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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 14-Set-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248254584por 

SEÇÃO TEMÁTICA: 20 anos depois: pensar com e sem Bourdieu

Área de ensino: reflexões a partir da teoria dos campos de Pierre Bourdieu

1- Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil. Contatos: fernanda.ostermann@ufrgs.br; flaviarezende@uol.com.br; matheus.monteiro@ufrgs.br

2- Universidade Estadual Paulista, Araraquara, SP, Brasil. Contato: luciana.massi@unesp.br


Resumo

As contribuições teóricas de Pierre Bourdieu permitem estudos sobre os mais diferentes espaços sociais, e, dentre eles, o espaço acadêmico. A partir da teoria bourdieusiana dos campos, nosso objetivo foi investigar se a área de ensino da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) pode ser considerada um campo científico relativamente autônomo. Para tanto, buscamos discutir duas questões de pesquisa: 1) qual é a distribuição do capital científico na área de ensino; e 2) quais as implicações dessa distribuição sobre sua constituição como um campo científico. A partir do cruzamento de dados sobre os docentes dos programas da área de ensino com a avaliação dos programas pela Capes, nossa análise revelou que esta área não se constitui enquanto campo científico. Diferentemente do que acontece em campos bem estabelecidos, a maioria dos orientadores da área de ensino provém de muitas áreas científicas diferentes e não reconhece a produção intelectual específica dessa área enquanto capital científico. Supondo que as disputas existentes entre docentes com menos e mais capital científico possam gerar novas conformações da área, uma possível configuração seria a estabilização do subgrupo de docentes de maior capital científico e sua constituição enquanto campo científico, na medida em que seus agentes se tornem cada vez mais conscientes de que sua estrutura cognitiva e seus ideais de educação e de pesquisa são diferentes do que se pretendeu homogeneizar com a criação da área de ensino da Capes. Acreditamos que nossos resultados podem ser uma referência para a reflexão crítica sobre a configuração da área de ensino, ainda a ser realizada por seus agentes.

Palavras-Chave: Pierre Bourdieu; Capital científico; Campo científico

Abstract

Pierre Bourdieu’s theoretical contributions pave the way for studying a wide range of social spaces, such as the academia. Through using Bourdieusian fields, our objective was to investigate whether the teaching area of the Coordination for the Improvement of Higher Education Personnel (CAPES) can be considered a relatively autonomous scientific field. Therefore, this study is motivated by two research questions: 1) what is the distribution of scientific capital in the teaching area; and 2) what are the implications of this distribution on its constitution as a scientific field. By crossing data on professors of programs in the field of education with the evaluation grade assigned by Capes to each of these programs, our analysis revealed that this area does not constitute a scientific field. Differently from what happens in well-established fields, most teaching advisors come from many different scientific backgrounds and do not recognize this field’s specific intellectual production as scientific capital. Assuming that the existing disputes between professors with less and more scientific capital can generate new conformations in the area, a possible structure could be a stabilization of the subgroup of professors with greater scientific capital and its constitution as a scientific field, whose agents become increasingly aware that their cognitive structure and ideals of education/research are different from what Capes intended to homogenize with the creation of a teaching area. We believe that our results can be a reference for critical reflection on the structure of the field of teaching, which is still driven by its agents.

Key words: Pierre Bourdieu; Science capital; Scientific field

Problematização

A área de pesquisa em ensino é caracterizada, principalmente, por sua juventude e multidisciplinariedade. Sendo uma área heterogênea e, possivelmente, ainda em formação, ela representa um desafio instigante a ser enfrentado pela teoria dos campos de Pierre Bourdieu que, segundo o próprio autor, trata-se de um conceito de difícil mobilização, raramente empregado para investigar disciplinas científicas com tais características (BOURDIEU, 2013). Nesse sentido, investigamos a possibilidade de a área de ensino constituir-se em um campo científico, por meio da distribuição do capital científico dos professores que realizam orientação nos programas de pós-graduação (PPGs) dessa área.

Assim como Bourdieu (1996), iniciamos este estudo apresentando brevemente a sociogênese deste possível campo, cuja origem encontra-se na área de ensino de ciências e matemática. Visto como estratégico para o desenvolvimento científico-tecnológico do Brasil, o ensino de ciências recebeu, nos anos 1960, verbas vultosas do governo para a elaboração de projetos curriculares e materiais didáticos com base em projetos curriculares norte-americanos. Em algumas universidades, a organização dos primeiros pesquisadores que utilizavam esses projetos nos cursos de formação de professores e na montagem de laboratórios didáticos acabou por ampliar seus objetos de pesquisa (OSTERMANN; REZENDE, 2020).

A partir dos anos 1980, no período de redemocratização do país, a formação de grupos de pesquisa nas universidades se intensificou, estimulada por financiamentos direcionados a projetos de ensino de ciências e, em especial, para a formação de doutores no exterior. Tais políticas permitiram um progressivo aumento do número de grupos de pesquisa em ensino de física, química e biologia, que se organizaram para fundar, em 1997, a Associação Brasileira de Pesquisa em Ensino de Ciências (Abrapec), denominação utilizada na época, durante a realização do I Encontro de pesquisa em ensino de ciências (Enpec). A criação da Abrapec materializou o desejo de uma comunidade de pesquisadores em ensino de ciências de organizar uma associação acadêmica independente das associações vinculadas à área da educação e das sociedades científicas. Foi o primeiro passo na busca por autonomia dessa área acadêmica, numa clara tentativa de se estabelecer enquanto campo científico.

Em 1999, tanto a Abrapec quanto a segunda edição do Enpec passaram a se referir, em suas denominações, à educação em ciências e não mais ao ensino de ciências, o que não causou surpresa nem mereceu uma justificativa para seus associados. A criação, em 2000, da área de ensino de ciências e matemática (denominada Área 46) pela Capes, que abrigava inicialmente sete PPGs3, representou mais um movimento importante para a conformação do possível campo. Até então uma linha de pesquisa de programas de pós-graduação em Educação ou nas disciplinas de origem (física, química, biologia e matemática), o ensino de ciências e matemática passou a ter status de área na Capes (agência de fomento que avalia os cursos de mestrado e doutorado em nosso país). Outro marco importante para se entender a formação da área foi a abertura, em 2002, dos dois primeiros cursos de mestrado profissional em ensino de ciências/física, na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Em 2011, a Capes determinou a extinção da Área 46, alegando sofrer pressão de outros cursos de PPG em ensino (como os de engenharia, enfermagem, administração etc.), que, supostamente, não encontravam uma área na qual submeter suas propostas a editais a fim de obter auxílios. A Área 46, então, é substituída pela área de ensino (permanecendo com o número 46), passando a ser coordenada por cientistas de diferentes áreas de conteúdo específico e abrigando, a partir daí, diferentes PPGs de ensino4.

Entre tantas reações contrárias à extinção da área de ensino de ciências e matemática pela Capes, destaca-se a posição da Abrapec, que, em um momento mais progressista do que o de sua fundação, foi signatária de inúmeras manifestações contra essa medida, passando a considerá-la um golpe. Numa tentativa de estabelecer algum diálogo com os programas, a Capes realizou, em novembro de 2011, o Seminário de acompanhamento dos programas de pós-graduação em ensino, do qual participaram 65 coordenadores e representantes dos PPGs em ensino. Na oportunidade, foram debatidas questões relacionadas à maneira como os programas lidariam com as mudanças realizadas pela Capes, incluindo a avaliação trienal e os documentos de área. Também surgiu a possibilidade de criação de câmaras, com procedimentos, especificidades e respectivos periódicos qualis. Essa medida visava alocar o grupo de ensino de ciências e matemática em um nicho específico para, de algum modo, preservar sua identidade. Após discussão, foram propostas quatro câmaras – Ensino de ciências e matemática; ensino de saúde; ensino de engenharias e tecnologias; e ensino de humanidades, linguagens e ciências sociais –, a fim de incentivar a criação de programas nessas áreas (RAMOS; SILVA, 2014). A proposta de organização da área de ensino em quatro câmaras não se materializou, o que acabou por ratificar o caráter heterogêneo da área.

Nos documentos da área de ensino (CAPES, 2013, 2016, 2019), ela é caracterizada como pesquisa translacional, o que significa a aplicação da ciência básica em produtos e processos educativos e configura sua visão hegemônica:

Os programas da área de ensino focam as pesquisas (expressas em artigos, livros e trabalhos em eventos) e produções (expressas em processos, materiais, tecnologias educacionais e sociais, propostas educativas, políticas públicas) em Ensino de determinado conteúdo, buscando interlocução com as Áreas geradoras dos conhecimentos a serem ensinados. É característica específica – e das mais importantes – da área de ensino, o foco na integração entre conteúdo disciplinar e conhecimento pedagógico ou o que se denomina pedagogias do conteúdo. […] A área de ensino é, portanto, uma área essencialmente de pesquisa translacional, que busca construir pontes entre conhecimentos acadêmicos gerados em educação e ensino para sua aplicação em produtos e processos educativos na sociedade. (CAPES, 2013apudCAPES, 2016, p. 2-3, grifo do autor).

Os significantes destacados em itálico mostram o compromisso da produção de conhecimentos da área de ensino com o ensino de determinado conteúdo disciplinar integrado a um conhecimento pedagógico. Educação e ensino são equiparados a fim de compor uma soma de conhecimentos pedagógicos que, integrado ao conteúdo específico, servirá a um único propósito, ou seja, sua aplicação em produtos e processos educativos. A formação acadêmica ou profissional de mestrandos e doutorandos dos diferentes programas dessa área visaria ao perfil de desenvolvedores de materiais educativos e de professores eficientes em estabelecer processos educativos. Esta formação aplicacionista e instrucionista se restringe à formação técnica, sem lugar para a reflexão política necessária sobre a escola, o currículo, a educação, a ciência e a sociedade. É, no mínimo, decepcionante ver que o texto destacado acima se repete no documento mais recente da área de ensino, produzido em 2019 (CAPES, 2019).

Por outro lado, vemos mudanças de concepção entre pesquisadores e estudantes de pós-graduação no âmbito da Abrapec e dos Enpecs. Nas últimas edições do evento, tem sido cada vez mais presente uma visão crítica que questiona o ensino de ciências e não se volta apenas para o desenvolvimento de métodos de ensino ou de materiais didáticos. No mesmo caminho, em 2017, a diretoria da Abrapec realizou uma revisão de seu estatuto, passando a utilizar apenas a expressão “educação em ciências”, e não se referindo mais ao “ensino de ciências”. Entretanto, a posição da educação em ciências como objeto central da associação está longe de se materializar na área de ensino, o que reafirma a condição de subconjunto da primeira.

A Capes criou a área de ensino reunindo 29 cursos de mestrado acadêmico, 19 cursos de doutorado acadêmico e 30 cursos de mestrado profissional de naturezas distintas, que pretendeu homogeneizar a partir de uma concepção tecnicista. Dessa forma, a área de ensino não seguiu o caminho em geral trilhado por outras áreas de conhecimento: o processo artificialmente forjado não levou à fundação de uma identidade. A presença, neste grupo, de um subgrupo de pesquisadores em educação em ciências, que claramente não se identificam com essa visão, expõe a fragilidade da identidade da área. Essas particularidades nos motivaram a questionar a área de ensino em relação à possibilidade de se constituir enquanto campo, nos moldes da concepção bourdieusiana de campo científico, o que poderá, também, deixar claro o que suas supostas fragilidades podem de fato representar.

O campo e o capital científico segundo Bourdieu

Consideramos importante iniciar uma abordagem da sociologia do conhecimento científico, explicitando, de acordo com Bourdieu (1983c, 2017), o quão difícil é, para um cientista, estudar a ciência. Segundo o autor,

A sociologia da ciência só é tão difícil porque o sociólogo está em jogo no jogo que ele pretende descrever […]; ele só poderá objetivar o que está em jogo e as estratégias correspondentes se tomar por objeto não somente as estratégias de seus adversários científicos, mas o jogo enquanto tal, que comanda também suas próprias estratégias, ameaçando governar subterraneamente sua sociologia, e sua sociologia da sociologia. (BOURDIEU, 1983c, p. 155).

Diante da dificuldade supracitada, julgamos necessário explicitar quem somos: formamos uma pequena equipe, constituída por pesquisadores novatos e experientes, com formação e atuação na pesquisa em educação em ciências em programas da área de ensino. Para contornar as dificuldades dessa configuração, explicitamos nossos dados empíricos e interpretação teórica, reconhecendo a influência de nossas posições e buscando superá-las por meio de ferramentas analíticas.

Bourdieu (2004a, p. 43) defende que esse tipo de estudo é uma forma de “colocar a ciência a serviço da ciência” e romper com o “conhecimento primeiro, necessariamente parcial e arbitrário – cada um vê o campo com uma certa lucidez, mas a partir de um ponto de vista dentro do campo, que ele próprio não vê”, ao mesmo tempo que permite romper com as perspectivas externalistas, ou “teorias semieruditas, que só contêm, em estado explícito, um dos pontos de vista sobre o campo”.

Não adotamos o termo “campo”, como noção bourdieusiana, para nos referir à área de ensino. Mobilizamos essa noção para interpretar os dados empíricos, mas não partimos de sua constatação a priori. Assim, por meio das leis gerais e invariáveis dos campos e das propriedades específicas do campo científico (BOURDIEU, 1983a, 1983c), construímos este objeto de estudo e interpretamos os resultados empíricos que podem ou não levar à conclusão de que se trata de um campo, segundo o entendimento bourdieusiano. Campo, para Bourdieu (2004a), remete a um microcosmo dentro do macrocosmo social, que possui leis próprias. Em suas palavras, trata-se de “uma ideia extremamente simples, cuja função negativa é bastante evidente” (BOURDIEU, 2004a, p. 20). Ele explica que, para “compreender uma produção cultural (literatura, ciência etc.), não basta referir-se ao conteúdo textual dessa produção, tampouco referir-se ao contexto social contentando-se em estabelecer uma relação direta entre o texto e o contexto” (p. 20). O caminho seria “supor que, entre esses dois polos, muito distanciados […], existe um universo intermediário que chamo o campo literário, artístico, jurídico ou científico” (p. 20). Assim, operando entre o macrocosmo e o microcosmo, seria possível perceber as leis sociais mais ou menos específicas que regem os valores, ações e escolhas dos agentes que compõem o campo. Logo, segundo o autor, mobilizar a noção de campo, no contexto de uma sociologia da ciência, consiste em superar as falsas alternativas entre explicações puramente internalistas ou externalistas, procurando nas suas relações as especificidades do campo (BOURDIEU, 2004a).

Como indicado anteriormente, é importante destacar que o campo se constrói em relação direta com os agentes e que todo campo remete a uma luta entre dominantes e dominados. Não custa relembrar a explicação bourdieusiana de que seu método praxiológico discorda de perspectivas estruturalistas para as quais poderíamos procurar por estradas correspondentes às linhas desenhadas em um mapa (BOURDIEU, 1983b). Logo, o campo não tem uma existência física e material, embora seja possível identificar propriedades objetivas que o configuram a partir das posições ocupadas por seus agentes. “Os agentes – por exemplo, as empresas no caso do campo econômico – criam o espaço, e o espaço só existe (de alguma maneira) pelos agentes e pelas relações objetivas entre os agentes que aí se encontram” (BOURDIEU, 2004a, p. 23).

Essas e outras leis gerais e invariáveis dos campos se aplicam ao campo científico, mas ele também apresenta um conjunto de propriedades específicas (BOURDIEU, 1983a, 1983c). Em geral, podemos entender os campos científicos ou acadêmicos como disciplinas científicas. A própria delimitação do que seja o campo científico e sua importância remete às disciplinas, pois, para Bourdieu (2004b, p. 93), o campo científico relembra que “há um mínimo de unidade da ciência” e que “as diferentes disciplinas ocupam uma posição no espaço (hierarquizado) das disciplinas”. Além disso, Bourdieu (2004b, p. 75) explica que “cada disciplina (como campo) é definida por um nomos particular, um princípio de visão e divisão, um princípio de realidade irredutível ao de outra disciplina”. Portanto, estudar a área de pesquisa em ensino como um possível campo significa entendê-la como uma disciplina mais ou menos autônoma. Bourdieu (2004a, p. 21) associa diretamente as noções de disciplinas, campos e autonomia, ao defender que “uma das diferenças relativamente simples, mas nem sempre fácil de medir, de quantificar, entre os diferentes campos científicos, isso que se chamam as disciplinas, estará, de fato, em seu grau de autonomia”. Esse tema nos é fundamental e será retomado assim que explicitarmos o que constitui o capital científico que, assim como os agentes, também configura o campo.

O campo científico se caracteriza, assim como outros campos, pela disputa em torno de um capital específico, no caso, o capital científico.

O campo científico, enquanto sistema de relações objetivas entre posições adquiridas (em lutas anteriores), é o lugar, o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O que está em jogo especificamente nessa luta é o monopólio da autoridade científica definida, de maneira inseparável, como capacidade técnica e poder social ou, se quisermos, o monopólio da competência científica, compreendida enquanto capacidade de falar e de agir legitimamente (isto é, de maneira autorizada e com autoridade), que é socialmente outorgada a um agente determinado. (BOURDIEU, 1983c, p. 122-123).

Essa autoridade ou competência científica é uma espécie particular de capital específico do campo científico e implica a definição do que está em jogo na luta científica: “os dominantes são aqueles que conseguem impor uma definição da ciência segundo a qual a realização mais perfeita consiste em ter, ser e fazer aquilo que eles têm, são e fazem” (BOURDIEU, 1983c, p. 128). Assim, o campo separa em polos opostos os dominantes, que possuem maior volume de capital científico, e os dominados, os novatos, que “possuem um capital científico tanto mais importante quanto maior a importância dos recursos científicos acumulados no campo” (BOURDIEU, 1983c, p. 136-137). Em outras palavras, o capital científico é “produto do reconhecimento dos concorrentes” (BOURDIEU, 2004b, p. 80).

O capital científico é uma espécie particular do capital simbólico (o qual, sabe-se, é sempre fundado sobre atos de conhecimento e reconhecimento) que consiste no reconhecimento (ou no crédito) atribuído pelo conjunto de pares-concorrentes no interior do campo científico (o número de menções do Citation Index é um bom indicador, que se pode melhorar, como o fiz na pesquisa sobre o campo universitário francês, levando em conta os sinais de reconhecimento e de consagração, tais como os prêmios Nobel ou, em escala nacional, as medalhas do CNRS e também as traduções para as línguas estrangeiras). (BOURDIEU, 2004a, p. 26-27).

Reconhecemos como legítimos os questionamentos correntes na comunidade científica sobre o produtivismo representar uma “expressão acadêmica do neoliberalismo” (DUARTE; SANTOS; DUARTE, 2020, p. 1); entretanto, optamos pela adoção deste critério por entender que ele contempla minimamente a especificidade de cada área (logo, avalia de forma diferenciada o volume e a qualidade das produções), e representa um sistema de avaliação sem implicações diretas para as relações trabalhistas dos pesquisadores. Entendemos, ainda, que a própria crítica a esse sistema depende de análises científicas robustas, como indica Bourdieu (2017, p. 35):

[…] a ciência social só pode romper com os critérios e classificações comuns e subtrair-se às lutas das quais eles são as apostas e os instrumentos se os tomar explicitamente como objeto em vez de deixá-los introduzir-se sub-repticiamente no discurso científico. O universo ao qual ela deve prestar conta é o objeto e ao menos em parte o produto de representações concorrentes, às vezes antagônicas, que pretendem a verdade e por isso a existência.

Nesse sentido, voltamo-nos para o perfil dos bolsistas de produtividade em pesquisa esperando identificar a autonomia ou heteronomia da área de ensino, a partir da existência de fronteiras mais ou menos definidas desse possível campo. Existem diversas possibilidades de investigar a autonomia do campo e, neste estudo, focamos no direito de entrada ou no requisito de admissão. Segundo Bourdieu (2004b, p. 74), “o requisito de admissão é a competência, o capital científico incorporado”. Assim, o capital específico ao mesmo tempo que constitui e configura o campo, define suas fronteiras, que dependem

sobretudo, também do grau em que o campo científico está protegido contra as intrusões (mediante, principalmente, o direito de entrada mais ou menos elevado que ele impõe aos recém-chegados e que depende do capital científico coletivamente acumulado) e do grau em que é capaz de impor suas sanções positivas ou negativas. (BOURDIEU, 2004a, p. 34-35).

Recentemente, a revisão bibliográfica realizada por Massi, Agostini e Nascimento (2021) localizou trabalhos, na área de ensino de ciências, que utilizaram o conceito bourdieusiano de campo. Feres (2010) analisou os PPGs da subárea do ensino de ciências como um campo científico, caracterizando os interesses e as disputas entre seus agentes. Ribeiro (2008) apresentou um estudo histórico de constituição da educação em química e dos embates do ensino com a área de química, e reconstruiu historicamente a criação de um curso de licenciatura em química, mostrando os debates entre o campo político, científico e educacional. Já Pereira e Teixeira (2021) analisaram a produção intelectual dos pesquisadores da área de ensino de programas notas 6 e 7, identificando estratégias de coautoria e os temas explorados pelos agentes.

Procedimentos teórico-metodológicos

Bourdieu (1989, 2013) reconhece a dificuldade metodológica da mobilização da teoria dos campos, que foi construída “de generalização em generalização” (BOURDIEU, 1989, p. 69). Para compreender sua teoria, é necessário colocar em prática seu modo de pensamento praxiológico, que mescla a empiria e a teoria científica para explicar a interação entre o sujeito e a sociedade. Bourdieu (1996) destaca três procedimentos básicos e intrinsecamente ligados para operar a análise de um campo: i) posição deste campo em relação ao campo do poder; ii) identificação da estrutura interna do campo, incluindo as posições objetivas ocupadas pelos agentes; e iii) análise da gênese dos habitus dos agentes.

Neste estudo, priorizamos a estrutura interna do campo, visando investigar se a área de ensino da Capes pode ser considerada um campo científico. Para tanto, procuramos discutir duas questões de pesquisa: 1) qual é a distribuição do capital científico na área de ensino; e 2) quais as implicações dessa distribuição sobre sua constituição como um campo científico.

Entendemos as “bolsas de produtividade em pesquisa” (Bolsas PQ) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) como capital científico e os bolsistas como agentes dominantes, na medida em que ocupam posições superiores no campo científico. Este tipo de recurso representa um importante indicador de capital científico, também por ser atribuído por pares e concorrentes. Neste sentido, este estudo foi realizado com um conjunto de docentes bolsistas do CNPq, orientadores nos PPGs da área de ensino da Capes. Os docentes bolsistas PQ, considerados como os de maior capital científico, foram classificados segundo a área do Comitê Assessor (CA) e a nota do programa em que atuam.

Bourdieu (1988) assume que é metodologicamente mais produtivo analisar os polos de um campo do que as posições intermediárias, ou seja, concentrar as análises nos agentes que ocupam as posições extremas do campo. Dessa forma, optamos por considerar os polos extremos de classificação dos programas como: aqueles que obtiveram nota 6 ou 7 e os que receberam nota 3 de acordo com a plataforma Sucupira da Capes em 2019. Os agentes que atuam no espaço social da pós-graduação em ensino da Capes são, portanto, considerados, respectivamente, na nomenclatura utilizada por Bourdieu, como dominantes e dominados. A intenção é, assim, relacionar a posição dos agentes no espaço social com as instituições nas quais atuam, procurando perceber se estão no polo dominante ou no polo dominado.

Pretendemos identificar perfis de docentes a partir do cruzamento de informações sobre a área do CA a que o docente pertence e os polos de classificação dos programas, a fim de investigar a estrutura interna da área de ensino da Capes e as possibilidades de a área ser considerada um campo científico.

O capital científico dos docentes da área de ensino

Uma análise inicial mostrou que apenas metade dos docentes bolsistas PQ é da área de educação ou área afim ao ensino – diferentemente da física, por exemplo, na qual praticamente todos os bolsistas PQ são bolsistas na área de física ou em área correlata (NASCIMENTO; AGOSTINI; MASSI, 2022). Este resultado revela que o direito à entrada na área de ensino também é assegurado para especialistas de outras áreas, sugerindo uma baixa autonomia da área de ensino.

Os dados de 2019 da Capes revelam a presença de 4.027 docentes registrados em programas da área de ensino. É importante notar que os orientadores podem atuar em mais de um programa. Sobre a modalidade dos programas, 1.850 docentes orientadores atuam em cursos de mestrado acadêmico/doutorado acadêmico (MA/DA) e 2.177 em cursos de mestrado profissional/doutorado profissional (MP/DP), reforçando um resultado conhecido de que os cursos profissionais já superam os acadêmicos em termos numéricos. A distribuição dos docentes de cada modalidade em função da nota do programa em que atua é apresentada na Tabela 1. Notamos que a maior parte dos orientadores atua nos programas notas 3 e 4, e uma minoria, em cursos notas 6 e 7.

Tabela 1 Distribuição percentual de docentes atuantes nas modalidades acadêmica e profissional em função da nota dos programas de pós-graduação da área de ensino 

Nota MP/DP MA/DA
3 59% 35%
4 26% 32%
5 6% 16%
6 0 8%
7 0 1%
Sem avaliação 9% 8%

Fonte: Dados de 2019 da Capes coletados a partir da plataforma Sucupira.

Após a descrição geral dos docentes em atuação nas modalidades MA/DA e MP/DP nos programas com melhor e pior avaliação, passamos à descrição dos agentes, dentro desse grupo, com maior capital específico, relacionados ao ensino ou a outras áreas. Em atuação nos programas nota 3, de 1.279 orientadores, apenas 41 possuem bolsa PQ, o que corresponde a pouco mais de 3 por cento. Nos programas nota 6 e 7 temos 172 docentes, dos quais 36 são bolsistas PQ, um percentual de 21 por cento. A taxa de bolsistas por docentes nos programas nota 6 e 7 ser quase dez vezes maior que nos programas nota 3 é uma relação que merece destaque.

Em posse da lista de bolsistas PQ atuantes nos programas da área de ensino, consultamos na página do CNPq o CA pelo qual o docente ingressou no sistema5. Nos programas nota 3 da área de ensino, apenas 40 por cento são bolsistas do CA educação ou de áreas afins; a ampla maioria recebe bolsa do CNPq pela experiência e atuação em outras áreas, como física, botânica, fonoaudiologia e engenharia nuclear. O quadro se inverte nos programas com melhor avaliação, nos quais 72 por cento dos bolsistas PQ são da educação ou de área afim.

A partir deste cruzamento de informações é possível identificar quatro perfis, descritos a seguir, de docentes atuando nos programas, sendo dois perfis para o grupo de nota 6 ou 7 e dois perfis para o grupo de nota 3. É importante destacar que os perfis representam indivíduos construídos, definidos por um conjunto de propriedades analisadas que remetem a perfis ideais-típicos, e não indivíduos empíricos, como diferencia Bourdieu (2017).

  • Perfil A: bolsista de produtividade do CNPq do CA educação. Larga experiência na área e reconhecida produção de artigos em ensino. Trabalhos de editoria em periódicos de ensino e participação em associações ou eventos da área. Em geral, é permanente na instituição e no programa de nota 6 ou 7. Atua em cursos de MA/DA. Esse perfil é muito comum entre os bolsistas que atuam nesses programas;

  • Perfil B: bolsista de produtividade do CNPq por outras áreas, como física, engenharia aeroespacial, botânica, medicina, engenharia nuclear, enfermagem, psicologia, microbiologia, divulgação científica e fonoaudiologia. Larga experiência na área de origem, mas já conta com alguma produção em ensino. Em geral, é permanente na instituição e no programa de nota 6 ou 7. Atua em cursos de MA/DA. Esse perfil se associa a uma minoria de bolsistas que atua nesses programas;

  • Perfil C: bolsista de produtividade do CNPq por outras áreas, como física, engenharia aeroespacial, botânica, medicina, engenharia nuclear, enfermagem, psicologia, microbiologia, divulgação científica e fonoaudiologia. Larga experiência na área de origem e com pouca ou nenhuma produção em educação ou em ensino. Em geral é professor permanente na instituição, podendo ser colaborador ou permanente no programa de nota 3. Atua em cursos de MP/DP. Esse perfil é muito comum entre os bolsistas que atuam nesses programas; e

  • Perfil D: bolsista de produtividade do CNPq via educação ou área afim. Larga experiência na área e reconhecida produção em ensino. Trabalhos de editoria em periódicos de ensino e participação em associações ou eventos da área. Em geral, é colaborador na instituição e no programa de nota 3. Atua tanto em cursos de MA/DA como de MP/DP. Esse perfil se associa a uma minoria de bolsistas que atua nesses programas.

Capital científico dos docentes e a questão das fronteiras na área de ensino

O perfil A pode ser considerado o modelo de pesquisador com elevado capital científico dentro de um campo. É possível identificar neste grupo alguns dos indicadores do capital científico, propostos por Bourdieu (2017) para analisar o campo acadêmico francês. Embora estes devam ser repensados no contexto nacional atual, ainda indicam formas de distinção e notoriedade decorrentes de diversas formas de capital, como apontam Massi, Carvalho e Giordan (2020, p. 424):

a) os determinantes das chances de acesso às posições ocupadas (formação, capital econômico familiar, capital cultural, origem geográfica); b) os determinantes escolares (capital escolar institucional); c) capital e poder universitário (pertencimento a determinados cargos e posições de gestão); d) capital de poder científico (direção de associações científicas, órgãos de fomento etc.); e) do capital de prestígio científico (distinções científicas, índices de citações); f) capital de notoriedade intelectual (pertencimento a academias científicas, menções e aparições na mídia, organizações de coleções e revistas científicas); g) capital de poder político ou econômico (ocupação de cargos políticos ministeriais, comissões governamentais etc.); h) disposições políticas (assinatura de petições e participações em colóquios específicos).

Em paralelo à física, praticamente todos os bolsistas PQ que orientam em seus programas são do perfil A. É muito difícil para docentes de perfis diferentes ingressarem em campos bem estabelecidos; por isso, no caso da área de ensino, o perfil A pode ser considerado um ideal-típico de pesquisador que vai ocupar o topo da hierarquia acadêmica da área, por possuir capital específico ao ensino.

O perfil B contempla aqueles pesquisadores que se destacam em outro campo, mas que passam a atuar no ensino de maneira efetiva, desenvolvendo pesquisa e atuando na formação de recursos humanos. Apesar de possuírem bolsa PQ e posições destacadas com trajetórias consolidadas em outros campos, ocupam uma posição diferente dos pesquisadores do perfil A no espaço social do ensino, uma vez que estão iniciando uma trajetória nessa área. Pelo volume de produção de artigos e de orientações na área de ensino, podemos considerar que este grupo ocupa posição na hierarquia da área semelhante à dos doutores recém-formados (há menos de dez anos) já na área do ensino.

O perfil C representa aqueles pesquisadores que também são especialistas em outras áreas; porém, diferentemente dos pesquisadores do perfil B, não estão buscando reconverter o capital específico do campo de origem para a área do ensino, pois, em geral, não produzem conhecimento na área de pesquisa em ensino. O fato de estarem concentrados em cursos de mestrado e doutorado profissionais, indica que atuam em projetos de desenvolvimento, e não de pesquisa. Diferentemente dos perfis A e B, o perfil C não é encontrado nos campos mais autônomos. Por exemplo, um pesquisador PQ da educação dificilmente se tornaria orientador em PPGs bem consolidados, como é o caso da física. Isso apenas ocorreria no momento em que esse pesquisador apresentasse uma série de requisitos mínimos para assegurar seu direito de entrada, que é o caso típico do perfil B. Caso não cumprisse esses requisitos básicos, que é justamente o caso do perfil C, ele não poderia se tornar orientador na física.

Entretanto, um pesquisador de perfil C é aceito na área de Ensino e, inclusive, temos hoje mais pesquisadores orientando na área de ensino associados ao perfil C do que a qualquer outro. Pela teoria bourdieusiana, discutimos como é difícil e raro se inserir nas disputas de espaços nos quais não se possui a “competência” específica, o que aparentemente não é uma barreira no ensino. Seria possível pensar com Bourdieu (1983c) que esses perfis, atualmente majoritários, inicialmente se infiltraram como “cavalos de Tróia” na área, uma vez que introduziram seu capital científico específico de outro campo do sistema de bolsas de produtividade, reconhecido como um dos postos mais legítimos pelos pesquisadores. Ocupando posições de notoriedade intelectual em outra área, é possível supor que sua presença na área de ensino venha acompanhada de um desvio das pesquisas desta área, em direção aos seus campos disciplinares específicos, o que contribui para a ausência de um capital específico do ensino, a possível inexistência de fronteiras, e sua dificuldade em se constituir como um campo científico.

Os docentes do perfil D se assemelham aos docentes do perfil A, havendo, inclusive, alguns que podem ser identificados nos dois perfis, pois a diferença principal reside no fato de atuarem, no caso do perfil D, como colaboradores na instituição ou no programa. Aparentemente, alguns docentes do perfil A são convidados para atuarem em programas recém-criados, a fim de colaborarem de alguma forma com o curso que está em processo de institucionalização. Os docentes de perfil A e perfil D ocupam praticamente a mesma posição na hierarquia da área.

Podemos inferir que essas posições implicam diretamente a disputa sobre o que constitui a área e quais são seus objetos e metodologias específicos, uma vez que remetem ao seu capital e habitus científico e que são os agentes que configuram o campo. Bourdieu (2004a, p. 126) descreve que

É o campo científico, enquanto lugar de luta política pela dominação científica, que designa a cada pesquisador, em função da posição que ele ocupa, seus problemas, indissociavelmente políticos e científicos, e seus métodos, estratégias científicas que, pelo fato de se definirem expressa ou objetivamente pela referência ao sistema de posições políticas e científicas constitutivas do campo científico, são ao mesmo tempo estratégias políticas.

Bourdieu (2004b, p. 62) afirma, ainda, que “um cientista é a materialização de um campo científico e as suas estruturas cognitivas são homólogas à estrutura do campo”. Logo, nos questionamos: como estruturas cognitivas que compõem o perfil C, correspondentes a áreas tão diversas e não relacionadas diretamente ao ensino ou área afim, poderiam conformar o ensino enquanto campo científico? Como é possível configurar um campo científico no qual os agentes dominantes do perfil C, detentores dos maiores volumes de capital, possuem capitais específicos de outros campos? Qual seria o nomos do campo do ensino, irredutível a outra disciplina, diante dessa profusão de áreas envolvidas no perfil C dos dominantes sem relação com o ensino ou área afim? Contrariamente, os perfis A e D representariam um caminho para a definição de um nomos da área de educação que consolidaria a preocupação específica com o ensino. O perfil B representa esse esforço de aproximação das estruturas cognitivas do pesquisador à nova área de atuação, além da possibilidade de contribuir para a formação deste nomos.

Na próxima seção, discutimos algumas implicações desses resultados para o cenário atual da área de ensino e problemas que essa configuração pode representar para a pesquisa em ensino.

Discussão e implicações

A análise do capital científico dos docentes que atuam na área de ensino revelou que esta área não se constitui enquanto campo científico. Diferentemente do que acontece em campos bem estabelecidos, o conjunto dos perfis acadêmicos da maioria dos orientadores dos programas da área de ensino é composto de uma diversidade de estruturas cognitivas, já que os agentes provêm de muitas áreas científicas diferentes. Nossos resultados mostram, ainda, aspectos da luta simbólica pelo reconhecimento do que é legítimo na área de ensino, apontando para a baixa adesão ao seu nomos, uma vez que o perfil majoritário é caracterizado por docentes que não estão buscando reconverter seu capital específico para essa área. Tal resultado explica a baixa autonomia de um possível campo, uma vez que a maioria dos pesquisadores desconsidera, enquanto capital científico, a produção intelectual específica da área de ensino.

A sociogênese da área de ensino, brevemente apresentada anteriormente, mostra que a extinção da antiga Área 46 e a criação da área de ensino, em 2011, trouxe uma aproximação de toda a área aos programas de mestrado profissional. Antes de sua extinção, entre 2002 e 2011, já era observado um aumento significativo dos cursos de mestrado profissional de instituições sem tradição acadêmica e de docentes orientadores sem formação e/ou produção que já integrassem a área, marcando o início da hegemonia do ensino em relação à pesquisa. A antiga área de ensino de ciências e matemática, formada, em grande parte, por docentes com o perfil A, e que se encontrava em processo de consolidação, viu-se descaracterizada.

Nesse contexto, a política de implementação dos programas de mestrado profissional em rede nacional, em 2012, como o mestrado nacional profissional em matemática e o mestrado nacional profissional em ensino de física, sob coordenação da Sociedade Brasileira de Física, é outro elemento importante para se entender a história recente da área de ensino. Esses cursos, apesar de não estarem alocados na área de ensino6, vêm corroborar e acentuar o perfil de pós-graduação e de professores que se esperava com a instituição da área de ensino.

A criação da modalidade profissional de pós-graduação pode ser atribuída à influência das políticas educacionais neoliberais propostas por organismos internacionais (como a Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico e o Banco Mundial) para países periféricos, visando à adequação da educação às exigências do mercado mundial e à nova etapa de internacionalização do capitalismo. Nesta agenda, privilegia-se o conhecimento do conteúdo, considerado mais importante para o rendimento dos alunos do que o conhecimento pedagógico do docente (REZENDE; OSTERMANN, 2015). Estas orientações estão em sintonia com a ênfase no conhecimento específico observada na configuração dos cursos de mestrado profissional na área de ensino de ciências e matemática, desde sua criação, assim como nos cursos em rede.

A primazia dos programas profissionais na área de ensino, hoje, sintetiza os objetivos que se pretendiam atingir com sua constituição, a tal ponto que, no Documento de Área de 2019, as fronteiras entre os cursos acadêmicos e profissionais são muito tênues:

A área de ensino estimula fortemente a interação, principalmente, com a educação básica, considerando que o objetivo da área é a qualificação da pesquisa voltada à busca da qualidade do ensino no País. Nesse sentido, os cursos de mestrado e doutorado acadêmicos têm a função de formar pesquisadores com vistas à produção de conhecimento sobre o ensino, que contribuam para o seu entendimento e para a busca de soluções para a realidade educacional brasileira. Por sua vez, os cursos de mestrado e doutorado profissionais formam pesquisadores, cujas pesquisas focam em práticas, processos e produtos, que possam ser disseminadas para as escolas brasileiras, de modo a qualificar o ensino no País. Para ambos os casos, as escolas de educação básica são consideradas espaços de formação e de produção de conhecimento, bem como espaços nos quais os resultados das pesquisas podem e devem ser disseminados pela interação com as instituições que mantêm os programas de pós-graduação com a finalidade de qualificar a formação de professores e, por consequência, o próprio ensino. (CAPES, 2019, p. 16-17).

Assim, se, de acordo com a Capes (2019), a produção de conhecimento dos cursos acadêmicos irá buscar “soluções para a realidade educacional brasileira” e os cursos profissionais irão disseminar “práticas, processos e produtos […] de modo a qualificar o ensino no país”, é possível enxergar uma aproximação significativa entre os objetivos das duas modalidades, dada pela mesma visão utilitarista e aplicacionista do conhecimento. Embora pudesse parecer fragmentada, esta visão educacional, disseminada por toda a área de ensino, seria o amálgama que homogeneizaria essa área.

A educação em ciências, fragmentada pela criação da área de ensino, constitui-se hoje como um de seus subgrupos que buscam significar a pesquisa e o desenvolvimento nessa área. A excelência acadêmica desse subgrupo, dada pela expressiva presença de orientadores com bolsa PQ do CNPq vinculados à área de educação ou área afim, característica do perfil A, pode explicar a qualidade dos programas em que atuam.

Supondo que as disputas entre dominantes e dominados existentes nos subgrupos de docentes possam gerar novas conformações da área, uma possível configuração seria a estabilização do subgrupo de docentes do perfil A e sua constituição enquanto campo científico, na medida em que seus agentes se tornem cada vez mais conscientes de que sua estrutura cognitiva e seus ideais de educação e de pesquisa são diferentes do que se pretendeu homogeneizar com a criação da área de ensino da Capes.

Consideramos que este estudo pode ser relevante para os agentes da área de ensino, por permitir uma visão sucinta da distribuição do capital científico nessa área e de expor aspectos formativos dos docentes. Acreditamos que nossos resultados podem ser uma referência para a reflexão crítica sobre a configuração da área de ensino, ainda a ser realizada por seus agentes.

Referências

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3- São eles: Ensino de ciências (modalidades física, química e biologia), da Universidade de São Paulo (USP); Educação matemática, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Educação matemática, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Rio Claro); Ensino das ciências, da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE); Educação em ciências e saúde, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Educação para a ciência da Unesp, campus de Bauru; Ensino, filosofia e história das ciências, da Universidade Federal da Bahia (UFBA).

4- A lista com os 212 cursos de pós-graduação da Área de Ensino registrados na Capes em 2019 pode ser encontrada no seguinte endereço: https://bityli.com/sTQjAQ.

5- Os dados sobre os bolsistas do CNPq são abertos e podem ser obtidos no seguinte endereço: http://dadosabertos.cnpq.br/pt_BR.

6 - O primeiro está cadastrado na área de avaliação em matemática/probabilidade e estatística e o segundo na área de astronomia/física.

Recebido: 24 de Julho de 2021; Revisado: 09 de Novembro de 2021; Aceito: 21 de Fevereiro de 2022

Fernanda Ostermann é doutora em física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora do Departamento de Física e docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Física da UFRGS.

Flavia Rezende é doutora em educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRJ) e docente colaboradora no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Física da UFRGS.

Matheus Monteiro Nascimento é doutor em ensino de física pela UFRGS, professor do Departamento de Física e docente permanente no Programa de Pós-Graduação em Ensino de Física da UFRGS.

Luciana Massi é doutora em ensino de ciências pela Universidade de São Paulo (USP), professora da Faculdade de Ciências e Letras e do Programa de Pós-Graduação em Educação para Ciência da Faculdade de Ciências de Bauru da Universidade Estadual Paulista (Unesp).

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