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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 14-Jul-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248253814 

SEÇÃO TEMÁTICA: 20 anos depois: pensar com e sem Bourdieu

Pierre Bourdieu, catedrático de sociologia no Collége de France1

Amurabi Oliveira2 
http://orcid.org/0000-0002-7856-1196

Camila Ferreira da Silva3 
http://orcid.org/0000-0002-2348-9350

2- Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil. Contato: amurabi1986@gmail.com

3- Universidade Federal do Amazonas, Manaus, AM, Brasil. Contato: ferreira.camilasilva@gmail.com


Resumo

O artigo se ocupa de um momento específico da obra e atuação profissional de Pierre Bourdieu, seus primeiros cinco anos como catedrático de Sociologia no Collège de France, período em que lecionou o curso que denominou de “Sociologia Geral”. Com o objetivo de analisar sua atuação não apenas como pesquisador, mas também como professor, e então buscar compreender sua concepção de sociologia, o texto retraça o cenário intelectual em torno do Collège de France, destacando o significado da seleção de Pierre Bourdieu para a cátedra de sociologia, bem como analisa os temas, objetivos e fios condutores das aulas proferidas nesses primeiros anos. Este artigo foi produzido a partir de um estudo qualitativo de cunho bibliográfico, de diálogo com autores nacionais e internacionais e da análise do curso de sociologia geral de Bourdieu. O estudo acabou por corroborar a relevância de analisar esse período de ápice na trajetória intelectual do sociólogo. Além disso, evidenciou-se que Bourdieu, na condição de catedrático e com a intencionalidade pedagógica que a posição acarreta, atou as pontas entre ensino e pesquisa em sociologia, privilegiando debates sobre a sociologia bourdieusiana e, sobretudo, sobre o lugar da sociologia no mundo social.

Palavras-Chave: Pierre Bourdieu; Collège de France; Cátedra; Sociologia geral; Reflexividade

Abstract

The article deals with a specific moment in the work and professional practice of Pierre Bourdieu: his first five years as a professor of sociology at the Collège de France, during which time he taught the course titled “General Sociology”. With the objective of analyzing his practice not only as a researcher but also as a professor, and then seeking to understand his conception of sociology, the text retraces the intellectual scenario around the Collège de France, highlighting the significance of Pierre Bourdieu being selected for the Chair of Sociology, as well as analyzing the themes, objectives and guiding threads of the lectures he taught in those early years. This article was produced from a qualitative study of bibliographic nature, in dialogue with national and international authors and after analyzing Bourdieu’s General Sociology course. The study ended up corroborating the relevance of analyzing this peak period in the intellectual trajectory of the sociologist. In addition, it made evident that Bourdieu, as a professor and with the pedagogical intentionality which the position entails, connected the threads of teaching and research in sociology, favoring debates on Bourdieusian sociology and, above all, on the place of sociology in the social world.

Key words: Pierre Bourdieu; Collège de France; Professorship; General Sociology; Reflexivity

Introdução

A objetivação de estudos e pesquisas em torno de Pierre Bourdieu continua tomando lugar privilegiado na sociologia brasileira, em particular na sociologia da educação, mas também em inúmeras outras áreas do conhecimento (figurando mais recentemente inclusive nas ciências exatas), corroborando a envergadura e alcance de sua obra (NOGUEIRA, 2002; OLIVEIRA; SILVA, 2021). Sua atuação no Collège de France, no entanto, tem figurado de forma secundária nessa literatura, geralmente apontada para ratificar sua posição de prestígio no interior do campo científico francês e demonstrar sua atuação pública por meio das intervenções políticas na vida social. Levando em consideração, conforme aponta Sallaz (2020), que Bourdieu aproveitou essa oportunidade para levar a sociologia aos “palcos”, bem como suas importantes contribuições oriundas das intervenções que ali tomaram forma entre 1982 e 2001, o presente artigo desenha uma análise em torno de seu primeiro curso no Collège de France, denominado “Sociologia Geral” (que ocorreu entre 1982 e 1986).

Interessante perceber que, ao longo de sua atuação no Collége de France, Bourdieu realizou diversos cursos que eram, em sua maioria, temáticos; havendo ainda anos em que eles não ocorreram, como entre 1986 e 1987, e entre 1994 e 1995. Entre 1987 e 1992, Bourdieu lecionou um curso sobre o Estado; entre 1992 e 1993, sobre os fundamentos sociais da ação econômica; entre 1993 e 1994, sobre a economia dos bens simbólicos; entre 1995 e 1996, sobre algumas propriedades dos campos de produção cultural; entre 1996 e 1997, sobre razões e história; entre 1997 e 1998, sobre a dominação; e entre 1998 e 1999, sobre pesquisas recentes dos campos. A diversidade de temáticas abordadas ao longo dos anos reflete o ecletismo e a envergadura do projeto intelectual de Bourdieu.

É importante perceber que a inserção de Bourdieu como catedrático de sociologia no Collège de France se mostrou fundamental para a consolidação de sua posição no campo acadêmico francês. Como bem aponta Lahire (2005), é evidente que Bourdieu percebia que tinha inimigos, mas não adversários, dado que ele “possuía” sua própria revista, sua própria coleção4, seu centro de pesquisas, recebeu a medalha de ouro do Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), e foi durante mais de vinte anos o único catedrático de sociologia no Collège de France; ou seja, tal condição compunha sua posição ímpar no campo científico francês.

Em 2020, com a publicação das oito aulas do primeiro ano desse curso no Brasil – pela editora Vozes, sob o título Sociologia geral: lutas de classificação: curso no Collège de France (1981-1982). v. 1 –, um contingente mais alargado de pesquisadores brasileiros passou a ter acesso ao conteúdo das aulas proferidas nos cinco primeiros anos em que Bourdieu ocupou a cátedra de sociologia nessa instituição, o que reacendeu o debate sobre esse momento de seu trabalho5. Nosso objetivo geral, portanto, padece de duas frentes complementares: explicitar os caminhos e principais temas que marcaram esse primeiro curso, bem como compreender um Bourdieu professor, na condição de catedrático, e como essa posição lhe permitiu tratar de sua obra de forma diferenciada, com a intencionalidade que é própria do trabalho docente. Nosso objetivo é analisar a atuação de Bourdieu não apenas como pesquisador, mas também como professor, e a partir daí buscar compreender sua concepção de sociologia.

A partir de um estudo qualitativo de cunho bibliográfico, o diálogo com autores nacionais e internacionais e a análise do curso de sociologia geral de Bourdieu marcam este artigo. Em uma primeira seção dedicamo-nos ao cenário intelectual em torno do Collège de France com vistas a destacar o significado da seleção de Pierre Bourdieu para a cátedra de sociologia; na sequência, a segunda seção trata mais detidamente do primeiro curso que Bourdieu proferiu nessa instituição, aqui conferimos espaço privilegiado para sua aula inaugural e para os cinco anos de intervenções denominados curso de sociologia geral. De modo geral, o estudo demonstrou a relevância da tradução desse curso para o público brasileiro, posto que acabou por recentralizar o debate sobre as tarefas da sociologia e dos sociólogos, em um movimento de reflexividade tão caro a Bourdieu, tal como a potência analítica de suas aulas, pois elas são reveladoras de suas intencionalidades professorais no sentido da compreensão de seu pensamento e das questões que ele enfrentou e passou a partilhar com os pares a partir do Collège de France.

As vicissitudes da cátedra de sociologia no Collège de France

Antes de mais nada, para compreendermos a relevância de pensarmos a atuação de Bourdieu no Collège de France é necessário ter em mente que este é considerado o lugar mais elevado de consagração do campo acadêmico francês (FEUERHAHN, 2017), de modo que ocupar esse espaço se mostra como uma aspiração objetiva dos intelectuais francófonos. A dimensão do prestígio dessa posição acadêmica pode ser expressa pela citação de alguns dos nomes que já lecionaram nessa instituição: Lucien Febvre, Marcel Mauss, Maurice Halbwachs, Maurice Merleau-Ponty, Paul Veyne, Fernand Braudel, Claude Lévi-Strauss, Raymond Aron, Michel Foucault, Roland Barthes, Pierre Bourdieu, Roger Chartier, entre outros.

Recorrentemente, ao se falar dessa instituição, destaca-se por um lado sua longevidade, uma vez que foi criada ainda em 1531 por Francisco I (1494-1547); por outro, a idiossincrasia de sua organização e funcionamento. A rigor, o Collège de France possui ouvintes e não alunos, uma vez que não há perguntas, pois os catedráticos pronunciam conferências, tampouco as pessoas que assistem às aulas passam por controle de frequência ou exames, e os professores têm a obrigação de apresentar um curso novo a cada ano. É importante ainda mencionar que:

As cátedras do Collège podem ser transformadas pela Assembleia de Professores cada vez que uma delas se encontra vaga, sendo redefinida para o novo titular em um processo de votação em duas etapas. Na primeira fase, a Assembleia define o título da cátedra que deve substituí-la. Em seguida, com a recriação da cátedra e com a declaração da vaga, a Assembleia elege o titular. Na prática, “a cátedra já é criada para um candidato específico, com a segunda fase funcionando como mera formalidade”. Deve ser lembrado que não se exige dos candidatos qualquer grau universitário, sendo os mesmos avaliados em razão da importância e originalidade dos seus trabalhos. (CATANI, 2017, p. 124-125).

Isso significa que não há necessariamente uma continuidade em relação a determinados campos científicos, que podem ter suas cátedras descontinuadas. A cátedra de sociologia, por exemplo, funcionou inicialmente de 1931 a 1942, tendo como responsável o sociólogo e antropólogo Marcel Mauss (1872-1950), e funcionado ainda entre 1970 e 1978 a cátedra de sociologia das civilizações modernas, organizada por Raymond Aron (1905-1983), para então ser reordenada como sociologia entre 1981 e 2001 por Bourdieu. Houve ainda cátedras de sociologia específicas, como sociologia e sociografia muçulmanas, entre 1902 e 1925, organizada por Alfred Le Chatelier (1855-1929), e posteriormente por Louis Massignon (1883-1962) entre 1926 e 1954; sociologia muçulmana, que funcionou entre 1956 e 1976, com o catedrático Henri Laoust (1905-1983); e mais recentemente, em 2013, foi criada a cátedra de sociologia do trabalho criador, cujo responsável é Pierre-Michel Menger.

Normalmente a chegada de um professor até uma cátedra envolve não apenas o evidente prestígio acadêmico, como também um considerável capital político e social. Alguns professores realizaram mais de uma tentativa até se tornarem catedráticos, eventualmente em cátedras distintas. Marcel Mauss, por exemplo, se apresentou à cátedra de História das Religiões em 1907, tendo ficado em segundo lugar, atrás de Albert Réville (1826-1906). Posteriormente, na assembleia de 23 de novembro 1930, seu nome foi aprovado para a cátedra de sociologia, tendo ficado em segundo lugar Maurice Halbwachs (1877-1945).

A cátedra de sociologia criada em 1930 se origina da vacância da cátedra de filosofia social, que funcionou entre 1897 e 1929, comandada por Jean Izoulet (1854-1929) até sua morte. Certamente houve dúvidas se Mauss seria o melhor candidato para a cátedra de sociologia, uma vez que poderia ser mais adequado a seu perfil uma cátedra de etnografia ou etnologia (FOURNIER, 1996).

No processo de criação da cátedra de sociologia, Charles Andler (1866-1933) foi quem apresentou um relatório a seu favor, em que ressaltava de forma decisiva a centralidade e a relevância da escola durkheimiana, reforçando assim o lugar de Mauss nesse processo, chegando a afirmar que Mauss era “melhor aparelhado” que seu tio, Émile Durkheim (1858-1917). Os títulos de Marcel Mauss foram apresentados por Sylvain Lévi (1863-1935). Os “advogados” de Mauss nesse processo eram seus amigos de longa data, que atestavam não apenas a relevância da cátedra de sociologia para o Collège de France, como a de Mauss para esse espaço.

Curiosamente o próprio Halbwachs – que ficou em segundo lugar na eleição que escolheu Mauss – se tornou professor do Collège de France quando Mauss se aposentou, porém, a cátedra foi reorganizada como psicologia coletiva, funcionando entre 1944 e 1945. Ao rememorar sua campanha para essa instituição, fica evidente a centralidade que possuíam os contatos, as conversas e os trânsitos com os professores da instituição. Halbwachs (2001) nos narra os inúmeros diálogos que travou, demonstrando a relevância desses elementos extra-acadêmicos sobre o campo.

A sociologia só voltaria a possuir uma cátedra no Collège de France em 1970 com Raymond Aron, sendo na verdade intitulada sociologia da civilização moderna, com proposição aprovada na assembleia de 30 de novembro de 1969, cujo relatório para a criação foi defendido por Robert Minder (1902-1950). Em certa medida poderíamos mesmo dizer que há alguma redundância, uma vez que, para alguns sociólogos, a sociologia se diferencia das demais teorias sociais justamente por se voltar para as sociedades modernas (GIDDENS, 1991), ainda que essa seja uma concepção da disciplina que se consolida principalmente a partir dos anos de 1930 (CONNELL, 2019). Todavia, é possível perceber aí um movimento de demarcação de especificidade da cátedra tanto em relação ao curso anteriormente ofertado por Mauss, quanto em relação àquele conduzido por Laoust sobre sociologia muçulmana, que funcionou até 1976. Interessante destacar que em 12 de abril de 1970, a assembleia de professores aprovou Raymond Aron em primeiro lugar para essa cátedra, ficando em segundo lugar François Bourricaud (1922-1991), especialista em Talcott Parsons (1902-1979); ainda nessa assembleia foi aprovado em primeiro lugar para a cátedra de história dos sistemas de pensamento Michel Foucault (1926-1984), ficando em segundo lugar Gérard Lebrun (1930-1999). Interessante perceber que o tema escolhido por Aron (1971) para sua aula inaugural no Collège de France foi “A condição histórica do sociólogo”, fazendo referência aos sociólogos clássicos, como Durkheim, Marx e Weber. Aron define a sociologia como a ciência das sociedades modernas.

Importante mencionar que Bourdieu e Aron realizaram importantes colaborações nos anos anteriores, com destaque para a fundação, em 1960, do Centre de Sociologie Européenne (CSE), instituição da qual Bourdieu foi secretário-geral até 1969, quando, após os acontecimentos de maio de 1968, rompeu com seu mestre e fundou o Centre de Sociologie de L’Éducation et de la Culture (CSEC), refletindo uma postura bastante herética em um período em que vigorava um modelo profundamente ortodoxo de excelência acadêmica (JOLY, 2015). Apesar da ruptura entre esses dois grandes sociólogos, podemos dizer que o fato de ambos terem assumido a cátedra de sociologia no Collège de France demarca certa linhagem acadêmica nesse espaço.

Apenas em 1981 a cátedra de sociologia voltaria ao Collège de France, tendo sido proposta por André Miquel (1929-), que também realizou a apresentação e defesa da candidatura de Bourdieu na assembleia que escolheria o catedrático. Ao final, Bourdieu foi eleito em primeiro lugar e Luc Boltanski em segundo. Naquele momento, seus principais trabalhos poderiam ser agrupados em duas categorias: a Argélia e a democratização cultural e educacional, destacando-se ainda as publicações em 1979 de “A distinção” e em 1980 de “O senso prático” (FRINGANT, 2019). Na próxima seção, analisaremos em mais detalhes o curso de sociologia geral de Bourdieu, levado a cabo entre 1982 e 1986, que pelo escopo mais amplo se distinguia substancialmente dos demais que realizou sobre o Estado (1987-1992); os fundamentos sociais da ação econômica (1992-1993); a economia dos bens simbólicos (1993-1994); algumas propriedades do campo de produção cultural (1995-1996); Manet (1998-2000); ou sobre a ciência da ciência (2000-2001).

Bourdieu catedrático: o primeiro curso no Collège de France

A intenção didática, que é própria da relação pedagógica e está na base da ação de ensinar, é marca dos cursos que Pierre Bourdieu lecionou no Collège de France. Essa condição docente permitiu ao sociólogo um tratamento específico sobre sua própria obra durante os quase vinte anos que passou à frente da cátedra de sociologia: entre as aparentes antinomias entre humildade e presunção e entre ensino e pesquisa, Bourdieu reconhece na aula de 28 de abril de 1982 que ele não seria de fato a melhor pessoa para fazer um curso sobre sua própria obra, pois estaria cercado pela complexidade da pesquisa e pela simplificação que é imposta pelo exercício docente (BOURDIEU, 2020) – o que o leva a buscar desconstruir o conceito de curso, dessacralizando o peso simbólico que socialmente lhe atribuímos, contudo, é com as próprias ferramentas conceituais de Bourdieu que podemos compreender que esse artifício busca eufemizar a posição de prestígio e autoridade acadêmica que estava a ocupar sua investidura no jogo científico.

Sobre a antinomia entre pesquisa e ensino reclamada por Bourdieu no início de sua atuação na cátedra em questão, Marcel Fournier, seu orientando de doutorado na École Pratique des Hautes Études em Paris, relata que Bourdieu nutria dois projetos: seu projeto acadêmico era formar os melhores sociólogos do mundo, enquanto seu projeto intelectual consistia em elaborar uma teoria da prática. Para tal, a reflexividade se consolidou como caminho e Bourdieu seguia injetando questões e comentários em seu próprio trabalho nas aulas, nos seminários e nos encontros com os orientandos, seus cursos eram uma espécie de laboratório e seu objetivo se centrava no exercício de transmitir aos seus estudantes o habitus de um pesquisador rigoroso, sério e que se vale de trabalho em equipe para correlacionar as idas e vindas entre teoria e investigação empírica (FOURNIER, 2002). Esse modo de encarar seu trabalho docente nos permite compreender os direcionamentos dados aos seus primeiros anos de atuação no Collège de France.

Para seu primeiro curso nessa instituição, Bourdieu toma como tarefa a apresentação dos contornos fundamentais de seu trabalho e, sob o título de Cours de sociologie générale, desenvolve cinco anos de aulas em torno do conceito e das funções de constructos como campo, habitus, motivação e determinação das práticas, diferentes espécies de capitais, todos abordados como expressões concretas para um problema que tomará centralidade nesse curso: a relação entre o sujeito científico (como um sujeito cognoscente) e seu objeto (que, no caso da sociologia, se trata de um conjunto de sujeitos agentes). Dessa forma, evidencia-se que a preocupação com a reflexividade científica (sociologia da sociologia ou ciência da ciência) – que viria a ser tomada como tema central de seu último curso no Collège de France (2000-2001) – atravessa as diferentes reflexões que ganham corpo na sua atuação na cátedra de sociologia desde o primeiro curso.

Lebaron (2017) assevera que os anos no Collège de France consolidaram Pierre Bourdieu como um intelectual público, ratificando que sua relevância intelectual se expressou, para além das publicações e traduções a partir dessa experiência, no público numeroso que lotou suas palestras nas duas décadas em que ali proferiu cursos. Em sua aula inaugural Bourdieu já nos anunciava seu tom crítico com uma análise sociológica da própria aula inaugural e da posição de prestígio e autoridade acadêmica que passava a ocupar no Collège de France, que significava um reconhecimento de sua legitimidade no campo científico francês, garantindo lugar de destaque para seus discursos sobre a sociologia e o trabalho dos sociólogos, como veremos na subseção seguinte.

Aula inaugural ou Leçon sur la leçon

Marcando o início de sua atuação na cátedra de sociologia, em 23 de abril de 1982, Pierre Bourdieu proferiu sua aula inaugural no Collège de France, e o título que atribuiu a essa aula – Leçon sur la leçon – dá-nos pistas em torno das “heresias” que marcariam seu discurso. Utilizando a posição científica legítima que passara a ocupar a partir dessa aula, utilizou esse momento para defender, conforme corrobora Wacquant (2002), uma ciência social reflexiva que tem controle sobre seus próprios vieses e que se mantém independente dos ritos de instituições. Em uma retórica sobre a lição da lição inaugural, e “[…] praticando a sociologia da sociologia analisa o discurso sociológico a partir da posição ocupada na estrutura do campo cultural pelo sociólogo que o produz” (CATANI, 2008, p. 48), Bourdieu afirma logo no início de sua fala:

Rito de agregação e de investidura, a lição inaugural, inceptio, realiza simbolicamente o acto de delegação no termo do qual o novo mestre está autorizado a falar com autoridade instituindo a sua palavra em discurso legítimo, pronunciado por quem de direito. A eficácia propriamente mágica do ritual repousa na troca silenciosa e invisível entre o recém-admitido, que publicamente oferece a sua palavra, e os sábios reunidos que pela sua presença física atestam que esta palavra, assim recebida pelos mais iminentes mestres, se torna universalmente aceitável, isto é, em sentido forte, magistral. (BOURDIEU, 1996, p. 7).

Sua pretensão consistia em demonstrar que as proposições que a sociologia enuncia sobre o mundo social devem ser aplicadas ao sujeito que faz ciência. Partir de uma compreensão sociológica da própria aula inaugural marcou seu exercício intelectual para demarcar a ritualística que está na base das relações de poder no interior do campo científico, e que acaba por naturalizar a força institucional, a ideia de sábio e os determinismos sociais na ciência. Para Bourdieu, não se entra na sociologia sem dilacerar as aderências e adesões a grupos, as crenças e os laços de filiação social, por isso afirma ainda na aula inaugural que não é possível falar de uma crítica epistemológica apartada de uma crítica social. Desvendando os mecanismos de dominação, a sociologia da sociologia permite, para o catedrático, tomar a luta pelo monopólio da representação legítima do mundo social como objeto crucial para a consolidação de um ofício sociológico que ultrapasse as divisões arbitrárias da ordem social.

A luta em torno das classificações no âmbito das ciências sociais, ao se constituir como dimensão de todo o tipo da luta de classes, se distingue das taxonomias biológicas exatamente pela propriedade de objetivar sujeitos. Nesse sentido, Bourdieu demonstra em sua aula inaugural que os critérios de classificação utilizados pelo sociólogo são eles próprios um produto da história dessas lutas simbólicas e, nessa relação dialética, contribuem para a produção da própria realidade que ajudam a pensar (BOURDIEU, 1996), seja no sentido das bases para sua ratificação ou para a mudança social.

Sua lição sobre a lição, ou seja, seu exercício reflexivo nessa aula inaugural, corroborava seu posicionamento de ruptura com a ortodoxia no interior da sociologia, o que o permitiu mais uma vez afirmar a importância do cultivo à dúvida e à necessidade de pôr-se fora da lei instituída tão fortemente no jogo científico. Contudo, exatamente por esse caráter de autorreflexão crítica do campo científico e pelo habitus clivado de Bourdieu – que, prestes a assumir a cadeira de sociologia, sentia-se indigno dessa prestigiosa posição em função de sua origem social –, a preparação da aula inaugural desencadeou noites de insônia e, como descreve em Esboço de auto-análise (BOURDIEU, 2005), tampouco fora tranquilo o momento de proferir a aula. Astorga (1987) relata que na aula inaugural de Pierre Bourdieu figuravam câmeras de televisão, o corpo de docentes e pesquisadores do Collège de France e um público heterogêneo e cosmopolita com idades entre 25 e 70 anos ou mais; ao se anunciar a entrada do mais novo catedrático, Bourdieu começa a ler seu texto, mas seu nervosismo inicial é visível. Nas palavras do próprio Bourdieu, quase duas décadas mais tarde, ao analisar seu próprio percurso intelectual e de inserção no campo científico, é possível compreender as razões para essa tensão:

Eu havia acreditado enxergar, enfim, uma saída para a contradição em que me engancha o próprio fato da consagração social, o qual abala minha imagem de mim: tomar como objeto em minha aula o fato de dar uma aula inaugural, de consumar um rito de instituição e assim instaurar uma distância do papel no próprio exercício do papel. Mas subestimara a violência do que, em lugar de um simples discurso ritual, tornava-se uma espécie de “intervenção”, no sentido que lhe conferem os artistas. Descrever o rito na própria consumação do rito equivalia a cometer o barbarismo social por excelência, que consiste em pôr a crença em suspenso, ou pior, em questioná-la e colocá-la em perigo exatamente no momento e no lugar em que seria apropriado celebrá-la e reforçá-la. Descobri, pois, no momento da atuação, na situação, que o que para mim era uma solução psicológica constituía um desafio à ordem simbólica, um ataque à dignidade da instituição, a qual requer silêncio sobre a arbitrariedade do rito institucional em vias de se consumar. A leitura pública desse texto, que, escrito fora daquela situação, deve ser lido tal e qual, sem modificação, perante o corpo de mestres reunidos, Claude Lévi-Strauss, Georges Dumézil, Michel Foucault etc., é uma prova terrível. Alguém me dirá que eu tinha a voz sumida. Esboço um movimento de parada brusca e de ir embora. Jean-Pierre Vernant fica de olhos esbugalhados, ou é assim que o vejo; vou até o fim na corda bamba. (BOURDIEU, 2005, p. 131-132).

A transgressão que propunha com a escrita da aula inaugural, para Bourdieu, se transformou mais em uma espécie de gafe. Assim inicia sua atuação no Collège de France, com um tom crítico ao conhecimento ortodoxo e com a defesa da liberdade no fazer científico – o curioso aqui é exatamente a condição paradoxal que Bourdieu experimenta com o conteúdo e a intencionalidade dessa aula inaugural: utilizar a autoridade que passava a lhe ser conferida como catedrático para fazer uma leçon (o termo francês ajuda a manter a dubiedade em português entre aula e lição/ensinamento) sobre a liberdade frente a todas as lições. A partir disso, passemos então a nos dedicar ao primeiro curso de Bourdieu no Collège de France.

Cours de sociologie générale I, II, III, IV e V

Se nos cursos posteriores no Collège de France Bourdieu se ocupou de temas e objetos mais específicos (o Estado, a arte e a ciência da ciência), no seu curso de sociologia geral temos um Bourdieu preocupado com a consolidação e disseminação de uma forma de pensar a sociologia, empreendimento que foi levado a cabo a partir dos principais conceitos construídos por si em investigações realizadas até a década de 1980. As contribuições contidas nesse curso de sociologia geral têm sido parcamente exploradas nas últimas décadas, uma vez que, apesar de o próprio Collège de France disponibilizar os resumos de cada ano em sua página eletrônica6, na França o curso somente ganhou uma publicação completa em 2015, com as aulas de 1981 a 1983 compiladas pela editora Raisons d’agir, que acabou sendo completada por um segundo volume com as aulas de 1983 a 1986, em 2016. Vale a pena destacar que além dos resumos constam também congressos e missões de que Bourdieu participou no período e publicações realizadas, incluindo a tradução de suas obras no exterior.

Antes de adentrarmos nas especificidades de cada ano letivo, observemos o todo do curso em questão:

Quadro 1 Curso de sociologia geral de Pierre Bourdieu no Collège de France 

Ano letivo na França Tema/s principal/is Fios condutores e coerência entre os cinco anos do curso de sociologia geral
1981-1982 Sociologia enquanto ciência e sua relação com o mundo social
  • Construção de uma teoria da prática;

  • Reflexividade sobre o fazer científico;

  • Preocupação pedagógica no sentido da formação de cientistas sociais;

  • Preocupação teórica e metodológica e ligação entre ensino e pesquisa;

  • Aprofundamento da teoria da prática;

  • Discussões base para muitas publicações futuras.

Lutas de classificação e classes sociais
1982-1983 Campo e Habitus
1983-1984 Capital
1984-1985 Percepção do mundo social
1985-1986 Senso Prático

Fonte: Elaboração própria a partir de Bourdieu (2015, 2016, 2020).

Cinco dias após sua aula inaugural, de que tratamos no tópico anterior, Pierre Bourdieu inicia sua incursão como catedrático no Collège de France e no primeiro ano letivo proferiu oito aulas entre abril e junho de 1982. Esse primeiro ano de curso foi erigido sobre a premissa de que é necessário tratar da relação entre o cientista social e seu objeto de investigação – os sujeitos que agem/atuam na sociedade –, o que Bourdieu tratou com base no processo de classificação que esse cientista realiza em seu ofício, o que se correlaciona necessariamente com as classificações que os agentes sociais empregam no cotidiano da vida social. Isso significa que diferentes classificações coexistem na sociedade, sendo necessário compreender as especificidades das classificações da sociologia em relação às classificações sociais mais amplas, mas também em relação a outras áreas do conhecimento. A tarefa enfrentada por Bourdieu aqui, e consequentemente colocada para sua audiência, consistia em superar a perspectiva intelectualista, objetivista e escolástica, interrogando o ofício de teorização sobre o mundo e os agentes sociais (FRINGANT, 2019).

Em um movimento progressivo do conhecimento, o primeiro ano de curso retoma essa questão das classificações e das classes sociais – que já eram centrais em A distinção –, demonstrando que, ao apresentar sua sociologia no Collège de France, Bourdieu promovia um paulatino refinamento de conceitos caros aos seus constructos teóricos (CHAMPAGNE; DUVAL, 2020). Diferentemente da classificação promovida pela biologia, área frequentemente utilizada pelo catedrático para contrapor à sociologia, a segunda trabalha com instituições ou indivíduos que já estão classificados, eles são

[…] portadores de nomes e de títulos que são tanto indicadores de pertencimento a classes quanto nos dão uma indicação do que significa classificar na existência ordinária. Se aquilo que o sociólogo encontra se apresenta como já classificado, é porque ele lida com sujeitos classificadores. (BOURDIEU, 2020, p. 26).

Esses nomes e títulos, ou melhor, esses signos são tornados quase invisíveis no processo de distinção e dominação social, e é justamente essa compreensão que leva Bourdieu a afirmar nesse primeiro ano de curso que o problema da classificação tem como pano de fundo o problema da fundamentação da autoridade. Nesse sentido, tão importante quanto compreender a correlação entre classificação e autoridade é a descoberta dos critérios de classificação. Com exemplos de pesquisa, as aulas do primeiro ano vão construindo o importante entendimento de que a sociologia deve englobar na teoria do mundo social uma teoria do efeito de teoria, que, ao enxergar o mundo sob suas específicas lentes, contribui com a realidade desse mesmo mundo.

Nos dois primeiros anos de curso, portanto, Bourdieu se dedicara a aprofundar questões que tomavam lugar em algumas de suas obras publicadas na década de 1960, mas sobretudo nas obras mais contemporâneas a esses primeiros anos no Collège de France (A distinção, O senso prático e A economia das trocas linguísticas). Para completar esse exercício, as investigações que estava a desenvolver naquele momento também ganhavam espaço nos debates que promovia nessas aulas – Champagne e Duval (2020) apontam que Bourdieu cita nas aulas desses primeiros anos, por exemplo, seus trabalhos em andamento sobre os professores universitários (o que viria a ser a obra Homo academicus, publicada em 1980), as Grandes Écoles (A nobreza do Estado, de 1989) e o campo literário (As regras da arte, de 1992). Nesse sentido, seu curso de sociologia geral constitui um espaço para compreender não somente as ideias de Bourdieu, mas sobretudo as formas como desenvolvia essas ideias, ou seja, os caminhos que traçava e retraçava no enfrentamento de suas questões e hipóteses constantemente colocadas em suas pesquisas e em suas aulas. Duval rememora que as aulas ocorriam em um anfiteatro que estava lotado em todas as sessões, havendo membros do CSE entre os assistentes. Paralelamente a esse curso, no Collège de France, Bourdieu coordenava um seminário na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em que estava parte significativa de seus colaboradores (ROSATTI; CONSOLIM, 2018).

Se no primeiro ano do curso de sociologia geral Bourdieu apontou brevemente a interrelação entre os conceitos de campo, habitus e capital, foi no segundo ano que promoveu um adensamento dos dois primeiros conceitos. Para Champagne e Duval (2020), Bourdieu dedica seus cursos no Collège de France, a partir desse segundo ano, ao conceito de campo, impondo a si próprio o trabalho de aprofundamento necessário que ele compreendia a necessidade de realizar naquele momento. A centralidade desse conceito integraria, portanto, os conceitos de habitus e o de capital, sendo ela a principal razão de assistirmos a uma multiplicação de suas pesquisas em torno do campo. Os indícios desse empreendimento intelectual e investigativo vão se fazendo presentes nas aulas e nos próximos cursos no Collège, bem como nas suas pesquisas e publicações sobre os campos universitário, jurídico, literário e estatal. Isso nos permite perceber como a posição em uma cátedra no Collège de France foi essencial para Bourdieu – e certamente para outros tantos nomes que ocupavam as demais cátedras – consolidar uma agenda de investigação para si e para seu grupo de pesquisa e, em função do peso simbólico dessa instituição no campo científico francês, fazer irradiar essa agenda do centro para a periferia desse campo.

Seguindo a mesma linha do primeiro ano, no sentido da correlação constante entre teorização e pesquisa, no segundo ano, Bourdieu alia uma espécie de genealogia histórica de seus conceitos à recomendação metodológica para trabalhar na interseção entre campo e habitus: o primeiro passo seria o estudo do processo pelo qual o social se inscreve na materialidade; o segundo passo, por sua vez, consistiria em analisar o processo de incorporação, que transforma estruturas e condições objetivas em disposições permanentes; e, por fim, o terceiro passo diria respeito ao estudo das relações entre essas duas formas de existência, os espaços de posições (campos) e as disposições (habitus) (BOURDIEU, 2015). Relevante asseverar, juntamente com Setton (2002), que a partir da interseção entre os dois conceitos, o objetivo de Bourdieu com a operacionalização do conceito de habitus consistia em identificar a mediação entre indivíduo e sociedade, superando perspectivas estanques.

No terceiro ano, Bourdieu se volta para o debate sobre os capitais, compreendendo a existência de uma íntima relação entre as propriedades específicas dos capitais e as propriedades de um determinado campo. Apesar da compreensão de que há tantos tipos de capitais quanto há de campos, Bourdieu compreende que dois capitais são fundamentais para a compreensão do funcionamento do mundo social: o capital cultural e o capital econômico. No caso do capital cultural, ele seria encontrado em três estados: incorporado, objetivado e institucionalizado. Tais assertivas que Bourdieu realizou em seu curso são centrais para a compreensão da dinâmica do mundo social a partir da teoria dos campos.

No curso de 1984, Bourdieu realizou um preâmbulo sobre o ensino de sociologia, em que indicou que a sociologia, assim como outras ciências, poderia ser ensinada de duas formas. Em suas palavras:

Na verdade, a sociologia, como todas as ciências, pode ser ensinada de duas formas: podemos ensinar princípios, os formalismos ou as implementações desses formalismos. Por temperamento intelectual, preferiria a segunda fórmula, aquela que consiste em mostrar a ciência em ação nas operações de pesquisa, mas como as condições em que vou me colocar obviamente me impedem de realmente fazê-lo, busquei algum tipo de compromisso entre a intenção de transmitir as formas e a intenção de transmitir implementações dessas formas. (BOURDIEU, 2016, p. 25-26, tradução nossa).

Visando atingir esse objetivo, Bourdieu indica que organizou suas aulas em duas partes: a primeira dedicada às análises teóricas; e a segunda dedicada a como construir um objetivo, desenvolver uma problemática e principalmente a como implementar formulações teóricas em problemas concretos. Essa divisão didática da exposição de Bourdieu representa claramente sua concepção de sociologia e de fazer científico. Nesse sentido, poderíamos afirmar que o Bourdieu professor representa um continuum em relação ao Bourdieu pesquisador, buscando transmutar para suas aulas sua orientação de pesquisa. Como bem destaca Sapiro (2018), a posição de Bourdieu na França acabou por ofuscar a divisão que há em muitos países entre instituições dedicadas à teoria e outras à pesquisa empírica.

Ao iniciar o quarto ano de curso, Bourdieu chega a afirmar que ele hesitou entre vários ramos possíveis para organizar a disciplina, tendo centrado sua análise nesse ano nas percepções sobre o mundo social, que estariam “condicionadas” pela posição que os agentes ocupam nesse mundo, desdobrando-se, assim, numa das principais características do campo, que é sua belicosidade, a existência de lutas em torno de uma determinada visão de mundo. Notadamente os detentores de maior quantia de capital cultural possuem maior capacidade de explicar, ou mesmo de construir uma determinada visão de mundo objetiva, oficial, quase jurídica. Desse modo, podemos compreender que a visão de mundo é produzida na relação entre o habitus e o capital, podemos apontar que é nesse movimento que ele desenvolve uma sociologia da percepção social. É durante esse curso que Bourdieu apresenta a análise acerca da revolução simbólica promovida por Manet (1832-1883) e os impressionistas contra a arte acadêmica; essa análise foi o foco de seu livro As regras da arte, publicado em 1992. Podemos perceber assim que, além de sintetizar ideias, a cátedra de sociologia no Collège de France servia para a divulgação de pesquisas em curso, que apenas posteriormente seriam publicadas.

No último ano do curso de sociologia geral, Bourdieu aborda a própria cumplicidade existente entre habitus e campo, destacando como o senso prático orienta as práticas ordinárias. Esse debate dialoga direta e particularmente com o livro O senso prático, que junto com A distinção eram suas duas grandes obras publicadas até seu ingresso no Collège de France. Buscando reunir os dois aspectos centrais do campo como um campo de forças, mas também como um campo de lutas, compreendendo que as lutas simbólicas visam alterar o campo de forças. Bourdieu está interessado em desbravar as construções cotidianas, e para a realização desse propósito ele rompe com a divisão tradicional entre sociologia e antropologia, se articulando a partir de uma unidade das ciências sociais. É bem verdade que seus exemplos empíricos remetem aos campos de pesquisa em que ele possui uma experiência mais vasta, como no caso da sociologia da educação e da cultura.

A finalização de seu curso traz uma reflexão sobre o lugar das ciências sociais nas lutas simbólicas que visam produzir uma determinada visão do mundo social, ao mesmo tempo que aponta para a necessidade de articularmos uma visão estruturalista e construtivista para a compreensão do mundo social, proposta que ficou conhecida como estruturalismo genético ou construtivista. Tais aspectos reforçam como a proposta de uma sociologia reflexiva atravessou toda a obra de Bourdieu (VALLE, 2013), e também sua atuação como catedrático.

Os resumos de seus cursos possuem ainda a indicação de algumas publicações, com elementos que chamam bastante a atenção. O primeiro seria o papel central que a revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales tinha na difusão de suas ideias, constituindo o principal espaço de publicação de seus artigos. Dentre as 43 publicações mencionadas, entre artigos, livros, coletâneas e traduções, dezoito são artigos publicados nessa revista. Esse periódico foi fundado por Bourdieu em 1975, e demarcava em certo sentido uma ruptura com as demais publicações especializadas na França, possibilitando a publicação de textos não definitivos, constituindo-se assim num verdadeiro “laboratório-em-ação sociológico” (WACQUANT, 2002, p. 105). Muitos dos artigos publicados ali serviram de ensaio para parte dos trabalhos publicados em livro posteriormente (HEY; CATANI; MEDEIROS, 2018).

Outro aspecto que chama a atenção é a circulação de seus trabalhos em termos de tradução: são referenciados cinco trabalhos em alemão, dois em inglês e um em língua portuguesa, os demais estão em francês. O trabalho em português que é citado é a coletânea Questões de sociologia, publicada pela editora Marco Zero Limitada, tendo sido referenciado no curso que Bourdieu lecionou entre 1982 e 1983. No caso da difusão do autor no Brasil, é importante ressaltar que antes dessa compilação – publicada originalmente em 1981 – já haviam sido traduzidos alguns artigos do autor, que foram publicados em coletâneas, mas também já havia sido publicada a obra A economia das trocas simbólicas em 1974, organizada por Sérgio Miceli, que havia sido seu orientando de doutorado na França, além de A reprodução, em 1975, e O desencantamento do mundo: estruturas econômicas e estruturas sociais, em 1979 (BORTOLUCI; JACKSON; PINHEIRO, 2015).

Com relação às comunicações e missões, até o quarto ano de curso evidenciam-se sobretudo participações em atividades organizadas em países europeus: além da França, pontua-se também sua atuação na Alemanha, Bélgica, Holanda, Inglaterra e Itália. No quinto ano de curso, além da participação em atividades na Europa, no período entre março e abril de 1986 Bourdieu realizou inúmeras atividades em universidades americanas, com conferências nas Universidades de Nova Iorque, Berkeley, Filadélfia, Baltimore, além de seminários nas Universidades de Chicago, Princeton e San Diego. Interessante perceber que é entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990 que se intensifica o processo de recepção dos trabalhos de Bourdieu nos Estados Unidos, pois, se até o momento desse conjunto de conferências e seminários Bourdieu tinha seis obras traduzidas para o inglês7, até o final da década de 1990 foram traduzidas mais 16 obras suas. Para Lizardo (2012), haveria três fases da recepção do trabalho de Bourdieu na sociologia estado-unidense, sendo esse período considerado a segunda delas, que o autor denomina de fase Berkeley, período em que Loïc Wacquant se torna professor da Universidade dessa cidade, sendo o principal articulador nos Estados Unidos do projeto de difusão da obra de Bourdieu no outro lado do Atlântico.

É nesse período que Bourdieu assina o Propositions pour l’enseignement de l’avenir/Rapport au Président de la République (1985), solicitado pelo então presidente francês François Mitterrand (1916-1996). Para além de pensarmos as proposições que estão presentes nesse relatório, que vão desde a utilização de técnicas modernas de ensino e aprendizagem, passando pela autonomia do ensino e valorização da profissão de professor, é interessante perceber a envergadura que possuía sua atuação no Collège de France, possibilitando a existência de uma intervenção no mundo social partindo das ciências sociais, reafirmando assim o lugar de tais ciências nas lutas simbólicas em torno de uma determinada visão desse mundo.

Considerações finais

Amiúde, a trajetória de Bourdieu é interpretada como uma exceção que confirma a regra, dada a excepcionalidade de seu percurso formativo e profissional. Sua chegada ao Collège de France demarcou o ápice desse percurso, principalmente considerando que ele foi por cerca de vinte anos o único representante da sociologia nesse espaço institucional, e como já apontado, não houve desde então um novo catedrático de sociologia no sentido estrito. Sua morte em 2002 deixou um vazio significativo no campo acadêmico francês, em nosso entender, ainda não preenchido. Como pondera Brito (2002, p. 6):

Ora, é difícil uma posição tão significativa ficar muito tempo sem ser preenchida. Assim, os pretendentes à sua sucessão atropelam-se simbolicamente nos degraus do Collège de France, cada rede sustentando com maior ou menor ênfase seu candidato. Antes, porém, deve-se estabelecer uma distinção entre seu espólio material e sua herança intelectual.

Ainda que parte significativa do espólio intelectual de Bourdieu tenha sido mais “facilmente” dividido, como a direção do Centre de Sociologie Européenne e da revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales, de fato seu lugar no Collège de France continua sem sucessores. Como pudemos observar, nesse espaço ele demarcou uma continuidade da posição como catedrático em relação à sua posição como pesquisador, reafirmando a indissociabilidade entre teoria e prática, optando por um caminho para o ensino de sociologia que se efetiva por meio não apenas da exposição de seus fundamentos teóricos, como também por meio da apresentação da teoria na prática.

É importante enfatizar, por fim, que seu curso de sociologia geral não foi apenas um curso de sociologia no sentido lato, mas sim um curso de sociologia essencialmente bourdieusiana, orientada a partir de conceitos centrais de sua obra, como habitus, campo e capital.

Se suas aulas envolveram também uma reflexão sobre o lugar das ciências sociais nas disputas simbólicas, pode-se dizer que sua cátedra era em si mesma um exercício de aplicação de seu debate, uma vez que colocava na arena pública – dado o caráter aberto do Collège de France – a discussão sobre o lugar da sociologia no mundo social. Podemos dizer que Bourdieu reafirmou em sua cátedra a compreensão de que as ciências sociais, e a sociologia em particular, são centrais nas disputas simbólicas existentes, visando produzir uma verdadeira ruptura epistemológica com a percepção mais imediata do real. Apesar de seu lugar nessa instituição continuar vazio, seu trabalho intelectual continua atual e necessário para a compreensão do mundo em que nos situamos.

Referências

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4- Lahire se refere aqui à revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales e das coleções Le Sens Commun nas Éditions de Minuit e Liber nas Éditions du Seuil.

5- Na orelha do livro, a editora confirma que nos próximos anos os leitores brasileiros contarão com uma continuidade de publicações, com as aulas dos anos seguintes do Curso de Sociologia Geral de Bourdieu: enquanto esta primeira publicação trata da sociologia enquanto ciência e sua relação com o espaço social, que ela analisa por meio de classificações, o segundo volume se centrará nas noções de habitus e campo; o terceiro versará sobre o conceito de capital; o quarto terá como tema o poder simbólico; e, por fim, o quinto volume buscará atar as pontas das discussões anteriores (BOURDIEU, 2020).

7- Estes foram os livros traduzidos em inglês nesse período, com seus respectivos títulos e datas de publicação nos Estados Unidos: The Algerians (1962), Reproduction (1977), Outline of a theory of practice (1977), Algeria 1960 (1979), The inheritors (1979), e Distinction (1984).

1- O estudo que originou este artigo contou com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM).

Recebido: 01 de Julho de 2021; Aceito: 09 de Novembro de 2021

Amurabi Oliveira é doutor em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) com estágio pós-doutoral pela Universidade Autônoma de Barcelona. É professor da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

Camila Ferreira da Silva é doutora em ciências da educação pela Universidade Nova de Lisboa, com estágio pós-doutoral em sociologia política pela UFSC e professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Amazonas (PPGE/FACED/UFAM).

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