SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.48O bullying escolar na legislação brasileira: uma análise documentalEfeitos da judicialização da educação infantil evidenciados na produção acadêmica brasileira (2009-2019) índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 09-Nov-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248252932por 

SEÇÃO TEMÁTICA: Justiça e Educação: um debate necessário

Alguns aspectos da relação entre escola e direitos humanos na França no século XVIII

Some aspects of the relationship between school and human rights in France in the 18th century

Rodison Roberto Santos1 
http://orcid.org/0000-0002-0050-5397

1- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Contato: rodisonster@gmail.com


Resumo

Discutimos, neste artigo, alguns aspectos relacionados à intersecção entre o conhecimento, os direitos humanos e as considerações sobre a escola pública durante o século XVIII. Para esta discussão, tomamos como base alguns textos dos filósofos Rousseau e Condorcet. Conforme a perspectiva de uma leitura desses textos, a concepção de conhecimento, enquanto processo de busca e de investigação da verdade, influenciou a percepção da necessidade de uma escola pública ou, pelo menos, de uma escola subvencionada pelo Estado que instruísse o maior número possível de pessoas dentro de um país. Dessa forma, a discussão sobre o estatuto do conhecimento e a intermediação em relação à sua construção e transmissão deveria ser operada também com muita potência pela escola, segundo os filósofos mencionados. A principal instituição que proporcionaria que isso ocorresse seria uma escola incentivada, amparada e subvencionada pelo Estado, ou mesmo uma escola efetivamente pública. No período em destaque, relacionar o conhecimento e sua transmissão mais fortemente a uma escola pública proporcionou também o aprofundamento do debate sobre a necessidade de uma proclamação dos direitos naturais, civis e políticos do homem, aos quais se deu o nome de direitos humanos. Um dos pontos fortes dessa intersecção se dá na seguinte consideração: para que os direitos pudessem ser respeitados e garantidos, deveriam ser, antes de tudo, conhecidos, e ampliar esse conhecimento é uma tarefa da escola.

Palavras-Chave: Direitos humanos; Escola justa; Escola pública; Iluminismo; Revolução Francesa

Abstract

In this article, we discuss some aspects related to the intersection between knowledge, human rights and considerations about the public school during the 18th century. For this discussion, we base ourselves on some texts by the philosophers Rousseau and Condorcet. According to the perspective of a reading of these texts, the conception of knowledge, as a process of search and investigation of the truth, influenced the perception of the need for a public school or, at least, a school, subsidized by the State, that would instruct as many people as possible within a country. In this way, the discussion about the statute of knowledge and the intermediation in relation to its construction and transmission should also be operated with great power by the school, according to the philosophers mentioned above. The main institution that would make this happen would be a school encouraged, supported and subsidized by the State, or even an effectively public school. In the highlighted period, relating knowledge and its transmission more strongly to a public school also provided the deepening of the debate on the need for a proclamation of the natural, civil and political rights of man, to which the group was given the name of human rights humans. One of the strengths of this intersection is given in the following consideration: so that rights could be respected and guaranteed, they should be, above all, known and expanding this knowledge is a task of the school.

Key words: Human Rights; Rightful School; Public School; Enlightenment; French Revolution

Introdução

Vários filósofos iluministas do século XVIII fizeram um grande esforço para refletir rigorosamente sobre questões relacionadas ao conhecimento, sua transmissão sistemática e os direitos naturais, civis e políticos dos homens, e para escrever sobre esses assuntos. Dentre esses filósofos, destacamos Rousseau e Condorcet. As discussões sobre cada um desses assuntos, feita particularmente por esses pensadores, já envolviam dificuldades exaustivas para cada um e provocavam soluções teóricas e práticas das mais diversas espécies. Consequentemente, essas dificuldades se ampliavam quando os filósofos procuravam interrelacionar todos esses temas. Para uma elucidação sobre o trabalho dos filósofos iluministas nesse sentido, passemos a palavra a Carlota Boto (2017, p. 180):

Quem eram os iluministas? Os porta-vozes das Luzes eram, sem dúvida, intelectuais. Eram pessoas dedicadas ao cultivo das ciências e das letras no século XVIII: escritores, filósofos, estudiosos dos vários campos do saber; enfim, todos os que se devotassem às “atividades do espírito” e se propusessem a redigir sobre os temas das ciências da natureza e das ciências humanas. Tinham relações com as esferas de poder, e muitas vezes com o Estado – embora não se pretendessem confundir com um ou com outro. A relação entre esses homens ligados à filosofia, à ciência e às artes produzia uma sociabilidade inédita; traduzida pelo cultivo de um ambiente cultural, a um só tempo, humanista, artístico e científico. A cultura letrada, pouco a pouco, era estendida. Seus significados passavam, progressivamente, a pertencer a mais gente. O domínio desse repertório das letras produzia efeitos de notoriedade e distinção.

A influência das reflexões filosóficas sobre o pensamento do homem em relação a si mesmo passava além de questões imediatas e temporais, e implicava em uma nova construção de sociedade que envolvia também que antigos conceitos fossem analisados naquele momento de maneira inusitada. Um dos principais objetivos dos filósofos era ensinar aos homens ou, pelo menos, elaborar uma teoria que fizesse com que os homens procurassem, por si mesmos, construir uma nova concepção do mundo ao refletir sobre as argumentações que os filósofos empregavam. Maria das Graças de Souza expressou com as seguintes palavras sua análise sobre os iluministas:

[...] o pensamento dos filósofos iluministas do XVIII francês sobre a história e a sociedade, na medida em que expressava uma aspiração de mudança social e política, e enquanto estas mudanças não estavam efetivamente sendo realizadas, encerrava, como ideias, possibilidades históricas que depois foram estreitadas e alteradas pela “força das coisas”. (SOUZA, 2001, p. 21).

Um dos trabalhos mais relevantes dos filósofos consistia em proporcionar elementos fundamentais para que os seres de razão buscassem o exercício do raciocínio para a construção da sociedade em termos de direitos e deveres. Isso quer dizer que, ao mesmo tempo que procuravam fortalecer os benéficos legados, adquiridos pelos rigorosos esforços dos antepassados, também se propunham a modificar aquilo que consideravam nocivo para a sociedade e a política. Sobre isso, nos esclarece Ernst Cassirer em A filosofia do Iluminismo:

A filosofia do Iluminismo fez sua reivindicação. Ela luta em todos os domínios contra o poder do costume, da tradição e da autoridade. Contudo, não crê estar desempenhando assim uma tarefa puramente negativa e dissolvente. Pelo contrário, quer varrer o entulho do passado para desembaraçar e instaurar as fundações definitivas do seu edifício. Essas mesmas fundações são imutáveis e inabaláveis, tão antigas quanto a própria humanidade. Por conseguinte, a filosofia do Iluminismo não considera a sua obra um ato de destruição mas um ato de restauração. Até em suas mais audaciosas revoluções, ela quer ser apenas uma restituição: uma [restituição integral] pela qual a razão e a humanidade devem ser restauradas em seus antigos direitos. (CASSIRER, 1994, p. 315-316).

Cassirer analisa o sentido de razão no século XVIII dizendo que ela foi empregada de uma forma mais extensa do que nas acepções anteriores a esse tempo, tanto do ponto de vista da filosofia quanto da história. De uma certa maneira, o autor aproxima o significado da razão à noção de força, ou seja, aquela aparece como um motor do pensamento geral do século, movendo as considerações sobre as coisas. Em outras palavras, a razão é tomada em sua definição mais propriamente como fundamento e impulsão das ideias, das mentalidades e do esforço de esclarecimento das pessoas de destaque intelectual, como o próprio autor diz, “[...] a ‘razão’ é o ponto de encontro e o centro de expansão do século, a expressão de todos os seus desejos, de todos os seus esforços, de seu querer e de suas realizações [...]” (CASSIRER, 1994, p. 22). A razão é o que provoca o início das inquirições da época e não apresenta respostas absolutas, porém, no seu trabalho, apresenta muito mais questões novas. Isso funciona como um crédito à uniformidade e à constância da razão, no sentido de ela ser “[...] una e idêntica para todo o indivíduo pensante, para toda a nação, toda época, toda a cultura [...]” (CASSIRER, 1994, p. 23).

Ainda podemos solicitar o auxílio de Tzvetan Todorov para nos dizer como, no Iluminismo, a ênfase dada pelos filósofos se encontra nos debates sobre vários assuntos, e estes talvez sejam também incentivados como uma forma de promover o exercício da razão. Ainda que muitos debates tenham sido exarcerbados e envolveram pormenores da ordem dos sentimentos em geral, e nem sempre os mais nobres, uma das premissas mais fortes e mais usadas no período é que qualquer tese ou refutação de uma tese deve ser acompanhada de uma argumentação com base em fundamentos teóricos ou advindos da análise, e que essa fundamentação apresentasse princípios racionais aceitáveis. Todorov diz que:

Aquilo que designamos como “as Luzes” não é uma doutrina racional e coerente, na qual as consequências decorrem rigorosamente de princípios aceitos por todos; corresponde mais a um vasto debate em que se elaboram proposições contraditórias ou complementares, herdadas do passado ou recém-formuladas – debate que, por toda parte, aproveita a circulação acelerada das ideias, tanto entre indivíduos quanto entre países. Voltaire ataca Rousseau, que critica Diderot – os três, no entanto, participam do pensamento iluminista. (TODOROV, 2012, p. 35-36).

Conhecimento e razão

Grande parte desses filósofos iluministas do século XVIII considerava a razão uma das faculdades humanas que melhor caracteriza a espécie. Segundo Rousseau, a razão permite ao homem a perfectibilidade, ou seja, a capacidade de aperfeiçoar-se permanentemente. O desenvolvimento do homem dos pontos de vista racional, social, histórico e científico é tributário da sua capacidade de aperfeiçoamento constante. Ainda conforme o filósofo, embora a perfectibilidade permita ao ser humano aperfeiçoar-se, essa capacidade só é exercida porque há uma possibilidade de transformação constante. Esse estado de constante mudança pode dar ensejo à degeneração ao invés do aperfeiçoamento.

Mas, ainda quando as dificuldades que cercam todas estas questões deixassem por um instante de causar discussão sobre a diferença entre o homem e o animal, há uma outra qualidade muito específica que os distingue e a respeito da qual não pode haver contestação – é a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo; o animal, pelo contrário, ao fim de alguns meses, é o que será por toda a vida, e sua espécie, no fim de milhares de anos, o que era no primeiro ano desses milhares. Por que só o homem é suscetível de tornar-se imbecil? Não é porque retorna, assim, ao seu estado primitivo e enquanto besta, que nada adquiriu e também nada tem de bom a perder, fica sempre com seu instinto, o homem, tornando a perder, pela velhice ou por outros acidentes, tudo o que sua perfectibilidade lhe fizera adquirir, volta a cair, desse modo, mais baixo do que a própria besta? (ROUSSEAU, 1973, p. 249).

Conforme os escritos de Rousseau, a perfectibilidade pressupõe a existência da liberdade e da capacidade de pensar, atributos humanos por excelência. Isso indica que a perfectibilidade não necessariamente provoca um aperfeiçoamento. A perfectibilidade é sempre uma capacidade de aperfeiçoamento, porém no processo de mudanças podem ocorrer enganos e desvios, que lamentavelmente ocorrem com certa frequência. E Rousseau alertou para esses processos que geram desvios, pois eles vão moldando e impregnando o modo de ser dos homens. Por tudo isso, a perfectibilidade, juntamente com a razão, são dois elementos que se interpõem na diferença entre homens e animais e, por conseguinte, localizam-se na intersecção entre o que é natural e o que é social entre os homens, perpassando essas duas dimensões do estatuto de humanidade. Jean Starobinski, no livro A transparência e o obstáculo, escreveu que, para Rousseau, o grande desafio é voltar a juntar essas duas perspectivas do humano: “[...] a reconciliação da natureza e da cultura em uma sociedade que redescobre a natureza e supera as injustiças da civilização [...]” (STAROBINSKI, 1991, p. 42).

Rousseau apresenta a palavra perfectibilidade no Discurso sobre as origens e os fundamentos da desigualdade entre os homens de uma maneira inusitada. Primeiro, há a definição do conceito, depois há uma comparação entre homens e animais para mostrar que somente aqueles têm a capacidade de pensar de maneira reflexiva e analítica e que permite construir conceitos, ou seja, com uma diferença de maior grau de complexidade somente encontrada na espécie humana. O filósofo apresenta desvantagens da capacidade de aperfeiçoamento antes mesmo de denominá-la de perfectibilidade. Em certo sentido, a perfectibilidade não aponta sempre necessariamente para a significação estrita da sua palavra de origem – perfeição. Não é algo estanque como a perfeição, porém, ao fazer parte de um movimento, agrega os perigos que a movimentação comporta, mesmo que perfazendo um caminho de busca de aperfeiçoamento. Rousseau define a perfectibilidade como “[...] a faculdade de aperfeiçoar-se, faculdade que, com o auxílio das circunstâncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre nós, tanto na espécie quanto no indivíduo” (ROUSSEAU, 1973, p. 249).

Condorcet, como os outros iluministas, diz que a faculdade da razão entre os homens permite a emergência da perfectibilidade entre os componentes da espécie. A razão e a capacidade de perfectibilidade possibilitam aos humanos se ocuparem também da procura da verdade. Para o filósofo, a palavra verdade, ao longo dos tempos, dá suporte a uma gama de significados dos quais alguns são contraditórios. Partindo da verdade de cada indivíduo, que pode diferir da verdade de outros, o filósofo procura depurar o conceito até aproximar-se de uma significação mais rigorosa e menos passível de controvérsias particulares. A verdade dos discursos é encontrada depois dos debates, qualificados por quem o protagoniza, com base em conhecimentos precisos e claros e pelos métodos mais rigorosos, que proporcionam o exame de um assunto e chegam a uma conclusão válida sobre o tema analisado. A verdade é sempre vista na perspectiva de um aprimoramento constante, uma vez que as conclusões são sempre passíveis de debates subsequentes.

As sensações são acompanhadas de prazer e de dor; da mesma forma, o homem tem a faculdade de transformar [...] impressões momentâneas em sentimentos duráveis, doces ou penosos; de experimentar esses sentimentos através da visão ou da recordação dos prazeres ou das dores dos outros seres sensíveis. Enfim, desta faculdade, unida àquela de formar e de combinar ideias, nascem, entre ele e seus semelhantes, relações de interesse e de dever, às quais a própria natureza liga a porção a mais importante, a mais preciosa de nossa felicidade e os mais dolorosos de nossos males. Se nos limitamos a observar, a conhecer os fatos gerais e as leis constantes que o desenvolvimento dessas faculdades apresenta, naquilo que há de comum aos diversos indivíduos da espécie humana, esta ciência tem o nome de metafísica. Mas se consideramos este mesmo desenvolvimento em seus resultados, relativamente aos indivíduos que existem na mesma época em um dado espaço, e se o seguimos de gerações em gerações, ele apresenta agora o quadro dos progressos do espírito humano. Este progresso está submetido às mesmas leis gerais que se observam no desenvolvimento individual de nossas faculdades, já que ele é o resultado deste desenvolvimento, considerado ao mesmo tempo em um grande número de indivíduos reunidos em sociedades. Mas o resultado que cada instante apresenta depende daquele que os instantes precedentes ofereciam; ele influi naquele dos instantes que devem segui-lo. (CONDORCET, 1993, p. 20).

A verdade está sempre no campo do provável ou de algo mais provável. Ela faz parte do jogo do cálculo matemático das probabilidades, teoria matemática desenvolvida por Condorcet e também aplicada aos sufrágios2. O caráter central da reflexão do filósofo é sua teoria da verdade. O comentador Pierre Crépel3 denomina sua teoria do conhecimento como racionalismo empirista, pelo fato de Condorcet se opor tanto ao relativismo quanto à ideia de uma verdade absoluta. Segundo sua teoria do conhecimento, mesmo diante da inevitabilidade do erro, as pessoas podem e devem buscar uma constante aproximação em direção a um determinado ponto mais correto e, para isso, é necessário buscar a ajuda do cálculo. Assim, segundo sua concepção de verdade, o que se denomina verdade só pode ser encontrado de forma aproximada no campo da probabilidade. Do mesmo modo que não é uma mera suposição, visto que é produto de uma busca rigorosa, a verdade não é absoluta, porque está sempre aberta a novas questões. A função do conhecimento determina uma concepção original da instrução pública, conforme o filósofo afirma no seu livro Cinco memórias sobre a instrução pública:

Todavia hoje, que se reconhece que somente a verdade pode ser a base da prosperidade durável e que as luzes, crescendo sem cessar, não permitem mais que o erro se vanglorie de ter um império eterno, o fim da educação não pode ser mais o de consagrar as opiniões estabelecidas, mas, ao contrário, o de submetê-lo ao exame livre de gerações sucessivas, cada vez mais esclarecidas. (CONDORCET, 2008, p. 46).

Segundo o filósofo, a verdade só é tangível por meio de uma busca constante, na qual os homens são guiados pelas luzes do conhecimento, e não por opiniões dogmáticas. Ademais, as gerações sucessivas dos homens, cada vez mais esclarecidos, aprimoram seus conhecimentos de forma rigorosa analisando as probabilidades que se manifestam. A verdade está em meio ao debate, advinda das reflexões de homens esclarecidos, ela não advém de algum poder político, eclesiástico, ou de qualquer outra origem. Nenhuma dessas autoridades externas torna imperioso obedecer-lhe, porém, é a força de sua clareza interna e argumentativa que convence que algum discurso está, pelo menos, nas suas proximidades. É dessa forma que a concepção de verdade de Condorcet norteia seu pensamento. Com efeito, sua busca pela verdade conduz à procura pelo equilíbrio de maneira constante e o leva, de igual forma, ao esforço por estabelecer uma harmonia entre a liberdade, a igualdade, a teoria, a prática, o conhecimento e sua transmissão. Essa procura pela verdade considera o método de investigação utilizado por cada um dos teóricos para facilitar a compreensão das suas próprias afirmações, dúvidas e indagações. Pondera-se que, levando em conta que a verdade é algo que deve ser buscado constantemente, sua investigação deve ser feita de maneira rigorosa.

Seria preciso mostrar aqui por quais degraus aquilo que hoje em dia nos pareceria uma esperança quimérica adquirirá sucessivamente possibilidade, até mesmo facilidade; por que, malgrado os sucessos passageiros dos [preconceitos] e o apoio que eles recebem da corrupção dos governos ou dos povos, apenas a verdade deve obter um triunfo durável; por quais elos a natureza uniu indissoluvelmente os progressos das luzes e aqueles da virtude, do respeito pelos direitos naturais e da felicidade, como estes bens reais, cujo desfrute imperfeito pode estar isolado ou por vezes até mesmo oposto, devem ao contrário tornar-se inseparáveis... (CONDORCET, 1993, p. 27).

Sobre os direitos do homem e do cidadão

Até a emergência do Iluminismo, os direitos dos homens eram tratados filosófica, jurídica e politicamente com base na distinção entre direitos naturais, direitos civis e direitos políticos. O que ocorreu durante o Iluminismo, em geral, foi que alguns filósofos, como Rousseau e Condorcet, defenderam que esses direitos deveriam ser garantidos a todos os que pertencem à espécie humana e, nesse sentido, parece que muitos iluministas escreviam para que os homens se tornassem ciosos das coisas concernentes aos limites das suas ações no intuito de preservar os direitos intrínsecos de todos. Em muitos casos, esses escritos eram dirigidos aos governantes, no sentido de instruí-los, fazê-los entender seus limites morais e legais, esclarecer o povo quanto aos deveres dos governantes para com os cidadãos e com intuito de recriminar a todos por quaisquer violações que venham a ocorrer nesse âmbito. Um outro objetivo era incentivar que cada indivíduo, entre o povo, adquirisse uma consciência melhor e estabelecesse argumentos cada vez mais razoáveis para a defesa de seus direitos. Isso quer dizer que o resultado desse esforço teria como objetivo, conforme os escritores, além de conscientizar governantes dos limites de suas ações de governo sobre os homens, esclarecer cada homem sobre a ideia de haver um dever correspondente para cada direito. Com efeito, essa é uma das maneiras de entendimento sobre a questão conforme a qual se garante às pessoas que usufruam de seu direito com a maior harmonia possível. Muitos escritos filosóficos sobre direitos tornavam-se uma prescrição moral e uma espécie de exercício de convencimento sobre as relações justas entre as pessoas.

Os autores diziam que um dos objetivos dos pactos na sociedade é o entendimento equilibrado entre direitos e deveres. Esse contrapeso é necessário para o funcionamento de todas as instituições. Principalmente para Diderot, Rousseau e Condorcet, a educação escolar das crianças passava a assumir uma posição cada vez mais importante no seio da nação, uma vez que muitos direitos não são claramente reconhecidos de maneira tácita. Isso quer dizer que é preciso um aprendizado em relação a eles, uma das tarefas propostas para a escola pública. Além disso, a difusão e acúmulo de conhecimento proporcionado pelas instituições da instrução pública impactam beneficamente a sociedade em vários aspectos: sociais, econômicos e políticos.

Durante a Revolução Francesa, cada vez mais pessoas ilustradas adquiriram a percepção da necessidade de uma escola pública, o que ocorreu tanto entre homens de letras quanto em uma grande parcela da sociedade e do povo. Podemos dizer que houve uma mudança na concepção de quem teria o encargo de promover uma educação institucional, que passou de uma atribuição das ordens religiosas, principalmente católicas, como mosteiros e conventos, para uma ênfase mais cívica, à medida que se tornava necessário educar pessoas pertencentes à aristocracia e alguns do povo para assumir as funções necessárias na administração das instituições públicas e, sobretudo, por causa da compreensão cada vez mais profunda de que o povo como um todo tinha direito de participar dessa educação, principalmente as crianças de diversas camadas sociais, como alunos. O que se esboça nesse período, por muitos estudiosos do assunto, é que a educação deveria ser praticamente laica, com menor influência do clericalismo, de forma que as considerações sobre as coisas referentes aos homens tomaram um sentido mais fortemente secular no ensino de uma maneira geral, e consequentemente a criança passa a ser preparada para servir mais ao país do que à igreja, embora os princípios religiosos morais do cristianismo estivessem sempre presentes nas tradições pedagógicas posteriores ao Iluminismo.

Essa conformidade com a maioria do que os homens mais ilustrados pensavam sobre a necessidade de instruir amplamente todo o povo, podemos ver expressa por Bruno Belhoste em “Condorcet, as artes úteis e seu ensino”4, publicado no livro Condorcet: homem das luzes e da Revolução5:

Na realidade, no seu projeto de instrução pública, tanto quanto sobre muitas outras questões, Condorcet não faz menos que exprimir, com uma força e uma clareza particulares, as concepções do meio acadêmico. [...] No final das contas, tanto sobre essa questão quanto sobre muitas outras, Condorcet é um homem que pensa a longo prazo: [...] o conhecimento puro e o conhecimento aplicado aparecem com os momentos de um mesmo projeto. O progresso das técnicas, considerado do ponto de vista do aperfeiçoamento do espírito humano, se confunde então progressivamente com o próprio desenvolvimento das ciências. (BELHOSTE, 1994, p. 132).

Nesse período, houve uma mudança nas disposições dos cidadãos, pois a autonomia e a liberdade de opiniões, expressões e crenças assumem relevância em contraposição à heteronomia religiosa. A igreja católica e as correntes protestantes com seus prelados, mandamentos e padrões morais exerciam uma influência poderosa em meio a toda a sociedade da Europa Ocidental naquele período. A autonomia dos indivíduos diz respeito às possibilidades das decisões particulares de cada cidadão e à contribuição na participação social e política. A autonomia produz um choque com a heteronomia religiosa, pois uma das características mais forte daquela é que cada pessoa possa livremente escolher sua religião e segui-la conforme lhe aprouver, já que as pessoas adquiriam liberdade no sentido de poder fazer escolhas individuais contanto que não prejudicassem a ordem política nem outro cidadão. Em contraposição à autonomia, em uma imposição heteronômica, se alguém habita um território onde o governo declara alguma religião oficial, todas as pessoas circunscritas àquela área de jurisdição do Estado, a despeito de suas convicções pessoais, estariam obrigadas a professar essa religião se assim fosse prescrito pelo poder político.

O debate levado a público por Condorcet consiste precisamente em mostrar que não há igualdade verdadeira a não ser entre sujeitos com um mínimo de autonomia intelectual. Longe de produzir desigualdades entre os homens, o esclarecimento, quando suficientemente difundido, mesmo que estabeleça alguma diferença, no caso, a diferença de talentos, jamais provoca subordinação. Catherine Kintzler afirma sobre isso o seguinte:

A independência do saber e de seus agentes em relação ao poder só pode ser assegurada por uma dependência exclusiva em relação à lei; de modo que um máximo de independência requer uma dependência máxima. A seriedade epistemológica necessária ao bom funcionamento da democracia é garantida por uma severa hierarquia de níveis; o povo pode confiar nos senhores empregados pela República graças ao elitismo que esta introduz em sua seleção; assim, um máximo de democracia requer um máximo de distinção entre talentos. (KINTZLER, 1984, p. 167).

A análise por essa perspectiva indica que é necessário e suficiente que cada uma das pessoas aceda a uma autonomia intelectual mínima que lhe permita, ao mesmo tempo, atingir graus de conhecimento mais amplos. No entanto, é necessário também que ninguém se deixe limitar pela parcimônia de uma educação muito básica ou mal construída no estreito horizonte das necessidades imediatas. Isso pressupõe a necessidade de uma definição do conceito de instituição elementar destinada a satisfazer a condição jurídica de autonomia e a condição epistemológica de acesso a um campo mais amplo do conhecimento. Essa instituição só pode ser a educação pública, que deve ser baseada em um padrão fundamentado de conhecimento e deve se propor à formação de um modelo de cidadão concebido sob as características de uma certa independência individual.

Sobre a educação pública

As discussões setecentistas sobre a razão, a verdade, o conhecimento e os direitos do homem e do cidadão refletem-se na concepção de escola que se consolidou naquele século. A escola apareceu no pensamento de grande parte dos filósofos iluministas como local onde se exercita a razão e se aprende a distinguir a verdade. Ela é uma instituição privilegiada para a transmissão dos saberes, é também um espaço de incentivo constante para a sua ampliação e para as descobertas advindas deles, bem como para a criação de novos conhecimentos. Mesmo a nobreza escreveu no Caderno de solicitações6 reivindicando a ampliação da educação pública. Alexis de Tocqueville constata isso nas notas posteriores ao livro O antigo regime e a revolução:

Os cadernos da nobreza limitam-se a pedir que se cuide ativamente de favorecer a educação, que seja estendida às cidades e aos campos e que siga princípios conformes com a destinação provável das crianças; que sobretudo se dê a elas uma educação nacional, ensinando-lhes seus deveres e direitos como cidadãos. Querem até mesmo que se redija um “catecismo” que coloque ao alcance delas os pontos principais da constituição. Por outro lado, não indicam os meios a ser empregados para facilitar e difundir a instrução; limitando-se a exigir estabelecimentos de ensino para as crianças da nobreza indigente. (TOCQUEVILLE, 2009, p. 266).

Podemos dizer que Rousseau e Condorcet foram os maiores expoentes dessa visão iluminista sobre a escola. Por fim, a questão dos direitos tem uma relação menos evidente no que diz respeito à escola, porém é uma correlação tão importante quanto a que se refere aos aspectos mencionados anteriormente. Rousseau, que talvez tenha abordado na sua obra grande parte dos debates do período, foi um dos mais importantes filósofos do período iluminista que travou o debate sobre a educação. Newton Bignotto corrobora essa visão sobre Rousseau:

Aceitando que a obra do filósofo de Genebra foi o lugar de encontro entre os muitos sonhos de liberdade que povoavam sua época, e, ainda, o ponto de convergência dos muitos paradoxos que surgiram na rota em direção à democracia moderna, vale a pena pesquisar seus caminhos analisando os modelos de comunidade que, em momentos diferentes de sua existência, capturaram sua atenção. (BIGNOTTO, 2010, p. 110).

Segundo Rousseau, a educação das crianças é por demais importante para o Estado e, por isso, não deve ser somente uma atribuição dos pais. Isso porque, entre outros motivos, aqueles quase sempre ensinam princípios e preconceitos de maneira simultânea. Logo, uma educação estritamente doméstica seria insuficiente para a formação do cidadão. A educação pública é um dever premente do Estado. Essa educação é um dos princípios mais imperiosos da igualdade, em que os cidadãos aprendem a obedecer às leis do Estado advindas do contrato social e, portanto, da vontade geral; aprendem também a amar a terra e seus concidadãos e devem se tornar os defensores da pátria. Rousseau escreveu todas essas ideias no “Discurso da economia política”, verbete escrito para a Enciclopédia francesa de Diderot e D’Alembert, Verbetes políticos da enciclopédia. Conforme Rousseau, “[...] a educação pública, fundada em regras prescritas pelo governo e pelos magistrados estabelecidos pelo soberano é, pois, uma das máximas fundamentais do governo popular e legítimo [...]” (DIDEROT; D’ALEMBERT, 2006, p. 106).

Rousseau (1995) escreveu um livro dedicado à educação. Nele, imaginou um aluno ideal desde a infância até a juventude. Nessa fase da vida, o jovem poderia, já formado, enquanto homem e cidadão que aprendera a cumprir esses papéis da maneira como considerava o filósofo, seguir o curso de sua vida livremente utilizando a instrução recebida de seu mestre. É de fato uma obra magistral, principalmente sobre educação, como atestam muitos estudiosos, mas é também uma obra primorosa de filosofia e, por que não dizer, de antropologia, psicologia e literatura, para mencionar o mínimo em relação à relevância do livro, que é, com razão, um clássico, da filosofia e educação. Pensamos que o livro Emílio, ao tratar de uma espécie hipotética de educação ideal do homem e do cidadão, também lança luz sobre a educação pública.

Do ponto de vista de tratar diretamente a educação como uma das atribuições do Estado, podemos nos referir ao “Discurso da economia política”, citado anteriormente, e às Considerações sobre o governo da Polônia, ambos como referências diretas de Rousseau sobre esse assunto. Cabe ressaltar que esse último livro tratou mais de prescrições sobre como deveria ser estabelecida uma educação nacional na Polônia, considerando suas especificidades, uma vez que o autor procurou traçar diretrizes para a reforma das instituições do país com o intuito de auxiliar a formação de uma constituição para aquela nação. O próprio filósofo recusara a tarefa de elaborar uma constituição para as instâncias legislativas do Estado polonês. Isso tudo nos diz sobre o pensamento do filósofo a respeito do valor atribuído à educação pública e da importância de cada nação contemporânea proporcionar a organização escolar.

Por vários motivos, Rousseau e Condorcet iniciaram, com seus textos, uma espécie de convencimento sobre a necessidade da educação pública. Havia uma percepção da necessidade de mudança na direção da busca pelo conhecimento. Essa mudança ocorre no sentido de fazer com que fosse imperioso que todos entendessem que o Estado deveria proporcionar a difusão do conhecimento, e que esse conhecimento não fosse estritamente um esforço individual de cada pessoa, mas, sobretudo, que uma série de instituições servissem de difusão para que houvesse oportunidades de acúmulo de saber, proporcionando a diminuição das necessidades mais corriqueiras e permitindo a independência das pessoas naquilo que envolve leituras, cálculos simples e até mesmo a capacidade de interpretação correta de algo expresso por escrito. Tudo isso inclui também a criação de instituições que pudessem promover altas pesquisas em várias áreas de estudo. Conforme Condorcet:

A sociedade deve ao povo uma instrução pública [...] como meio de tornar real a igualdade de direitos. [...] A sociedade deve ainda a instrução pública como meio de aperfeiçoar a espécie humana [...] preparando as novas gerações pela cultura daquelas que as precedem. (CONDORCET, 2008, p. 17, 25, 28).

É nesse sentido que, nas Considerações sobre o governo da Polônia, Rousseau diz que cabe ao Estado formar e assegurar instituições que cumpram o objetivo de instruir os cidadãos e que possam promover a igualdade de instrução que também está dentro do arcabouço de direitos:

É a educação que deve dar às almas a forma nacional e dirigir de tal forma suas opiniões e seus gostos, que elas sejam patriotas por inclinação, por paixão, por necessidade [...]. A educação nacional só é dada aos homens livres; só eles têm uma existência comum e estão verdadeiramente ligados pela Lei. A lei deve regular a matéria, a ordem e a forma dos seus estudos. [...]. Todos, sendo iguais pela constituição do Estado, devem ser educados juntos e da mesma maneira [...]. Mas, sem estas precauções, não espereis nada de vossas leis. Por mais sábias, por mais previdentes que possam ser, elas serão elucidadas e vãs... (ROUSSEAU, 1982, p. 36-38, 40).

Promover a igualdade era um dos objetivos da educação pública, e Rousseau localiza a origem dessa educação nos ideais espartanos7 de educação. Conforme essa concepção, a educação pública é a instituição e o meio de promover o amor à pátria, o sentimento de igualdade entre os cidadãos e a promoção da justiça. Sendo assim, a liberdade se dá no seio da própria igualdade, e a liberdade é operada quando todos os indivíduos a exercem para fortalecer a comunidade política na qual vivem. Se é essa comunidade que lhes proporciona as condições de cidadania, todos os indivíduos são responsáveis por manter seu equilíbrio e coesão. Nesse sentido, a escola pública foi pensada previamente como um microcosmo da nação, na medida em que traz para o cidadão em formação – os infantes e alunos –, as vivências e as ideias de coletividade, tão modeladoras para a concepção maior de organização política. É nessa perspectiva que entende Rousseau que:

[...] a educação nacional só cabe aos homens livres; só eles têm uma existência comum e estão verdadeiramente ligados pela Lei. [...] Todos, sendo iguais pela constituição do Estado, devem ser educados juntos e da mesma maneira e se não se pode estabelecer uma educação pública totalmente gratuita, é preciso ao menos oferecê-la a um preço que os pobres possam pagar. (ROUSSEAU, 1982, p. 36).

Podemos ver também essa ideia explicitada pelo filósofo na citação seguinte, escrita no próprio Discurso da economia política”:

Em todo lugar em que o povo ama seu país, respeita as leis e vive com simplicidade, falta pouca coisa a fazer para torná-lo feliz; e na administração pública na qual a fortuna toma menos parte na sorte dos particulares, a sabedoria está tão próxima da felicidade que as duas se confundem. (ROUSSEAU, 2006, p. 108).

A formação de cidadãos requer tempo, habilidade, perícia e experiência e, por isso, ao dizer que a instrução de cidadãos passa além de um dia, ou seja, é um trabalho de anos ou décadas, o filósofo refere-se ao labor incansável que deve ser esse ensino e ao trabalho cuidadoso que têm todas as pessoas incumbidas dessa responsabilidade. Essa educação deve acompanhar toda a infância e só quando se tornam homens esses que foram alunos, instruídos dessa maneira, tornam-se também cidadãos.

Charles Coutel disse que, com a Declaração dos direitos do homem e do cidadão, publicada em 1789:

[...] a Revolução fez a formidável aposta que o povo poderia ser seu próprio senhor. Em 1792, a proclamação da República deu um passo a mais: o povo pode, quando assim desejar, revisar a constituição e as leis. Mas, como estar seguro que essas revisões serão aperfeiçoamentos e não regressões? É então que o problema da Escola (chamava-se então “Instrução pública”) toma toda a sua importância. Condorcet, desde 1790, proclamava que a democracia sem a razão poderia fazer o povo desviar-se: “mesmo sob a constituição mais livre, um povo ignorante é escravo.” Ele situa mesmo esta questão sobre o plano ético: “mesmo que se empreenda todas as combinações possíveis para assegurar a liberdade, se não se efetua um meio de esclarecer a massa dos cidadãos, todos os esforços serão vãos.” A Escola é um órgão da República, as crianças, futuros cidadãos, quando se instruem, trabalham para o aperfeiçoamento futuro das leis. Condorcet afirma: “esclarecer os homens para fazer deles cidadãos”. (COUTEL, 1996, p. 19).

Em um ponto, o pensamento de Rousseau e de Condorcet sobre a razão se encontraram, segundo Catherine Kintzler. No livro Condorcet: a instrução pública e o nascimento do cidadão, a autora afirmou que, mesmo para Condorcet, a razão pode falhar e a verdade não é definitiva por, entre outras coisas, se mover entre situações complexas e empíricas e, por isso, deve ser mantido o direito à resistência e à revisão dos discursos. Condorcet relaciona o conhecimento aos direitos e à moral. Assim, a verdade seria tratada constantemente como provisória e submetida ao desenvolvimento progressivo do próprio conhecimento, tanto do ponto de vista do conhecimento quanto do ponto de vista do que se considera propriamente moral. Mas esse estatuto de transitoriedade da verdade confere, ao contrário do que possa sugerir, um grau de segurança para ela, na medida em que se movimenta conforme o próprio conhecimento, fundamentado em proposições anteriores e da mesma forma ampliado e até mesmo modificado segundo proposições rigorosas posteriores.

Newton Bignotto diz, sobre Condorcet, que o filósofo foi o principal responsável por juntar as questões referentes à educação pública com as ideias fundamentais da República:

O pensador iluminista se sentia perfeitamente de acordo com a proposta de apresentar um plano global de educação para a França, pois isso representava uma continuidade de seus esforços de fazer da razão a única referência para a vida privada. Ao mesmo tempo, ele tinha um terreno fértil para evoluir, pois o longo debate sobre educação na segunda metade do século XVIII fazia com que as questões centrais concernentes a um plano educacional fizessem parte de um certo linguajar comum. Nesse plano, Condorcet contribui de forma decisiva para dotar o republicanismo francês de uma de suas faces mais conhecidas: a escola republicana. [...] Isso mostra que já na primeira assembleia revolucionária a questão da instrução pública surgia de forma consistente, mas só com Condorcet a discussão incorporou definitivamente a temática republicana e se colocou a favor de uma transformação das leis e dos costumes da nação francesa. (BIGNOTTO, 2010, p. 276-277).

Considerações finais

Os filósofos Rousseau e Condorcet são dois expoentes de um debate sobre a instrução pública no século XVIII na sociedade francesa. Não foram só eles que escreveram sobre a escola pública do ponto de vista de uma necessidade premente dentro dos Estados, porém as suas abordagens sobre o assunto foram mais relevantes porque discutiram questões mais profundas sobre esse assunto. Isso implica também que eles trataram a escola como uma garantia de transmissão de conhecimento e, consequentemente, da sua ampliação, desde que uma grande maioria das pessoas pudessem aprender o saber básico indispensável para o desenvolvimento pessoal e, por conseguinte, para o desenvolvimento de todos. E mais relevante ainda é que eles trataram as questões do ponto de vista da busca da garantia de que o conhecimento fosse cada vez mais profícuo e difundido e que a maioria das pessoas pudesse apreender o saber básico indispensável para o desenvolvimento pessoal e de todos.

A importância do pensamento desses dois filósofos é ampliada pelo fato de, em parte pela consciência da importância que eles próprios tinham e da relevância do assunto em questão no debate de ideias do século XVIII, se incumbirem de uma tarefa de convencimento em relação às pessoas mais ilustradas, influentes e poderosas, pelo menos, no tocante à necessidade de ampliação do ensino dos conhecimentos básicos acumulados pela humanidade. A difusão desse conhecimento se refletiria, segundo eles, de igual forma, na descoberta dos talentos daqueles que poderiam aprofundar os saberes para o benefício da própria humanidade com reflexos consideráveis nas cidades e no país.

O conhecimento sempre se ampliou com a sua transmissão e esta havia sido feita de muitas maneiras, mas, como apontou Condorcet no livro Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano, esse conhecimento era restrito a uma classe que se apropriava dele de maneira constante e dificilmente o divulgava. Esse grupo agia dessa forma como uma estratégia de dominação e até, por vezes, fomentava a ignorância da maioria do povo para tornar mais fácil dominá-lo. O espraiamento da instrução diminui esse tipo de domínio ou, pelo menos, promove mais condições para que o povo não seja dominado de uma maneira tão funesta. Tanto para Rousseau quanto para Condorcet, estender as possibilidades de instrução para o maior número de pessoas dentro de um povo é, de certa forma, libertá-lo de um pesado grilhão que é a ignorância e elevá-lo à glória de partícipe da construção do saber da humanidade, para elevar a todos cada vez mais. Podemos dizer que isso é o cumprimento de deveres do Estado e a garantia de direitos dos cidadãos.

A ligação entre o iluminismo e a razão torna-se basilar para a transformação da concepção de direitos naturais, civis e políticos para uma concepção mais ampliada de direitos humanos. Os direitos humanos são tomados como o conjunto dos direitos e, dessa forma, são postos abaixo os muros das distinções, ou seja, aqueles que têm direitos naturais passam a ter, por isso, direitos civis e políticos, participando do conjunto dos direitos de uma maneira mais ampla. Para isso, é necessária a mediação da educação pública, pois esta deve tornar possível preparar todos os cidadãos para o exercício dos seus deveres e torna mais propícia a labuta pela garantia de seus direitos em uma sociedade e em uma organização política complexa. A escola torna-se uma instituição basilar para a República na medida em que uma depende da outra para cumprir as funções às quais estão destinadas.

Podemos dizer que as discussões sobre a conexão entre a escola pública e os direitos humanos atravessam os tempos e os espaços e, com uma grande potência, esse debate se faz necessário nos dias atuais, principalmente no Brasil, uma vez que a escola pública, em seus diversos graus, níveis e dimensões, sofre atualmente uma série de investidas com vistas a enfraquecer sua estrutura e autonomia. Concomitante a isso, em algumas instâncias de poder, vê-se fragilizar paulatinamente a defesa institucional dos direitos humanos e, por isso, eles estão cada vez mais ameaçados. A consideração de que a instituição da escola pública fortalece a compreensão da importância de que se assegurem os direitos humanos continua a figurar como um arco de defesa tanto da escola pública, como instituição, que tem como um dos seus objetivos ensinar os cidadãos os seus direitos, quanto para promover a garantia dos direitos humanos, uma vez que, para que estes sejam garantidos, é necessário que, primeiro, sejam conhecidos. O trabalho de divulgação desse conhecimento dos direitos é feito precipuamente pela escola pública em seus vários níveis.

Referências

BELHOSTE, Bruno. Condorcet les arts utiles et leur enseignement. In: CHOUILLET, Anne-Marie; CREPEL, Pierre (org.). Condorcet: homme des lumières et de la Révolution. Paris: ENS Éditions Fontenay: Saint Claude, 1994. p. 121-135. [ Links ]

BIGNOTTO, Newton. As aventuras da virtude: as ideias republicanas na França do século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. [ Links ]

BOTO, Carlota. Instrução pública e projeto civilizador: o século XVIII como intérprete da ciência, da infância e da escola. São Paulo: Unesp, 2017. [ Links ]

CASSIRER, Ernst. A filosofia do iluminismo. Tradução Álvaro Cabral. 2. ed. Campinas: Unicamp, 1994. [ Links ]

CONDORCET, Jean-Antoine-Nicolas de Caritat, marquês de. Cinco memórias sobre a instrução pública. Tradução Maria das Graças de Souza. São Paulo: Unesp, 2008. [ Links ]

CONDORCET, Jean-Antoine-Nicolas de Caritat, marquês de. Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano. Tradução Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Unicamp, 1993. [ Links ]

COUTEL, Charles. L’école de Condorcet contre l’orléanisme des esprits. Paris: Ellipses, 1996. [ Links ]

CRÉPEL, Pierre; GILAIN, Christian (org.). Colloque international Condorcet: mathématicien, économiste, philosophe, homme politique. Paris: Minerve, 1989. [ Links ]

DIDEROT, Denis; D’ALEMBERT, Jean Le Rond. Verbetes políticos da enciclopédia. Tradução Maria das Graças de Souza. São Paulo: Discurso: Unesp, 2006. [ Links ]

KINTZLER, Catherine. Condorcet: l’instruction publique et la naissance du citoyen. Paris: Minerve, 1984. [ Links ]

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Considerações sobre o governo da Polônia e sua reforma projetada. Tradução Luiz Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Brasiliense, 1982. [ Links ]

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução Lourdes Santos Machado. São Paulo: Abril, 1973. (Os Pensadores). [ Links ]

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Economia (moral e política). In: DIDEROT, Denis; D’ALEMBERT, Jean Le Rond. Verbetes políticos da enciclopédia. Tradução Maria das Graças de Souza. São Paulo: Discurso: Unesp, 2006. p. 83-127. [ Links ]

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio ou Da educação. Tradução Sérgio Milliet. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. [ Links ]

SOUZA, Maria das Graças de. Ilustração e história: o pensamento sobre a história no Iluminismo francês. São Paulo: Discurso, 2001. [ Links ]

STAROBINSKI, Jean. A transparência o obstáculo: seguido de sete ensaios sobre Rousseau. Tradução Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. [ Links ]

TOCQUEVILLE, Alexis de. O antigo regime e a revolução. Tradução Rosemary Costhek Abilio. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2009. [ Links ]

TODOROV, Tzetan. Os inimigos íntimos da democracia. Tradução Joana Angélica d’Avila Melo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. [ Links ]

2- A respeito da questão das decisões coletivas que podem não contemplar de forma correta o conjunto das opiniões particulares dos indivíduos que tomaram as próprias decisões coletivas, Condorcet tratou no texto “Ensaio sobre a aplicação da análise para a probabilidade das decisões tomadas pela pluralidade das vozes” (Essai sur l’Application de l’Analyse à la probabilité des décisions rendues a la pluralité des voix). Esse problema da intransitividade entre as opiniões individuais consideradas particularmente e a decisão coletiva foi estudado como o paradoxo de Condorcet na Ciência política por Duncan Black em 1940 e Keneth Arrow em 1972, com o objetivo de encontrarem uma melhor maneira de proceder às eleições e plebiscitos, de forma que a intransitividade entre as opiniões individuais e a decisão coletiva fosse diminuída. Uma descrição da forma como os cientistas políticos usam o chamado paradoxo de Condorcet se encontra no artigo de Issac Epstein: “O paradoxo de Condorcet e a crise da democracia representativa”, publicado na revista Estudos Avançados, n. 11 (30), p. 273-291, 1997. Esse assunto também foi tratado por Labib Haddad, no artigo “Eleições, ultrafiltros, infinitesimais ou o paradoxo de Condorcet” (Élections, ultrafiltres, infinitésimaux ou le paradoxe de Condorcet) no livro Colóquio Internacional Condorcet: matemático, economista, filósofo, homem político (Colloque International Condorcet: mathématicien, économiste, philosophe, homme politique) publicado em 1989, em Paris, na França.

3- O comentador escreveu os seguintes artigos: 1. “A que Condorcet aplicou o cálculo das probabilidades?” (À quoi Condorcet a-t-il aplique le calcul de probabilités?), no livro Colloque international Condorcet: mathématicien, économiste, philosophe, homme politique, publicado em Paris, na França, pela editora Minerva, em 1989. 2. “O primeiro manuscrito de Condorcet sobre o cálculo de probabilidade” (Le premier manuscrit de Condorcet sur le calcul de probabilités – 1772), no periódico Historia Mathematica, n. 14, p. 282-325, 1987. 3. “Modalidades de eleições políticas: textos publicados e manuscritos de Condorcet publicado na série História do cálculo de probabilidades”, Centre d’analyse et de mathématique social, 1989).

4- Condorcet: les arts utiles et leur enseignement.

5- Condorcet: homme des lumières et de la Révolution.

6- Cahier de doléances.

7- Esparta era uma cidade-estado grega que floresceu em torno do século X a. C. e um dos objetivos do seu governo era tornar seus cidadãos patriotas e iguais, criados desde criança por uma formação comunitária para o serviço das preparações de guerra e da defesa da própria pátria. Rousseau menciona a cidade exatamente tratando da sua educação estatal no verbete “Economia”, publicado na Enciclopédia Francesa de Diderot e D’Alembert (2006).

Recebido: 03 de Junho de 2021; : 23 de Novembro de 2021; Aceito: 08 de Fevereiro de 2022

Rodison Roberto Santos tem doutorado, mestrado e graduação em filosofia pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH/USP). É pós-doutorando em filosofia da educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) e integrante do Grupo de Pesquisa em Filosofia e História das Ideias Pedagógicas (GEFHIPE) da FEUSP.

Creative Commons License  This is an Open Access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution Non-Commercial License, which permits unrestricted non-commercial use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original work is properly cited.