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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 18-Jul-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248254991por 

SEÇÃO TEMÁTICA: 20 anos depois: pensar com e sem Bourdieu

Limites da teoria dos campos: tensões em sua autonomia relativa1

Limits of field theory: tensions in its relative autonomy

2- Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil. Contato: julianamiraldi@gmail.com


Resumo

Este artigo investiga a teoria dos campos desenvolvida por Bourdieu, tendo como objeto de análise os limites do conceito de autonomia relativa e suas implicações para a relação entre os campos. A construção do argumento retoma a história do conceito de campo na teoria bourdieusiana, observando sua relevância conjuntural e o impacto teórico que ele gerou. Destaca-se nesta análise que, embora Bourdieu tenha sido rigoroso na sistematização da lógica interna de funcionamento dos campos, o mesmo não ocorreu com a formalização conceitual da relação que os campos estabelecem entre si, pois, ao definir os campos como relativamente autônomos, Bourdieu não foi claro na explicação sobre em que condições e em relação a que se dá essa autonomia. A investigação desse problema teve como material de análise os próprios escritos de Bourdieu, os quais, uma vez lidos tendo em vista essa questão, revelaram duas possibilidades explicativas: a primeira se refere ao movimento de inter-relação entre os campos, determinado tanto pelo impacto que mudanças estruturais em um campo podem causar em outros quanto pelo trânsito de agentes entre campos; já a segunda possibilidade diz respeito à relação entre os campos e o Estado, o qual, dada a sua história de formação e poder físico e simbólico acumulado, tem condições, segundo Bourdieu, de desferir golpes de tirania capazes de afetar as dinâmicas internas dos campos. Com isso, este artigo oferece uma contribuição crítica à teoria dos campos para que ela seja atualizada diante das novas dinâmicas e desafios do mundo social contemporâneo.

Palavras-Chave: Campos sociais; Economia simbólica; Habitus; Estado

Abstract

The article investigates Bourdieu’s field theory, analyzing the concept of relative autonomy’s limits and its implications for the relations between the fields. It begins by revisiting the history of fields in Bourdieusian theory, their conjunctural] importance and theoretical impact. Although Bourdieu provided a rigorous systematization of the fields’ internal logic, that was not the case for the conceptual treatment of the relations between fields. While the fields are theorized as relatively autonomous, the conditions and relations under which such an autonomy is given are unclear. The analysis based on Bourdieu’s writings revealed two possibilities. The first highlights the inter-relation between the fields, determined both by the impact that structural change in one field may have on another, and by agents transiting between fields. The second possibility is set in the relations between the fields and the state, which, given its historical formation and accumulated symbolic and physical power, is able to tyrannically strike the fields and affect their internal logics. The article offers a critical contribution to field theory and to its update to face the new dynamics and challenges of the contemporary world.

Key words: Social fields; Symbolic economy; Habitus; State

Introdução

Os campos sociais são considerados um dos principais conceitos da teoria bourdieusiana. Isto se deve, em parte, ao modo como ele nos permite identificar as diferentes relações de dominação que coexistem em formações sociais diferenciadas como a nossa, nas quais domina o modo de produção capitalista; mas, também, à precisão com que Bourdieu discriminou e definiu a lógica interna de seu funcionamento. No entanto, não podemos atribuir a mesma rigorosidade e sistematicidade à formalização conceitual das relações que os campos estabelecem entre si, pois, ao definir os campos como relativamente autônomos, Bourdieu não foi claro sobre em que condições e em relação a que se dá essa autonomia. Este artigo intervém justamente nesse sintoma teórico e procura sistematizar, partindo das obras de Bourdieu, as condições objetivas que tornam possíveis as intervenções externas aos campos. Para tanto, construímos e desenvolvemos o problema da seguinte forma: na primeira parte do texto, analisamos o surgimento do conceito de campo na teoria bourdieusiana, salientando sua importância para compreendermos as especificidades das relações de dominação nas sociedades capitalistas; em seguida, problematizamos a teoria dos campos a partir de leitores e críticos de Bourdieu que acusam a ausência de uma homologia estrutural dos campos na sua obra. Desenvolvemos esse argumento explorando as possibilidades lógicas que o conceito de autonomia relativa permite estabelecer. Na terceira parte do artigo, demonstramos que os campos estabelecem entre si relações causais, sejam elas decorrentes de transformações campais ou do trânsito de agentes de um campo a outro. Por fim, na quarta parte, discutimos os efeitos da incorporação conceitual do Estado na obra de Bourdieu e as maneiras pelas quais o Estado se relaciona com os campos sociais, apresentando, então, uma segunda possibilidade teórica para a homologia estrutural dos campos. Com isso, nota-se que determinar os modos de interação dos campos, longe de ser apenas uma discussão teórica, é fundamental para investigações sociológicas que têm como objeto fenômenos que não correspondem a um único espaço de produção, de modo que sua lógica de funcionamento e consagração deve ser encontrada na investigação combinada e sobredeterminada de espaços de poder distintos.

A história do campo na teoria de Bourdieu

O conceito de campo surge na obra bourdieusiana em meados dos anos 1970 (WACQUANT, 2005) como uma ferramenta analítica capaz de fazer avançar as análises sociológicas dos mercados de bens simbólicos sobre os quais Bourdieu já trabalhava desde seus primeiros estudos com os cabilas (BOURDIEU, 1958; BOURDIEU et al., 1963). Nesse sentido, ele inaugura uma nova perspectiva para a sociologia no que diz respeito à presença e ao poder da economia simbólica nas formações sociais capitalistas. Nos estudos que realizou sobre os camponeses do Béarn (BOURDIEU, 1962; BOURDIEU, 1965), o sistema de ensino francês (BOURDIEU; PASSERON, 1964, 1970) e a afluência dos visitantes nos museus públicos (BOURDIEU; DARBEL, 1966), Bourdieu identificou certas lógicas de interação e consagração social que, embora antagônicas aos princípios do lucro racional da economia econômica, mostraram-se homólogas àquelas que ele observara nas dinâmicas sociais dos cabilas. Suas pesquisas indicavam que a economia das trocas simbólicas em uma sociedade capitalista, como a França de sua época, longe de ser dominada ou lateral em relação à economia econômica, constitui, na realidade, espaços de poder específicos, nos quais os princípios que determinam as posições dominantes e dominadas e os lucros concernentes a estas são, em muitos casos, contrários aos critérios explicitados pela economia econômica.

Não reconhecer que a economia que a teoria econômica descreve é um caso particular de todo um universo de economias, ou seja, de campos de lutas que diferem tanto pelo que está em jogo e pela escassez que ali se engendram quanto pelas espécies de capital que ali se engajam, impede explicar as formas, os conteúdos e os pontos de aplicação específicos que se encontram assim impostos à busca da maximização dos benefícios específicos e às estratégias bem gerais de otimização (das quais as estratégias econômicas no sentido estrito são uma forma entre outras). (BOURDIEU, 2011a, p. 85).

Considerando a manifesta “vontade de arrancar do economicismo […] setores inteiros das economias ditas capitalistas” (BOURDIEU, 2011b, p. 158), obras como La reproduction [A reprodução] (BOURDIEU; PASSERON, 1970) e A distinção (BOURDIEU, 1979) foram particularmente certeiras, pois demonstraram – através de pesquisas empíricas de amplo alcance – realizadas por pesquisadores de diversas áreas do conhecimento que fizeram uso de diferentes técnicas de pesquisa (ROBSON; SANDERS, 2009) –, o papel dos mercados de bens simbólicos e dos capitais que neles circulam para a reprodução das posições de classe. Diante desses resultados, percebe-se que a dominação em sociedades diferenciadas deve ser pensada no plural, tendo em vista que resulta não apenas de um tipo de investimento (o econômico), mas, sim, de um conjunto de estratégias de diferentes naturezas, dentre as quais a formação escolar, os gostos e as práticas culturais legitimadas desempenham papel sine qua non.

Não podemos compreender verdadeiramente as relações de força fundamentais da ordem social sem fazer intervir a dimensão simbólica destas relações: se as relações de força fossem apenas relações de força física, militares ou mesmo econômicas, provavelmente elas seriam infinitamente mais fáceis e frágeis de inverter. (BOURDIEU, 2012, p. 258, tradução nossa).

Com isso, uma primeira consequência da construção do conceito de campo pode ser notada na maneira pela qual a teoria compreende a interação entre economia econômica e economia simbólica na vida social, uma vez que os campos oferecem não só uma resposta original e embasada para o debate a respeito do primado de uma sobre a outra, mas também uma mudança de perspectiva sobre a divisão do mundo social e a relação causal entre suas partes. Sendo assim, ao invés de tratar a realidade social como efeito da relação linear entre econômico e simbólico, ou seja, a produção simbólica como efeito da econômica (ou o contrário), Bourdieu percebe que esses dois elementos não estão realmente separados – como se pudéssemos apontar para algo e dizer “isto é simbólico” ou “isto é econômico” –, mas encontram-se imiscuídos e são constituintes dos diferentes campos sociais (MIRALDI, 2015, p. 52).

Desse modo, é correto afirmar que os campos são sempre espaços de produção e circulação econômicos e simbólicos, no interior dos quais essas lógicas distintas – econômica e simbólica – se combinam de forma singular, tornando esses espaços únicos e irredutíveis entre si. Por isso, se afirmamos que o campo da arte ou o campo religioso é dominado pela lógica da economia simbólica, isso não significa que a lógica da economia econômica não esteja também ali presente, ainda que de forma subordinada. Para confirmar, basta notar o impacto do mercado de arte para a legitimação artística (MOULIN, 2003) ou a inserção das oferendas e dízimos que fazem parte das dinâmicas religiosas (BOURDIEU, 2009). Pelo mesmo princípio, o contrário poderia ser dito do campo econômico, no qual “o cálculo dos lucros individuais – portanto o interesse econômico – impôs-se como princípio de visão dominante” (BOURDIEU, 1997, p. 49, tradução nossa). Ocorre que, mesmos em espaços sociais nos quais explicitar o interesse na troca e acumular capital econômico fazem parte das regras do jogo e não há lucro na denegação característica das trocas simbólicas3, deve-se admitir a necessária presença de dinâmicas simbólicas para seu funcionamento, sem as quais, no limite, a imediaticidade e a naturalidade das trocas entre quaisquer mercadorias e, por exemplo, um papel moeda, não ocorreriam. Não desconfiar da legitimidade da troca monetária não é algo próprio da natureza humana, mas é efeito das crenças históricas que constituímos e possuímos no campo econômico e na eficácia da troca chancelada por ele. Sem crença, como mostra Bourdieu em Esquisse d’une théorie de la pratique (1972), o dinheiro e a lógica do acúmulo não têm condições objetivas de organizar as relações sociais de trocas, de tal modo que serão outros elementos que dominarão esse jogo, como no caso dos cabilas: o capital social e a troca de dádivas (BOURDIEU, 2000).

Os limites do conceito de campo: problema da homologia estrutural

Apesar de o campo aparecer como o resultado lógico do caminho intelectual percorrido por Bourdieu ao longo de suas pesquisas, e mesmo que o autor tenha obtido sucesso no seu esforço para construir ferramentas conceituais capazes de apreender as dinâmicas internas dos campos, um dos alicerces dessa construção mostrou-se frágil e sua inconsistência teórica não passou despercebida nos debates acadêmicos da época. Ao longo dos anos 1990, Bourdieu foi recorrentemente questionado a respeito da relação entre os campos, pois, se eles eram definidos como relativamente autônomos, faltou, para muitos dos seus leitores, que o autor esclarecesse em relação a que se dá essa autonomia, isto é, de que maneira e por quais dinâmicas externas os campos se afetam e se modificam.

Aí é, sem dúvida, o ponto fraco da abordagem de P. Bourdieu que, mais fiel talvez sobre esse ponto que ele não credita, ou não gostaria de fazer-se creditar, às suas origens filosóficas, parece não ter renunciado à esperança de constituir sua sociologia em um tipo de saber absoluto. Sobretudo, a dinâmica diferencial dos campos, se ela permite compreender como se distinguem posições no interior do campo onde elas se põem opondo-se, permanece cega ao problema da diferença entre campos que ela se contenta em justapor, sem poder fazê-los comunicar-se entre si. Qual lógica liga entre elas os diferentes campos sociais, uma vez eliminada a tese de uma relação de determinação em última instância, condenada porque parece dever privilegiar um entre eles subordinando-o univocamente a todos os outros? Como o campo filosófico, que define os limites no interior dos quais se desenvolve os trabalhos filosóficos, situa-se em relação aos outros estratos da atividade coletiva, campo político, campo estético, campo de produção de conhecimentos científicos ou tecnológicos, campo de crenças religiosas etc., a fim de manter-se na ordem do que Marx chamava de superestruturas. (MACHEREY, 1999, p. 302-303, tradução nossa).

Pierre Macherey (1999) afirma que, ao recusar submeter os campos sociais à determinação, em última instância, do econômico4, Bourdieu não consegue assegurar homologia estrutural entre eles, gerando, então, uma inconsistência teórica. Posição similar podemos encontrar em Loïc Wacquant e Terry Eagleton. O primeiro, em Réponses (BOURDIEU; WACQUANT, 1992), questiona Bourdieu sobre a possível necessidade de uma lei geral ou de um elemento articulador que respondesse à lógica de interação entre campos e pudesse explicar elementos invariantes que os estruturam, por exemplo, doxa, interesse, regras de jogo etc. Já Eagleton, em Um mapa da ideologia (BOURDIEU; EAGLETON, 1996), retoma a causalidade linear entre econômico e simbólico e, sendo ainda mais incisivo que Wacquant, afirma a Bourdieu: “você reage ao economicismo alçando as imagens econômicas para a esfera cultural, em vez de registrar o peso do material e do econômico na cultura” (p. 276).

A resposta de Bourdieu a esse tipo de crítica, apesar de parecer ponderada – afinal, ele afirmava que apenas a análise científica de casos concretos e singulares poderia oferecer uma resposta adequada a respeito da lógica que rege as interações entre os campos (BOURDIEU; WACQUANT, 1992; BOURDIEU; EAGLETON, 1996) –, era certeira ao recusar aquilo que as perguntas implicitamente exigiam: uma formulação trans-histórica da relação entre campos que tivesse a determinação econômica como invariante estrutural. Assim, mesmo que ele admitisse que “nas sociedades industriais, o campo econômico exerce efeitos especialmente potentes”, isso não implicaria que seria necessário admitir “o postulado da determinação (universal) ‘em última instância’ pela economia” (BOURDIEU; WACQUANT, 1992, p. 85, tradução nossa)?

No entanto, apesar de Bourdieu se manifestar contrário às demandas de formalização de uma lógica causal entre os campos, ele não deixou de trilhar caminhos que buscassem compreender as relações de dominação de maneira dinâmica e concatenada, isto é, não apenas mediante o modo como os campos produzem hierarquias próprias, mas também procurando analisar o efeito dessas hierarquias (no caso, como os agentes dominantes e dominados de cada campo se encontram no mundo social, como eles se relacionam e têm (ou não) condições de investir, para além dos campos, em estratégias orientadas para a reprodução ou para a mudança da ordem social estabelecida). Com isso, mesmo que não seja possível encontrar nos escritos de Bourdieu uma formulação sistematizada e conclusiva sobre os modos de relação entre os campos, são muitas as análises que se esforçaram para desvelar esse mecanismo causal, tanto nos seus trabalhos mais conceituais quanto nos estudos de casos singulares. A partir desse material, apresentaremos dois modos pelos quais ocorrem interações campais na teoria de Bourdieu: (i) primeiramente, identificaremos na construção do conceito de campo as possibilidades lógicas que a noção de autonomia relativa e grau de refração oferecem; e, (ii) em seguida, analisaremos como a inserção do Estado na agenda de pesquisa bourdieusiana impactou a teoria dos campos e, de modo mais amplo, a concepção de produção e reprodução da ordem social apresentada em seus estudos.

A relação entre os campos: explorando a autonomia relativa

Na crítica anteriormente citada de Macherey à teoria bourdieusiana, o autor afirma que, sem um elemento de homologia estrutural que conecte os diferentes campos, seria lógico afirmar que eles só poderiam estabelecer entre si relações de justaposição. Porém, nos parece que Macherey não se ateve aos efeitos teóricos da definição completa de campo, isto é, os campos não são mônadas – como explicitamente declara Bourdieu em referência ao conceito leibniziano –, mas espaços dotados de autonomia relativa que se mantêm como relações de poder específicas (ciência, arte, religião etc.), uma vez que logram refratar, em certa e determinada proporção, as demandas externas a eles. Assim, dizer “interno” e “externo” para os campos só é adequado se considerarmos que estes elementos são unidades nominais, nas quais os limites são porosos, as forças (internas e externas) se chocam e as dinâmicas de manutenção ou transformação do mundo social se mostram ativas; e não unidades reais demarcadas por fronteiras bem delineadas. Ademais, o resultado desses embates não é estático, mas sujeito a “forças externas que assumem pesos desiguais de acordo com a conjuntura histórica” (BOURDIEU, 2009, p. 65).

Uma vez tecidas essas considerações, podemos afirmar que o grau de autonomia dos campos se define em relação às determinações externas a eles e, por isso, esse “externo”, em certa medida e proporção, faz necessariamente parte do campo, pois a luta para definir os limites é, ela também, estruturante do campo, de modo que “o resultado dessas lutas nunca é completamente independente de fatores externos” (BOURDIEU, 2011b, p. 65, grifo nosso). Nesse sentido, mesmo que não seja possível, com base nos escritos de Bourdieu, estabelecer um único elemento como estruturante dos campos – como requerem os críticos que sugerem o campo econômico –, sabemos que eles não são apenas justapostos no espaço social, mas constituem-se relacionalmente, pela incorporação e refração do que Bourdieu chamou de fatores externos. O próximo passo investigativo é explorarmos o que poderia ocupar o lugar designado pelo termo “externo”.

Em Os usos sociais da ciência, Bourdieu (2004, p. 21) diz saber que “uma das grandes questões que surgirão a propósito dos campos (ou dos subcampos) científicos será precisamente acerca do grau de autonomia que eles usufruem” que “nem sempre é fácil de medir”5, mas que mesmo assim promove interseções, através das quais ocorre a maior parte das inovações e transformações do campo. É o que afirma o autor em Science de la science et réflexivité:

As fronteiras das disciplinas são protegidas por um direito de entrada mais ou menos codificado, estrito e alto e mais ou menos marcado, elas estão, por vezes, em disputas e lutas com as disciplinas vizinhas. É possível existir intersecções entre as disciplinas, algumas vazias outras plenas, que oferecem a possibilidade de extrair ideias e informações de um número e de um leque mais ou menos grande de fontes. (A inovação nas ciências se engendra frequentemente nas intersecções). (BOURDIEU, 2001b, p. 130, tradução nossa).

O que ocorre no campo científico vale também para outros campos, como mostra Bourdieu tanto em Homo academicus (1984) quanto em Manet (2013). Na primeira obra, mudanças no campo acadêmico, decorrentes da contradição entre o aumento do número de diplomados e a desvalorização dos seus diplomas no campo econômico, afetaram o campo político, e são identificadas como uma das causas dos acontecimentos de Maio de 1968. Com relação ao campo artístico, analisado na segunda obra, observamos a mesma lógica: mudanças no campo acadêmico no século XIX fizeram com que as universidades absorvessem novos grupos sociais, o que, por um lado, gerou “‘sobreprodução’ de diplomas”, mas, por outro, modificou o público apreciador de arte, possibilitando o aparecimento de “jovens artistas (os aprendizes) e jovens escritores” (BOURDIEU, 2011b, p. 65) que impactaram o campo artístico, sendo esta mudança do campo acadêmico uma das causas “[d]o sucesso da revolução impressionista”.

Com isso, podemos afirmar que, quando Bourdieu se refere às determinações externas, o “externo” de um campo pode ser outro campo (ou subcampo). Isso significa que campos se modificam não apenas em relação às suas lutas internas – entre ortodoxos e heterodoxos, dominantes e dominados –, mas, também, que mudanças na estrutura interna de um campo podem provocar mudanças na estrutura interna de outros campos. Sendo assim, a manutenção ou transformação da ordem social tem como uma de suas variáveis o encontro dinâmico entre campos, os quais se afetam mutuamente de acordo com o grau de autonomia que possuem.

Porém, esta não é a única possibilidade teórica que a noção de autonomia relativa dos campos nos permite explorar. Uma segunda forma de analisarmos como determinações externas aos campos são capazes de atingi-los e coagi-los é nos concentrarmos no conceito de habitus, articulando-o com a noção de trajetória social dos agentes. Este recorte se faz necessário porque além do habitus (junto com campo e capital) ser um dos conceitos centrais da teoria bourdieusiana (GRENFELL, 2018), sua condição estruturante e sua disposição à diferenciação nos permite explorar o problema da homologia estrutural por outro ângulo, tendo as práticas e deslocamentos dos agentes como objeto de análise. Nesta perspectiva, aquilo que Bourdieu define como trajetória ou envelhecimento social (BOURDIEU, 2011b) é uma boa maneira de vislumbrarmos a questão, pois insere a produção do habitus no tempo de vida do agente, evidenciando que os agentes formam suas disposições subjetivas na medida em que se encontram em espaços de produção distintos, sejam eles a família, a escola – aos quais indiscutivelmente se atribui maior peso relativo na produção do habitus –, ou diferentes campos e instituições com os quais ele entra em contato durante sua vida. Assim, destaca-se o caráter disposicional do habitus, isto é, sua condição de modus operandi que orienta as práticas a partir de um sistema de disposições incorporadas e duráveis que, embora sejam estruturadas pelo espaço social (sempre de acordo com a posição ocupada pelo agente), exercem também, enquanto externalizações (práticas), efeito estruturante (BOURDIEU, 2000).

Produto da história, o habitus produz as práticas, individuais e coletivas, portanto, da história, conforme os esquemas engendrados pela história; ele garante a presença ativa das experiências passadas que, depositadas em cada organismo sob a forma de esquemas de percepção, de pensamento e de ação, tendem, de forma mais segura que todas as regras formais e que todas as normas explícitas, a garantir a conformidade das práticas e sua constância ao longo do tempo. Passado que sobrevive no atual e que tende a se perpetuar no porvir ao se atualizar nas práticas estruturadas de acordo com seus princípios. […] Ao escapar à alternativa das forças inscritas no estado anterior do sistema, no exterior dos corpos, e das forças interiores motivações surgidas, no instante, da decisão livre, as disposições interiores, interiorização da exterioridade, permite que as forças exteriores sejam exercidas, mas segundo a lógica específica dos organismos nos quais estão incorporadas, ou seja, de maneira durável, sistemática e não mecânica. (BOURDIEU, 2011a, p. 90-91).

Através da dialética entre estrutura e prática que o conceito de habitus articula, Bourdieu consegue explicar tanto a regularidade e a homogeneidade do mundo social quanto a produção de diferenças e a singularidade dos agentes. Por isso, do ponto de vista do habitus, a reprodução social em Bourdieu decorre de uma tendência ancorada em bases objetivas que aponta que agentes em posições econômicas e sociais similares possuem disposições similares (repetição). No entanto, sabe-se que os habitus jamais serão realmente iguais no sentido mimético, já que, até em uma mesma família, os processos de socialização nunca são os mesmos, ainda que possam ser equivalentes (diferença). Deste modo, mesmo que o peso da educação primeira (familiar e escolar) para a produção da subjetividade do agente seja incontornável, Bourdieu nunca considerou esse momento como um núcleo duro e estático (BOURDIEU, 2006apudSILVA, 2016). Como demonstra Elizabeth Silva (2016), o habitus é um processo ininterrupto de produção de subjetividades, que dota o agente de disposições várias e singulares, acordadas com os espaços pelos quais passou na sua trajetória social e sujeitas a modificarem e serem modificadas constantemente diante do espaço no qual se encontram.

Para o problema da homologia estrutural dos campos que analisamos neste artigo o caráter fragmentário do habitus é fundamental, porque ele explicita que o habitus de um agente é constituído pelos diferentes espaços pelos quais ele passa. Do ponto de vista do campo, isso nos permite argumentar que, se os agentes não têm disposições produzidas univocamente – já que nenhum agente nasce e vive em um único espaço de produção social – e, se os habitus, além de serem estruturas estruturadas, têm predisposição a funcionarem como estruturantes, o transitar de agentes de um campo a outro provoca, necessariamente e em certa proporção, modificações internas aos campos. O grau de autonomia do campo, a posição do agente e o objeto da disputa, são, então, variáveis que condicionam a intensidade da modificação.

Nos trabalhos de Bourdieu, dois estudos em particular apresentam agentes cujas tomadas de posição expressam habitus sobredeterminados por diferentes campos de produção: L’ontologie politique de Martin Heidegger [A ontologia política de Martin Heidegger] (1988) e As regras da arte (2002). No caso da análise de Martin Heidegger, Bourdieu mostra que seu discurso filosófico, apesar de adequado à doxa do campo acadêmico, também foi condicionado pela conjuntura do campo político presente na Alemanha da época. Deste modo, os escritos de Heidegger, por mais que estejam atrelados à seara da ontologia e da metafísica – e não à filosofia política ou à antropologia filosófica, que se aproximariam mais da política –, não deixam de ser sobredeterminados pelos valores e disputas vigentes no campo político. Consequentemente, Heidegger insere nas discussões filosóficas, ainda que não explicitamente, princípios alheios aos estruturantes do subcampo da filosofia (BOURDIEU, 1988).

[Heidegger] é o operador prático da homologia que se estabelece entre uma posição filosófica e uma posição política com base na homologia campo político e campo intelectual: ele integra efetivamente todo o conjunto de disposições e de interesses associados às diferentes posições ocupadas em diferentes campos (no espaço social, a do Mittelstand e da fração universitária desta classe, na estrutura do campo universitário, a do filósofo, etc.) e também a trajetória social que o conduziu a estas posições: a do universitário da primeira geração, colocado em situação instável, a despeito de seu êxito no campo intelectual. É esse hábito que, enquanto produto integrado de determinismos relativamente independentes, opera a integração permanente de determinações resultantes de diferentes ordens nas práticas e nos produtos essencialmente sobredeterminados. (BOURDIEU, 1988, p. 58, tradução nossa)6.

Assim como Heidegger, também Frédéric Moreau, personagem de A educação sentimental (FLAUBERT, 1947) analisado por Bourdieu em As regras da arte (2002), não habita nem tem seu habitus estruturado por um campo apenas; ao contrário, no romance, Flaubert nos apresenta um agente cuja subjetividade é tensionada por diferentes campos: ele é o burguês herdeiro do campo econômico, o artista e escritor do campo da arte e o político revolucionário socialista do campo político. As tomadas de posição de Frédéric expressam a sobredeterminação constitutiva de seu habitus, pois, mesmo quando ele se esforça para adequar suas práticas ao espaço no qual se encontra – respondendo a demandas do campo econômico na presença de empresários e demandas do campo artístico quando se encontrava em meio a artistas –, é evidente sua incapacidade (que, claro, é a de qualquer um de nós) de cindir completamente suas disposições. Além disso, como vimos, esses espaços construídos teoricamente (os campos), na realidade das interações humanas, não são isolados. Portanto, o transitar constante dos agentes pelo mundo social é também um transitar entre campos distintos, o que faz com que os agentes apresentem práticas ora alinhadas ora desalinhadas às demandas objetivas da sua posição atual; práticas estas que respondem às exigências do contexto no qual eles se encontram, mas que são também informadas pela história de vida de cada um desses agentes. Neste sentido, a maneira pela qual Bourdieu constrói sociologicamente o personagem de Frédéric Moreau faz dele um objeto heurístico, permitindo-nos identificar a correlação entre trajetórias individuais e campos sociais, revelando que os agentes podem se comportar, eles próprios, como determinação externa aos campos; e corroborando, para além da luta interna dos campos, com a continuidade ou a modificação desses espaços.

O Estado nas dinâmicas campais

Uma segunda maneira de explorarmos a questão das determinações externas aos campos é investigarmos qual o papel do Estado para a teoria bourdieusiana e que tipo de relação ele estabelece com os campos sociais. No entanto, antes de apresentarmos uma resposta para a questão, é relevante notar que, embora Bourdieu tenha atribuído tamanha importância ao Estado, designando-o como a principal instância responsável pela “conservação da ordem social” (BOURDIEU, 2012, p. 19) e definindo-o como aquele “que reivindica com sucesso o monopólio do uso legítimo da violência física e simbólica em um território determinado e sobre o conjunto da população correspondente” (BOURDIEU, 2011b, p. 97, grifo nosso), ele só se dedicou a estudá-lo como um objeto isolado e em profundidade (a ponto de incorporá-lo positivamente no seu sistema teórico) tardiamente. Foi apenas entre o fim dos anos 1980 e começo dos anos 1990 que Bourdieu explorou conceitualmente e de maneira direta o Estado7, principalmente em obras como La noblesse d’État (1989), A miséria do mundo (1997) e Razões práticas (2011b); nos cursos ministrados no Collège de France, entre 1989 e 1992 (BOURDIEU, 2012); e em artigos e conferências desse período, como La force du droit (1986), Sobre a ciência do Estado (BOURDIEU; CHRISTIN; WILL, 2013) e Le mystère du ministère (2001a). Porém, mesmo que Bourdieu tenha se esforçado para corrigir essa lacuna, ele não deixou de reconhecer suas implicações, afirmando que a ausência de uma reflexão mais sólida sobre o Estado nos seus primeiros estudos foi uma carência com consequências graves para suas pesquisas e para os resultados científicos que obteve; foram, sobretudo, suas análises envolvendo o sistema de ensino que foram impactadas por ele não ter percebido a íntima relação entre o Estado, a escola e a cultura legitimada para a produção de habitus homólogos8(BOURDIEU; PASSERON, 1964, 1970). Decorre disso que, sem este vínculo, Bourdieu não conseguiu precisar de que modo a escola é fundamental para o Estado, mostrando, como fez em Sur l’État (2012), que a reprodução assegurada pelo sistema de ensino é um esforço do Estado para inculcar de maneira legítima uma forma específica de ver, pensar e agir no mundo, capaz de produzir, pela homologia dos habitus, a integração e a manutenção da ordem social.

Entretanto, o ponto que mais nos interessa destacar é que a ausência do Estado expressa outra fissura no sistema teórico bourdieusiano que nos remete à crítica de Macherey (1999) a Bourdieu: sem um trabalho sociológico dedicado ao Estado, a teoria não fornecia meios analíticos para conhecermos a relação causal que o Estado estabelece com os diferentes campos sociais, restando apenas a possibilidade de justapô-los. Em outras palavras, reconhecíamos que se tratava de espaços diferentes, mas desconhecíamos os meios de produção e reprodução dessa diferença. As intervenções de Bourdieu no Collège de France (BOURDIEU, 2012) procuraram sanar essa carência; porém, como se trata de aulas elaboradas com fins didáticos e sem pretensão de serem publicadas (LENOIR, 2012)9, o modo de exposição não se preocupa centralmente com a sistematização e a formalização teórica. Assim, nosso propósito é identificar e sistematizar, através dos escritos do próprio Bourdieu, maneiras pelas quais o Estado entrevê relações com os campos sociais. Para tanto, investigaremos a relação histórica do Estado com os campos e definiremos a diferença específica entre ambos. Com isto, apresentaremos uma segunda explicação para a homologia estrutural dos campos, determinada pela relação entre o Estado e os campos sociais.

Notamos que o efeito do encontro entre as análises do Estado e da teoria dos campos tem como primeira consequência desvelar o processo histórico de constituição dos campos nas formações sociais capitalistas, demonstrando que os campos não são relações de poder trans-históricas, mas produtos de um processo de diferenciação que ocorre em concomitância à constituição dos Estados modernos. Apoiando-se em autores reconhecidos pelos seus estudos sobre o Estado como Max Weber, Perry Anderson, Barrington Moore, Norbert Elias e Charles Tilly (BONACCI, 2020), Bourdieu argumenta que os Estados – ao menos nos casos analisados da França e da Inglaterra – têm início com o fim da Idade Média e início da Idade Moderna, devido ao emprego de três processos complexos e intimamente articulados: concentração, universalização e distribuição. É importante perceber que, ao descrever esses processos, Bourdieu está distinguindo analiticamente os movimentos que produzem o poder do Estado contemporâneo e asseguram sua capacidade de exercício legítimo da violência física e simbólica.

De início, a concentração refere-se a um movimento articulado pelo Estado que, ainda em germe, logra destituir modos de organização locais, acumulando em si os poderes que antes estavam distribuídos.

Onde havia províncias, entidades existentes nelas mesmas e por elas mesmas, umas ao lado das outras, temos províncias que se tornam parte do Estado nacional; onde havia chefes autonomeados, temos chefes delegados, que retiram seu poder do Estado central. Assistimos a um duplo processo: a um processo de constituição de um espaço unificado e de um espaço homogêneo de modo que todos os pontos do espaço podem ser situados uns em relação aos outros e em relação ao centro, a partir do qual o espaço é constituído. […] Esta unificação se caracteriza negativamente: ela implica um trabalho de des-particularização […] o próprio do trabalho de centralização é de des-particularizar os modos de expressão dominantes e tornar as culturas não oficiais formas mais ou menos acabadas da definição dominante de cultural. (BOURDIEU, 2012, p. 352-354, tradução nossa).

Assim, a gênese do Estado decorre, primeiramente, da “des-particularização” e concentração de diferentes tipos de poder (jurídico, econômico, cultural, religioso etc.) nas mãos de uma única instituição. Com essa concentração, o Estado encontra também condições materiais e simbólicas de instituir, contra as particularidades, um sistema simbólico unificado e homogeneizado. Nesse sentido, “o processo de concentração pode também ser descrito como um processo de autonomização de um espaço particular, de um jogo particular” (BOURDIEU, 2012, p. 304, tradução nossa) que tem condições de se impor como o único jogo legítimo a ser jogado. Esta seleção e imposição de um sistema único de referências é o segundo movimento indispensável para a formação do Estado, que Bourdieu identificou como processo de universalização das particularidades (linguísticas, jurídicas, políticas etc.). Com ele, observamos que a cultura dominante forjada pelo Estado não foi a única cultura possível, mas sim a cultura selecionada dentre as tantas outras outrora existentes e desconsideradas em prol da universalização. O esquecimento dos possíveis – que Bourdieu chama de amnésia da gênese10 – é indispensável para que o universal eleito se apresente como legítimo e, ainda, para que aqueles que o legitimam lucrem com a legitimação.

A força da evolução histórica é a de encaminhar os possíveis laterais descartados não ao esquecimento, mas ao inconsciente. A análise da gênese histórica do Estado, como princípio constitutivo de suas categorias universalmente difundidas em sua jurisdição, tem por virtude permitir compreender a adesão dóxica ao Estado e o fato de que esta doxa é uma ortodoxia, que ela representa um ponto de vista particular, o ponto de vista dos dominantes, o ponto de vista daqueles que dominam ao dominar o Estado, daqueles que, talvez inconscientemente, contribuíram a fazer o Estado para poder dominar. (BOURDIEU, 2012, p. 276, tradução nossa).

A universalização estabelece então um referencial comum que, no caso, é (im)posto pelo Estado, possibilitando a coordenação da vida coletiva, para a qual “é preciso haver uma espécie de acordo nos terrenos dos desacordos e sobre o modo de expressão do desacordo” (BOURDIEU, 2012, p. 15, tradução nossa). Entretanto, além da concentração e da universalização, a formação do Estado demanda um terceiro movimento: a distribuição controlada dos capitais e competências acumuladas. Isto significa que, para além do rei, o Estado precisa de corpus de especialistas que cumpram funções relativas à sua manutenção e legitimação. São eles, simultaneamente, diferenciados e vinculados ao Estado, de modo que estes especialistas, ao exercerem funções distintas e legitimadas, propagam e aumentam o poder do Estado ao mesmo tempo que lucram e obtêm vantagens materiais e simbólicas com esse processo. Para descrever esses movimentos de distribuição de poder estatal, Bourdieu usa como exemplo a constituição do campo jurídico, mas o mesmo poderia ser afirmado para o campo administrativo ou político, que mantém forte vinculação com o Estado – ou, de modo menos estreito, também para os campos intelectual e artístico, os quais estiveram até o século XIX ligados diretamente ao Estado pelas academias, mas, recentemente, lograram maior autonomia (ainda que, simbólica e materialmente, o Estado não tenha deixado de estar neles presente) (MIRALDI, 2020). Assim, ao acompanharmos a descrição dos processos de formação do Estado, nos vemos diante da história das condições de produção dos campos sociais, que não se mostrou contraditória com o modo como Bourdieu descreve a formação dos campos específicos; ou, melhor, parece ser-lhe complementar.

Esse processo de diferenciação ou de autonomia resultou na constituição de universos que têm “leis fundamentais” (expressão emprestada de Kelsen) diferentes, irredutíveis, e que são o lugar de formas específicas de interesse. O que faz com que as pessoas corram e concorram no campo científico não é a mesma coisa que faz com que elas corram e concorram no campo econômico. O exemplo mais flagrante é o do campo artístico que se constituiu no século XIX, atribuindo-se como lei fundamental o inverso da lei econômica. O processo, que se inicia na Renascença e que chega a seu termo na segunda metade do século XIX, com o que chamamos arte pela arte, redundou em uma dissociação completa entre os objetivos lucrativos e os objetivos específicos do universo – com a oposição entre arte comercial e arte pura. A arte pura, única forma de arte verdadeira de acordo com as normas específicas do campo autônomo, recusa objetivos comerciais, isto é, a subordinação do artista, e principalmente de sua produção, às demandas externas e às sanções dessa demanda, que são sanções econômicas. Ele se constitui sobre a base de uma lei fundamental que é a denegação (ou a recusa) da economia: a de que não entra aqui quem tiver interesses comerciais. (BOURDIEU, 2011b, p. 148).

Com isso, poderíamos concluir que os campos têm com o Estado um vínculo histórico; no entanto, é também evidente que eles são histórica e qualitativamente distintos. O poder físico e simbólico acumulado pelo Estado e a sua condição estruturante do mundo social é deveras maior que a de qualquer um dos campos particulares, dado o volume e a variedade de capitais que ele concentrou ao longo da sua formação.

Esta distinção entre a posse de capital e a posse de um capital que dá poder sobre este capital funciona em todos os domínios. O Estado, na medida em que acumula em grande quantidade diferentes espécies de capital, se encontra dotado de um meta-capital que lhe permite exercer um poder sobre todo capital. Esta noção que pode parecer abstrata se torna deveras concreta se nós a relacionarmos com a noção de campo do poder, lugar onde se enfrentam os detentores de capital, entre outras coisas para definir a taxa de câmbio entre as diferentes espécies de capital. (BOURDIEU, 2012, p. 312, tradução nossa).

A partir desses resultados de análise, Bourdieu afirma que o Estado apresenta condições objetivas de agir e triunfar sobre os diversos campos sociais, contrariando, então, suas dinâmicas próprias. Esse poder desigual do Estado em relação aos campos corrobora seu exercício da violência simbólica legítima e se justifica porque: (i) ele controla – analogamente a um banco – a taxa de câmbio entre os capitais, o que afeta a posição de poder de um campo em relação aos outros; e, (ii) dado o poder acumulado pelo Estado, suas tomadas de posição (por exemplo, a definição da idade de aposentadoria, questões fiscais e alfandegárias, emissão de papel moeda, investimento tecnológico e científico etc.) são sentidas como golpes de tirania nas dinâmicas internas aos campos (BOURDIEU, 2012). Porém, mesmo com essa diferença de poder, cabe registrar que os campos não são submissos ao Estado, uma vez que têm como condição de existência a autonomia das relações de poder que engendram; mas são subordinados, de modo que, se o Estado se comporta em relação aos campos como uma violência externa (física ou simbólica) capaz de afetar suas dinâmicas internas, ele não o faz sem algum grau (ainda que mínimo) de resistência.

Considerações finais

O objetivo deste artigo foi identificar em que medida, e a partir de quais critérios, os campos sociais estabelecem relações entre si e sofrem (ou não) efeito de determinações externas a eles. Acompanhando as críticas de Macherey (1999), Wacquant (BOURDIEU; WACQUANT, 1992) e Eagleton (BOURDIEU; EAGLETON, 1996) a respeito dos limites do conceito de campo na teoria bourdieusiana, procuramos explorar, nas obras do próprio Bourdieu, possíveis caminhos para essa questão que, embora conhecida e trabalhada pelo autor, não foi sistematizada em vida. A investigação se mostrou capaz de apresentar dois mecanismos distintos que, sem contradição, asseguram a homologia estrutural dos campos e afetam a sua lógica interna de funcionamento. O primeiro, condicionado pela autonomia relativa dos campos, refere-se à relação causal entre campos que pode se dar de duas maneiras lógicas: (i) do ponto de vista da estrutura, notamos que transformações nas dinâmicas internas de um campo podem afetar outros campos; e, (ii) do ponto de vista dos agentes, percebemos que o trânsito por diferentes campos sobredetermina, no habitus, princípios distintos de ação que, uma vez feitos prática, podem modificar, pela condição estruturante do habitus, o campo no qual o agente se encontra. O segundo mecanismo que analisamos foi a relação entre Estado e campos sociais, que se desenhou de dois modos: (i) historicamente, os campos fazem parte do processo de diferenciação característico da formação dos Estados modernos; e, (ii) conjunturalmente, ficou demonstrada a capacidade do Estado de concentrar grande quantidade de capital (em espécie e volume), o que lhe confere um poder desproporcionalmente desigual em relação a qualquer campo, e, sobretudo, agente, de modo que suas tomadas de posição são como golpes de tirania contra a autonomia dos campos.

Conclui-se que a teoria bourdieusiana possui ferramentas teóricas eficazes para analisarmos a complexidade das dinâmicas de reprodução do mundo social, tomando-as nas suas múltiplas determinações e na sua condição de diferenciação. No entanto, sabemos que não esgotamos o assunto neste artigo. Ao contrário, parece-nos que há ainda muito a ser feito, por exemplo: a análise da homologia estrutural dos campos a partir da construção do conceito de campo do poder; ou, então, sua problematização a partir dos processos de globalização dos mercados de bens simbólicos (ORTIZ, 1994, 2019; ÁBILE et al., 2021) que deslocam a centralidade do Estado-Nação (NICOLAU NETTO, 2019), provocando interferências de outra ordem nas dinâmicas de consagração campais e abrem um campo de pesquisa rico e complexo que envolve processos transnacionais. O desdobramento dessa problemática demonstra quão frutífera e potente continua sendo a teoria dos campos formulada por Bourdieu e, além disso, que há muito trabalho pela frente para nós, herdeiros e críticos, que, fazendo uso da vigilância epistemológica (BOURDIEU; CHAMBOREDON; PASSERON, 1968) e atentos às transformações do século XXI, estamos engajados na busca dos melhores e mais adequados caminhos para conhecermos cientificamente o mundo social.

Referências

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1- O desenvolvimento deste trabalho contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp 2013/11282-7) e com as contribuições do Grupo de Estudos em Bourdieu da Unicamp (GEBU). Além disso, agradeço à Julia de Souza Abdalla pela leitura crítica do texto.

3- De acordo com o que pudemos demonstrar, “a economia econômica, ao contrário da economia simbólica, mostra a verdade da troca; mostra o preço, mostra o interesse de acumular capital econômico, existe todo um mercado de livros que mostra como uma pessoa que quer assumir uma posição dominante no campo econômico deve se portar. Tudo isso é inimaginável para a economia simbólica na qual ‘o silêncio a respeito da verdade da troca é um silêncio compartilhado’ (BOURDIEU, 2011b, p. 163)” (MIRALDI, 2015, p. 64).

4- Já pudemos demonstrar que econômico é um termo polissêmico na teoria bourdieusiana, aparecendo sempre na forma composta, qualificando algo: campo econômico, capital econômico, interesse econômico e economia econômica (MIRALDI, 2015).

5- Sobre os “subcampos”, Bourdieu argumenta que lutas específicas no interior de um campo podem gerar subcampos. No caso do campo acadêmico – objeto de análise em Os usos sociais da ciência (BOURDIEU, 2004) –, os subcampos seriam as diferentes disciplinas que o compõem (matemática, história, biologia etc.). Já o campo da arte tem como subcampos a música, a literatura, as artes visuais etc.

6- A relação entre a posição filosófica e política de Heidegger foi objeto de debate entre diferentes autores. Jean-Paul Sartre se mostra contrário à correlação entre a filosofia heideggeriana e a política nazista, afirmando que Heidegger “era filósofo bem antes de se tornar nazista” (CONTAT; RYBALKA, 1970, p. 654). Já Jean-Pierre Faye (1994) tem posição semelhante à de Bourdieu, argumentando que o discurso filosófico de Heidegger é sobredeterminado pela política nazista. Hans-Georg Gadamer (2007) incorpora a discussão e critica diretamente a obra de Bourdieu no ensaio “Heidegger und die Soziologie: Bourdieu und Habermas”. Por fim, a publicação em 2014 dos escritos de Heidegger de Les cahier noirs (Schwarze Hefte), demonstram indiscutivelmente o antissemitismo presente na filosofia heideggeriana (TRAWNY, 2014).

7- No entanto, é preciso considerar que, quando falamos sobre a ausência do Estado nas análises de Bourdieu, estamos nos referindo exclusivamente ao Estado como conceito, pois, de maneira indireta e descritiva, sabemos que ele figura nos escritos de Bourdieu desde seus primeiros estudos sobre a Argélia, passando pelo sistema de ensino (BOURDIEU; PASSERON, 1964,1970) e pela análise dos gostos e práticas culturais (BOURDIEU, 1979; BOURDIEU; DARBEL, 1966). Além disso, podemos facilmente identificar quais temas e conceitos centrais para a formalização teórica do Estado já estavam presentes nos escritos de Bourdieu: em suas pesquisas sobre os modos de dominação; nos conceitos de poder simbólico e violência simbólica; no papel atribuído às instituições para a reprodução da ordem social, sobretudo, devido à reconhecida capacidade que elas detêm de inculcar sistemas de percepção de mundo (habitus) alinhados aos interesses dos grupos dominantes.

8- Bourdieu reiteradamente reconhece que “esqueceu” de analisar o vínculo entre Estado e sistema de ensino: “eu mesmo, em todos meus trabalhos anteriores sobre a escola, havia completamente esquecido que a cultura legítima é a cultura da escola” (BOURDIEU, 2012, p. 163, tradução nossa); ou ainda: “uma coisa que eu sempre esqueci nas minhas análises é que a escola tem também uma função de integração nacional contra o de fora, o externo: a instituição cultural é um dos lugares do nacionalismo” (p. 252, tradução nossa).

9- Colaboraram com a edição de Sur l’État: Patrick Champagne, Franck Poupeau, Marie-Christine Rivière e Remi Lenoir. Estes, além de revisarem o texto a fim de manter no livro o rigor conceitual e a oralidade das aulas de Bourdieu, também forneceram suas anotações pessoais das aulas que cursaram na época.

10- Segundo Bourdieu, “o mundo social se apresenta sob o modo da doxa, essa espécie de crença que não se percebe enquanto crença. O mundo social é um artefato histórico, um produto da história que é esquecido na sua gênese em favor da amnésia da gênese que toca todas as criações sociais. O Estado é desconhecido como histórico e reconhecido por um reconhecimento absoluto que é o conhecimento do reconhecimento. Não existe reconhecimento mais absoluto que o reconhecimento da doxa pois ela não se percebe como reconhecimento. A doxa é responder sim para uma questão que não foi colocada” (BOURDIEU, 2012, p. 291-293, tradução nossa).

Recebido: 03 de Agosto de 2021; Revisado: 09 de Novembro de 2021; Aceito: 22 de Fevereiro de 2022

Juliana Miraldi é doutora em sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e pesquisadora do Grupo de Estudos em Bourdieu da Unicamp (GEBU).

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