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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 14-Jul-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248245469 

SEÇÃO TEMÁTICA: 20 anos depois: pensar com e sem Bourdieu

A atualidade de A reprodução de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron: 50 anos de um legado acadêmico e político 1

Adriane Knoblauch2 
http://orcid.org/0000-0002-8842-4128

Cristina Carta Cardoso de Medeiros2 
http://orcid.org/0000-0002-5269-9592

2 - Universidade Federal do Paraná , Curitiba , PR , Brasil . Contatos: adrianeknoblauch@gmail.com ; cricaccm@gmail.com


Resumo

Este artigo discute o livro de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino , lançado em 1970, na França. Iniciando por uma localização da obra em seu contexto de origem e suas principais premissas teóricas, restituem-se, na sequência, achados derivados de uma pesquisa empírica realizada com artigos publicados em 2020 que faziam referência a esse texto. Foram analisados 51 artigos, localizados na plataforma Google Acadêmico, que foram tratados a partir da análise de conteúdo. Os artigos demonstraram que, mesmo passados 50 anos da publicação do livro, seu conteúdo ainda é atual e incontornável para observar o sistema de ensino. Foram utilizados conceitos e noções do manuscrito em variados temas e problemas ligados ao campo educacional brasileiro, tais como: a relação entre o desempenho escolar e a origem social dos alunos; o capital cultural como um patrimônio estimulado e transmitido pela família, capaz de gerar impacto na definição de um trajeto escolar bem-sucedido, ou não; o papel da escola na reprodução do capital simbólico e o fato de as ações pedagógicas não serem neutras, e sim exemplos de violência simbólica. Finaliza-se o texto com a indicação de que as leituras realizadas da obra de Bourdieu no Brasil sofreram uma alteração significativa ao longo dos últimos anos. A partir do exame da produção científica estudada, foi possível perceber uma outra lógica de apropriação do arcabouço desenvolvido pelo sociólogo, utilizado como instrumental teórico-metodológico em pesquisas de caráter multidisciplinar e multimetodológico.

Palavras-Chave: A reprodução; 50 anos; Bourdieu e Passeron; Produção científica; Campo educacional brasileiro

Abstract

This paper discusses the book by Pierre Bourdieu and Jean-Claude Passeron, La Reproduction. Éléments pour une théorie du système d’enseignement , released in 1970 in France. Starting with a location of the work in its origin context and main theoretical premises, subsequently, findings derived from empirical research carried out with articles published in 2020 that referred to this text. Located on the Google Scholar platform, 51 papers were analyzed and treated using the content analysis. Papers demonstrated that even after 50 years from the book publishing, its content is still topical and unavoidable to observe the education system. Concepts and notions of the manuscript were used in various themes and problems related to the Brazilian educational field, such as relationship between school performance and students’ social origin; cultural capital as a heritage stimulated and transmitted by the family, able to generate impact on definition of a successful or unsuccessful school path; the role played by the school on reproduction of symbolic capital; and the fact that pedagogical actions are not neutral, but examples of symbolic violence. The text is concluded indicating that readings of the Bourdieu’s work in Brazil experienced a significant change over the last few years. From the examination of scientific production studied was possible notice out another framework appropriation logic developed by the sociologist, used as theoretical-methodological instrument in multidisciplinary and multi-methodological research.

Key words: Reproduction; 50 years; Bourdieu and Passeron; Scientific production; Brazilian educational field

D’excellentes intentions peuvent produire des effets qui ne sont pas du tout ceux qu’on a souhaités et qui exercent, pour de jeunes esprits, des effets de clôture. Donc je voudrais libérer, en quelque sorte, autant qu’il est possible, de cet effet de clôture que peut exercer une oeuvre reçue dans certaines conditions. De même que Marx disait qu’il n’était pas marxiste, je dirais que je ne suis ni bourdieusien ni bourdivin. 3

Pierre Bourdieu

Este texto discute o legado do livro de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino . A iniciativa se deu pela comemoração do lançamento da obra francesa, datada de 1970. Para tanto, divide-se o artigo em três partes. Na primeira, aborda-se a recepção do livro no país de origem e no Brasil, bem como resgatam-se premissas teóricas significativas que revelam o caráter da obra e a relevância de sua mensagem. Na segunda parte, a partir da análise de artigos publicados em revistas científicas, debate-se a herança do livro para os leitores brasileiros e como eles se utilizaram do manuscrito para tratar de seus problemas de pesquisa. Finaliza-se o artigo com a indicação de um novo formato de apropriação do arcabouço teórico-metodológico dos autores, principalmente no que concerne a Bourdieu, e como essa apropriação se faz presente e fundamental para a análise das questões do campo educacional brasileiro.

A reprodução na França e no Brasil

Em 1970, Pierre Bourdieu, em parceria com Jean-Claude Passeron, publica o livro La reproduction: éléments pour une théorie du système d’enseignement , traduzido para o português como A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino e lançado no Brasil pela Livraria Francisco Alves, em 1975.

O livro A reprodução é considerado por muitos comentadores uma síntese teórica de Les héritiers: les étudiants et la culture , de 1964 ( Os herdeiros: os estudantes e a cultura , lançado no Brasil pela Editora da Universidade Federal de Santa Catarina, em 2014). Isso pode muito bem ser compreendido ao se verificar que, além dos dados empíricos, os autores se utilizaram de noções elaboradas para explanar e explicar a realidade observada, como a noção de capital cultural associada às noções de capital linguístico ou competência linguística. Essas discussões figuram em muitos trechos do texto, uma vez que os autores consideram o sistema de ensino como um sistema de comunicação. Ampliam a definição do conceito e suas implicações enquanto bens culturais que são transmitidos pelas diferentes ações pedagógicas familiares e cujo valor, enquanto capital cultural, se dá em função da distância ou proximidade entre o arbitrário cultural imposto pela ação pedagógica dominante e o arbitrário cultural inculcado pela ação pedagógica familiar nos diferentes grupos sociais. Vale destacar, como apontam Champagne e Christin (2004) , que, nas primeiras análises do sistema de ensino, a noção de capital cultural não tinha a complexidade que adquiriu na sequência, mas é nesses trabalhos que se encontra sua gênese, aprofundando-se posteriormente o conceito em pesquisas sobre as funções sociais das práticas culturais.

Além da noção de capital cultural, Bourdieu e Passeron (2008) abordam a noção de violência simbólica, afirmando que toda ação pedagógica é objetivamente uma violência simbólica enquanto imposição, por um poder arbitrário, de um arbitrário cultural. Assim, a ação pedagógica – exercida pela autoridade pedagógica e efetivada pela comunicação pedagógica, não no sentido informativo, mas no sentido em que o discurso do professor possui uma autoridade institucionalizada – aparece como uma instância de legitimação das relações de força no seio do espaço social, legitimando também a hierarquia social que repousa no arbitrário cultural, contribuindo para os fundamentos da reprodução cultural e social. Esse arbitrário cultural escolar se tornou um instrumento da dominação simbólica por um determinado uso social da cultura como capital simbólico, sendo um exemplo, por ocasião de sua aquisição, da violência simbólica, não só pela imposição da legitimidade conferida pelo grupo dominante, como também pela conversão cultural necessária para sua assimilação.

Os autores se referem igualmente ao conceito de habitus como produto da interiorização dos princípios de um arbitrário cultural capaz de se perpetuar após o cessar da ação pedagógica, dessa forma conservando nas práticas os princípios do arbitrário interiorizado. Também destacam o conceito como um sistema de esquemas de percepção, de pensamento, de apreciação e de ação, princípio unificador e gerador de práticas, utilizado para compreender a durabilidade e transferência de tais práticas.

Segundo os autores, a educação, a partir de práticas institucionalizadas, poderia ser considerada um instrumento fundamental da continuidade histórica. Responsável pelo processo por meio do qual se opera a reprodução do arbitrário cultural pela mediação da produção do habitus e produtor de práticas em conformidade com o arbitrário cultural, o sistema educacional equivaleria, em nível cultural, ao que acontece na transmissão do capital genético em nível biológico. Em algumas passagens de A reprodução , percebe-se a presença de grande parte dos elementos necessários para compreender o conceito de habitus . Obviamente tais elementos serão sistematizados e aprofundados ao longo do trabalho de Pierre Bourdieu.

A relevância de se utilizar o conceito de habitus como uma chave de interpretação de análise está na constatação de que a universidade não conseguiu, com a entrada de indivíduos com habitus heterogêneos em seu interior, resolver os problemas pedagógicos que essa mudança de público acarretou. Aí estaria a natureza exata da crise do sistema universitário francês, desde os anos 1960, que tem impacto até hoje. A reprodução social derivada da instituição escolar de nível superior se deu então, segundo Bourdieu e Passeron (2008) , devido à ineficiência e ao enfraquecimento da informação operada na comunicação entre professores e estudantes.

Os autores perceberam que a comunicação pedagógica se perpetua em determinado formato e que a informação transmitida por essa comunicação tende a se anular para alguns alunos excluídos da possibilidade de lidar com o idioma universitário. A comunicação pedagógica, com seu ritmo, seu rito, suas palavras pouco conhecidas ou desconhecidas que aparecem estereotipadas e seu sistema de engajamento visível e invisível no espaço social, constitui a ação pedagógica como ação de imposição e inculcação. Os alunos que são capazes de intercambiar os signos de reconhecimento da linguagem e da cultura, que concordam seu habitus cultivado com as exigências da instituição, levam vantagem sobre os que não fazem essa concordância e que ainda sofrem pela ausência de questionamento sobre a forma tomada pela comunicação pedagógica por parte dos professores.

É toda uma lógica da instituição escolar fundada sobre um trabalho pedagógico de tipo tradicional e que garante a infalibilidade do professor e o reconhecimento de sua autoridade. Bourdieu e Passeron (2008) lembram que o sistema de ensino, para cumprir sua função social de legitimação da cultura dominante, também procede aos processos de seleção e eliminação. O exame (a prova) possui características e funções internas particulares no sistema de ensino e domina a vida universitária não somente nas representações e práticas dos agentes, mas na organização e no funcionamento da instituição.

Não é apenas a expressão mais literal dos valores escolares implícitos no sistema de ensino, no sentido de impor como digna de sanção universitária uma definição social do saber e da maneira de manifestá-la, mas ao oferecer igualmente um dos instrumentos mais eficazes para o empreendimento da inculcação da cultura dominante e do valor dessa cultura. Os diferentes tipos de provas escolares são modelos regrados e institucionalizados da comunicação e fornecem o protótipo da mensagem pedagógica, sendo um instrumento que ranqueia e certifica bastante eficaz, conseguindo mesmo proceder a uma eliminação antecipada quando, por proporções de eliminação, os indivíduos medem as possibilidades de passagem e as probabilidades de êxito, ou ainda as probabilidades objetivas e as esperanças subjetivas, no sistema de ensino.

Na finalização do livro, Bourdieu e Passeron (2008) indicam que o sistema de ensino age a partir de uma autonomia relativa que lhe permite servir mais eficazmente às demandas externas, sob uma pretensa independência e neutralidade, dissimulando as funções sociais da manutenção da ordem social estabelecida. Foi justamente essa visão da autonomia relativa que fez com que os autores, a partir do olhar para o universo universitário e pelas características sociais de seu público, fugissem das análises de senso comum que tendem a dicotomizar suas conclusões entre a condenação do sistema escolar, presumidamente o único culpado por todas as desigualdades que produz, e a denúncia de um sistema social tido como responsável pelas desigualdades, inocentando assim o sistema escolar. O efeito de sua autonomia relativa é possibilitar que o sistema de ensino traga uma contribuição específica para a reprodução social, assegurando a transmissão hereditária do capital cultural e sua função ideológica de dissimulação dessa função, e acreditando na ilusão de sua autonomia absoluta.

Os autores encerram a obra com a afirmação de que, em uma sociedade na qual a obtenção dos privilégios sociais depende cada vez mais estreitamente da possessão de títulos escolares, a escola tem por função assegurar a sucessão discreta dos direitos da burguesia, que não saberia mais transmiti-la de forma direta e declarada. Além de conferir aos privilegiados o privilégio supremo de não aparecerem como privilegiados, também consegue convencer os deserdados que eles devem seu destino escolar e social mais à sua deficiência de dons ou de méritos do que ao seu déficit de capital cultural. Assim, a despossessão absoluta exclui a consciência da despossessão.

Discutindo a recepção de Os herdeiros e A reprodução , Bourdieu (2002b , p. 73) avalia que o primeiro livro, apesar de não dizer nada de tão extraordinário, uma vez que os fatos eram conhecidos pela comunidade científica, foi como um “trovão no céu político”, ao revelar os mecanismos que fundamentavam o que se observava empiricamente. Os autores não se contentaram em dizer que o sistema de ensino elimina os alunos das classes desfavorecidas, mas buscaram explicar porque isso ocorria, evidenciando a contribuição dos educadores na reprodução das divisões sociais.

Falando do segundo livro, o autor afirma que o termo “reprodução” teve um efeito catastrófico, pois o termo circulou, apesar de nem todos terem lido o livro. Se por um lado se tornou um paradigma segundo o qual se identificava a contribuição do sistema escolar na reprodução da estrutura social, mostrando uma realidade que sacode as estruturas mentais e que pode mudar a visão do mundo, por outro bloqueou a leitura do texto. Sobre isso comenta que “[…] a história da literatura mostra muito bem que o que é comum à vida intelectual de uma época é na maioria das vezes, não o conteúdo dos livros, mas seus títulos” ( BOURDIEU, 2002b , p. 75). Assim, segundo o autor, realizou-se um “cordão sanitário” para anular, ou no mínimo neutralizar, os efeitos da mensagem que mostrava que o sistema de ensino exercia efeitos conservadores, sendo que anteriormente era considerado um sistema que proporcionava o aprendizado da cultura universal. Mesmo hoje, 50 anos após a publicação de A reprodução , a defesa do sistema escolar continua a postos, esquecendo, ou não querendo lembrar, que “[…] é porque se conhecem as leis da reprodução, que se tem uma pequena chance de minimizar a ação reprodutora da instituição escolar” ( BORDIEU, 2002b , p. 77).

A polêmica em torno das duas publicações é compreensível, segundo Bourdieu (2002a) , por dois motivos. O primeiro é que os leitores dos trabalhos de Sociologia têm a tendência de ler tais textos em uma perspectiva normativa. O segundo motivo seriam os interesses e o investimento no sistema escolar feito especialmente pelos chamados “miraculados”, ou seja, os raros afortunados, vindos dos meios populares, que conseguiram obter certo sucesso escolar e que, em vez de questionar o fato de serem exceções e tentar descobrir o que os distingue da maioria dos estudantes, observando os dados factuais das probabilidades objetivas de sucesso escolar segundo a origem social, teriam mais dificuldade em aceitar tal discurso antidemagógico e embasado em análises sociológicas. Discorrendo sobre esses indivíduos, o autor destaca que:

[…] aqueles que a escola liberou são os que, mais que os outros, estão inclinados a crer na escola libertadora. Alienados por sua liberação, eles têm fé na escola libertadora a serviço da escola conservadora que deve ao mito da escola libertadora, uma parte de seu poder de conservação. ( BOURDIEU, 2002a , p. 49).

Para Baudelot (2004) , que afirma ter tido a extraordinária chance de testemunhar a elaboração coletiva, por Bourdieu e Passeron, de Os herdeiros , comenta que a leitura do livro lhe proporcionou um “choque ontológico” composto de dois momentos. O primeiro teria sido a descoberta das consequências das desigualdades sociais dentro da escola, fato que ninguém na época, segundo o autor, supunha realmente a amplitude e as causas. Percebeu-se então que as causas eram menos econômicas que culturais, e que a escola, longe de ser inocente, contribuía para isso.

Segundo Champagne e Christin (2004) , esses dados não são mais novidade para ninguém e se tornaram até parte de uma interpretação corriqueira, mas, até os anos 1960, estavam disfarçados sob a ideologia do dom. A explicação de que as desigualdades de sucesso escolar residem na existência de “ handicaps culturais” teve um longo processo de reconhecimento, confrontando-se ativamente com a ideologia naturalística do dom para produzi-las e reproduzi-las em seu cotidiano. Percebeu-se então que os responsáveis não estavam somente no ministério da educação e no governo: eles estavam nas práticas pedagógicas cotidianas dos professores de todos os níveis de escolarização, nos comportamentos familiares inconscientes que penalizavam os mais desfavorecidos com o abismo entre a cultura escolar e a cultura da família e dinamizavam os outros pela transmissão osmótica dos códigos e das posturas morais e culturais mais rentáveis na escola. Cada um se encontrava implicado por essas descobertas.

Sobre esta questão, Baudelot (2006) , na ocasião em que comenta a importância dos escritos de Bourdieu e Passeron, destaca que essa análise da escola oportunizou a construção de um conceito totalmente novo que enriqueceu consideravelmente as análises sociais: a noção de capital cultural. Antes de Bourdieu, até a metade dos anos 1960, a concepção que se fazia das relações de classes era marcada por um viés marxista que pouco implicava os indivíduos.

O conceito que embasava então o olhar sobre essas relações era o conceito de exploração, já que a problemática essencial girava em torno da questão econômica. Assim, Bourdieu “[…] impõe uma concepção bem mais complexa das relações de classes. Enriquecendo as relações de classes com suas dimensões culturais e simbólicas, morais, psicológicas e corporais, reintroduziu de uma só vez os indivíduos e a vida cotidiana nas análises de classes” ( BAUDELOT, 2006 , p. 169).

Chapoulie (2005) destaca que A reprodução , assim como Os herdeiros exerceram uma influência durável muito além do domínio das pesquisas em Sociologia da Educação, principalmente pela contribuição dessas obras para transformar e consolidar a Sociologia como disciplina na França. Em 1970, a Sociologia se instalou em amplo exercício na academia, sendo ensinada em várias universidades, com diplomas próprios, estudantes, carreiras acadêmicas, publicações e pesquisadores liberados do empreendimento filosófico e de seus critérios de pertencimento e verificação.

Discorrendo sobre A reprodução , Passeron (2003) afirma que o livro, à parte sua sintaxe – já que muitas vezes os autores foram cobrados pela complexidade do texto –, não é ruim, nem no sentido ético, pelo suposto “golpe” dado, segundo alguns críticos, à escola e aos professores, ou pela chama da contestação estudantil que acendeu; nem no sentido científico, mesmo que tenha havido interpretações da obra como um texto marxista rançoso ou com características de um funcionalismo equivocado. Passeron ainda comenta que escrever em parceria com Bourdieu foi para ele a primeira entrada em um tipo de pesquisa epistemológica conduzida sobre textos e/ou dados de pesquisas produzidos e examinados na medida em que apareciam. Lembra-se também dos desafios da escrita conjunta, como uma maneira privilegiada de praticar um “controle cruzado” ( PASSERON, 2003 , p. 83), em que a construção das frases era fundada na articulação de argumentos históricos e de tratamento de dados, em um trabalho coletivo.

Segundo Pestaña (2017 , 2020 ) a colaboração científica entre os dois autores se interrompeu em 1972, verificando-se uma bifurcação de percursos institucionais e de orientações epistemológicas de cada um deles. Tal afastamento, ancorado sobretudo na diferença de opiniões sobre a possibilidade de unificar teorias sociológicas, no caso de Passeron culminou com a publicação da obra O raciocínio sociológico (1991), em que desenvolve perspectivas sobre os processos de pesquisa em Sociologia. Para Passeron, existem, e existirão sempre, marcas epistemológicas que dificultariam comparar diversas teorias pela inexistência de um paradigma transcontextual e transistórico capaz de dizer o que deve ser pesquisado e como. Assim o livro foi escrito nas alternativas que seu trabalho em parceira com Bourdieu abriria, ou seja, escrita com Bourdieu e contra Bourdieu.

Já no Brasil, a recepção de A reprodução marcou uma apropriação fragmentada da obra do sociólogo. Segundo Catani, A., Catani, D. e Pereira (2001) , os primeiros textos de Pierre Bourdieu publicados no Brasil são dois artigos que aparecem em coletâneas datadas de 1968, sendo que o autor começaria a ser mais lido em meados da década de 1970, primeiro com os artigos de sua autoria compilados por Sérgio Miceli e depois com a primeira edição brasileira de A reprodução . O fato de não haver outras publicações traduzidas para o português anteriores a essa obra, principalmente os artigos sobre Educação escritos pelo sociólogo francês, também é sintomático de uma forma de apropriação do seu quadro teórico-metodológico, em um campo de produção de conhecimento. Na mesma época citada anteriormente, três outros artigos seriam traduzidos e publicados em coletâneas brasileiras. Entretanto,

Se nessa década Bourdieu causaria certo impacto, embora restrito, na produção sociológica e antropológica universitária, passaria, entretanto, relativamente desapercebido no campo educacional brasileiro, que não responderia com maior entusiasmo à chegada de um sociólogo que, mesmo na França e na Europa, era tido como difícil e não oferecia muitas armas para as lutas acadêmicas da época, em geral voltadas à militância política. ( CATANI, A.; CATANI, D.; PEREIRA, 2002 , p. 9).

Para os autores, a ideia de que sua abordagem sociológica não fornecia armas para a militância política e era considerada crítica e denunciadora, porém não dialética, pode ser compreendida levando em consideração o parâmetro das leituras lacunares do autor e da desconsideração dos fundamentos de sua Sociologia, cujo objetivo sempre foi o de desvelar as formas de dominação e poder, bem como as disposições inculcadas que poderiam contribuir para a reprodução social e cultural. Catani, A., Catani, D. e Pereira (2002) destacam também a apropriação superficial de suas primeiras obras sobre Educação, a exemplo da leitura ao “pé da letra” de A reprodução , obra que foi tomada, num ato de desqualificação epistemológica, como um discurso geral válido para todas as sociedades, sendo também encarcerada na dicotomia reprodução versus transformação, tão combatida por Bourdieu. Essa dicotomia seria transmutada, na passagem dos anos 1980 para os anos 1990, na dicotomia reprodução versus resistência, ainda como um reflexo da leitura de A reprodução sem os quadros científicos mais amplos que lhe conferiam sentido. Assim, a obra passou a ser objeto de controvérsias políticas no campo educacional brasileiro, identificando-se inclusive uma cobrança de pressupostos políticos na obra de Pierre Bourdieu a partir de um tipo de leitura que se afastava da compreensão dos propósitos e da lógica do contexto de produção dos textos, o que condicionou uma forma de apropriação no campo educacional brasileiro.

Pode-se compreender a leitura de Bourdieu nessa época a partir do comentário de alguns autores que relataram as circunstâncias políticas no período em que A reprodução foi publicada no Brasil e a forma como foi recebida por alunos e professores, como indicado ao início desta seção. Para Silva (1996) , ocorreu uma petrificação das ideias de Pierre Bourdieu para a análise educacional, sendo considerado o autor de um livro só, o já citado A reprodução . Em consequência das esparsas leituras do livro, em parte devido à sua difícil apreensão teórica, rotularam-no como proclamador de uma pedagogia que destacava somente a dimensão reprodutivista da escola que, de forma inevitável, parecia constituir-se em um obstáculo à ação e à modificação do ciclo reprodutivo neste espaço social.

Para esse comentador, com a rejeição teórica a essa obra, distanciaram-se leituras importantes para a compreensão da Sociologia da Educação desenvolvida por Bourdieu. Somente com o declínio do prestígio das otimistas metanarrativas educacionais é que Bourdieu passa a ser reconhecido como um teórico social que possui uma contribuição importante e indispensável para a análise e teoria educacional. A apropriação da obra de Bourdieu nos anos 1970 também é discutida por Loyola (2002) , que descreve a reação de seus alunos na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ao lerem A reprodução , que o consideraram como um texto conservador e antirrevolucionário, em um contexto acadêmico marcado por duas correntes distintas: os grandes ensaios de inspiração marxista e as propostas teóricas e de políticas econômicas elaboradas pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), além das pesquisas empíricas parciais ( surveys ) da Sociologia americana de cunho funcionalista.

Fazendo uma análise da conjuntura, Loyola (2002) relaciona alguns fatos do período da ditadura militar, como o fechamento dos partidos políticos, a censura à imprensa e a outros tipos de publicação, bem como os movimentos sociais, notadamente o movimento estudantil, que encontrava no ambiente escolar e universitário um espaço propício para o exercício da militância política e cujas palavras de ordem eram “mudança” e “revolução”. Segundo Loyola (2002) , ao denunciar a cumplicidade – ainda que involuntária – dos professores na reprodução das desigualdades, Bourdieu, por assim dizer, desencantava o projeto político desses movimentos e dos intelectuais da época, orientados basicamente pela utopia cepalina e marxista: a superação do subdesenvolvimento, a implantação do socialismo e de uma sociedade sem classes no país. Desencantava sobretudo a percepção heroica que os intelectuais tinham de si mesmos e de seu papel nesse projeto revolucionário, enquanto vanguarda da classe operária.

Somam-se ao momento político pelo qual passava o país, as leituras não comentadas da obra de Bourdieu, ou seja, sem explicações ou analogias que auxiliassem a percepção das contribuições de sua análise sociológica para o contexto brasileiro, bem como o número restrito de traduções de outras obras, que contribuiriam para compreender o autor e o movimento de seu pensamento. Destaca-se esse como um ponto fundamental, ainda hoje, para as apropriações lacunares do trabalho do sociólogo, permanecendo um fator decisivo para a alteração do quadro de apropriação e compreensão de seu legado sociológico. Para Catani, A., Catani, D. e Pereira (2001) , pode-se acrescentar a essas observações sobre a conjuntura da apropriação da obra de Bourdieu, nos anos 1970 e 1980, a descrição das peculiaridades do campo educacional brasileiro. Nesse período, a produção científica esteve orientada para a resolução dos problemas do referido campo e com um sentido mais prescritivo, em vez de tentar distinguir as especificidades do funcionamento do espaço no qual a educação se concretizava e no qual se disputava o direito de impor determinado discurso considerado legítimo acerca dela. Assim, continuam:

Não se pode considerar que houve uma incorporação sistemática do modo de fazer pesquisa do autor francês entre nós na década de 1970: pode-se apenas reconhecer que sua obra potencializou alguns estudos no campo educacional brasileiro e tais estudos apropriaram-se de conceitos e resultados analíticos férteis para a compreensão da realidade educacional brasileira que, já na época, parecia cada vez mais excludente. ( CATANI, A.; CATANI, D.; PEREIRA, 2001 , p. 136).

A atualidade do legado, análises a partir de produções científicas

Com o propósito de investigar o legado de A reprodução , optou-se por mapear artigos em que figurasse a obra de Bourdieu e Passeron, buscando perceber a intenção dessa utilização, bem como a proficuidade dos pressupostos teórico-metodológicos contidos no livro. A intenção foi analisar como a obra aparece nos artigos publicados em revistas brasileiras no ano de 2020, ou seja, 50 anos após sua publicação na França.

A base de dados escolhida foi o Google Acadêmico, acessado em 14 de outubro de 2020, com o termo de busca “A reprodução Bourdieu”, limitando o recenseamento para o ano de 2020. Aplicando o filtro “por relevância” – o Google Acadêmico destaca a relevância pelo número de citações, ou seja, quanto mais citada a pesquisa, mais relevante/expressivo é o material para a comunidade acadêmica –, apareceram 2.460 resultados, entre documentos diversos. É importante destacar que o cenário apresentado é datado (14de outubro de 2020), podendo sofrer alterações a partir do dia de consulta.

Realizou-se então uma busca avançada, colocando o título do livro por extenso. Surgiram então 146 resultados. Como critérios de inclusão, adotou-se como parâmetros: ser da área de Educação; ter a obra nas referências; ser artigo; figurar em revista nacionais de acesso gratuito; e ser escrito em português. Como critérios de exclusão, não foram admitidos materiais que não fossem artigos (ou seja, teses, dissertações, livros, e-books, anais de congressos, boletins, blog, entre outros) e que não citavam a obra nas referências, mesmo que tratassem da noção de “reprodução” no corpo do artigo. Dos 146 resultados, foram selecionados 51 artigos para tratamento, organizados em dois quadros: o primeiro, em que constavam o nome do artigo, a revista com os detalhes da referência em que apareceram e uma última coluna com o(s) nome(s) do(s) autor(es); e o segundo, em que se repetiu o título do artigo, incluindo mais três colunas que continham o tema do artigo, os achados no texto argumentados a partir do livro A reprodução e uma listagem dos conceitos/categorias presentes na obra que foram utilizados.

Esse corpus final foi tratado a partir da análise de conteúdo, segundo Laurence Bardin (2006) , como um conjunto de técnicas de análise das comunicações que se propõe a descrever o conteúdo das mensagens e realizar a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção das mensagens, revelando tendências, essencialmente por atividades de categorização e de classificação, para efetivar uma interpretação argumentada.

Em uma abordagem indutiva-construtivista, tomando como ponto de partida os dados, realizou-se uma pré-análise, a fim de sistematizar as ideias iniciais e conduzir a um esquema para o desenvolvimento das operações que se sucederam. Foi efetivada a leitura flutuante e foram escolhidos os documentos (artigos), a partir dos quais se elaboraram indicadores de análise ou análise categorial, repartindo os textos na medida em que as referências eram encontradas, como um exercício de classificação e reagrupamento. Para tal, foram estabelecidas categorias temáticas com critério de produtividade, visando tornar fecunda a produção dos resultados para explorar de que forma o livro A reprodução tinha sido abordado nos artigos examinados.

Um primeiro destaque a se fazer é sobre a autoria dos artigos. Há, entre os autores, desde alunos do ensino médio e professores da educação básica, até acadêmicos com pós-doutorado e professores universitários, o que demonstra a incrível inserção da obra entre estudiosos brasileiros.

A primeira classificação se deu com relação aos temas dos artigos. Entre os assuntos encontrados podem ser citados: formação de professores, aspectos da construção identitária e condições de trabalhos de professores, questões de gênero na escola, questões de racismo na escola, percurso editorial de editora universitária, conselhos de classe, reformas educacionais, perfil de egressos de curso de ensino superior, rendimento/desempenho escolar, evasão escolar, processo de ensino-aprendizagem, sistema de ensino, relações entre práticas escolares e desempenho escolar, conteúdos escolares, propostas curriculares, violência simbólica na escola, políticas públicas educacionais, gestão escolar, reforma do ensino médio, educação em saúde, Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), entre outros.

Esses parecem ser temas privilegiados de pesquisas no campo educacional brasileiro. Para Tura (2003) , existe uma preocupação em investigar a tríade escola-professor-aluno, que deriva de uma tentativa de compreender os diversos fatores envolvidos nas análises da ação educativa macrossociologicamente. Tal preocupação levou a uma aproximação dos pesquisadores com o ambiente escolar, espaço de interação entre professores e alunos, e com as condições concretas de realização do ensinar e do aprender. As escolas e as salas de aula passaram a ser vistos como microcomunidades complexas, valorizando-se o acontecer da vida social e a análise do ponto de vista dos agentes. Percebe-se um interesse cada vez maior por conhecer o leque de significações contidas nos encontros cotidianos que ocorrem no espaço escolar entre os agentes e que conferem aos processos educativos seu real conteúdo, compreendendo igualmente a existência de múltiplas mediações que conduzem a representações de significado histórico e social.

Com relação aos conceitos e noções que figuram na obra, foram utilizados principalmente: capital cultural, capital linguístico, herança cultural, violência simbólica, ação pedagógica como violência simbólica, cultura escolar, legitimação da autoridade pedagógica, arbitrário cultural, exame, habitus , reprodução e ideologia do dom.

Abordados na primeira parte deste artigo, é nítida a qualidade das chaves de interpretação legadas pelos autores e, posteriormente, desenvolvidas por Bourdieu. São conceitos e noções que se apresentam de forma permanente na obra do sociólogo e são ferramentas de pensar, provando a fecundidade de aplicação de tais utensílios para realizar a leitura e a interpretação do mundo social.

Partindo para uma descrição mais pontual do porquê os autores dos artigos lançaram mão da obra, a justificativa encontrada nas produções científicas dizia respeito a alguns pressupostos. Na maioria (43 artigos), o porquê ou para quê da utilização do livro se relaciona ao fato de que os escritos de A reprodução convergem com a realidade brasileira por discutirem uma série de situações, tais como: acesso às posições mais privilegiadas do sistema de ensino; relação entre o desempenho escolar e a origem social dos alunos; capital cultural como um patrimônio estimulado e transmitido pela família, capaz de gerar impacto na definição de um trajeto escolar bem-sucedido ou não; outras formas de perpetuar a exclusão dos menos favorecidos no sistema escolar, seja no acesso, seja no interior da instituição, apesar da democratização do ensino, que não deve ser confundida com igualdade formal de oportunidades; papel da escola na reprodução do capital simbólico e o fato das ações pedagógicas não serem neutras; a cultura, como sendo central no processo de dominação; o arbitrário cultural, imposto por um poder arbitrário do grupo dominante; a escola continua reprodutora, mas atualmente a partir de novas práticas; os mecanismos de reprodução; a reprodução da desigualdade social fomentada pelo currículo; escolhas de cursos superiores e carreiras não como produto de livre escolha, mas atreladas ao pertencimento social do indivíduo; e os significados da avaliação e do exame na exclusão ou autoexclusão dos indivíduos da escola.

Em 24 artigos, A reprodução é a única obra citada de Bourdieu. Em alguns, a obra é citada para situar o debate da Sociologia da Educação ou no pensamento educacional brasileiro, demonstrando a importância de Bourdieu nesse campo. Em outros, a obra aparece para descrever o papel da escola na sociedade brasileira contemporânea. Dessa forma, mesmo que haja somente menção ao livro, não parece que seja uma leitura apenas tópica da obra. Ao contrário, mostra que a perspectiva bourdieusiana tem uma aderência bastante importante no campo, sendo praticamente consensual entre os pesquisadores brasileiros a ideia de que os processos escolares contribuem, em alguma medida, para a reprodução das desigualdades sociais, consenso também apontado por Champagne e Christin (2004) na realidade francesa.

Em apenas cinco artigos, a referência de A reprodução tinha um tom de crítica, com argumentos que procuravam contrariar a tendência da reprodução da desigualdade na escola e a necessidade de uma releitura dos determinismos. Isso mostra que a apropriação superficial da obra, tal como apontaram Catani, A., Catani, D. e Pereira (2001) ainda permanece, mas em número bastante reduzido.

Percebe-se, por fim, que o acionamento da obra A reprodução para destacar diferentes conceitos, como capital cultural, habitus , violência simbólica, autoeliminação, ação pedagógica, autoridade pedagógica e herança cultural, em conjunto com outras obras do autor (o que ocorreu em 26 artigos), possibilitou uma análise mais densa nos artigos analisados. Tal fato demonstra uma maior maturidade dos pesquisadores brasileiros e uma apropriação do modo de trabalho do autor em suas análises, tal como indicaram Catani, A., Catani, D. e Pereira (2001) .

Em um artigo que comenta os 40 anos do lançamento de A reprodução em Portugal, Abrantes (2011) discorre sobre o debate teórico em torno da teoria da reprodução e seu impacto na sociologia europeia, destacando inclusive as críticas de diferentes quadrantes científicos e políticos, e salienta vários aspectos que corroboram as considerações de Bourdieu e Passeron, mesmo 40 anos depois (e, agora, é possível afirmar que isso também se observa 50 anos depois). O autor salienta que:

(1) não há estudos que reportem mudanças consideráveis no princípio tendencialmente reprodutivo em que continua a assentar a relação entre estrutura social e sistema educativo, apesar das forças políticas, dinâmicas económicas e ideologias educativas variarem no tempo-espaço (tópico seguinte); (2) existem diversas lógicas e forças sociais, observáveis a nível micro, mas que se confrontam inevitavelmente com um princípio macro de dupla reprodução (estrutural e cultural) e, em muitos casos, não lhe conseguem resistir; e (3) as referidas “leituras fatalistas” da teoria da reprodução enquadram-se num processo propriamente escolar (desconstruído por Bourdieu e Passeron) de “neutralização do saber”, submetendo-o às lógicas da instituição e mitigando assim o seu potencial disruptivo. Ao elaborar uma teoria explicativa sobre uma regularidade social tão forte e persistente nas sociedades modernas, os autores não negam a possibilidade da sua transformação, mas evitam responsabilizar actores particulares – os professores, os alunos, as famílias, o governo, o sindicato – como é tão frequente escutar-se nos debates públicos, denunciando um sistema de relações no qual estes actores estão integrados, e do qual depende a sua legitimidade e afirmação individual. ( ABRANTES, 2011 , p. 268).

Em tom positivo, Almeida (2005) procura em A reprodução os fundamentos de uma transformação social e o papel da instituição escolar nesse processo, em contraposição à crítica que alguns conferem à obra e ao autor, denominando Bourdieu de reprodutivista. Afirma que apreender a teoria de Bourdieu pelo viés da reprodução social seria ignorar a ação do agente dentro do campo e a dialética presente no conhecimento praxiológico. Ao tomar ciência da tendência reprodutivista do sistema de ensino, seus agentes estariam partindo para a desconfiança, o reconhecimento da ilegitimidade do processo, o que poderia contribuir para uma mudança no jogo, ou seja, a possibilidade de passar da reprodução à transformação. Para a autora, o processo também carrega suas contradições que podem se desenvolver- a ponto de implicar mudanças sociais. Nesse sentido, sendo a escola uma instituição que exerce um papel fundamental para a reprodução da ordem social, também em seu interior poderiam se construir as bases para o questionamento e a transformação da sociedade.

Por fim, vale mencionar ainda que, em um artigo, A reprodução é citada como obra a ser analisada em um seminário por estudantes do curso de Letras, não figurando, portanto, como referência teórico-metodológica da análise no artigo.

Finalizando: reencontro com um patrimônio

As leituras realizadas da obra de Bourdieu no campo educacional sofreram uma alteração significativa ao longo dos últimos anos. É possível perceber, a partir do exame da produção científica, um processo de ensino-aprendizagem de leitura do autor em um nível mais profícuo. Essa afirmação é feita com base no movimento de incorporação de sistemas de esquemas cognitivos e de continuidade de apropriação, principalmente nos programas de pós-graduação no Brasil. Verifica-se que muitos orientandos passaram a ser orientadores de trabalhos que se utilizaram da teoria sociológica de Bourdieu ( MEDEIROS, 2007 ).

Se os primeiros pesquisadores do campo científico educacional se dedicaram a estudar os fundamentos da Educação e as políticas educacionais utilizando um referencial teórico marxista, momento em que se realizou uma operação de etiquetagem de Bourdieu como o teórico da reprodução, uma outra lógica de apropriação passou a ter impacto no referido campo. Isso ocorreu a partir do momento que foi sendo inserido, como instrumental teórico-metodológico, o arcabouço desenvolvido pelo sociólogo, com o intuito de observar as lógicas e práticas escolares, suas implicações culturais e simbólicas e as relações de poder em pesquisas de caráter multidisciplinar e multimetodológicas, tal como foi demonstrado na seção anterior.

É possível perceber uma correspondência entre a apropriação de Bourdieu na área da Educação no Brasil e nos Estados Unidos, como ressaltado por Calhoun (2005) , que pode servir para ilustrar como A reprodução foi lida e utilizada no país. Tal correspondência diz respeito à fragmentação da recepção da obra do sociólogo e à reprodução dessa fragmentação, ou seja, se um fragmento isolado da obra do autor chamava a atenção de um leitor novato, esse também tendia a uma percepção fragmentária da obra em si, segundo seu domínio de competência e seus interesses no intelectual.

A dificuldade pareceu também estar conectada às associações que faziam entre Bourdieu e outros autores, sendo que a diferença fundamental era que a teoria da reprodução de Bourdieu conferia mais importância aos fatores culturais ( SILVA, 1996 ). Por isso, o destaque ao conceito de capital cultural. Bourdieu se recusou a adotar um esquema analítico que pressupusesse uma relação causal mecânica entre a estrutura social mais ampla e aquilo que se passa no âmbito da Educação. Ele se utilizou então dos processos culturais para realizar conexões entre elementos da estrutura social e elementos pertencentes à esfera da Educação. Fugindo de uma abordagem teleológica, Bourdieu inseriu em seu esquema explicativo uma série de elos, ligando o determinante e o determinado. Realizou assim uma intermediação entre a estrutura e o estruturado.

Por fim, é necessário se atentar para afirmações como a de Nogueira (2021) , que comenta que se têm argumentado em favor de uma revisão do peso da herança cultural nos processos de produção das desigualdades de desempenho escolar, em razão das mudanças sociais e sociológicas ocorridas desde o momento de criação desse conceito, há mais de cinco décadas. Para a autora, porém, o conceito deve continuar a ser mobilizado, ressignificado e testado empiricamente, levando em consideração as novas formas de distinção escolar, os novos conteúdos do que se considera como excelência escolar, bem como a conjuntura atual de funcionamento dos sistemas de ensino.

Mesmo com a perspectiva de novas formas de produção cultural – os meios de comunicação de massa, a emergência do multiculturalismo, os trunfos informacionais e estratégicos relativos ao mundo da escola, por exemplo –, para Nogueira (2021) o conceito de capital cultural em seu sentido amplo, como sinônimo de disposições culturais e de relação com os bens de cultura, ainda é fundamental para analisar o sucesso ou fracasso escolar e continua sendo decisivo para olhar a incorporação de novas dinâmicas culturais em curso e a importante mobilização parental contemporânea em favor da transmissão da herança cultural. Tais indicações, corroboram a atualidade de A reprodução de Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron e de seu legado acadêmico e político.

Referências

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1- Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo está disponível na seção “Materiais suplementares”.

3- Intenções excelentes podem produzir efeitos que não são aqueles desejados e que exercem, nos jovens espíritos, efeitos de bloqueio. Por conseguinte, gostaria de liberar, de alguma forma, tanto quanto possível, este efeito de bloqueio que pode exercer uma obra recebida em certas condições. Da mesma forma que Marx dizia que ele não era marxista, eu diria que eu não sou nem bourdieusiano, nem bourdivino ( BOURDIEU, 2005 , p. 326, tradução nossa).

Recebido: 10 de Novembro de 2020; Revisado: 04 de Agosto de 2021; Aceito: 07 de Dezembro de 2021

Adriane Knoblauch tem mestrado e doutorado em educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), programa Educação: História, Política, Sociedade, e pós-doutorado em educação pela Universidade de São Paulo (USP). É professora permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná (PPGE/UFPR), coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Práticas Escolares, Docência e Cultura (GEPPEDOC) e integrante do Grupo de Pesquisa sobre Práticas de Socialização no Mundo Contemporâneo (GPS).

Cristina Carta Cardoso de Medeiros tem mestrado e doutorado em educação pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). É professora permanente do PPGE/UFPR e vice-coordenadora do GEPPEDOC.

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