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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 27-Out-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-46342022262181por 

SEÇÃO TEMÁTICA: Justiça e Educação: um debate necessário

Efeitos da judicialização da educação infantil evidenciados na produção acadêmica brasileira (2009-2019)

Effects of judicialization of child education highlighted in the brazilia academic production (2009-2019)

Maciela Mikaelly Carneiro de Araújo1 
http://orcid.org/0000-0002-7024-9325

Solange Mary Moreira Santos1 
http://orcid.org/0000-0002-4378-0743

1- Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), Feira de Santana, Bahia. Brasil.Contatos: mikaellycarneiro@hotmail.com; solangemmsantos@gmail.com


Resumo

Esta pesquisa buscou responder à questão dos desafios evidenciados na produção acadêmica sobre a judicialização da educação infantil. Para isso, teve por objetivo analisar a judicialização da educação infantil na produção acadêmica existente nos Programas de Pós-Graduação em Educação no Brasil, no concernente à garantia do direito às creches e pré-escolas, entre 2009 e 2019. Caracteriza-se como uma pesquisa qualitativa, do tipo estado do conhecimento. Os resultados do estudo apontaram que a judicialização é uma ação paliativa e pontual na resolução da questão da falta de vagas, pois não basta garantir o direito de algumas crianças por meio de ações jurídicas sem planejar a longo prazo e sem dispor de orçamento para atender o direito de todas as crianças que precisam das vagas em escolas na primeira infância. Isso impacta na concepção de direito e de educação infantil construída na história das políticas educacionais brasileiras, a fim de se superar a visão assistencialista e o atendimento filantrópico. Também é pertinente considerar que o cumprimento do direito à educação infantil para as crianças ainda enfrenta desafios como a priorização de recursos para o ensino fundamental e a falta de qualidade, engendrada pelos efeitos da judicialização nas questões pedagógicas, a exemplo da superlotação das salas de aula e da ausência de recursos humanos e materiais. Nesse sentido, esta pesquisa abre espaço para novos estudos sobre a temática nos Programas de Pós-Graduação em Educação, sobretudo na região Nordeste.

Palavras-Chave: Educação infantil; Direito à educação infantil; Judicialização da educação infantil

Abstract

This study has sought to tackle the issue of the challenges highlighted by the academic production dealing with the judicialization of child education. For such, its purpose was to analyze the judicialization of child education in the academic production found in Graduate Programs in Education in Brazil, concerning the assurance of the right to daycare centers and pre-schools, between 2009 and 2019. It is characterized as qualitative research whose type is the state of knowledge. The results yielded by the study have pointed out that judicialization is a palliative one-off action aimed at resolving the lack of school places since it is not enough to assure the right of some children by means of lawsuits without long-term planning and with no budget available to fulfill the right of all children who need places in early-childhood schools. This impact the very concepts of right and child education arising from the history of Brazilian educational policies, in order to overcome the welfare view and charitable care. It is also appropriate to consider that fulfilling the right to child education still faces daunting challenges such as the priority given to funds for elementary/middle schooling and the lack of quality, arising from the effects of judicialization regarding pedagogical issues, an example of that being overcrowded classrooms and the lack of human and material resources. In this regard, this investigation makes room for new studies on the subject in the Graduate Programs in Education, especially and in the Northeast region of Brazil.

Key words: Child education; Right to child education; Judicialization of child education

Introdução

A educação básica se configura como direito público, o qual se conceitua como aquele que representa os interesses coletivos, com foco social, e, por isso, se relaciona verticalmente com o Estado, colocando-o como ator no processo de sua guarda. Também se classifica como direito subjetivo, definido como a capacidade individual de agir e exigir que um direito objetivo, prescrito em lei, seja garantido ou prestado.

O direito à educação em todas essas etapas está presente na Constituição Federal (CF) de 1988 ( BRASIL, 1988 ) e na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) nº 9.394/1996 ( BRASIL, 1996 ). Além desses, outros documentos normativos reiteram e regulamentam o direito à educação, tais como o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) – Lei nº 8.069/1990 ( BRASIL, 1990 ) – e o Plano Nacional de Educação (PNE) – Lei nº 13.005/2014 ( BRASIL, 2014 ).

Nesse sentido, a educação básica é obrigatória e gratuita dos 4 aos 17 anos de idade, conforme a Emenda Constitucional (EC) nº 59/2009 ( BRASIL, 2009 ) e a Lei nº 12.796/2013 ( BRASIL, 2013 ), que tornaram obrigatória a matrícula de crianças de 4 e 5 anos de idade na pré-escola, devendo ser ofertada pelo Estado, com responsabilidade do município de manter e desenvolver instituições oficiais de educação infantil. Mediante o amparo normativo, o direito à educação, quando não assegurado ou ofertado de maneira insuficiente, se torna passível de demandas judiciais para garantir sua efetivação, o que provoca o efeito da judicialização da educação, que “significa a intervenção do Poder Judiciário nas questões educacionais em vista da proteção desse direito”, ( CURY; FERREIRA, 2010 , p. 77).

Esse fenômeno se designa judicialização da política e acontece com “a participação ativa de juízes e tribunais na criação e no reconhecimento de novos direitos, bem como no saneamento de omissões do governo” ( CASAGRANDE, 2008 , p. 16). A existência da judicialização da política tem sido associada, no Brasil, com as recentes transformações institucionais e democráticas que adotam, em certa medida, o controle da constitucionalidade dos direitos, sobretudo os direitos coletivos2 , a partir de um maior protagonismo do Ministério Público e da atuação de juízes. Para Ranieri (2013) , a judicialização da educação se configura como a tutela da educação enquanto bem social em serviço, a qual passa pela via judicial por conta da omissão ou incapacidade do Estado.

Portanto, a judicialização da educação infantil pode ser conceituada como um tentáculo da judicialização da política, uma vez que discorre sobre os efeitos das políticas públicas, uma vez que o direito à educação infantil é um direito social, público e subjetivo que pode ser passível de amparo jurídico quando não garantido pelo Estado, causando então inconstitucionalidade. Rehem e Faleiros (2013) destacam que a educação infantil como direito perpassa por um embate social e político, e não apenas jurídico-legal, para que se materialize. Para tanto, é necessário que se garantam mecanismos de condição de acesso/oferta justa e igualitária no atendimento à demanda da sociedade, colocando em pauta, na agenda pública, encaminhamentos provenientes de ações movidas junto aos órgãos responsáveis por zelar juridicamente pelo direito público.

É pertinente destacar um mapeamento realizado por Adriana Silveira et al . (2020), em que identificaram o desafio de efetivação do direito à educação infantil no Brasil, que não deveria ter a judicialização como única forma de garanti-lo quando não fosse prestado, uma vez que a judicialização gera efeitos diretos e indiretos nas políticas públicas de educação infantil, em curto, médio e longo prazo.

Nesse limiar, o objetivo desta pesquisa consiste em analisar a judicialização da educação infantil na produção acadêmica existente nos Programas de Pós-Graduação em Educação no Brasil, no que concerne à garantia do direito às creches e pré-escolas, entre 2009 e 2019. Embora a temática da judicialização da educação seja discutida por outras áreas de conhecimento, como direito e ciências sociais, a busca de informações se concentrou na área de educação, pois apenas essa estuda especificamente a judicialização na etapa da educação infantil, que é objeto deste trabalho.

A escolha do recorte temporal se justifica por caracterizar a última década e sua relevância em avaliar as ações governamentais para garantir o direito enunciado, considerando a EC nº 59/2009 e a Lei nº 12.796/2013, que tornaram a educação básica obrigatória e gratuita a partir dos quatro anos de idade. Além disso, o vigente PNE (2014-2024) estabeleceu que houvesse o atendimento de no mínimo 50% da população de até três anos de idade, ampliando a oferta de educação infantil em creches e a universalização do ensino na pré-escola para as crianças de quatro a cinco anos de idade até o ano de 2016 ( BRASIL, 2014 ).

Esta investigação utilizou a abordagem qualitativa, que buscou informações e dados em teses e dissertações produzidas pelos Programas de Pós-Graduação em Educação no Brasil, definindo o instrumento metodológico do estado de conhecimento, que consiste em organizar sistematicamente os dados de publicações e produções sobre determinado tema, ou seja, trata-se de um estudo científico que aborda um setor específico de publicações ( ROMANOWSKI; ENS, 2006 ).

Segundo Ferreira (2002) , o estado do conhecimento objetiva discutir e mapear produções acadêmicas de determinado campo de conhecimento, utilizando fontes de consultas como catálogos e resumos. Desse modo, trata-se de uma metodologia inventariante e descritiva; este trabalho interpretou os dados da revisão de literatura a partir da argumentação e recriação dos achados que estão organizados em categorias de análise, as quais são um conjunto de trabalhos analisados que obedecem a uma ordem cronológica, geográfica ou de conteúdo, entre outros ( NÓBREGA-THERRIEN; THERRIEN, 2004 ).

Foi realizado um levantamento de dissertações e teses no portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), colocando-se os descritores “Judicialização da educação”, “Educação infantil” e “Direito à educação”, com recorte de tempo na década que compreende os anos de 2009 a 2019. A fim de refinar a pesquisa, foram selecionados os trabalhos com a área de concentração “Educação”, com filtro para Programas de Pós-Graduação em Educação. Nessa busca, foram encontradas oito dissertações e duas teses, que estão organizadas em três categorias de análise, definidas após a leitura de cada produção, alinhando os conceitos e perspectivas defendidas, conforme mostra o Quadro 1 .

Quadro 1 - Categorias de análise das produções 

Categoria I – Atuação do Sistema de Justiça na educação infantil e os efeitos da judicialização
Ano Tipo Título Autora Instituição
2017 Tese Creche: do direito à educação à judicialização da vaga Maria José Poloni Universidade Nove de Julho
2018 Dissertação Judicialização da educação infantil: uma análise da dinâmica do fenômeno no município de Curitiba Izabella Freza Neiva de Macedo Universidade Federal do Paraná
2018 Dissertação A judicialização na educação infantil entre ênfases, encaminhamentos e solicitações no município de Sorocaba/SP Petula Ramanauskas Santorun e Silva Universidade Federal de São Carlos
Categoria II – Efeitos das decisões judiciais e perspectivas dos atores envolvidos
Ano Tipo Título Autora Instituição
2016 Dissertação Os efeitos da atuação do sistema de justiça nas políticas de educação infantil: estudo de caso no município de Araucária/PR Edna Pischaraka Itcak Dias da Silva Universidade Federal do Paraná
2017 Dissertação O controle judicial da qualidade da oferta da educação infantil: um estudo das ações coletivas nos Tribunais de Justiça do Brasil (2005-2016) Barbara Cristina Hanauer Taporosky Universidade Federal do Paraná
2018 Dissertação O trabalho docente frente à judicialização de vagas nas creches: sentidos de professores Fabiana Aparecida Pereira Jochi Universidade Federal de São Carlos
2019 Dissertação A interferência da judicialização nas políticas públicas de acesso à educação infantil no município do Rio de Janeiro Eline Moreira Ferreira de Oliveira Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Categoria III – Implicações da judicialização na relação e na interação entre os poderes Judiciário e Executivo
Ano Tipo Título Autora Instituição
2011 Dissertação Judicialização da educação: a atuação do ministério público como mecanismo de exigibilidade do direito à educação no município de Juiz de Fora Rafaela Reis Azevedo de Oliveira Universidade Federal de Juiz de Fora
2015 Tese Judicialização da educação infantil: desafios à política municipal e a exigibilidade de seu direito em Juiz de Fora-MG Rafaela Reis Azevedo de Oliveira Universidade Federal de Juiz de Fora
2017 Dissertação Os termos de ajustamento de conduta para efetivação do direito à educação infantil: considerações a partir do contexto paranaense Marina Feldman Universidade Federal do Paraná

Fonte: Elaboração nossa.

As categorias de análise estão organizadas por seções temáticas que mais se aproximavam, e não por período/ano, concentração geográfica ou outros critérios. Para compreender o contexto de produção das pesquisas, é importante situar o lugar de fala de quem as produz. Desse modo, as produções são escritas por autoras que possuem, em sua maioria, formação inicial que dialoga com as áreas da Educação e do Direito. O período de produção das teses e dissertações tem predominância no ano de 2018, e isso pode se justificar pelo contexto social e político das pesquisas, analisando a definição da obrigatoriedade da educação básica definida na Lei nº 12.796/2013 ( BRASIL, 2013 ) e o cumprimento de metas após o PNE de 2014.

As pesquisas se localizam em oito universidades federais e uma oriunda de instituição privada, com predominância no Sul e Sudeste do país. Conforme Antonia Almeida Silva e Márcia Aparecida Jacomini (2016), há uma distribuição desigual de produções dos Programas de Pós-Graduação na área de Educação, havendo uma concentração em algumas regiões e escassez em outras.

A partir das informações apresentadas neste primeiro momento, é necessário destacar que, embora os trabalhos estejam organizados por categorias, os resultados das pesquisas podem apresentar interlocuções, uma vez que em todas as produções apontam os efeitos da judicialização nos sistemas de ensino. Por meio da discussão dos dados abordados, foram elaboradas considerações e proposições a respeito da exigibilidade do direito à educação na primeira infância pela judicialização.

Atuação do Sistema de Justiça na educação infantil e os efeitos da judicialização

Nesse primeiro estudo Poloni (2017) analisou os diferentes olhares a respeito do direito à educação infantil, nas perspectivas teórica e normativa. Na ótica familiar o direito à creche reverbera uma relação de necessidade dos pais de terem local seguro e apropriado para deixar as crianças enquanto trabalham, de modo que elas se desenvolvam integralmente. Quanto ao perfil de atuação pedagógica, os resultados apontam para uma escolha profissional consciente, em que as professoras ressaltam gostar da profissão, mas deflagram a falta de valorização e o não reconhecimento profissional. Já ao definir o perfil de gestão, a gestora destaca a relação com as famílias que vivem em situações de vulnerabilidade social e econômica, e explica que o critério de mães que trabalham já não é tão marcante na decisão de vagas.

Em relação aos processos analisados por Poloni (2017) , foram “Mandados de Segurança por meio de Liminar”, realizados com ajuda de advogados, e petições impetradas junto à Defensoria Pública com “Ações de Obrigação de Fazer com Pedido de Tutela Antecipada”, constando um total de 144 instigados por mães e apenas 3 movidos pelos pais das crianças, encaminhados ao Ministério Público sob gratuidade de justiça. Nos processos são citados artigos e trechos da legislação nacional, tais como Art. 5º, inciso LXIX, Art. 6º, Art. 205, Art. 208 incisos IV e VII, §1º e §2º, Art. 211 e Art. 227, §2º e §3º da CF ( BRASIL, 1988 ); Art. 54, inciso IV e V do ECA ( BRASIL, 1990 ); e Art. 30 da LDB ( BRASIL, 1996 ).

Diante do exposto, a perspectiva jurídica do direito à creche não pode se dar com limitações orçamentárias, devendo ser ampla e irrestrita. Portanto, o trabalho de Poloni (2017) não se debruçou especificamente sobre os efeitos da judicialização, mas sim sobre as dimensões da reivindicação pelo direito à creche por vias judiciais, analisando dados apresentados pelos protagonistas desse processo, ou seja, nas perspectivas familiar, pedagógica e jurídica. A sua pesquisa revela que a judicialização traz implicações no contexto pedagógico das creches, pois o número de crianças atendidas é superior ao que a instituição está preparada, tanto em relação aos recursos humanos quanto aos recursos materiais disponíveis.

Nesta categoria, Macedo (2018) discorreu em sua pesquisa sobre a ausência ou insuficiência do Poder Público frente ao direito de educação infantil, avaliando a judicialização em Curitiba, município com número crescente de processos judiciais que pleiteiam vagas em creches. Acerca disso, a referida pesquisa avaliou a judicialização mediante duas características do controle constitucional: a primeira é a ausência, definida por Renata Silveira (2002) e por Ranieri (2013) , respectivamente, como ação por omissão ou como a incapacidade do Estado frente a um direito; enquanto que a sua insuficiência – a segunda característica – é a ação ineficaz das políticas e do serviço para a garantia do direito, conforme já apontado por Cury e Ferreira (2010) .

Macedo (2018) analisou processos judiciais no Tribunal de Justiça do Paraná e identificou que a oferta de vagas estava aquém da demanda de crianças de 0 a 3 anos, cuja fila de espera feita pelo município estabelecia prioridades e não conseguia suprir o público, mesmo numa realidade de expansão do atendimento. Os efeitos da judicialização se intensificaram entre 2015 e 2017, cuja proporção foi de 98% de aumento no número de decisões judiciais por vagas em creches.

Nas decisões favoráveis influenciadas pelo caráter jurídico e normativo do direito, se fazem menção aos Art. 5º, inciso XXXV, Art. 6º, Art. 205, Art. 206, Art. 208, inciso IV, Art. 211, §2º, Art. 227 da CF ( BRASIL, 1988 ), e ao Art. 4º, incisos IV e X, Art. 21, Art. 29 e Art. 30 da LDB ( BRASIL, 1996 ). Quanto à decisão negada, recorre-se aos artigos já citados da CF juntamente com o seu Art. 214, aliado ao Plano Nacional de Educação ( BRASIL, 2014 ), explicitando que o município não teria o dever de cumprir a liminar, uma vez que atingira a meta estimada de atendimento no período ( MACEDO, 2018 ).

No estudo de Macedo (2018) surgiu um dado importante para ser debatido: a tentativa de barrar as ações jurídicas, em que a Procuradoria Municipal solicitou suspensão das liminares, justificando haver investimento acima do percentual obrigatório e prejuízo na qualidade de oferta da educação para as crianças pequenas, tanto no que diz respeito à infraestrutura como no tocante à saúde, devido à sobrecarga de crianças em salas de aula. No entanto, o histórico de dois anos de suspensão de liminares e a interposição de recursos não foram capazes de deter o avanço das ações jurídicas.

A ausência de consenso na definição da judicialização da educação demonstra um movimento que Macedo (2018) caracteriza de “contrafluxo”, no qual concernem diferentes visões e posicionamentos a respeito da temática, sejam por medidas judiciais ou extrajudiciais. A autora também pontua que o Tribunal de Justiça parece não saber como lidar com a judicialização, por não manter uma linearidade nas decisões.

No contexto de Sorocaba (SP), Petula Silva (2018) observou que, com a criação do Cadastro Municipal Unificado, em 2014, a demanda por creches ficou mais evidente. Paralelo a isso, houve o crescimento no número de ordens judiciais, sobretudo na procura pela Defensoria Pública para a garantia do acesso às creches.

A autora identificou que o cumprimento de ordens judiciais e extrajudiciais para matrícula provocou superlotação do ambiente escolar, ocasionando má qualidade de oferta, risco de adoecimento e falta de profissionais para dar conta do número de crianças atendidas, conforme estabelecido nas diretrizes e orientações que tratam da relação adulto-criança em sala. Apesar dos esforços de atendimento, o problema de déficit de vagas em relação à demanda existente não diminuiu, tornando-se uma questão persistente na realidade sorocabana. Diante disso, ressalta-se a colocação de Coutinho (2006) , quando este afirma que o Estado de Bem-Estar funciona de forma deficiente, sem atender às demandas da população.

O excesso de decisões judiciais e a insuficiência de atendimento implicam na falta de materiais e de funcionários nas instituições, problemas com espaço físico, superlotação nas salas de aula, necessidade de mudança do planejamento e do projeto pedagógico (para contemplar os novos alunos em processo de adaptação), prejuízo no atendimento (em que se prioriza o cuidar ao invés do educar pedagógico), estresse da equipe pedagógica, diminuição da segurança oferecida para as crianças e insalubridade. Nesse sentido, a dificuldade não está apenas em administrar os recursos financeiros e materiais, os quais competem à Secretaria de Educação Municipal, mas também em gerir o processo pedagógico.

Para Barreto (1998) , a forma como a educação infantil se expandiu no Brasil, sem investimentos técnicos e financeiros necessários e suficientes, caracterizou um atendimento de guarda em creches, com padrões inferiores aos desejados, sobretudo para as famílias de baixa renda. Essa situação persiste no cenário atual; os dados fornecidos por Petula Silva (2018) revelam que as creches têm servido de “depósito” de crianças, sem que haja planejamento, distribuição e priorização na qualidade de atendimento, ou seja, há uma superposição dos direitos, pois garante-se o direito de acesso e fere-se o direito da qualidade educacional.

Essa categoria avaliou que a perspectiva jurídica tem sido mediadora não só da solução de vagas, mas também da conscientização dos direitos, numa nova relação entre comunidade, escola e Ministério Público ( POLONI, 2017 ). Também revelou uma luta social histórica e em permanente construção, cuja diferença de visões e constantes embates juspolíticos trazem reflexões sobre a tutela dos direitos e a ineficiência das políticas públicas para atendimento prioritário e integral do direito à educação, conforme apontado por Macedo (2018) .

Além disso, a relação entre a realidade municipal de atendimento e a ênfase das solicitações tem sido desigual, conforme apontou Petula Silva (2018) ao trazer a discrepância entre o direito de acesso e o direito de qualidade sob o silêncio do Poder Executivo diante das implicações provocadas pela judicialização, o que difere do contexto de Curitiba, no qual Macedo (2018) evidenciou um posicionamento do poder administrativo municipal para barrar as ações jurídicas desenfreadas que estavam afetando a rotina educativa das creches. Assim, sobressai a necessidade de compreender os efeitos da judicialização sob as perspectivas dos atores envolvidos nesse processo, seja na esfera política, jurídica ou pedagógica/educacional.

Os efeitos da judicialização na(s) perspectiva(s) dos atores envolvidos

A produção de Edna Silva (2016) avalia os efeitos da judicialização nas políticas públicas em Araucária (PR), dentre os quais o aumento de matrículas na educação infantil, com crescimento de 62,8% para as matrículas em creches, entre 2008 e 2013, e de 79,4% para pré-escola, entre 2008 e 2015. Ao analisar a relação entre oferta e demanda nesse período, a autora evidencia um déficit de atendimento: em 2010, foi preciso atender 3063 crianças de 0 a 3 anos, mas só 1289 crianças foram contempladas; no mesmo ano deveria ser abrangido o atendimento em pré-escola com pelo menos 2943 vagas, sendo que apenas 1835 vagas foram ofertadas.

No tocante à judicialização da educação, a autora destaca que a maioria dos atores envolvidos no crescimento de ações ajuizadas são, em ordem crescente, a Defensoria Pública, a advocacia particular e os núcleos de prática jurídica. A ordem do recebimento de vaga na lista de espera é variável, de acordo com a atuação de instituições como Ministério Público, Conselho Tutelar e Assistência Social, informando que o sistema de justiça viabiliza a aquisição de direitos, fazendo caber uso de instrumentos que possibilitem cobrar e realizar o direito previsto e garantido na legislação.

Frise-se que o Conselho Tutelar não faz parte dos órgãos de justiça, mas é um organismo autônomo da sociedade civil, encarregado de zelar pelos direitos das crianças e dos adolescentes. Nesse caso, destaca-se por buscar providências e soluções para atendimento e garantia dos direitos, assessorando o Poder Executivo e encaminhando ao Ministério Público informações e demandas de infração administrativa, podendo tanto representar o Estado como intervir em casos de violação dos direitos.

Edna Silva (2016) informa que, em 2016, o alto registro de insuficiência de atendimento educacional entre as crianças de 0 a 5 anos favoreceu para que o Ministério Público e o Conselho Tutelar assumissem uma parceria para catalogar os demandantes de vagas nas instituições escolares, sem a pretensão de priorizar critérios de acesso, mas com o intuito de diagnosticar as diferentes demandas familiares. A esse respeito, Lombardi (2014) afirma que toda criança deveria ter seus direitos fundamentais garantidos, não devendo a administração governamental criar avaliações discricionárias para garantia do atendimento de umas crianças em detrimento de outras.

Além da ação do Conselho Tutelar e do Ministério Público, a Defensoria Pública também entra em cena como instituição que favorece a abertura do sistema jurídico para a população, de modo a facilitar seu acesso às estruturas judiciais para a garantia dos direitos individuais e coletivos sem ônus para quem tem renda inferior a três salários mínimos. Entretanto, a pesquisa de Edna Silva (2016) sinaliza que há um déficit na quantidade de defensores públicos em relação à população com proporção de baixa renda e destaca que a ampla e volumosa atuação do Sistema de Justiça em Araucária coloca à baila outros órgãos e instituições que vão além dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.

Nesse contexto, a atuação do judiciário nas políticas públicas emerge em busca de soluções para problemas de exclusão de direitos. Além disso, outros desafios são enfrentados, como morosidade e demora de respostas às solicitações. Em relação ao percurso mais favorável, a autora conclui que as ações coletivas propiciam maior isonomia de acesso e se tornam mais propícias a um deferimento positivo por vagas, tendo o argumento da redução das desigualdades e injustiças sociais (SILVA, E., 2016). Segundo Lombardi (2014) , a judicialização aprofunda a desigualdade de acesso nas creches, pois garante o direito de uns em detrimento de outros, sendo necessário garantir a igualdade de direitos e de condições para as crianças socialmente desiguais por meio de uma transformação social, econômica e política.

A pesquisa de Taporosky (2017) trata do direito à qualidade da oferta da educação infantil nas decisões de ações coletivas dos tribunais de justiça do Brasil, defendendo que o direito a essa modalidade de ensino só é plenamente protegido se for provido de qualidade. A esse respeito, cita um processo envolvendo o Ministério Público e o estado de Goiás, cuja finalidade seria a de construir mais salas de aula para o atendimento qualificado condizente com o número de crianças. Além disso, a autora afirma que o Supremo Tribunal Federal já manifestou a possibilidade de controle judicial da qualidade na educação.

Ainda, de acordo com Taporosky (2017) , foram localizadas 306 decisões, distribuídas em 22 estados brasileiros, cujas regiões com maior concentração de processos, em ordem crescente, são Sudeste, Sul, Centro-Oeste, Nordeste e Norte. O maior número de casos está alocado nos Tribunais de Justiça de Minas Gerais, Santa Catarina, Sergipe, São Paulo, Rio Grande do Sul, Paraná e Mato Grosso.

Dessas decisões coletivas, 95,5% foram por meio de ações civis públicas, atingindo o pico de maior quantidade em 2015. Os requerimentos de processos para a pré-escola começaram a ser realizados em 2012; 92% das proposições foram intermediadas pela atuação do Ministério Público, seguidas da Defensoria Pública. No que se refere ao resultado das ações coletivas, Taporosky (2017) identificou que 19% dos pedidos judiciais foram negados, enquanto 62% tiveram decisão favorável, e 19% não foram analisados por questões processuais. Quanto ao conteúdo dos pedidos, foram discutidas questões de acesso (54%), orçamento (3%) e condições de oferta (43%).

As decisões se fundamentaram no ECA e na LDB, além de leis estaduais, municipais e resoluções de conselhos de educação, estaduais ou municipais, sem destacar referência ao Conselho Nacional de Educação (CNE). Atinente a essa questão, Cordão (2013) destaca que a atuação dos conselhos educacionais assume um sistema autônomo de compromisso com a educação, cujas deliberações e atos normativos podem se comunicar com os três poderes instituídos, avaliando e descentralizando as políticas.

Para concluir, Taporosky (2017) identificou que a questão do acesso é elemento da qualidade educativa, desde que propunham condições mínimas de oferta a partir da disponibilidade orçamentária dos entes, sem lesar os cofres públicos, bem como sem ofertar uma vaga que venha a prejudicar a relação educativa e de cuidado num espaço sem a infraestrutura adequada para atendimento.

Dando seguimento, o trabalho de Jochi (2018) contextualiza o município de Sorocaba, tendo uma escola como foco de seu estudo. Nessa escola, a autora percebeu que a matrícula via ordem judicial é frequente e excede em 23% a quantidade de crianças matriculadas prevista no módulo, ocasionando superlotação na instituição. A instituição investigada atende apenas as turmas de educação infantil, por conta da grande demanda para essa faixa etária.

Em sua investigação, Jochi (2018) definiu como eixo de análise os sentidos atribuídos à judicialização de vagas em creches, a partir de entrevistas realizadas com três professoras acerca de suas atuações frente à judicialização. O relato das docentes demonstra que a equipe docente tem convivido com os impactos que o aumento de matrículas por ordem judicial na escola tem causado na sala de aula. Para elas, de forma geral, a judicialização foi uma necessidade de garantia do direito da criança à educação infantil; no entanto, ela fragilizou a atuação docente com a entrada ininterrupta de novas crianças, precisando reiniciar o processo de adaptação e comprometer o tempo pedagógico, uma vez que acabam cuidando das necessidades básicas das crianças ao invés de realizarem atividades pedagógicas.

Diante de uma relação de desequilíbrio entre o pedagógico e o jurídico, Ribeiro e Cornélio (2018 , p. 60) afirmam que as decisões judiciais deveriam garantir a vaga mediante “o acompanhamento do cumprimento da decisão no sentido de saber onde a criança foi matriculada e se há o respeito às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil com relação ao número de alunos por professores”, para que também se esteja garantindo a qualidade do serviço educacional prestado, que é outro direito fundamental das crianças.

O relato das professoras, na pesquisa de Jochi (2018) , reconhece a importância da judicialização, mas não concorda com a forma como esse processo se dá, uma vez que causa efeitos negativos no trabalho pedagógico. Assim, as docentes consideram que a judicialização só terá desfecho positivo quando o poder público municipal garantir os investimentos necessários na contratação de funcionários, criação de novas creches ou ampliação de mais salas de aula. A autora pontua, portanto, que a partir da realidade investigada em Sorocaba, a judicialização força o Poder Executivo a buscar novos mecanismos para suprir a demanda por vagas, mesmo que traga novos desafios para a educação.

Finalizando esta categoria, Eline Oliveira (2019) estuda a interferência da judicialização nas políticas públicas de acesso à educação infantil no município do Rio de Janeiro e avalia que as ações judiciais têm sido instrumentos eficazes na responsabilização do poder público, embora não atinjam a todos que precisam de acesso. Dentre os argumentos utilizados para o não atendimento à demanda por creche estão a falta de recursos financeiros e a impossibilidade de interferência do Judiciário nas atribuições do Poder Executivo e nas ações de implementação de políticas públicas. Isso significa que mesmo os pedidos feitos junto à Defensoria Pública e ao Ministério Público não são sempre cumpridos, justificados pela baixa arrecadação municipal.

Em sua pesquisa, Eline Oliveira (2019) fez um levantamento da quantidade de ordens judiciais e pedidos de vagas em creches municipais entre os anos de 2016 e 2018, por meio de análise comparativa da demanda diferenciada de cada Coordenadoria Regional da Educação, identificando se foi por decisão judicial ou através de pedidos administrativos expedidos por órgãos como o Ministério Público e Defensoria Pública. De maneira geral, a autora constatou que os pedidos administrativos aumentaram significativamente no período pesquisado, enquanto os pedidos judiciais diminuíram.

Segundo Eline Oliveira (2019) , a creche é secundarizada, não recebendo a importância necessária para seu avanço, por meio da ampliação de oferta para suprir a real demanda existente. Também, explica que o debate da judicialização dos direitos sociais expõe uma ferida profunda que tende a trazer resultados em longo prazo, e aborda que os órgãos envolvidos no fenômeno da judicialização não dialogam entre si, o que gera uma relação de “competição”, levando a se enfrentarem ao invés de agirem em prol de alternativas que sanem os desafios para os sujeitos envolvidos (OLIVEIRA, E., 2019).

Os resultados expostos por Edna Silva (2016) apontam que a judicialização pode trazer efeitos positivos quando ações coletivas e medidas extrajudiciais conseguem favorecer um planejamento organizado de vagas e condições orçamentárias. Já segundo Taporosky (2017) , para se ofertar vagas ou tomar decisões a respeito da educação, é necessário se aferir as condições reais para esse atendimento, a fim de que não se tenha um ensino sem qualidade.

Jochi (2018) pontua as problemáticas decorrentes da judicialização na atuação pedagógica em creches e alerta para melhorias no atendimento, sobretudo no que se refere aos recursos materiais e humanos nas instituições. Para Eline Oliveira (2019) , a expansão provocada pelas ações judiciais ainda não tem conseguido equilibrar a demanda existente com o número de vagas ofertadas e adquiridas, sobressaindo a necessidade de maior planejamento do poder público em relação à expansão da educação infantil. Assim, é inegável a necessidade de serem minimizados os efeitos da desigualdade educacional, enquanto os dados apontam para uma interação entre os poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, que carecem de se unir e dialogar para uma solução a longo prazo.

Implicações da judicialização na relação e na interação entre os poderes Judiciário e Executivo

A pesquisa de Rafaela Oliveira (2011) analisa os principais atores e as principais ações para exigibilidade do direito em Juiz de Fora (MG) e evidencia os efeitos da municipalização do ensino fundamental e da educação infantil, que sobrecarregaram a questão orçamentária municipal para uma ampliação de vagas não programada. A necessidade de construção de novos espaços e de reformas nos prédios já existentes se defronta com a falta de organização municipal para dar conta da nova demanda, o que fez crescer a quantidade de instituições conveniadas e filantrópicas.

Garantir a vaga das crianças não significa assegurar a qualidade do atendimento prestado, constatando que os indicadores apontam para um atendimento em defasagem quando se compara o setor conveniado com o setor público. É necessário um financiamento de colaboração efetiva entre os entes federados, a fim de que seja superada a defasagem de atendimento público das crianças na educação infantil, por meio da cooperação e do planejamento conjunto entre os níveis de governo federal, estadual e municipal ( SOUZA; PIMENTA, 2019 ).

O atendimento deficitário em vagas, em espaço físico e em profissionais qualificados fez sobressair a priorização do Ensino Fundamental pelo Estado, no que se refere à destinação de recursos e ao planejamento (OLIVEIRA, R., 2011). Esses dados também revelam que as questões de permanência e qualidade são paralelas ao acesso escolar. Além disso, a autora identifica que o baixo número de promotores tem sido uma barreira humana para atuação na área da educação, uma vez que a quantidade de processos cresce constantemente. Assim, a judicialização é um mecanismo paliativo utilizado para solucionar ou reverter problemas educacionais que caberiam à gestão municipal resolver. De acordo com Adriana Silveira e et al . (2020), do ponto de vista social a judicialização não é o meio mais justo e igualitário de garantia do direito à educação infantil, uma vez que provoca efeitos diretos e indiretos na política educacional, na administração pública, no Poder Legislativo e no sistema de justiça.

Os dados obtidos revelam grande número de Ações Civis Públicas e Mandados de Segurança, cuja maior demanda sai da Defensoria Pública do Estado de Minas, secundarizando a atuação do Ministério Público, que não demonstrou atuação expressiva ao impulsionar a judicialização no município. Os dados também consideram a gravidade da ausência de acesso em creches, que vem ferindo o princípio da dignidade humana e causando sequelas sociais irreparáveis, apontadas na pesquisa de Rafaela Oliveira (2011) como resultado de uma política de priorização e de negação do caráter educativo no atendimento para crianças de 0 a 3 anos, carregando expressivas marcas de um assistencialismo filantrópico, de enxugamento de recursos materiais, humanos e financeiros, e de um desconhecimento da sociedade civil sobre os seus direitos.

A tese de Rafaela Oliveira (2015) amplia os estudos sobre a judicialização da educação infantil em Juiz de Fora, analisando as ações do Ministério Público e dos Conselhos Tutelares e informando que não foram encontradas ações ou solicitações que reivindicassem acesso a pré-escolas. Sobre isso, a autora destaca que a judicialização não implica um desequilíbrio na separação dos poderes, pois o Judiciário não decide nem administra, apenas examina a legalidade das ações e a competência do Poder Executivo.

Quanto aos efeitos destacados na pesquisa, Rafaela Oliveira (2015) revela que as demandas judiciais constantes podem ocasionar superlotação e baixa qualidade de atendimento nas creches, colocando a segurança das crianças em risco e precarizando o serviço, tendo em vista que prejudica a atuação pedagógica para a faixa etária. Outro impacto evidenciado na realidade municipal foi o aumento de demanda depois do Programa Minha Casa Minha Vida, que contribuiu para o aumento na busca por acesso às creches na região em que foram construídos os condomínios. Nas palavras de Rafaela Oliveira (2015) , isso decorre da falta de uma proposta intersetorial com políticas de atendimento aos direitos sociais em sua totalidade.

A autora disserta sobre a limitação da judicialização da educação ao explicar que, com o passar do tempo, as decisões não poderão ser cumpridas com êxito, em decorrência da falta de recursos e até mesmo do processo de engavetamento de encaminhamentos feitos pelos conselhos, resultante da relação conflituosa entre promotores e conselheiros. É válido corroborar que, além da demanda conhecida, existe uma demanda reprimida, que não procura por vagas ou que é suprida pela rede privada de ensino.

Portanto, Rafaela Oliveira (2015) conclui que o direito público e subjetivo à educação infantil não é desprezado pela política educacional vigente, mas que o olhar historicamente construído para essa etapa foi de um atendimento compensatório e preconceituoso. A autora também pondera que a rede de proteção social dos direitos das crianças e adolescentes em Juiz de Fora não se constitui uma rede, uma vez que falta diálogo e eficiência dos órgãos de apoio, os quais se comportam como instituições concorrentes.

Para concluir a análise dos efeitos da judicialização na educação infantil a partir das pesquisas acadêmicas, chegamos a Feldman (2017) , que trata da exigibilidade do direito no Paraná por meio dos Termos de Ajustamento de Conduta (TAC), os quais têm demonstrado como efeito a ampliação das vagas, sobretudo nas regiões sudoeste, norte e leste do referido Estado, cuja maioria são municípios com pequeno porte populacional.

Para Feldman (2017) , a atuação da judicialização no sistema educacional pode se tratar de uma via autoritária, pois não existem critérios de controle social (como no caso dos poderes eleitos). A solução por meio de remédios jurídicos funciona de maneira paliativa, com a necessidade de se atentar para o fato de que os operadores do direito muitas vezes são de carreiras elitizadas, cujos critérios adotados podem ter fundos plutocráticos.

Nesse caso, não existe neutralidade na atuação dos operadores do direito, e a intervenção do Poder Judiciário provoca impactos nas demandas populares e na atuação dos poderes Executivo e Legislativo, conforme aponta Feldman (2017) . Ainda segundo a autora, existem visões tanto positivas quanto negativas em relação à judicialização, mas não se pode negar os avanços que esse fenômeno causou na educação, uma vez que o mesmo contribuiu para o cumprimento das políticas públicas de interesses sociais ( FELDMAN, 2017 ).

A esse respeito, os pedidos por meio dos TACs aparecem como pedidos de previsão de verbas, orçamentos e contratações, além do recolhimento de multa. A maior ocorrência de procedimentos é em regiões do estado do Paraná, com maior incidência de vagas. Isso significa que as regiões com mais carência de atendimento têm menor quantidade de procedimentos buscando o acesso. Outro dado relevante dos resultados discutidos por Feldman (2017) é que, apesar da priorização da pré-escola na formulação dos TACs, são as creches que têm um número mais elevado de matrículas.

Os resultados permitem confrontar a ideia de que a judicialização acontece frente à omissão do Poder Executivo, pois, no Paraná, a distribuição geoespacial dos termos não coincide com o baixo atendimento. Essas informações notificam que há uma correlação de forças entre o poder público e o Ministério Público, nos cenários político e social, conforme apontado por Casagrande (2008 , p. 160), quando este afirma que “magistrados e promotores da infância e da juventude acabam por exercer, na prática, funções executivas e de mediação de conflitos sociais relativos ao tema da criança e do jovem”.

Nessa categoria, Rafaela Oliveira (2011 , 2015 ) considera que as decisões judiciais são paliativas, soluções imediatistas que não resolvem a questão das vagas a longo prazo, a qual deveria ser sanada através de uma ação planejada. Feldman (2017) concorda e reforça a existência da correlação de forças entre os órgãos e instituições jurídicas e administrativas, revelando que a ampliação das vagas tem sido um dado positivo, mas ainda insuficiente e inversamente proporcional à taxa de atendimento. Para concluir, as considerações a seguir pontuam constatações e proposições necessárias no cenário da judicialização na educação infantil brasileira.

Considerações e proposições

Os resultados encontrados nas pesquisas acadêmicas brasileiras da última década apontaram que a judicialização provoca efeitos de caráter político, pedagógico e jurídico, interferindo na forma de implementação de políticas públicas e no regime de atuação do Poder Executivo; na atuação de professores e gestores escolares, ao lidarem com a constante entrada de crianças na escola, sem infraestrutura e planejamento adequados; e na atuação de diferentes órgãos e instituições que atuam tanto nas esferas judicial quanto extrajudicial.

A judicialização ainda é insuficiente no sentido de atendimento e garantia do direito coletivo a creches e pré-escolas, tendo em vista que é um fator pontual de liberação de vagas, não conseguindo, em sentido amplo, dar conta de garantir o acesso de todas as crianças. Segundo Ranieri (2013) , os esforços para implementação do direito ainda são desiguais, tanto em nível nacional como em nível internacional, mesmo com a legislação estabelecendo padrões mínimos de atendimento à educação.

As pesquisas são unânimes ao concluir que o processo da judicialização tem favorecido a ampliação de vagas, embora não tenha conseguido suprir a crescente demanda nos últimos anos. Além disso, as implicações nas políticas públicas são marcantes, na medida em que as decisões judiciais interferem nas ações dos poderes eleitos, sobretudo do Poder Executivo. Por meio do estudo, foi possível interpretar os efeitos da judicialização no aspecto pedagógico da primeira infância; nas palavras de Ribeiro e Cornélio (2018 , p. 62), “a qualidade pedagógica [...] está sob ameaça através do processo de judicialização e consequente inchaço das turmas, afetando, como já dito, a gestão como um todo e a prática docente”.

A ampliação do direito é gradual, na medida em que a sociedade civil busca resoluções para sua conquista e efetivação, seja por meio de processos judiciais ou extrajudiciais. Assim, a interação entre sociedade civil e Estado é dinâmica e constante, em vista a atender os direitos populares de maneira igualitária, centrada na reconstrução ou redefinição do espaço público, lutando por construir os meios e os caminhos pelos quais o aprofundamento da democracia possa conduzir a um novo modelo de Estado e de sociedade, capazes de garantir as condições de um efetivo predomínio do interesse público na esfera da vida social e política ( COUTINHO, 2006 ).

Desse modo, é prioritário que os órgãos municipais responsáveis realizem anualmente o censo de todas as crianças em idade escolar, para que seja possível organizar o número de vagas e instituições que precisem ofertar o ensino em cada bairro ou região, a fim de que o direito de estudar próximo à residência também seja pleiteado. Outras proposições versam sobre a necessidade de diálogo e união entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, por meio de comissões organizadas para debater e enfrentar os desafios da falta de vagas nas instituições de educação para crianças de 0 a 5 anos, articulando sociedade civil, instrumentos e instituições jurídicas, bem como organização política municipal, a fim de que um trabalho conjunto consiga constituir uma rede real de proteção dos direitos sociais de acesso e qualidade da educação.

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2- Os direitos coletivos, conforme previsto no Art. 5º do Capítulo I da CF ( BRASIL, 1988 ), são direitos de grupos ou categorias de pessoas que visam a dignidade humana.

Recebido: 17 de Março de 2022; Revisado: 11 de Maio de 2022; Aceito: 28 de Junho de 2022

Maciela Mikaelly Carneiro de Araújo é mestre em educação pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), na Bahia. Pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Formação de Professores/NUFOP-UEFS.

Solange Mary Moreira Santos é doutora em educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professora plena da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS), na Bahia. Coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Formação de Professores/NUFOP-UEFS.

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