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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 18-Jul-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248254909por 

SEÇÃO TEMÁTICA: 20 anos depois: pensar com e sem Bourdieu

Batalhadores culturais: trajetórias de mobilidade ascendente nos meios populares1

Cultural strivers: trajectories of upward mobility in the popular classes

Ana Rodrigues Cavalcanti Alves2 
http://orcid.org/0000-0001-9121-882X

2- Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil. Contato: anarodrigues@ufba.br


Resumo

Este artigo visa discutir trajetórias de mobilidade ascendente entre as classes populares brasileiras por meio da aquisição de capital escolar e inserção no ensino superior nas últimas décadas. A investigação se ancora em uma abordagem teórico-metodológica disposicionalista, que busca analisar as condições objetivas e subjetivas que permitiram o rompimento das fronteiras de classe e a ascensão social por meio do ingresso em um curso de nível superior. Para tanto, foi realizada uma pesquisa qualitativa envolvendo entrevistas em profundidade com membros dessa fração de classe, residentes na região metropolitana de Recife (PE), entre os anos de 2015 e 2016 (denominados neste trabalho como batalhadores culturais, dada sua mobilidade ascendente mediante a incorporação de um montante de capital cultural). A pesquisa buscou reconstruir a trajetória desses membros, bem como as principais disposições e valores constitutivos de seu ethos de classe responsáveis pelo seu processo de mobilidade ascendente via escolarização. A análise permitiu identificar um conjunto de disposições incorporadas no decorrer da trajetória desses indivíduos que favoreceu a aquisição de capital escolar e outras formas de capital cultural, projetando-os ao topo dessa fração de classe. Por outro lado, é possível observar as tensões e conflitos associados às suas tentativas de “subir na vida”, além de um ajuste das expectativas geradas pela aquisição de um diploma de ensino superior à realidade, diante das oportunidades encontradas pelos(as) estudantes egressos(as).

Palavras-Chave: Batalhadores culturais; Classes populares; Trajetória social; Mobilidade social; Sociologia disposicionalista

Abstract

This article aims to discuss trajectories of upward mobility among Brazilian popular classes through the acquisition of educational capital and access to higher education in the last decades. The investigation is based on Bourdieu’s dispositionalist approach, focused on objective and subjective conditions that allowed some members of the popular classes to break through class boundaries, since social mobility took place through access to higher education. This research was qualitative, involving in-depth interviews with members of this class fraction residing in the metropolitan area of Recife (Pernambuco) between 2015 and 2016. In this work, people who participated are called cultural strivers, given their upward mobility through the incorporation of an amount of cultural capital. The research sought to reconstruct these members’ trajectories and the main dispositions and values constitutive of their class ethos, responsible for their upward mobility process via schooling. The analysis identified a set of dispositions incorporated in the course of these individuals’ trajectories which favored the acquisition of educational capital and other forms of cultural capital, propelling them to the top of that class fraction. On the other hand, it is possible to observe the tensions and conflicts associated with their attempts to “come out on top”, as well as adjustments of the expectations (generated by acquiring a college degree) to reality, given the limited opportunities found by graduates.

Key words: Cultural strivers; Popular classes; Social trajectory; Social mobility; Dispositionalist sociology

Introdução

Um conjunto de transformações na estrutura da sociedade brasileira, a partir dos anos 2000, provocou impactos diretos sobre as classes populares, possibilitando uma pequena diminuição da desigualdade de renda e mudanças no perfil da pobreza, com maior acesso ao consumo de bens e serviços (IPEA, 2011; POCHMANN, 2014; TORRES; BICHIR; CARPIM, 2006). Cabe mencionar também o processo de expansão educacional em curso no Brasil ao longo das últimas décadas, que democratizou o acesso aos diferentes níveis educacionais, contribuindo para a redução da desigualdade de oportunidades observada no período. Ribeiro (2017) destaca uma diminuição constante da desigualdade de oportunidades de mobilidade social no Brasil no período entre 1973 e 2014, de acordo com o coeficiente uniform difference (Unidiff), que passou de 1 para 0,773.

Para Ribeiro (2017), a principal hipótese associada a esse fenômeno é a de que a expansão educacional ocorrida nas últimas décadas diminuiu o efeito da classe de origem sobre a educação alcançada pelos filhos. Nesse sentido, o autor destaca que aumentaram as chances de completar com sucesso as transições educacionais entre as diferentes classes sociais no mesmo período, sobretudo nos dois primeiros níveis (quatro anos de ensino elementar e oito anos de ensino elementar, respectivamente). Embora as chances de todas as classes sociais concluírem o ensino médio tenham aumentado ao longo do tempo, não houve mudança na desigualdade de classe para concluir esse nível educacional, de modo que os indivíduos com origem social na classe alta permanecem mais ou menos com a mesma vantagem.

Também houve diminuição das desigualdades socioeconômicas para ingressar e completar o ensino superior (RIBEIRO, 2017), cuja expansão teve início no Brasil a partir da segunda metade dos anos 1990 (AGUIAR, 2016). Segundo Aguiar (2016), o número de matrículas em instituições de nível superior passou de cerca de 1,7 milhão, em 1995, para 6,3 milhões, em 2010. Tal expansão está ligada às políticas de inclusão no ensino superior, implementadas a partir desse período.

Esse conjunto de transformações possibilitou uma reestruturação das classes sociais no Brasil, cujos impactos vêm sendo analisados a partir de diversas frentes disciplinares. Diversos estudos buscaram analisar os efeitos dessas mudanças sobre as classes que se encontram na base da pirâmide social, empregando diferentes abordagens analíticas que se distanciam da interpretação triunfalista da emergência de uma “nova classe média”, interpretação esta que se estabeleceu com dominância explicativa a partir de 2008 (POCHMANN, 2014; SOUZA, 2012). De modo geral, tais estudos reafirmam o pertencimento de uma fração ascendente das classes oriundas da base da pirâmide social às classes trabalhadoras, identificando as condições que possibilitaram sua integração ao mercado, bem como as contradições inerentes a esse processo.

Nessa perspectiva, ancorado na teoria das classes de Pierre Bourdieu (2013a), Jessé Souza (2012) empreende uma análise acerca das pré-condições sociais, culturais, emocionais e cognitivas que permitem a uma fração das classes populares brasileiras – denominada pelo autor como batalhadores – integrar-se no mercado competitivo, através da incorporação de um conjunto de disposições ascéticas para o trabalho. Essa fração seria capaz de ascender socialmente por meio de sua inserção no sistema econômico, como produtora ou consumidora de bens anteriormente considerados como privilégio de outras classes – embora ainda não detenha os dois tipos de capitais impessoais que asseguram todo tipo de acesso privilegiado aos bens e recursos de uma sociedade, a saber, capital econômico e capital cultural (SOUZA, 2012).

Este trabalho se insere nesse debate buscando investigar o impacto dessas mudanças para os membros das classes populares cuja estratégia de mobilidade ascendente se orienta pela aquisição de capital escolar, bem como de outras formas de capital cultural, visando assegurar uma inserção mais qualificada no mercado. Assim, a análise focaliza as condições objetivas e subjetivas que permitem a alguns membros das frações ascensionais das classes populares aproveitar as oportunidades educacionais que emergiram no período recente, permitindo sua inserção no ensino superior.

Para tanto, foi realizada uma pesquisa qualitativa com membros dessa fração de classe, orientada por uma abordagem teórico-metodológica disposicionalista, cujo percurso e principais ferramentas serão apresentados nas próximas seções. Em seguida, discutem-se as principais características da trajetória comum a esse perfil das frações ascensionais das classes populares, destacando sonhos, estratégias, expectativas e frustrações envolvidas em seu projeto de mobilidade ascendente. Por fim, apresentam-se as principais conclusões alcançadas a partir dessa investigação.

Ferramentas teórico-metodológicas da sociologia disposicionalista

A análise das condições que favoreceram trajetórias de mobilidade ascendente nos meios populares brasileiros, no período recente, ancorou-se no arsenal teórico-metodológico disposicionalista, tal como desenvolvido, sobretudo, por Pierre Bourdieu (2013a, 2013b), Bernard Lahire (2002, 2004, 2006) e Jessé Souza (2012).

Desse modo, a investigação se fundamentou na teoria das classes sociais de Pierre Bourdieu (2013a), uma vez que o autor fornece um enfoque teórico-metodológico multidimensional capaz de analisar as diversas práticas, representações e disposições dos indivíduos e classes na sua relação com as condições objetivas de existência. Ademais, tal concepção permite destacar a formação sociocultural da classe social e revela a importância dos capitais impessoais – principalmente o econômico e o cultural – na determinação da posição ocupada no espaço social, além da trajetória, definida pela relação entre posição de origem e posição de chegada, num determinado momento do tempo (BOURDIEU, 2013a).

A noção de trajetória revelou-se muito importante para os fins desta análise, uma vez que a investigação abordou um perfil específico das frações ascensionais das classes populares, os batalhadores culturais, cuja estratégia de mobilidade ascendente se centra no acúmulo de capital escolar e de diversas formas de capital cultural. Embora o capital cultural seja o principal recurso utilizado para a reprodução da classe média (BOURDIEU, 2013a), o batalhador cultural se distancia desta classe devido a sua origem social, que parece impor necessidades e urgências refletidas em suas escolhas posteriores através das disposições duravelmente instaladas desde a socialização familiar, e que determinam, em certa medida, o alcance provável de suas posições de chegada. Portanto, embora ocupe o topo das classes populares, esse perfil parece manter uma distância em relação à trajetória da classe média.

Por outro lado, a noção de trajetória empregada neste trabalho não se reduz à associação estatística entre posição de origem e posição de destino (comumente encontrada nos estudos sobre mobilidade social), mas abrange também uma análise qualitativa acerca da importância dos processos de socialização primária e secundária, tais como família, escola, religião, entre outras. Se a socialização familiar se mostra fundamental para a incorporação de valores e disposições duravelmente instalados, como frisa Bourdieu (2013a), os processos de socialização secundária são importantes para a incorporação de novas disposições, consideradas centrais para o seu processo de mobilidade ascendente via escolarização, como destaca Bernard Lahire (2002).

A sociologia disposicionalista proposta por Lahire (2002, 2004, 2006) também constituiu uma referência fundamental para os fins da análise. Sua construção teórico-metodológica de perfis sociológicos individuais visa superar o caráter de “caixa preta” do habitus de Bourdieu, explicitando, mediante pesquisa empírica, o conjunto da modelagem social pelo qual o indivíduo passou, desde a família na qual experienciou sua classe, passando pela escola, pelo trabalho, pelo meio cultural etc.4 (LAHIRE, 2013). O autor enfatiza a centralidade dos processos de socialização secundária na incorporação de novas disposições sociais, bem como a importância de abordar tais processos a partir de uma metodologia qualitativa que permita ultrapassar a simples invocação do passado incorporado, reconstruindo a gênese das disposições, as modalidades de atualização desse passado e os modos de socialização (LAHIRE, 2002). Tal abordagem permite apreender as complexidades disposicionais de indivíduos socialmente situados – em contraposição à ênfase bourdieusiana na unicidade e sistematicidade do habitus de classe (BOURDIEU, 2013b) –, destacando as variações interindividuais, observadas no interior de uma mesma classe, assim como as variações intraindividuais, quando os indivíduos se orientam por disposições heterogêneas e até mesmo contraditórias, nos diferentes domínios da prática. Desse modo, os construtos teóricos lahirianos permitem abordar, de modo mais nuançado do que a noção de fração de classe utilizada por Bourdieu (2013a), a heterogeneidade e dinamicidade constitutivas das classes populares brasileiras, próprias de uma posição dominada no espaço social, que busca, de diversas maneiras, melhorar sua posição.

Essas noções se complementam na investigação sobre as trajetórias daquele perfil das classes populares que consegue aproveitar as oportunidades abertas pelo processo de expansão educacional mediante acúmulo de capital escolar e entrada no ensino superior, ao passo que outros não conseguem, vivenciando um sentimento de frustração, conforme foi possível observar em nossa pesquisa empírica. Outros membros das frações ascensionais das classes populares brasileiras adotam ainda outras estratégias, integrando-se no mercado como trabalhador ou empreendedor, como destacam diversos estudos (ANTUNES; BRAGA, 2009; SOUZA, 2012). Assim, é possível abordar, no interior dessa fração de classe, uma trajetória específica, concebida neste trabalho como perfil cultural (LAHIRE, 2004, 2006). Em A cultura dos indivíduos, Lahire (2006) utiliza a noção de perfil cultural para destacar a existência de elementos culturais dissonantes no interior de todas as classes sociais, o que permite apreender as variações intraindividuais e interindividuais dos comportamentos culturais no interior de uma mesma classe. O autor se contrapõe à ênfase reprodutivista da escola, destacando uma série de fatores que favorecem o desempenho escolar nas classes populares, apesar da desvantagem da origem social.

Lahire (1997) destaca diferenças com relação à composição, dinâmica interna e práticas da família que possibilitam diferentes tipos de relação com a escola e com os processos de ensino-aprendizagem. A análise desses fatores, assim como a dimensão afetiva das relações familiares, permite perceber, segundo o autor, o grau e o modo de transmissão dos recursos disponíveis, já que esta não necessariamente ocorre. Tal análise foi fundamental para apreender a incorporação bem-sucedida de disposições gerais para os estudos em nossa pesquisa empírica entre indivíduos das classes populares que não contavam com um montante de capital cultural considerado legítimo em sua posição de origem. Ademais, a distinção analítica elaborada pelo autor entre as disposições para crer e disposições para agir permite apreender os casos em que, tendo incorporado crenças e valores que enfatizam a importância da educação como caminho para “mudar de vida”, os indivíduos não conseguiram incorporar as disposições para agir, vivenciando um sentimento de frustração ou ilegitimidade cultural (LAHIRE, 2002).

Por fim, Jessé Souza (2012) constituiu outro importante interlocutor na construção das ferramentas teórico-metodológicas da pesquisa, na medida em que sua análise das transformações recentes na estrutura da sociedade brasileira se concentra não somente nas condições objetivas, mas também nas disposições subjetivas que permitiram a uma fração das classes populares se inserir no mercado. Seu conceito de batalhador permite destacar o caráter sociocultural das frações ascensionais das classes populares. Segundo o autor, essa fração consegue ascender socialmente, projetando-se como uma “elite” das classes populares, através da incorporação das disposições e valores constitutivos de um ethos do trabalho duro durante a socialização familiar. Assim, Souza (2012) destaca a capacidade de manter mais de um emprego, uma dupla jornada de escola e trabalho, autocontrole, capacidade de concentração, pensamento prospectivo, capacidade de poupança e resistência ao consumo imediato, entre outras. São essas disposições que permitiriam ao batalhador sobreviver às crises e inconstâncias do mercado. Tais comportamentos convergem para o tipo de capitalismo flexível que se desenvolve no Brasil, caracterizado pelo crescimento de empregos formais precarizados, organizados segundo parâmetros pós-fordistas, que exigem maior flexibilidade e capacidade de grandes sacrifícios pessoais (SOUZA, 2012).

O autor também identifica certa tensão entre trabalho e estudo na trajetória do batalhador, pois, apesar de encarar o estudo como meio de assegurar uma posição estável no mercado competitivo, o trabalho não surge como uma “consequência suave do estudo” – como é o caso de muitos membros da classe média –, mas por força da necessidade e de uma inserção precoce no mundo do trabalho (SOUZA, 2012, p. 71). Outrossim, o “gosto” ou a disposição para os estudos não depende apenas da vontade consciente do indivíduo, mas de um contexto social anterior, predominantemente familiar, no qual esse indivíduo incorpora geralmente de forma pré-reflexiva os pressupostos para gostar de estudar. Dessa forma, além de não contar com as pré-condições culturais, afetivas e emocionais para a incorporação de disposições para os estudos, o batalhador é marcado pela necessidade de trabalhar. Segundo Souza (2012, p. 75), tais imposições são desfavoráveis à incorporação de um gosto pelos estudos, uma vez que esse gosto “raramente vem desacompanhado da possibilidade de se dedicar exclusivamente a este, ou ainda da possibilidade de planejar sua vida profissional em função dos estudos”.

Adicionalmente, o processo de democratização do ensino observado no Brasil nas últimas décadas não constitui uma garantia de integração estável no mundo do trabalho, nem mesmo uma relação aproximada com o mundo escolar ou ainda um acesso garantido aos seus níveis superiores. Pelo contrário, em muitos casos essa experiência contribui para distanciar o batalhador do conhecimento escolar, através da produção de um tipo de violência simbólica que o conduz a um desinteresse e desestímulo para os estudos. Nesse sentido, Souza (2012) destaca que o impacto do aumento da escolarização formal contribuiu para a formação de um contingente de trabalhadores minimamente escolarizados para o trabalho formal precário. Portanto, embora a distância entre qualificados e desqualificados seja cada vez maior, a obtenção de um diploma de nível médio relegaria o batalhador aos setores mais desprotegidos do mercado de trabalho formal, como é o caso do setor de telemarketing.

Todavia, embora a investigação se utilize de conceitos e ferramentas desenvolvidas na análise de Souza (2012), como a noção de batalhador, as disposições e os valores constitutivos do ethos do trabalho duro, ela se concentra naquele contingente das frações ascensionais das classes populares que conseguiu ingressar no ensino superior, pouco explorada pelo autor. Ancorada nos instrumentos da sociologia disposicionalista, nossa investigação procedeu a uma pesquisa empírica, que será brevemente descrita na seção seguinte.

A pesquisa de campo5

Para os fins desta análise, desenvolveu-se uma pesquisa qualitativa com membros das frações ascensionais das classes populares, residentes em bairros periféricos da região metropolitana de Recife, entre abril de 2015 e janeiro de 2016. Foram realizadas entrevistas em profundidade com oito membros dessa fração de classe que conseguiram ingressar no ensino superior nas últimas décadas, além de uma entrevistada que não logrou êxito em sua tentativa – pois, diante da dificuldade para acompanhar o curso de Engenharia Civil em uma universidade particular e do alto número de reprovações nas disciplinas, decidiu abandonar o curso.

Partindo de uma noção de classe construída de acordo com a qual a própria definição da classe desponta como resultado da pesquisa e não como seu ponto de partida (BOURDIEU, 2013a), a pesquisa de campo empreendida não procedeu a uma seleção dos informantes a partir de critérios pré-estabelecidos, tais como faixa de renda, nível de escolaridade, faixa etária, entre outros; optou, em vez disso, por uma seleção a partir de indicações de membros das classes populares ligados à rede de contatos do(a) pesquisador(a), baseada em suas próprias percepções e referências de mobilidade ascendente. Foi a partir desse método de seleção que se chegou, inicialmente, ao perfil analisado neste trabalho. Isso porque alguns dos informantes indicados não haviam vivenciado uma mudança significativa nas condições materiais de vida nos últimos anos e a principal referência de mobilidade ascendente se relacionava ao seu ingresso no ensino superior – para a maioria, o primeiro caso na família.

Os(as) entrevistados(as) se situam numa faixa etária entre 19 e 40 anos de idade, dentre os(as) quais seis ingressaram em universidades públicas e quatro em instituições privadas, considerando que uma das entrevistadas conseguiu ingressar em uma universidade particular através do Programa Universidade para Todos (Prouni) e, posteriormente, ingressou em uma universidade pública através do sistema de cotas para estudantes de escola pública. Desse modo, foram analisados(as) estudantes e egressos(as), conforme a Tabela 1:

Tabela 1 Dados dos(as) entrevistados(as)6 

Nome Idade Cor/Raça (autodeclaração) Curso/Instituição Situação
Efraim 33 anos Preto Licenciatura em Música (Universidade Federal de Pernambuco – UFPE) Cursando
Erinaldo 29 anos Branco Licenciatura em Matemática (Universidade de Pernambuco – UPE) Concluído
Felipe 19 anos Preto Licenciatura em Música (UFPE) Cursando
Janaína 36 anos Preta Licenciatura em Música (UFPE) Concluído
Jane 38 anos Parda Engenharia Civil (Faculdade Integrada do Recife – Estácio-FIR) Desistente
Jandira 40 anos Preta Direito (Sociedade Pernambucana de Cultura e Ensino – Sopece) Concluído
Natanael 19 anos Branco Ciências Contábeis (UFPE) Cursando
Paloma 40 anos Parda Marketing (Centro Universitário Maurício de Nassau – Uninassau) Concluído
Paula 29 anos Branca Publicidade (Universidade Católica de Pernambuco – Unicap)/Direito (UFPE) Concluído/Cursando

Fonte: Elaborado pela autora.

De modo geral, o trabalho de campo orientou-se por uma tentativa de reconstrução da trajetória dos(as) entrevistados(as), por meio de uma análise de sua história de vida, percorrida através da investigação sobre os diversos processos de socialização pelos quais passaram, que possibilitaram a incorporação de um conjunto de disposições e valores favorável ao desenvolvimento de um gosto pelos estudos e ao acúmulo de capital escolar. Para tanto, recorreu-se à proposta de retratos sociológicos de Bernard Lahire (2004), buscando reconstituir a gênese das disposições favoráveis ao ingresso no ensino superior entre os membros dessa fração de classe, bem como as condições que possibilitaram a sua incorporação entre os(as) entrevistados(as). Assim, as entrevistas em profundidade se concentraram em questões sobre família, vida escolar, trabalho, lazer e consumo, vida comunitária, religião, entre outras; além de um breve questionário com questões sobre dados socioeconômicos, bairro de residência e inventário de bens duráveis.

Embora houvesse, inicialmente, a intenção de realizar mais de um encontro com cada entrevistado(a), de modo a observar suas práticas nos diferentes contextos – à maneira dos retratos de Lahire (2004) –, essa abordagem se mostrou inviável diante da pouca disponibilidade de tempo de nossos(as) informantes, que muitas vezes precisavam conciliar uma dupla jornada de trabalho com um curso noturno. Isso não impediu a apreensão e análise de disposições e práticas heterogêneas, e até mesmo contraditórias, a partir da construção das questões de pesquisa, manifestas em diferentes domínios da prática, o que permitiu perceber a existência de variações interindividuais no interior dessa fração de classe; bem como variações intraindividuais, sobretudo no que se refere à orientação manifesta no campo dos estilos de vida. Notou-se que as disposições ascéticas expressas no âmbito do trabalho e da vida escolar não são transpostas necessariamente para todos os domínios da prática, de modo que esses indivíduos podem adotar uma orientação mais hedonista na composição de seu estilo de vida, incorporando novas disposições para o consumo que visam exprimir a posição social alcançada (embora essa discussão exceda os limites deste trabalho). Na próxima seção, apresenta-se o perfil de nossos(as) informantes, permitindo destacar a trajetória do batalhador cultural.

A trajetória do batalhador cultural

A análise permitiu perceber que, embora a trajetória das frações ascensionais das classes populares investigada neste trabalho se caracterize pelo gradativo acúmulo de capital escolar (além de diversas formas de capital cultural) e consequente ingresso no ensino superior, esses indivíduos também incorporaram, durante a socialização familiar, um conjunto de disposições ascéticas e valores constitutivos do ethos do trabalho duro, considerado fundamental para seu processo de mobilidade ascendente.

Entre as disposições assinaladas por Souza (2012), foi possível perceber em nossos interlocutores uma disposição para o trabalho duro, disposição para a disciplina, autocontrole, capacidade de concentração, pensamento prospectivo, capacidade para conciliar uma faculdade com uma dupla jornada de trabalho e disposição para a autossuperação. Esta última visa à superação de uma condição de vida anterior e busca expressar um padrão de dignidade principalmente a partir do consumo de bens (SOUZA, 2012). Na medida em que partilha de uma origem social nas classes populares e de um conjunto de disposições e valores constitutivos do ethos do trabalho duro, o perfil aqui analisado não se distancia completamente dos demais batalhadores.

Por outro lado, nossos interlocutores também se caracterizam por um conjunto de condições objetivas e subjetivas específicas que lhes permitiu investir suas disposições ascéticas em estratégias escolares, além de outras estratégias de acúmulo de capital cultural, que favoreceram sua trajetória de mobilidade ascendente via escolarização e consequente ingresso no ensino superior. Por esta razão, esse perfil foi denominado na pesquisa como batalhador cultural e as principais características de sua trajetória serão apresentadas a seguir.

Uma dessas condições diz respeito à maior distância com relação ao mundo das necessidades materiais e suas urgências temporais, asseguradas através do trabalho árduo e sacrifício dos pais, que buscam priorizar os estudos de seus filhos e vivem uma “vida por procuração”, em que projetam um futuro melhor para eles, transferindo-lhes suas próprias ambições (BOURDIEU, 2013a, p. 331).

Cumpre observar também que a família do batalhador cultural é, geralmente, estruturada; composta por pai e mãe casados ou por outros membros da família que se fazem presentes como um diferencial em relação aos membros da ralé estrutural – fração de classe situada imediatamente abaixo e sem as pré-condições materiais, cognitivas e emocionais para assegurar sua inserção no mercado formal e capacidade de ascensão social (SOUZA, 2012). São justamente tais pré-condições que possibilitam aos batalhadores culturais incorporar disposições ascéticas para os estudos.

Isso pode ser observado na trajetória de Paula. No momento da entrevista, ela trabalhava como orçamentista numa gráfica. Embora seja filha de pais separados, a presença da mãe e dos avós maternos, com quem vivia, assegurou-lhe as condições favoráveis para a incorporação de um gosto pelos estudos desde a mais tenra idade. Seu avô assumiu a figura paterna e incentivava os netos a estudar, como afirma a entrevistada:

Meu avô, ele sempre disse que a preocupação que ele tinha com a gente, quando a gente era criança e adolescente, era estudar. Ele só queria que a gente estudasse, então eu, minha irmã, meus primos que tavam em casa, a vida da gente era essa, ir pra escola, fazer as tarefinhas da escola e pronto; ajudar mesmo em casa, de fazer as coisas, a gente nunca teve essa preocupação não, inclusive, nem trabalhar ele queria que a gente trabalhasse, que ele dizia, o sonho dele era me ver formada, então ele queria só que eu fosse trabalhar, fazer as coisas depois que eu tivesse formada.

Assim, Paula conseguiu se dedicar aos estudos de modo exclusivo até os 17 anos de idade, obtendo uma condição favorável à incorporação de um gosto pelos estudos, que se diferencia daquela vivenciada pela maioria dos batalhadores (SOUZA, 2012). Portanto, apesar de não dispor de capital econômico nem do tipo de capital cultural considerado legítimo na sua posição de origem, a incorporação de disposições gerais para os estudos se deu de maneira afetiva, através de incentivos e da exemplaridade, principalmente a partir da observação do sacrifício feito pelos familiares para manter os(as) filhos(as) e netos(as) fora do mundo do trabalho. Paula afirma ter recebido uma educação rígida de sua família através do controle dos horários de estudo e de lazer, bem como de suas saídas. Desse modo, a entrevistada incorporou disposições para a disciplina e o autocontrole durante a socialização familiar.

Outra característica do batalhador cultural é que seus pais podem ter um nível de escolaridade mais elevado do que os dos demais batalhadores, o que permite a aquisição de um pequeno montante de capital cultural já na posição inicial de sua trajetória. Nesse sentido, alguns dos entrevistados na pesquisa tinham pais com ensino médio completo e até mesmo com diploma de nível técnico, possuindo uma ocupação mais qualificada. Tal constatação vai ao encontro de estudos sobre estratificação educacional que destacam o efeito da escolarização dos pais nas chances de progressão educacional obtida pelos filhos, como sistematiza Brito (2017). Contudo, foi possível perceber nesta pesquisa que essa escolarização não se dá de modo linear, como “curso natural da vida”, mas através de muito sacrifício, renúncia, desistências e interrupções, que conduzem a uma conclusão tardia dos níveis de ensino, fora da idade escolar.

É o caso da família de Janaína, formada em Licenciatura em Música e professora do ensino secundário da rede municipal de Jaboatão dos Guararapes. Sua mãe conseguiu voltar a estudar, concluir o ensino médio e se tornar técnica em Enfermagem quando seus quatro filhos já eram adolescentes. Posteriormente, ela passou em um concurso do governo do estado de Pernambuco como técnica em Enfermagem. Sua trajetória escolar é resultante de muito sacrifício, por meio da incorporação de uma conduta ascética orientada por um pendor que impele esses indivíduos “a viver acima de seus meios”, buscando superar sua condição social (BOURDIEU, 2013a, p. 316).

O pai de Janaína tem ensino médio completo, e também participava da educação e vida escolar dos filhos. Ele buscava educar através da mesma orientação rígida pela qual havia sido educado por seus pais, passando exercícios escolares para ocupar o tempo livre dos filhos. Janaína lembra que, apesar da condição financeira desfavorecida vivenciada na infância, seu pai nunca deixou que os filhos faltassem à escola por faltar a passagem do ônibus, algo que era comum entre seus colegas. Sua mãe era mais amorosa com os filhos e tentava transmitir a importância de estudar como meio de ascender socialmente, como conta a entrevistada:

Mainha achava a gente muito inteligente, a gente nunca repetiu de ano, entendesse? A gente fazia, é, ela dizia, a gente tinha obrigação de passar de ano, porque ela fazia de tudo pra a gente passar, mas não ficava dando presentinho, não ficava dando é, como é que se diz? Tem uma palavrinha que chama, estímulos assim, sabe? O estímulo da gente, dela, era dizer: “estude pra poder ter um emprego bom no futuro, pra a gente poder mudar a condição de vida da gente, a gente não viver tão apertado e o único jeito que a gente vai poder fazer é esse”. Então eu acreditava nisso, eu acreditava que o estudo é que ia fazer a diferença na minha vida, que só através de uma formação é que eu poderia ter uma profissão e ter um bom emprego, então é o que eu acredito até hoje, apesar de que… [risos]. Mas, enfim, foi o que eu fui estimulada a escutar pra ter uma profissão, pra poder não ser colocada pra trás e não deixar ninguém me inferiorizar.

É possível observar que a família do batalhador cultural busca transmitir valores morais característicos de um ethos ascético que favorece a incorporação de um gosto pelos estudos e uma inclinação para aproveitar as oportunidades. Essa transmissão ocorre através da exemplaridade, de orientações e conselhos explícitos, de estímulos afetivos que lhes garantam autoconfiança, bem como do estabelecimento de uma rotina de estudos. Além disso, os pais escolarizados possuem as condições objetivas para acompanhar a vida escolar dos filhos, fundamentais para a incorporação de um conjunto de disposições gerais para os estudos. Entre tais disposições, foi possível observar entre nossos(as) entrevistados(as) a disposição para disciplina, autocontrole, capacidade de concentração, disposição para a leitura, prática de escrita etc.

É interessante notar o modo de aquisição de capital escolar característico desse perfil, possibilitado através de uma relação mais instrumental com o conhecimento (“estude pra poder mudar a condição de vida da gente”), em contraste com a relação mais lúdica com a cultura, característica dos membros das classes dominantes (BOURDIEU, 2013a). A aquisição de capital escolar é percebida pelo batalhador cultural como forma de ser incluído socialmente, de modo que a importância de estudar adquire um sentido prático, como caminho para alcançar uma profissão qualificada. A dedicação aos estudos expressa também uma busca por reconhecimento, visibilidade e aceitação, como mostra Maria da Graça Setton (2015), ao analisar uma trajetória educacional ascendente nos meios populares.

A base emocional fornecida pela família se mostra fundamental para enfrentar as adversidades encontradas ao longo desse percurso, inclusive a experiência de exclusão social e de racismo, relatada por Janaína, que marca a vida escolar de muitos batalhadores(as) negros(as), como observado também em outras entrevistas.

Além da família, os processos de socialização secundária se mostraram fundamentais para a aquisição de capital cultural e disposições gerais para os estudos, como é o caso da escola, de organizações não governamentais (ONGs) voltadas à transmissão de competências culturais para a população de baixa renda, da religião e de grupo de amigos. Sobre a importância da escola e dos professores em sua formação escolar, Paula afirma:

Eu sempre fui uma aluninha CDF na escola (risos). Aí sempre era a queridinha das professoras, era muito bom, eu gostava, sempre gostei muito de assistir aula, quando era criança, eu chegava em casa da escola, a primeira coisa que eu ia fazer era fazer a tarefinha de casa que os professores mandavam, não é nem tomar banho, nem almoçar, nem fazer nada, eu ia fazer a tarefa da escola. Aí a escola era escola pública que eu sempre estudei, eu estudei, acho que até a segunda série na escola particular, aí depois fui pra a pública […] eu tive sorte de ter professores muito bons, apesar da escola ser pública e ser, é… daquele jeito que escola pública é, sabe? Ninguém liga pra nada, mas eu tive sorte de ter professores muito bons e eu acho que foi esse fato, o fato de eu gostar de estudar com o fato de eu ter professores muito bons, foi que me ajudou a ter uma base legal pra poder fazer o vestibular, passar, essas coisas.

O estímulo para estudar recebido no seio da família foi, portanto, atualizado na escola, reforçando o gosto de Paula pelos estudos – o que, segundo ela, favoreceu posteriormente seu ingresso no ensino superior. Apesar disso, a entrevistada não se sentiu preparada para prestar o vestibular quando terminou o ensino médio e precisou começar a trabalhar para ajudar nas despesas da família ainda no terceiro ano, devido ao estado de saúde de seu avô, que o impediu de continuar trabalhando como marceneiro. Paula trabalhou em uma gráfica de um amigo de sua mãe e, com parte do salário, pagou um curso preparatório para o vestibular no ano seguinte, tendo sido aprovada para o curso de publicidade na Unicap. A escolha do curso se deu em função do trabalho que exercia na gráfica, pois Paula queria aprimorá-lo.

Além disso, a participação em cursos promovidos por ONGs voltadas a crianças e adolescentes de baixa renda constituiu outro processo socializador importante na aquisição de competências escolares e culturais, reforçando valores transmitidos na socialização familiar e escolar. Todos os batalhadores culturais entrevistados na pesquisa tiveram algum tipo de experiência nesse sentido, frequentando atividades culturais e esportivas, aulas de reforço escolar, cursos de informática e formação política. No caso, Janaína frequentou um curso de iniciação musical na Escola de Música quando era adolescente, experiência que foi decisiva para a escolha do curso universitário e para sua formação profissional posterior.

Outra característica marcante na trajetória dos batalhadores culturais é o que eles encaram como uma “inserção tardia no mundo do trabalho”, se comparado com a trajetória dos demais batalhadores. Desse modo, os entrevistados relatam o esforço e sacrifício empreendido pela família para mantê-los longe do mundo do trabalho e priorizar seus estudos. Contudo, apesar de todo o esforço, a maioria precisou trabalhar ainda durante o ensino médio para ajudar nas despesas de casa, incorporando disposições para o trabalho duro, através de um aprendizado prático do trabalho – à maneira dos demais batalhadores –, que possibilitam seu ingresso em empregos informais ou caracterizados por uma formalidade precária (ANTUNES; BRAGA, 2009; SOUZA, 2012).

É o caso de Erinaldo, licenciado em Matemática e bombeiro militar. O entrevistado lembra do esforço de sua mãe, cabeleireira, para que ele pudesse se dedicar integralmente aos estudos até os 17 anos de idade:

O que eu aprendi muito e desde cedo é que a gente tinha que estudar e trabalhar, isso era fato. Mainha, dentro das limitações dela, mainha foi bem clara ao me dizer que, “olhe, eu não posso lhe dar tudo, mas o mínimo que eu quero lhe dar é que você tenha educação, você tenha estudo”, então dentro do possível, ela, ela como mãe, se matou da maneira que pode pra trabalhar e me dar condições necessárias pra eu estudar, foi o que eu fiz né? Ela, dentro das limitações dela, fez isso e foi o que eu fiz, tanto é que assim, dentro da minha realidade financeira, na época, eu começar a trabalhar realmente aos 17 anos é até tarde, dependendo de algumas famílias por aí né? Então eu comecei até tarde, eu comecei a trabalhar quando eu já tava no terceiro ano do ensino médio, foi uma necessidade, mas assim, o que ela pode fazer pra dá isso aí o máximo possível, ela fez, ela fez mesmo.

Através da exemplaridade da mãe, de seu sacrifício para que o filho pudesse se dedicar à escola, Erinaldo incorporou disposições ascéticas para o trabalho e para os estudos, o que possibilitou seu ingresso no mundo do trabalho e depois no ensino superior. O entrevistado começou a trabalhar como gazeteiro, vendendo jornal em semáforos todas as manhãs. Neste primeiro emprego, recebia R$ 0,30 por cada jornal vendido. Nesse período, Erinaldo estudava à tarde e ainda trabalhava em uma casa de videogames à noite para complementar a renda da família. Assim, o entrevistado saía de casa às 4 horas da manhã e só retornava às 23 horas. Nesse sentido, sua trajetória parece se distanciar daquela encontrada entre os membros da classe média, cuja entrada no mercado de trabalho é encarada, muitas vezes, como decorrência de sua formação profissional. Se comparado a essa classe social, é possível afirmar que o perfil analisado se caracteriza por uma inserção precoce no mundo do trabalho.

A necessidade de conciliar trabalho e estudo constitui outra característica marcante na trajetória dos batalhadores culturais, já que precisam trabalhar antes e durante o curso superior, sendo o trabalho encarado como forma de garantir o tão sonhado ingresso na universidade. É importante destacar também que a tensão observada entre trabalho e estudo é somente uma das facetas dos conflitos e tensões que envolvem a trajetória do batalhador cultural, decorrentes de sua própria posição no espaço social brasileiro, caracterizada como posição de fronteira.

O próprio ingresso em um curso superior não é encarado como “curso natural da vida” ou consequência de uma trajetória escolar linear e contínua – como parece ser o caso para muitos membros da classe média –, mas como uma das principais tensões vivenciadas pelo batalhador cultural. Essa dificuldade para ingressar no ensino superior foi sentida por todos(as) os(as) entrevistados(as), que contavam sobretudo com disposições para a autossuperação e uma propensão para aproveitar as oportunidades.

Desse modo, foi somente na terceira tentativa que Erinaldo conseguiu passar no vestibular, período em que trabalhou como técnico administrativo na ONG onde havia estudado e obteve as condições para pagar um curso preparatório. Essa estratégia foi adotada por quase todos(as) os(as) entrevistados(as). Janaína somente conseguiu ingressar em um curso universitário sete anos após ter concluído o ensino médio, após diversas tentativas sem êxito. A entrevistada lembra que tanto ela quanto a irmã encaravam esse ingresso quase como uma obsessão. A passagem por um curso preparatório intensivo para o vestibular foi fundamental para que ela conseguisse ingressar na universidade, tendo sido pago com o dinheiro que ganhava com as aulas de música. Outro entrevistado, Efraim, conta que levou dez anos para conseguir ingressar no ensino superior. A necessidade de trabalhar e a falta de uma base escolar foram determinantes para esse atraso.

As tensões relacionadas às dificuldades para ingressar no ensino superior são decorrentes da distância entre disposições para crer e disposições para agir, na medida em que o batalhador cultural incorpora a crença na importância de fazer um curso de nível superior como meio para superar sua condição social, sem muitas vezes ter incorporado as condições objetivas, como o capital cultural exigido, principalmente sob a forma de capital escolar e o tempo para se dedicar aos estudos.

Para alcançar esse sonho, o batalhador cultural está disposto a fazer todo tipo de sacrifício. Efraim conta que, após várias experiências de trabalho com maior nível de qualificação, precisou retornar ao seu primeiro emprego, na padaria de sua tia, pois foi a única alternativa que encontrou para conciliar o trabalho com um curso de horário integral. Assim, embora ganhe pouco, ele consegue negociar os dias que precisa faltar ao trabalho, compensando suas faltas nos finais de semana e nas férias, cobrindo a folga de outros funcionários – negociação que só é possível por se tratar de um empreendimento familiar. Desse modo, o entrevistado vivencia o conflito (muito comum entre os batalhadores culturais) entre dedicar seu tempo à formação universitária e profissional e precisar trabalhar para suprir suas necessidades materiais imediatas. Tal conflito é contornado por meio de muita renúncia, disciplina, disposições ascéticas para os estudos e para o trabalho duro, além de disposições para autossuperação.

Outra estratégia adotada para aumentar suas chances de ingresso no ensino superior é a opção por cursos menos concorridos ou da área de ciências humanas, que permitem driblar as dificuldades com as disciplinas de ciências exatas. Nesse sentido, Erinaldo conta que, apesar de sempre ter sonhado em ser professor de Matemática, optou pelo curso de Ciências Contábeis ao prestar o vestibular na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), devido à sua falta de base em disciplinas como Química e Biologia, já que teria mais disciplinas da área de ciências humanas na segunda fase do vestibular.

O ingresso na universidade constitui, entretanto, apenas o início do desafio, que é acompanhado por outros conflitos e tensões no decorrer do curso, como o sentimento de destituição estatutária por não possuir a bagagem cultural dos demais colegas; ou, ainda, a tensão envolvida na escolha entre o investimento na carreira profissional e o desejo de constituir uma família. Algumas dessas tensões exprimem a incorporação de disposições e valores heterogêneos ou mesmo contraditórios por esse perfil cultural ao longo dos diversos processos de socialização (variações intraindividuais), que ao mesmo tempo o diferencia dos demais batalhadores (variações interindividuais). Assim, embora tenham na família um valor fundamental de seu ethos de classe, os batalhadores culturais realizam um ajuste com relação a esse ethos, de modo a priorizar outros valores incorporados, como é o caso dos estudos, da carreira profissional e da busca pelo prazer individual. Essa tensão aparece na fala dos(as) entrevistados(as), sobretudo das mulheres, que adiam ou até renunciam ao projeto de ter filhos a fim de construir uma história de vida diferente daquela construída por suas mães, em que colocam a si mesmas em primeiro lugar.

Há ainda uma tensão entre a expectativa gerada pela conquista de um diploma de nível superior e as oportunidades encontradas após o término do curso de graduação. Todos(as) os(as) entrevistados(as) egressos(as) se depararam com essa situação e precisaram adaptar suas expectativas às condições objetivas. Erinaldo conta que, ainda durante a graduação, percebeu as condições precárias de trabalho na rede pública de ensino ao fazer estágio em uma escola pública da periferia do Recife. Além de Matemática, ele precisou assumir as disciplinas de Biologia e Artes, devido à carência de professores. Ao terminar o curso, ele também lecionou no curso preparatório para o vestibular direcionado a estudantes de baixa renda em que havia estudado. Porém, não recebeu o salário por meses, até que as aulas do curso foram suspensas pela ausência de pagamentos. Para elevar seu padrão de vida, Erinaldo precisou renunciar ao sonho de lecionar matemática e assumiu a função de bombeiro militar como seu principal emprego.

Paula também afirma ter se frustrado ao concluir o curso de Publicidade pois, apesar de ter um salário um pouco melhor, sentiu que não houve mudanças significativas nas condições de trabalho, em que ela não se sentia reconhecida e valorizada. Longe de se desanimar, a entrevistada decidiu resgatar o sonho de infância de ser advogada e prestou o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para o curso de Direito da UFPE, tendo sido aprovada pelo sistema de cotas, o que permite perceber a incorporação de disposições para autossuperação. Ela afirma que pretende priorizar os estudos e participar das atividades do curso, algo que não foi possível na primeira graduação, dada a necessidade de conciliá-la com o trabalho. No momento da entrevista, Paula trabalhava dois turnos numa gráfica e cursava Direito à noite, mas estava disposta a largar o emprego quando começasse um estágio, consciente de que sua renda diminuiria temporariamente. Desse modo, nota-se que a entrevistada exprime pensamento prospectivo, encarando o esforço e a renúncia exigidos no presente como forma de assegurar um futuro melhor, além das disposições ascéticas para o trabalho e para os estudos. Tais disposições foram expressas por todos(as) os(as) entrevistados(as), encaradas como principal recurso com que contam os batalhadores culturais em suas tentativas de melhorar sua posição social.

Considerações finais

Embora ainda seja necessário analisar a longo prazo os impactos das mudanças estruturais ocorridas nas últimas décadas no Brasil sobre as classes populares, este trabalho busca fornecer uma contribuição neste sentido.

É possível destacar, em primeiro lugar, a atualidade das ferramentas da sociologia disposicionalista na investigação das condições que permitiram aos membros das frações ascensionais das classes populares brasileiras ingressar e concluir o ensino superior. As noções bourdieusianas de capital escolar, capital cultural, a estrutura dos diferentes tipos de capitais na definição da fração de classe e a noção de trajetória ajudaram a situar a nova fração emergente no espaço social brasileiro, observando suas condições objetivas de existência e reconstruindo as principais disposições e valores incorporados desde a infância, constitutivos de seu ethos de classe, que favorecem seu processo de mobilidade ascendente. O enfoque de Bourdieu (2013a) também permitiu avançar na análise sobre as estratégias construídas por esse grupo, seu modo de aquisição da cultura escolar e contínuo ajuste das expectativas à realidade. Desse modo, o autor nos fornece instrumentos que permitem ir além de uma lógica reprodutivista na análise das estratégias escolares e de mobilidade ascendente entre os membros das classes populares, à qual o autor é comumente associado.

A combinação de escalas de análise ao nível dos grupos e dos indivíduos se mostrou um caminho pertinente e profícuo na abordagem do fenômeno investigado. Isto se deve às noções de classe e fração de classe não serem capazes de apreender as especificidades do grupo analisado. Nesse sentido, o enfoque teórico de Lahire (2006) ajuda a traçar um perfil cultural específico no interior das frações ascensionais das classes populares, destacando suas variações interindividuais e intraindividuais. Por outro lado, a despeito de suas especificidades e atributos individuais, a pesquisa permitiu perceber que esses indivíduos partilham de condições objetivas semelhantes, de uma origem social e de um conjunto de disposições que favorecem seu processo de mobilidade ascendente – portanto, de uma trajetória comum –, sendo tratados enquanto grupo neste trabalho.

Tal constatação não compromete o uso do enfoque de Lahire (2002), para quem a sociologia na escala individual constitui uma abordagem privilegiada para se apreender a interiorização do social objetivado7. Dessa forma, o autor nos fornece instrumentos teóricos e metodológicos para investigar de modo minucioso a incorporação, atualização e suspensão de disposições ao longo da vida, percorrendo os diferentes processos de socialização e contextos sociais. Ademais, sua ênfase na importância das relações afetivas e dos processos de socialização secundária permite compreender a incorporação bem-sucedida de disposições gerais para os estudos entre os batalhadores culturais, a despeito de sua origem social – enquanto outros batalhadores não alcançam o mesmo resultado, mesmo tendo incorporado a crença na educação como um valor fundamental.

Ancorada nesse instrumental, a análise aqui empreendida permitiu abordar (ainda que a partir de uma pequena amostra) quem são os membros das classes populares que conseguiram aproveitar as oportunidades advindas da expansão educacional e das políticas de inclusão no ensino superior. Apesar de ser inegável uma mudança significativa no padrão de vida alcançado pelos batalhadores culturais, este trabalho corrobora as análises que apontam um padrão de micromobilidade ascendente nos meios populares (PONTES, 2015). Isto se deve, aparentemente, a esses indivíduos não conseguirem realizar sua reconversão de classe, projetando-se, no máximo, a uma posição de fronteira, que os coloca diante de novos conflitos e da necessidade de realizar ajustes com relação a alguns valores constitutivos do ethos do trabalho duro.

Desse modo, a trajetória dos batalhadores culturais se distancia daquela mais comumente encontrada na classe média, tanto pela posição de origem quanto pela posição de destino, como mostram os(as) estudantes egressos(as) entrevistados(as), que precisaram realizar um ajuste entre as expectativas geradas com a aquisição de um diploma de nível superior e as oportunidades encontradas. Essa tensão observada na pesquisa parece ir ao encontro da análise feita por Ribeiro (2012) sobre as tendências da desigualdade de oportunidades associadas à estratificação educacional. O autor destaca que, dada a diminuição dos retornos educacionais observada nas últimas décadas, houve um aumento da associação direta entre posição de origem e posição de destino, controlado por educação (RIBEIRO, 2012). Essa tendência ajuda a explicar a dificuldade de nossos entrevistados em se inserirem no mercado de trabalho após a conclusão do ensino superior.

Ressalta-se ainda que essas foram as trajetórias que “deram certo”, distanciando-se de tantas outras que “ficaram pelo caminho”, apesar de seus investimentos, sacrifícios e renúncias. A análise empreendida neste trabalho busca, portanto, enriquecer os balanços críticos sobre a reestruturação educacional em curso no Brasil nas últimas décadas, notadamente a expansão do acesso ao nível superior (AGUIAR, 2016; BRITO, 2017; RIBEIRO, 2017), por meio de uma investigação de caráter qualitativo, mais voltada às dimensões subjetivas desse processo.

Referências

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1- O conjunto de dados apresentados neste estudo é parte da pesquisa desenvolvida em minha tese de doutorado, intitulada “Com o suor do trabalho”: uma análise do ethos dos batalhadores manifesto no âmbito do consumo, recentemente publicada pela série Sociologia do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Ver Alves (2020).

3- Tal coeficiente exprime as chances de mobilidade relativa entre as diferentes classes sociais, a partir de uma análise da associação estatística entre origem de classe e destino de classe – avaliada a partir dos dados sobre ocupação do pai e ocupação do filho, respectivamente (RIBEIRO, 2017).

4- Para uma análise comparativa entre os enfoques teóricos de Bourdieu e Lahire, ver Alves (2016).

5- A pesquisa empírica descrita neste trabalho constitui parte de uma investigação maior, desenvolvida na tese de doutorado da pesquisadora. Além disso, vale destacar que algumas das entrevistas analisadas aqui integram uma pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) entre 2015 e 2016, intitulada “Radiografia do Brasil Contemporâneo”, da qual a pesquisadora participou como bolsista.

6- Os nomes dos(as) entrevistados(as) são fictícios, assegurando seu anonimato.

7- Como destaca Setton (2015, p. 1410): “a sociologia da individuação permite fazer uma espécie de macrossociologia que parte da vivência individual com vistas a chegar ao comum de cada sociedade, por exemplo, o desafio da escolarização”.

Recebido: 01 de Agosto de 2021; Revisado: 09 de Novembro de 2021; Aceito: 21 de Fevereiro de 2022

Ana Rodrigues Cavalcanti Alves é doutora em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), e professora adjunta do Departamento de Sociologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde lidera o Grupo de Estudos em Sociologia Disposicionalista e integra o PERIFÉRICAS – Núcleo de Estudos em Teorias Sociais, Modernidades e Colonialidades.

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