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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 21-Set-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248254836por 

SEÇÃO TEMÁTICA: 20 anos depois: pensar com e sem Bourdieu

Compreender e compreender-se: o campo educacional brasileiro num itinerário de leituras de Pierre Bourdieu1

Denice Barbara Catani2 
http://orcid.org/0000-0001-6019-8969

2- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Contato: dbcat@usp.br


Resumo

O texto explicita e analisa uma modalidade de apropriação do pensamento de Pierre Bourdieu, indicando alguns pontos fundamentais para os estudos da área educacional. Remete às possibilidades de entendimento inscritas em sua sociologia no tocante à elaboração dos conhecimentos científicos e aos determinantes do campo, habitus e capitais ligados aos sujeitos e suas posições. Acentua, assim, a íntima conexão entre conhecimento científico e autoconhecimento. Entre seus objetivos, o texto pretende ser útil aos jovens pesquisadores ao mostrar possibilidades de pensamento “com Bourdieu” ao refazer um caso, e chamar a atenção para os problemas da produção dos conhecimentos em educação, histórica e socialmente. Sob a forma de um ensaio e valendo-se desta como método, constrói-se um itinerário pessoal de leituras da obra do autor, salientando duas perspectivas que orientaram as escolhas em diferentes momentos. Uma delas se refere ao desenvolvimento de investigações da história da educação brasileira e outra, aos trabalhos de pesquisa, ensino e intervenção para a formação de professores. Dada a natureza da escrita e a convicção de que são possíveis e desejáveis diversos modos de produção dos estudos educacionais, não se explicitam conclusões, em vez disso, propõe-se a multiplicação de perguntas que se desdobram da construção das ideias e dos percursos do pensamento.

Palavras-Chave: Pierre Bourdieu; Campo educacional; Itinerário de leituras; História da educação; Formação de professores

Abstract

The text renders explicit and analyses an appropriation modality of Pierre Bourdieu’s thinking, as it indicates some fundamental points for studies on the educational area. It refers to the possibilities of understanding inscribed in his sociology regarding the elaboration of scientific knowledge and the field’s determinants, habitus and capitals linked to subjects and their positions. It thus underlines the intimate connection between scientific knowledge and self-knowledge. Among its aims, the text seeks to be useful to young researchers as it shows the modalities of thinking “with Bourdieu” as I remake a case and bring attention to the problems of knowledge production in education, historically and socially. A personal itinerary of readings from the Bourdieu’s oeuvre is built in the form of an essay and using it as a method, highlighting two perspectives that guided choices in different moments. One of them refers to the development of investigations in the history of Brazilian education and the other refers to the research, teaching and intervention work involved in teachers’ training. Given the nature of writing and the conviction that several modes of production around educational studies are possible and desirable, no conclusions are made explicit, but, instead, I propose a multiplicity of questions that unfold from the construction of ideas and from the thinking trajectories undertaken.

Key words: Pierre Bourdieu; Educational field; Itinerary of reading; History of education; Teachers’ training

[…] conhece-se melhor o mundo na medida em que se conhece melhor a si mesmo, que o conhecimento científico e o conhecimento de si mesmo e de seu próprio inconsciente social avançam par e par e que a experiência primeira transformada na e pela prática científica transforma a prática científica e vice-versa.

Jacques Bouveresse3

Pierre Bourdieu deu a seus estudantes de Lille […] não um tema de dissertação para tratar mas um trabalho de reflexividade a efetuar: pediu que cada um dentre nós tentasse uma análise sociológica de si […]. Esse encorajamento para fazer a sociologia de si mesmo, por assim dizer, em primeira pessoa, mais do que se deter em seguir o curso de sociologia, não era somente a aplicação de um princípio de pedagogia ativa, era a expressão de uma convicção epistemológica: é a esse preço que o conhecimento sociológico se torna possível.

Marie-Anne Lescourret4

Difícil fazer a filiação deste texto a um mero ensaio autobiográfico depois de ter lido todas as ponderações e restrições de P. Bourdieu ao gênero. Difícil deixar de lado as raízes dessa natureza quando se estrutura, em grande parte, os modos de pensar com base nesse mesmo autor e se constrói assim uma via de produção para os investimentos de pesquisa feitos na área da educação. Difícil desconsiderar um de seus mais caros princípios, tantas vezes reafirmado, o que diz respeito ao sentido de produzir conhecimentos que desvelem o impensado de nossas próprias convicções, ideias e ações. A transcrição dos excertos iniciais permite fazer alusão às motivações que moldam as reflexões apresentadas. Elabora-se aqui um ensaio que procura construir um itinerário pessoal de apropriação da obra do sociólogo, e nele estruturar uma cronologia de leituras. Nesse itinerário procura-se situar os movimentos de compreensão do campo educacional e a busca dos seus referenciais para construir interpretações acerca da história, ou melhor, de uma sócio-história da educação brasileira (CATANI, 2003), de uma hipótese de estudos comparados na mesma área (CATANI, 2000) e de alternativas de formação docente capazes de promover uma cultura da atenção para com o mundo e seu cuidado (CATANI, 2010). As três perspectivas marcaram minhas pesquisas. Aqui falarei apenas da primeira e da terceira, embora os estudos comparados tenham também encontrado em Bourdieu elementos de sustentação. Pretende-se, assim, testemunhar uma das modalidades de apropriação do pensamento e dos trabalhos de P. Bourdieu na área educacional. Impossível retornar a todas as leituras, e decerto deixo de mencionar aspectos importantes do itinerário e de seus desvios, assim como textos que também foram relevantes nesse percurso. Não saberia dizer precisamente como as leituras de sua obra interagiram entre elas e com a minha biblioteca vivida (no sentido de Goulemot), nos diversos tempos a que me refiro. Invoca-se Goulemot (2009) pela ideia que ele enuncia, segundo a qual toda leitura é comparativa, pelo contato de livros com outros livros que vão integrando nossas bibliotecas vividas, físicas e interiores. Pelas razões aventadas, tanto quanto pela natureza da proposição que faço, o ensaio não aspira à completude e exaustividade nem à demonstração. Há decerto, nas reflexões, um modo de lidar com os tempos por mim vividos, com as descobertas e o enfrentamento das questões do campo educacional e com a apropriação das elaborações de P. Bourdieu que não permite uma retomada ou descrição que respeite integralmente ordenações cronológicas. Ensaio mesmo assim algumas marcações. Os tempos se superpõem, a percepção das questões vai ganhando sucessivos contornos e as leituras que ofereceram suportes explicativos fortes, em alguns casos, não foram simultâneas aos momentos das pesquisas ou do desenvolvimento de intervenções, mas nesses casos orientaram, posteriormente, suas redefinições. Idas e vindas foram necessárias5.

O horizonte a que tendem as perguntas que faço diz respeito à compreensão do trabalho educativo e à produção de conhecimentos sobre, para e nesta atividade. E diz respeito a uma forte convicção: as condições de possibilidade e a sustentação lógica e disciplinar desses conhecimentos em suas dimensões históricas e sociais são fundamentais para todos os que cuidam de ensinar nas instituições ou escolas e não apenas para quem os produz. Nunca é demais insistir sobre isso, por acreditar que é possível fazer decorrer da compreensão da nossa realidade, dos saberes envolvidos em nossos trabalhos e dos modos de sua produção, o poder de transformá-los em prol de maior justiça e melhores condições de vida para todos os que dependem da escola. Que este itinerário de leituras, ao mostrar pontos fulcrais do pensamento de Bourdieu, lidos em busca de uma interpretação mais justa, permita, nos tempos perigosos que vivemos, refazer questões que nos ajudem a alargar caminhos: o que pode a escola hoje e o que podem os professores? O que podemos nós que pesquisamos, escrevemos e falamos desses problemas? Até que ponto a potência de nosso pensamento estará também em perigo?

**

*

1970 – Na cidade de São Paulo, no extremo oposto à Cidade Universitária, fica o bairro da Zona Leste em que resido, numa distância de 28 quilômetros entre os dois pontos. Por que começar dizendo isso? Para dar conta da distância física que me obrigava a um deslocamento vagaroso em dois ônibus de horários um tanto incertos e trajetos alongados para servir mais pessoas. Servir, por exemplo, os moradores das periferias que se dirigiam ao Hospital das Clínicas. E para aludir a uma distância social que compreenderia melhor com o passar dos anos. A situação era bem semelhante a que se encontra descrita em Os herdeiros: os estudantes e a cultura:

A experiência do futuro escolar não pode ser a mesma para o filho de um alto executivo que, tendo mais de uma chance sobre duas de chegar à faculdade, encontra necessariamente em torno de si e, mesmo em sua família, os estudos superiores como um destino banal e cotidiano e, para o filho de operário que, tendo menos de duas chances sobre cem de chegar até lá, só conhece os estudos e os estudantes através de pessoas ou meios interpostos. (BOURDIEU; PASSERON, 2014b, p. 17).

A observação data de 1964 e se refere à França. Minha entrada na Universidade de São Paulo (USP) data de 1970, ano da implantação da Lei nº 5.540, de 1968 (da chamada reforma universitária) que, em tese, ampliou o acesso ao ensino superior para os alunos oriundos das classes populares. Não me alongarei sobre os fatos que cercaram o ingresso da “nova população” na universidade, embora nossos mestres tenham falado muito sobre a “diferença de nível” existente entre os antigos alunos e os recém-chegados. E, no período ditatorial, como bem sabemos, propagandeava-se a meritocracia e a “educação como ascensão social”. Vale partilhar uma constatação bem explicativa dessas condições ao trazer as palavras do recenseador do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) encarregado, em 1970, da coleta de informações em diversos quarteirões do meu bairro. Afirmou ele que ali não havia outra pessoa que estivesse cursando a universidade. A afirmação não ressoava muito no momento e decerto fortalecia em mim uma ilusão do mérito e da aptidão natural.

Um entendimento mais arguto dos sentidos envolvidos pela reforma universitária e pela posição por mim ocupada se apuraria progressivamente. Mas a sensação de desconforto diante das performances muito “à vontade” de alguns colegas da classe era algo que me punha em alerta sobre as minhas próprias atitudes naquele ambiente. O tipo de desconforto perdura e assume novas formas noutras situações sociais. Timidez, insegurança e sentimento de inadequação. Lembro aqui o livro de Didier Eribon, Retorno a Reims (datado de 2009 e traduzido para o português em ٢٠٢٠), que se vale das interpretações de Bourdieu (com quem conviveu) e ensaia sua socioanálise. Constrói assim, mais do que suas memórias, algo como um testemunho do intelectual oriundo das classes populares, que se defronta com a saída do grupo de origem e busca compreender a extensão das implicações sociais de sua trajetória e experiências vividas. Na mesma linha, o romance de Annie Ernaux, O Lugar (publicado originalmente em 1982 e, traduzido no Brasil em 2021), é centralizado na figura do pai e elabora a análise das relações com ele, reconstituiu a percepção de seu afastamento progressivo conforme sua escolarização avançava e a distância entre os hábitos, as ideias e as aspirações de ambos adquiria dimensões quase incomensuráveis. Mesmo reconhecendo-se a distinção entre uma análise como a de Eribon, que pode ser vista como mais sustentada pela sociologia, e a de Ernaux, que, em grande medida, torna indiscerníveis os limites entre as suas autoficções e a interpretação sociológica que produz, ambos mostram as possibilidades de se elaborar um entendimento de si que vai desvelando o impensado das determinações sociais de nossas existências6.

É óbvio que me beneficio do Esboço de auto-análise do próprio P. Bourdieu (2005b). Tentarei não ceder ao risco de simplesmente produzir muitas causalidades a posteriori, mas não creio poder dar conta do que aqui me interessa – a apropriação da obra do sociólogo e sua presença em minhas pesquisas e no ensino – sem referir-me ao que motivou, induziu ou fortaleceu o interesse pela sua obra. E esses impulsos vieram, certamente, da minha condição e experiências de vida. Tenho presente que serei mais bem sucedida caso não incorra nos “equívocos autobiográficos” frequentemente apontados por ele desde, pelo menos, A ilusão biográfica (original de 1986 e incluso na edição brasileira de Razões práticas, 1996b). Também explicitados em Réponses (1992) e certamente em Esboço de auto-análise, dentre outros. Tento não instaurar uma causalidade exaustiva ou uma ordenação linear em que os fatos ganham consistência por estarem encadeados numa sequência artificial. Dentre as várias explicitações formuladas por ele, creio ser exemplar a mesma de que já me vali (CATANI, 1994), retirada d’A ilusão biográfica:

[…] Tentar compreender uma vida como uma série única, por si só suficiente de acontecimentos sucessivos, sem outra ligação que a vinculação a um “sujeito” cuja única constância é a do nome próprio, é quase tão absurdo quanto tentar explicar um trajeto no metrô sem levar em conta a estrutura da rede, isto é a matriz das relações objetivas entre as diversas estações […]. (BOURDIEU, 1996b, p. 86).

Enganoso seria dizer que é possível deixar de lado essas dimensões pessoais e pretender isolar as opções e a produção dos meus trabalhos do seu enraizamento mais fundo elidindo esse fenômeno de ascensão pela educação que, em alguma medida, me transformou, ao longo do tempo, em algo como um caso de transclasse, com todos os custos e benefícios da situação, recorrendo ao uso da expressão como feito por Chantal Jaquet (2014). Não retomo o conjunto de implicações que a autora expõe para dar conta dos movimentos de acomodação característicos dos processos pelos quais pode instaurar-se, no caso, a não reprodução. Adiante-se que ela entende referir a um prolongamento dos aspectos potenciais das explicações de Bourdieu. A eventual linearidade do que exponho é um meio de tornar inteligível o modo de apropriação do autor, e decerto é dependente do lugar ocupado por mim como professora de uma universidade bastante reconhecida, em cursos muito desvalorizados na hierarquia das legitimidades acadêmicas.

Segunda metade dos anos 1970, publica-se a tradução brasileira de La reproduction –éléments pour une théorie du système d’enseignement (BOURDIEU; PASSERON, 1970). Com a tradução datada de 1975, a leitura do autor atinge a área da educação. Sabe-se bem das reações e já mostramos como elas se desencadearam entre nós (CATANI; CATANI; PEREIRA, 2001). A incompreensão que, na maioria dos casos, engendrou a indisposição para com o livro fazia parecer a alguns que ele se limitava apenas a demonstrar que a escola era reprodutora das relações de dominação. Essa demonstração não seria pouco, porque até então não se havia mostrado como, no interior das escolas, as práticas consagradas, os valores e as exigências operavam nesse sentido. Mas alguns a consideravam insuficiente para as expectativas sobre o poder transformador da instituição. Deixava-se de lado a rica identificação das formas pelas quais essa reprodução se concretizava na vida escolar mediante a multiplicidade de práticas de ensino nos diversos níveis. A atenção a esses aspectos poderia ter tido como efeito favorecer a busca de superação dos fazeres reprodutores, mas parte do potencial do livro foi ignorado. A propósito da resistência que essa atitude provocou em relação ao autor, no livro que Maria Andréa Loyola (2002) editou com uma entrevista de Bourdieu, ela identifica entre seus alunos o movimento de recusa à leitura e entendimento da obra. Talvez a leitura de Les héritiers: les étudiants et la culture (originalmente publicado em 1964) pudesse ter auxiliado a não restringir a interpretação, porém o livro circulou pouco entre nós e só ganhou uma tradução brasileira em 2014. Durante muito tempo prevaleceu a acusação de reprodutivismo, espécie de armadilha em que o livro sobre a reprodução pareceu ficar preso, talvez por não se considerar o que nele havia de potência na identificação dos dispositivos e processos pelos quais se reconfiguravam as categorias sociais de apreciação em categorias escolares, agravando as desigualdades. Deixou-se de ver que, ao explicitar o modo pelo qual isso se concretizava na vida escolar, abria-se espaço para transformações no interior das instituições. Ao procurar mostrar como o autor foi lido na área educacional no Brasil tentamos reconhecer as nuances das apropriações feitas e as consequências daí decorrentes para a resistência à sua leitura, naqueles momentos, em que a pressão da ditadura impulsionava a busca de soluções rápidas no combate às limitações da escola. Obviamente nem todas as leituras se fizeram assim.

A apropriação que fiz, no momento da tradução brasileira, dirigiu meu interesse para o funcionamento da vida no interior da escola, seus mecanismos de inculcação e valorização dos modos de comportamento justamente quanto aos aspectos que, desde o início da minha trajetória de escolarização, já tinha observado como distintivos entre as crianças e os lugares que elas ocupavam na instituição. Do ponto de vista da autocompreensão, fui levada a refletir mais sobre as relações que os diversos indivíduos desenvolvem com a vida escolar, o que ali se passa e o caráter determinante que tais relações adquirem nas possibilidades de sucesso ou fracasso e na extensão da escolarização. Envolvida com as questões de ensino e das práticas docentes – pelas disciplinas lecionadas – voltei-me para a análise das formas rotineiras da vida escolar: as aulas, os discursos pedagógicos, as provas e os exames e suas contribuições para a preservação da ordem estabelecida e para as justificativas apoiadas no mérito e nos dons naturais. E acredito que a transformação das práticas escolares, ainda que no limite estreito das possibilidades permitidas pelo sistema, colabora parcial, mas decididamente, para atenuar os malefícios das desigualdades escolares como transfiguração das desigualdades sociais. Encontrei em A reprodução (BOURDIEU; PASSERON, 2014a) elementos mais fecundos para pensar que é possível contribuir para a formação de professores, justamente ao examinar a natureza das relações pedagógicas como relações de comunicação (e além), bem como deter-me na análise dos procedimentos de avaliação para tentar compreender a constituição das formas de julgamento e classificação mobilizadas no cotidiano da vida escolar. A leitura posterior de “As categorias do juízo professoral” (BOURDIEU; SAINT-MARTIN, publicado originalmente em 1975 e no Brasil em 1998) precisou bastante esse entendimento.

Na leitura d’Os herdeiros encontro a abertura apontada pelos autores, ao final do texto, quanto à necessidade e possibilidade de uma pedagogia racional apta a “[…] neutralizar metodicamente e continuamente, da escola maternal à universidade, a ação dos fatores sociais de desigualdade cultural […]” (BOURDIEU; PASSERON, 2014b, p. 101). Essa pedagogia seria fundada numa sociologia das desigualdades culturais. Na proposição de novas leituras da obra, e por ocasião do cinquentenário da publicação original (1964 e 2014), procurei indicar as reflexões que auxiliariam no conhecimento das relações com o trabalho escolar, mantidas por alunos e docentes, nos diversos níveis de ensino e de camadas sociais que permitiriam, assim, a elaboração de novas modalidades de práticas mais férteis (CATANI, 2015). Na leitura tive a atenção desperta para as palavras do autor sobre o desprestígio, evidente no ensino superior, a que se arriscavam aqueles que tentassem ensinar o “como fazer” da vida escolar: técnicas de estudo, organização do tempo, disciplina do trabalho intelectual, trabalhos em grupo, por exemplo. Parece-me certo que o domínio dessas relações com a cultura escolar deva incluir, de acordo com cada nível, a compreensão dos significados e do poder de cada um dos aprendizados e atividades. E que essa última possibilidade também seja passível de uma aquisição dialogada no ensino das várias disciplinas.

O texto “A ideologia das aptidões naturais” de Nöelle Bisseret, (1979) veio fortalecer os entendimentos potencializados com A reprodução (BOURDIEU; PASSERON, 2014a). Em perspectiva histórica, examina-se a presença, os usos e as configurações da noção de aptidão natural na sociedade pela igreja, pelo direito e pela psicologia, fornecendo elementos importantes para se entender, inclusive, as derivações dos saberes da psicologia para a educação. Líamos, nesses anos, os livros de Maria Helena Patto e de Luiz Antonio Cunha que já operavam apropriações fecundas do pensamento de Bourdieu e construíam interpretações importantes para o entendimento do sistema educacional brasileiro, de um ponto de vista que considerava as dimensões sócio-históricas e o problema das desigualdades e seu agravamento pela ação da escola. As explicações vão se agregando e auxiliam no modo de observar os documentos que testemunham a organização do campo educacional, a vida nas escolas e os fazeres pedagógicos no primeiro período republicano. E foram fundamentais para os questionamentos acerca da educação e suas relações com as ciências humanas, em especial a psicologia.

A segunda metade dos anos 1980 foi o tempo de elaboração de uma tese de doutorado que, como a maioria das teses desenvolvidas na área das ciências humanas, teve um início tão ambicioso quanto irrealizável. Tratava-se de empreender uma análise de caráter histórico das proposições/prescrições destinadas a ensinar os professores a ensinar, em livros, periódicos educacionais, legislações e outros materiais. Era de uma amplitude imensa. Moderados os ímpetos e na busca de delimitações para entender como as produções de ensino aplicavam esquemas dedutivos de transposição dos saberes para a formulação de recomendações sobre como os professores deveriam agir e a que tipo de expectativa isso atendia, fiz um longo trajeto. Trajeto este em direção à análise do trabalho docente (saberes e práticas) no primeiro período republicano entre nós e a configuração da profissionalização dessa categoria de agentes (CATANI, 1989). E foi com esse estudo que compreendi e descrevi os processos da organização incipiente do que poderia ser chamado campo educacional7. A delimitação das questões da tese foi impulsionada por uma pergunta simples na maneira como a formulei, mas que ganhou maior envergadura pelo que permitiu desvelar a propósito da organização do espaço profissional dos educadores. Na primeira fase republicana, quando se sucediam as reformas, a organização das escolas e das instâncias burocráticas para sua manutenção, como ações decorrentes das decisões de educadores próximos do poder estatal, o que faziam os professores comuns em suas escolas? A história da educação vinha se concentrando no exame desses “grandes eventos e seus promotores”. Faltava perguntar: o que faziam, diziam e podiam os professores em suas escolas e no espaço público? A isso a tese tentou responder.

Leituras ampliadas para além d’A reprodução (BOURDIEU; PASSERON, 2014a) foram decisivas para a circunscrição do núcleo da tese. Por exemplo, vem de Questões de sociologia (publicado originalmente em 1980 e aqui em 1983) o entendimento do quanto o conceito de “campo” poderia ganhar um papel operativo para entender as dimensões sócio-históricas da organização do espaço profissional dos educadores. Em Questões de sociologia, o pequeno texto “Algumas propriedades dos campos” fortaleceu a perspectiva a partir da qual se poderia interpretar a história da educação brasileira apreendendo as múltiplas dimensões do sistema escolar, os seus agentes, o trabalho docente e as relações entre os professores e o Estado, além do espaço específico da produção e circulação de conhecimentos, dentre eles os que esses profissionais elaboravam e divulgavam em sua jovem imprensa constituída por revistas e outros impressos. A perspectiva permitia a consideração simultânea das várias instâncias e marcava o espaço pelas disputas que, desde os primórdios, eram evidentes e implicavam lutas por lugares, posições e direitos e os capitais específicos cuja posse autorizaria a elaboração e a imposição de rumos para a educação. Muitos outros textos do sociólogo foram importantes nessa direção, tanto os que se referiam ao campo científico quanto ao artístico/literário, para além do que chamou de campo escolar.

A coletânea de P. Bourdieu, organizada por Sergio Miceli e em grande parte responsável pela difusão inicial do seu pensamento no Brasil, A economia das trocas simbólicas (2005a) concorreu para as escolhas e interpretações que fui construindo. No texto sobre a excelência e os valores do sistema de ensino francês, encontrei formulações que me ajudaram a refletir mais sobre os modos de organização das práticas do ensino que desenvolvia. Encontram-se ali elementos para compreender a construção das categorias e juízos das avaliações escolares, do ponto de vista dos professores, como seu exercício de um pequeno poder cujos fundamentos nem sempre são conscientes e, do ponto de vista dos alunos, na maioria das vezes, funciona como proclamação de um destino. Quando sublinha: “[…] como toda percepção social, os juízos que os professores fazem a respeito dos alunos, mormente em situações de exame, levam em conta não apenas o saber e o saber-fazer, mas também as nuances imponderáveis das maneiras e do estilo […]” refere-se aos princípios inconscientes da definição social da excelência escolar (BOURDIEU, 2005a, p. 232, grifos do original). A questão retornaria em muitas outras análises e ganharia uma explicitação ainda maior em “As categorias do juízo professoral” (BOURDIEU; SAINT-MARTIN, 1998), originalmente editado na França em 1975. Progressivamente firmou-se a hipótese de investigação das transformações vividas pela categoria docente a partir da segunda metade do século XIX, como articuladoras do reconhecimento social do seu papel. Formação institucionalizada, produção de conhecimentos especializados e tentativas de agregação da categoria em associações marcaram esse momento e caracterizaram o primeiro período republicano. Era preciso contrariar as próprias características das obras histórico educacionais que, em boa parte, ainda reiteravam as interpretações tradicionais com sua atenção a grandes ideias, nomes e reformas, e entendiam ser necessário pensar sempre a partir dos marcos da história política o espaço da educação, além de privilegiarem fontes também tradicionais, como a legislação, os discursos oficiais e assemelhados. Nesse sentido, a década de 1990 conheceria entre nós significativas transformações na produção da história da educação: a proliferação dos estudos marcou-se pela intensificação do recurso a fontes antes pouco utilizadas, pelas novas questões endereçadas aos materiais já valorizados e por uma consideração da autonomia relativa do campo educacional, o que propiciou a adoção de novas periodizações.

História e sociologia na compreensão da educação

Os estudos de história da educação brasileira, tal como vim a desenvolver, enraízam-se fortemente em condicionantes institucionais, se assim posso dizer. Ao interesse pela história junta-se outro fator: o das possibilidades abertas pela estrutura do curso de pós-graduação na Faculdade de Educação da USP (Feusp)8. Além disso, o fato de lecionar a partir de 1978 a disciplina Didática (que supostamente e para alguns teria como finalidade “ensinar a ensinar”, tarefa que já considerava, por razões teóricas e práticas, como destinada ao impossível) favoreceu meu interesse por compreender suas limitações. A afirmação da recusa ao que era corrente no ensino dessa disciplina e na sua produção de conhecimentos, sempre às voltas com um ímpeto prescritivo forte, foi lenta, tanto por uma juventude que não autorizava muitas dissensões quanto pela minha dificuldade de conceber alternativas sustentáveis, naquele momento. O percurso ganhou uma direção fecunda quando foi possível desdobrar e explicitar elos entre a história da profissão docente, as representações oficiais e da própria categoria acerca da formação e do trabalho, as experiências vividas e as condições sociais dos sujeitos que, como eu e os alunos dos cursos de pedagogia e licenciatura, por suas origens socioeconômicas, são levados a optar por carreiras do magistério, as menos concorridas e legítimas, de acesso mais fácil nos vestibulares e muitas vezes com duração abreviada, como sabemos. Sem alongar-me sobre isso, vale dizer que a compreensão das condições sociais dos integrantes do magistério e dos modos de funcionamento dos seus espaços de atuação conduziram-me à busca de novos elementos – na sociologia, na literatura ficcional e memorialística, nas pesquisas em colaboração e na investigação das próprias práticas – para propor alternativas de formação e de entendimento que superassem os limites de uma didática, como disciplina, ensinada aos alunos com caráter instrumental.

Noutra perspectiva, os conceitos de campo, habitus e capital permitiram ver muito além da primeira tentativa que fiz de recurso à obra de Bourdieu quando do doutorado e na análise da estruturação do espaço profissional da educação. Particularmente, o entendimento das relações entre habitus e campo foi aprofundada na atenção a “Le mort saisit le vif: as relações entre a história reificada e a história incorporada” em O poder simbólico (1989). As explicitações aí contidas auxiliaram o fortalecimento do estudo histórico do campo na direção por ele proposta justamente para superar dicotomias entre o acontecimento e a longa duração “[…] os ‘grandes homens’ e as forças coletivas, as vontades singulares e os determinismos estruturais […]” (BOURDIEU, 1989, p. 82) que se baseiam na distinção entre o individual e o social, entendido como coletivo. Mas,

[…] basta observar que toda ação histórica põe em presença dois estados da história (ou do social): a história em seu estado objetivado, quer dizer a história que se acumulou ao longo do tempo nas coisas, máquinas, edifícios, monumentos, livros, teorias, costumes etc. e a história no seu estado incorporado, que se tornou habitus. (BOURDIEU, 1989, p. 82, grifo do original).

O maior entendimento do alcance dos conceitos foi se configurando conforme procurava, nos debates que problematizavam as relações entre a sociologia e a história, “autorizações” para o uso da obra de Bourdieu numa análise sócio-histórica educacional. Não foram poucas as resistências com que me defrontei. Algumas mais explícitas, outras menos, e algumas fundadas em incompreensões que se apoiavam na defesa de fronteiras disciplinares. Ao adentrarem diversos níveis da atuação dos professores na sociedade, na produção de saberes, nas formas de relação com o Estado e na organização da categoria profissional, as pesquisas me conduziram a outros trabalhos do sociólogo.

Mais tarde, nos anos 2000, ao elaborar um texto intitulado Bourdieu e a história (da educação) (CATANI, 2008), tentei dar conta das questões indicadas acima e que se ligavam à apropriação que vinha fazendo da obra na tentativa de “pensar com o autor”. Muito do que formulei no texto se alicerçou na pesquisa sobre o movimento dos professores e a organização de seu espaço profissional com operações em que o conceito de campo como espaço de lutas em torno de capitais específicos foi fundamental. Para tanto, a investigação histórica educacional exigiu que se considerasse simultaneamente “[…] as práticas dos agentes, das instâncias de produção e circulação dos conhecimentos especializados, a dimensão institucional, os habitus dos agentes, as relações deste espaço com o campo do poder e das posições e tomadas de posições dos que habitam o campo” (BOURDIEU, 1989, p. 334).

Ao refletir sobre o recurso feito à obra do sociólogo na construção da história da educação, procurei entender em Durkheim, por exemplo, a sustentação do caráter estreito das relações entre as duas áreas. Com base em Durkheim, Bourdieu (1992, p. 67) afirma: “toda sociologia deve ser histórica e toda história deve ser sociológica”. E para as características do trabalho de historicização unificado das duas disciplinas, há várias explicitações nas produções de Bourdieu quando sugere para a análise histórica dos campos justamente essa necessidade de historicização dos agentes, dos mundos sociais, do sujeito cognoscente e de seus instrumentos de conhecimento.

Encontramos nas palavras de Roger Chartier – como historiador – das quais me vali para a reflexão acima mencionada, a abertura autorizada que aponta para além da mera reprodução dos esquemas de pesquisa do sociólogo. Diz ele:

[…] devemos ler Bourdieu e podemos comentar Bourdieu e explicar a dificuldade de seu estilo de conceitualização. Mas o mais importante é trabalhar com Bourdieu, quer dizer é utilizá-lo para temas que não pode abordar, para períodos que não foram historicamente os mais importantes para ele. Trabalhar com seus conceitos, mas ir além, trabalhar com suas perspectivas, com a ideia de um pensamento relacional e a repulsa à projeção universal de categorias historicamente definidas. (CHARTIER apudCATANI, 2008, p. 333).

É bem conhecida entre os historiadores da educação a análise da produção divulgada pelo Grupo de Trabalho (História da Educação) da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped) entre 1985 e 2000 que exemplifica o trânsito do pensador nessa área (CATANI; FARIA FILHO, 2002). Chama a atenção o fato de Bourdieu ter sido a referência mais citada nesse grupo no período estudado e associado às peculiaridades das escolhas de teorias e métodos no âmbito dos estudos educacionais. Nesse caso, procurou-se dar conta da constituição dos modos de pesquisa na área e de suas especificidades, dentre elas as associadas às posições ocupadas pelos agentes no espaço científico, as lutas travadas em torno de capitais específicos e as operações de leitura e de escrita que se consagram no espaço da produção. Esse território se autonomizou institucionalmente e mantém complexas relações com as diversas disciplinas da área de ciências humanas.

Ao conciliar assim o recurso à obra de Bourdieu à tentativa de construir uma interpretação ampliada dos processos histórico educacionais e da ação dos professores, não tinha ainda explicitado as relações que vieram a ser construídas nos anos 1990 e 2000. De outra parte, reconheço que meu trânsito pela cidade (nos anos 1970 e 1980), tomando as distâncias físicas entre a Cidade Universitária, minha casa na Zona Leste e os inúmeros locais de trabalho – principalmente com adultos em cursos supletivos, mas não apenas – em regiões diferentes de São Paulo me davam oportunidade para observações cotidianas bem férteis sobre as distâncias sociais. Estas também devem ter contribuído para me tornar mais arguta sobre posições e situações no espaço social. Certo está que as hipóteses mais férteis de compreensão da questão vieram das ponderações acerca dos espaços sociais, lugares e pontos de vista que a eles se articulam, nas análises contidas em A miséria do mundo (datado de 1993 e aqui editado em 1997), obra cuja recepção na França também foi controversa e a que me reportarei mais adiante.

A busca de entendimento acerca do que era produzido por e para professores, nesse momento, acentua o interesse pelas revistas pedagógicas e a imprensa educacional que já havia se configurado na tese de doutorado. O recurso aos escritos de Bourdieu se diversifica na direção da questão da leitura e de suas apropriações. Assim é que se dá também a aproximação com as obras de R. Chartier e M. de Certeau. Penso que a produção desses autores teve também um papel estruturante para o meu pensamento. No mesmo quadro, o contato com as investigações de António Nóvoa reforçou os caminhos que uniam a sociologia e a história quando seus estudos analisavam a história da profissão docente em Portugal e a imprensa periódica educacional (em especial NÓVOA, 1987, 1993).

Coisas ditas (originalmente publicado em 1987 e no Brasil em 1990), neste último, em especial Leitura, leitores, letrados, literatura e a reunião dos artigos em A economia das trocas linguísticas: o que falar quer dizer (BOURDIEU, 1996a) propiciaram uma reflexão detida sobre leituras legítimas e leituras autorizadas nos diversos campos. Permitindo ao mesmo tempo maior inteligibilidade dos processos de escrita dos livros escolares (manuais) em que se consubstanciam o que se considera essencial das disciplinas científicas e da literatura, por exemplo, bem como dos processos de escolha desses conteúdos com suas múltiplas implicações. Mas, não se tratou apenas desses aspectos e sim de um maior alcance das formas pelas quais os saberes ensinados aos docentes se configuram no espaço das lutas disciplinares em educação. Isso potencializou o entendimento das leituras associadas ao exercício profissional e a crítica da produção pedagógica.

Entre os anos 1990 e a primeira década do século XXI, creio ter desenvolvido maior argúcia na percepção do quanto a obra de Bourdieu nos auxiliaria, principalmente a partir do ensino na pós-graduação e na orientação de teses e dissertações nucleadas na história da educação e na formação de professores. Conforme assinalei, houve momentos em que o principal interesse se voltou para a leitura de docentes (imprensa educacional e livros de formação/manuais pedagógicos). Nessas condições interessava compreender os modos pelos quais um grupo profissional (mal situado na hierarquia das profissões que partilham o mundo intelectual) produzia e se apropriava de saberes vinculados a sua ação. Aliava-se a isso uma atenção para com os sentidos que os próprios agentes do campo atribuíam ao trabalho e aos discursos que elaboravam para sustentar tal atribuição. O entendimento das posições e tomadas de posições do grupo no tangente às políticas educacionais e os lugares ocupados pelos agentes escolares na produção de tais diretrizes igualmente foi acrescido. Difícil dizer, com exatidão, da maior relevância de uma ou de outra leitura do autor nesse momento. A progressão das leituras permitia tornar mais precisas minhas próprias questões. As apropriações que me foram possíveis com leituras como a de Razões práticas: sobre a teoria da ação (publicado originalmente em 1994 e no Brasil em 1996b), em que a questão do Estado e das instâncias burocráticas ganha explicitações capazes de mostrar os papéis que a escola pode desempenhar em nome do Estado, bem como se exerce a ação unificadora deste na questão da cultura. Nessa obra, lê-se:

Ao impor e inculcar universalmente (nos limites de seu âmbito) uma cultura dominante assim constituída em cultura nacional legítima, o sistema escolar particularmente através do ensino da história e da literatura, inculca os fundamentos de uma verdadeira “religião cívica” e mais precisamente os pressupostos fundamentais da imagem (nacional) de si […]. (BOURDIEU, 1996b, p. 106, grifo do original).

Em A reprodução (BOURDIEU; PASSERON, 2014a), ele já chamava a atenção para a necessidade de bem estabelecer a história da educação e indicava ser preciso explicitar os valores implícitos dos manuais de história por meio de uma história do manual (BOURDIEU, 1996b). Exemplifica, no caso, a atenção requerida para a história da cultura escolar e seus artefatos e ideologias. E agora, diante das observações sobre os processos de inculcação do que chama de “cultura nacional legítima” e de uma “religião cívica”, vale indagar se e como isso se expressaria hoje na escola brasileira.

Uma experiência na metade da década de 1980 me predispôs a uma atenção forte para com o livro A miséria do mundo, em que Bourdieu e colaboradores entrevistam diversas pessoas que testemunham com suas histórias o que se considerou “o sofrimento social moderno”. Encontramos aí um exemplo de pesquisa/interpretação extremamente cuidadosa e fértil para apurar a percepção de problemas metodológicos relativos às entrevistas e à escrita de sua análise. A experiência a que me referi consistiu na atuação num Programa de Cooperação Técnica desenvolvido pela Feusp e pela Secretaria de Educação do Estado de São Paulo em escolas da periferia da Zona Sul da cidade, consideradas “difíceis” na época. Penso que essa experiência teve um papel decisivo para muitas dimensões do meu trabalho de pesquisa, de ensino e de intervenção, e da mesma forma moldou a apropriação que vim a fazer d’Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo científico (originalmente publicado em 1997 e traduzido, por mim, no Brasil em 2004). O livro resultou de conferência realizada para um grupo de profissionais do Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica e tratou, entre mais, da mobilização do conhecimento e da constituição de um coletivo de reflexão que propiciasse uma espécie de autoanálise também coletiva, no interior da instituição. As condições de vida e de trabalho são muito diversas, porém a natureza do que poderia ser analisado e compreendido sobre os sentidos da ação e o alcance da mobilização de conhecimentos permitia construir convergências férteis. Creio que mesmo naquele momento, e bem antes da leitura d’Os usos…, trabalhávamos na direção apontada por ele. Atuei numa das escolas situada a 25 quilômetros da Cidade Universitária, no decorrer de 1985. Em situações de observação das atividades pedagógicas, na possiblidade de estabelecer longas trocas com os agentes da escola, tínhamos entre os objetivos do programa propiciar a elaboração coletiva de diagnósticos das dificuldades enfrentadas no cotidiano e assessoria para criação de projetos da instituição para o que se pretendia transformar. A concepção do programa e a perspectiva do trabalho coletivo em que se pretendia que nossa atuação fosse deixando de se fazer necessária previa a remuneração dos agentes pelo tempo dedicado aos diagnósticos e elaboração dos projetos de intervenção. Esse último fator pesava decididamente sobre os investimentos feitos. Meus colegas, os alunos da faculdade e eu nos confrontamos com problemas que não eram propriamente novos, mas que nos obrigaram a buscar novos entendimentos pelo que carregavam das injunções do sistema público de ensino, das particularidades da proximidade social de alunos e professores (proximidade esta fortemente negada por estes últimos e que parecia impregnar a maior parte das relações e práticas da vida escolar cotidiana) e da precariedade observável em várias dimensões. Nossa compreensão se fortaleceria pela ideia de Bourdieu segundo a qual:

[…] o mais pessoal é o mais impessoal (e) que vários dos dramas mais íntimos, dos mal estares mais profundos, dos sofrimentos mais singulares que os homens e as mulheres podem experimentar encontram seus princípios nas contradições objetivas, inscritas nas estruturas, do mercado de trabalho ou de habitação, do sistema escolar […]. (BOURDIEU, 1992, p. 173).

Compreender a existência das pessoas a partir dos seus pontos de vista, construídos como perspectivas situadas no entrecruzamento de espaços físicos e sociais, implicava entender o porquê daqueles problemas naquele lugar (assim como nos eram mostrados e tal como os percebíamos). Isso exigia que atentássemos para os lugares e pontos de vista das pessoas da escola e para os nossos em confronto. Implicava reconhecer os modos de funcionamento dos sistemas escolares e suas lógicas em ação. Foi o que tentamos fazer e iríamos mais tarde entender, tanto em nossas motivações quanto nas implicações teóricas do modo de trabalho. Prosseguir e invocar o quanto aprendemos de leituras posteriores aos momentos em que enfrentamos as dificuldades reforçaria a tentativa de tornar mais completo o itinerário. Afirmaria ainda mais a força potencial encontrada na obra de Bourdieu. Faria também desmoronar, mais uma vez, as temporalidades estabelecidas nas marcações do texto, exigindo, talvez, um talento para a escrita, semelhante ao dos literatos, para quem tempo, espaço e lugar rompem-se constantemente para instaurar novas realidades e modos de compreensão. Haveria tanto por dizer!

Agradecimentos

1- Agradeço muito a Patrícia Aparecida do Amparo pelas leituras e providências.

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1- Agradeço muito a Patrícia Aparecida do Amparo pelas leituras e providências.

3- Trecho retirado da obra Bourdieu, savant & politique, de Jacques Bouveresse (2003, p. 165).

4- Depoimento de Ph. Fritsch registrado por Marie-Anne Lescourret (2008, p, p. 167) em Bourdieu: vers une économie du Bonheur.

5- Usei aqui as edições disponíveis no momento da pandemia. Faço em todos os casos referências às datas das publicações originais das obras.

6- Gostaria de sublinhar a ideia da literatura como forma de conhecimento do social, que muitas vezes também se fez presente nas minhas escolhas de indicações bibliográficas para a formação de professores. O impulso para essa escolha vinha dos anos 1970 nas aulas de Filosofia da Educação com o professor João Eduardo Rodrigues Villalobos – o mestre a quem Marilena Chaui liga seu interesse inicial e escolha pela filosofia, tal como se pode ler em seu depoimento a Cordeiro e Furtado (2019). Em suas aulas conduziu-nos pelas leituras de clássicos da área, mas igualmente tentou nos familiarizar com a estruturação das reflexões filosóficas a partir da literatura, valendo-se da leitura de Herman Melville, tanto quanto de Hermann Hesse, entre outros. Sem desconhecer as polêmicas acerca dessa escolha, cheguei a compreendê-las mais tarde e de maneira mais significativa mediante outros textos, como os escritos de Jacques Bouveresse (2008), por exemplo, em La connaissance de l’écrivain: sur la littérature, la vérité et la vie. Vale a pena lembrar que ponderações bastante elucidativas acerca das possibilidades de aproximações entre a sociologia e a literatura podem ser lidas em Réponses (1992). Na oportunidade, Bourdieu discorre a respeito do que a literatura pode oferecer às ciências humanas e, em especial, aos sociólogos quanto às pesquisas que são censuradas ou interditadas pelos padrões científicos de sua área e encontram-se desenvolvidas pelas obras literárias. Discorre também sobre a questão dos estilos de escrita (tal como Flaubert a enfrentou) e suas relações com as tentativas de preservar a fidelidade às temporalidades das experiências vividas e as lógicas do discurso científico legítimo. Nesse sentido, chama a atenção para a maneira pela qual a literatura oferece questões para a sociologia, especialmente no que se liga à teoria do relato.

7- Ao longo dos trabalhos que realizei, preferi manter a expressão campo educacional porque considero que em português a palavra escolar remete de modo mais restrito às instituições e aos processos que nela se desenvolvem. Considero que ao falar em campo educacional preserva-se em nossa língua um sentido mais amplo capaz de abrigar melhor as características desse espaço.

8- A organização do mestrado e doutorado na Feusp, a partir dos anos 1970, abrigava três áreas de concentração: história e filosofia da educação, didática e economia e administração escolar. A concepção dominante sobre essa divisão, as articulações e o trânsito das questões disciplinares e opções teóricas entre as três áreas foi fundamental para valorizar e impulsionar estudos de caráter sócio-histórico e investigações preocupadas com a educação em suas diversas dimensões. A organização adquiriu novas configurações no decorrer dos anos 2000.

Recebido: 30 de Julho de 2021; Aceito: 21 de Fevereiro de 2022

Denice Barbara Catani é professora titular aposentada – professora sênior da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp). Exerceu os cargos de chefia do Departamento de Metodologia de Ensino e Educação Comparada e coordenação do Programa de Pós-Graduação em Educação.

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