeiramente, sobre a FGV-EAESP, entre 2016 e 2017; em um segundo momento, em decorrência da passagem do pesquisador pela França entre 2017 e 2018, estudou-se os processos concernentes à HEC-Paris. Ambos os cursos se erguem na via da contra-doxa (BOURDIEU, 2016), isto é, se propõem a ser reformistas institucionais, indo contra a forma mais legítima de gerenciar as organizações e, consequentemente, numa clara oposição a agentes poderosos do campo econômico que tendem a adotar um ideário marcado pela exaltação das finanças e do liberalismo econômico.

Para mapear os processos educacionais que ocorrem nestas business schools, as seguintes dimensões analíticas foram contempladas: 1) histórias próprias de cada escola em relação à “educação para a sustentabilidade”; 2) formas de socialização institucional (e.g., cursos específicos, metodologias de ensino); 3) esquemas cognitivos, linguísticos e práticos transmitidos nas relações entre professores e alunos, bem como nos documentos textuais e registros audiovisuais relativos aos cursos de sustentabilidade; e 4) práticas discursivas dos agentes participantes das turmas de sustentabilidade de ambas as escolas. A lógica que embasa este rol de dimensões se refere a uma necessidade, também muito ancorada nos aportes de Bourdieu, de mapear as condições de produção dos cursos – com uma atenção especial ao papel da ONU e de empresas parceiras –, os sistemas de ensino – incluindo aqui a dimensão propriamente pedagógica –, os elementos que caracterizam a transmissão cultural entre os participantes e o senso prático dos neófitos da sustentabilidade empresarial.

No caso das entrevistas, convém ponderar que, a fim de apreender as trajetórias de vida dos agentes entrevistados, tanto os da FGV-EAESP quanto da HEC-Paris, identificando assim os pontos de ruptura, conversões, além de modos de aquisição das disposições necessárias, recorreu-se a um estilo de enquete bastante próximo ao método narrativo de Jovchelovitch e Bauer (2012). Utilizou-se assim o mote inicial “como a sustentabilidade entrou na sua vida?”, seguindo com perguntas imanentes à entrevista, ou seja, próprias de cada situação de entrevista e, portanto, distintas daquelas delimitadas a priori pelo entrevistador, somadas a algumas poucas questões exmanentes (e.g., o que significa sustentabilidade para você? O que você pensa sobre a sustentabilidade empresarial?). O trabalho analítico se concentrou nestas narrativas de vida, delas apreendendo os processos de conversão para a sustentabilidade e as ilusões biográficas (BOURDIEU, 2008b), isto é, as maneiras de perceber e reescrever a própria história de vida.

A investigação aprofundada destes cursos no Brasil e na França descortinou um processo de conformação de um tipo de agente que caracteriza a cada vez mais avançada instituição da sustentabilidade empresarial. A crença produzida é a de que esses jovens gestores “militantes da causa”, cada vez mais solidários entre si em turmas de sustentabilidade, pensem, sintam e ajam não só no espaço empresarial, mas também em outros âmbitos de suas vidas, direcionados pelo mantra do desenvolvimento sustentável. Em seus ringues de luta, esse grupo acredita que tem como maior desafio vencer os que sobrevalorizam a racionalidade econômica, que se reveste, por exemplo, na crença de que as empresas não objetivam nada além do que maximizar seus lucros e de que sustentabilidade é para os “abraçadores de árvores”.

Depois destas três frentes de pesquisa, a construção do objeto se encaminhou para um trabalho de maior fôlego sobre como as business schools de diferentes partes do mundo se ajustam entre si e constroem uma conformação de adeptos no sentido de estabelecer um possível padrão internacional. Em um ponto temporal inicial (T1), destaca-se a parceria entre o Pacto Global da ONU e a European Foundation for Management Development (EFMD). Emerge desta aliança, em 2004, uma rede internacional de fomento da chamada liderança responsável (responsible leadership, em inglês). A rede foi denominada Globally Responsible Leadership Initiative (GRLI), sendo composta por mais de sessenta instituições de ensino superior (IESs) e empresas de cinco continentes diferentes que, juntas, representavam 300 mil estudantes e 1 milhão de empregados. O GRLI representa o primeiro sinal de que a institucionalização da sustentabilidade empresarial avançava para os corpos dos agentes através do delineamento do líder globalmente responsável e sua forma peculiar de ser e de agir.

O segundo momento (T2) é demarcado quando a educação de novos gestores para a sustentabilidade ganha novo impulso em 2006. Trata-se do surgimento do movimento Principles for Responsible Management Education (PRME), mais um desdobramento do Pacto Global. Podemos entender esse movimento como uma rede internacional de instituições de ensino dedicadas à educação gerencial e que se revelam como produtoras de cursos de especialização em sustentabilidade empresarial. Sociologicamente, observamos que essas escolas de negócios ofertam aos seus estudantes consumidores (geralmente, jovens profissionais) a chance de adquirir bens simbólicos (e.g., diploma de especialista em sustentabilidade, legitimação como adepto da sustentabilidade, inserção em redes internacionais) mediante quantias financeiras (na maioria dos casos) e exigências mais ou menos arbitrárias (e.g., experiência profissional prévia de dois anos, proficiência em línguas estrangeiras, pontuação mínima em exames de aptidão como o Graduate Management Admission Test – GMAT). Paralelamente, é do interesse da aliança institucional do Pacto Global, comandada pela ONU e grandes agentes empresariais, que novos managers (i.e., novos “talentos”) sejam produzidos em moldes compatíveis com o ideário do desenvolvimento sustentável.

Este espaço internacional de trocas econômicas e simbólicas configura o que podemos chamar de mercado internacional de educação executiva em prol da sustentabilidade. Aqui, nos ancoramos na noção de mercado geralmente empregada por investigadores do campo da sociologia econômica, que contribuíram com estudos sociológicos sobre diversos mercados, entre eles o próprio Bourdieu. Destacam-se alguns estudos exemplares de mercados numa perspectiva sociológica: de casas próprias (BOURDIEU, 2003a), de morangos de mesa (GARCIA-PARPET, 2003) e de órgãos para transplante (STEINER, 2004). Alinhado com essas pesquisas, mobilizar a noção de construção social do mercado significa aqui enfatizar o caráter historicamente situado, relacional e político, institucional e estruturante das trocas mercantis entre os mais diversos agentes participantes (e.g., produtores, distribuidores, vendedores, consumidores, agentes estatais). Atualmente, a pesquisa tem se voltado à compreensão dos elementos estruturantes deste mercado emergente.

Considerações finais

Este texto foi feito de forma a contribuir para uma seção temática da revista Educação e Pesquisa, a propósito das mais de duas décadas desde o falecimento de Bourdieu. A investigação em foco, inspirada largamente nos aportes do grand professeur, possui dimensões analíticas que enfatizam desde a sociogênese do fenômeno da chamada sustentabilidade empresarial e a formação de uma elite de top managers adeptos, até os processos educacionais em escolas de negócios. Tal multiplicidade de frentes analíticas – da produção à reprodução de um grupo social –, associada a um processo de institucionalização, serviu para fins de debate sobre a proficuidade da abordagem de Bourdieu para fundamentar projetos de pesquisa.

A intenção deste paper foi minimizar a lacuna, na produção em sociologia, de trabalhos que explicitem diretamente os meandros do fazer sociológico, do rompimento com o senso comum até os desdobramentos analíticos derivados do processo de investigação. O mais importante aqui é ressaltar que um objeto em sociologia se constrói a partir do fazer sociológico, dos meandros da investigação, e não de certa pretensão racionalista, para não dizer escolástica, de planejamentos pouco sensíveis à dinâmica relacional entre pesquisador e campo de pesquisa.

O argumento central construído de forma cumulativa ao longo das frentes da investigação apresentada foi o de que a institucionalização da sustentabilidade empresarial avança no sentido da construção coletiva e internacional de um agente-típico, que podemos classificar como o herói sustentável. A história do fenômeno – em especial as últimas iniciativas da aliança entre a ONU e empresas em torno do Pacto Global – aponta nessa direção, assim como as tomadas de posição e as práticas discursivas dos top managers estudados. As técnicas pedagógicas de cursos especializados nas escolas de negócios reforçam a construção do herói sustentável, contribuindo para seu ganho de escala e para a estratégia de reprodução social dos adeptos da “sustentabilidade”. Atualmente, o insight que tem guiado esta investigação é o de que a construção de um mercado internacional de educação de gerentes em prol da sustentabilidade é o elemento chave para compreendermos a estratégia de reprodução social dos adeptos deste modelo heterodoxo de gestão.

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2- Esta afirmação, ainda que baseada nos diagnósticos de Soares (2005), Cano (2012) e Neiva (2015), carece de uma comprovação mais robusta para o contexto atual. Um possível caminho para testar a atualidade deste argumento pode ser por meio de uma consulta direta a estudantes concluintes ou recém-egressos de cursos de Ciências Sociais no Brasil (via survey, por exemplo) a fim de averiguar tanto as ênfases quanto as principais deficiências de suas formações em sociologia. Tal consulta foge do escopo deste paper, mas é apresentada aqui como uma sugestão de pesquisa relevante.

3- Além destas referências, recomenda-se ainda a consulta à obra Trente ans après La distinction de Pierre Bourdieu, organizada por Coulangeon e Duval (2013), que congrega relatos de alguns dos principais pesquisadores (sobretudo franceses, mas também de outras nacionalidades) inspirados na sociologia bourdieusiana. Para um resumo em português dessa obra e sua relevância para a sociologia, ver Barreiros (2017).

4- Roberto Grün é provavelmente um dos pesquisadores mais notáveis no campo da sociologia econômica brasileira, tendo inclusive trabalhado com o próprio Bourdieu na França.

5- O processo de delimitação da elite, incluindo os critérios de seleção dos indivíduos que viriam a compor a base prosopográfica é esmiuçada em Barreiros (2019).

6- Na perspectiva bourdieusiana, cada campo tende a produzir a sua doxa, isto é, o conjunto de crenças compartilhadas e tidas como inquestionáveis (WACQUANT, 2008). Os agentes tomam posições conforme a doxa: os dominantes tendem a conservar as ordens vigentes, assumindo uma ortodoxia, ao passo que os desafiadores recorrem a adaptações e ataques à doxa, abraçando a heterodoxia.

Recebido: 31 de Julho de 2021; Aceito: 21 de Fevereiro de 2022

Bruno Costa Barreiros é professor adjunto do Departamento de Sociologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e doutor em sociologia política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), incluindo estágio doutoral na École Normale Supérieure de Paris.

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