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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 20-Jan-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248234239 

ARTIGOS

A rede estrangeira de estudos sobre antropologia da educação pensada por meio da inscrição literária

1- Universidade Estadual de Maringá, Maringá, PR, Brasil. Contatos: brunolaa@hotmail.com; fcarniel@uem.br


Resumo

O objetivo deste artigo é descrever a prática por meio da qual a rede estrangeira de estudos sobre antropologia da educação adquiriu credibilidade para as suas escritas, utilizando a inscrição literária. A inscrição literária é um princípio metodológico que permite analisar redes intelectuais nas pesquisas educacionais acerca dos processos de aquisição de aprendizagem e conhecimentos. Os fios que conectam os componentes dessas redes são explorados por meio da análise de um livro seminal para o campo da antropologia da educação nos Estados Unidos e na Europa, mas que foi e segue sendo desconsiderado pela academia brasileira. Trata-se do livro Education and anthropology, editado por George D. Spindler, no ano de 1955, que descreveu de forma seminal as principais ideias, abordagens e filiações teórico-metodológicas que passaram a organizar as investigações sobre antropologia e educação no exterior. A obra é analisada para oferecer à academia brasileira a agenda de usos e interpretações da antropologia da educação fora do país. A partir do livro analisado, foi factível perceber a construção de uma agenda polissêmica de usos e interpretações do termo cultura pelo campo de estudos da educação. Desse modo, uma narrativa parcial da concepção do campo científico da antropologia da educação é oferecida, podendo ser conectada a outras versões locais, estaduais e/ou nacionais.

Palavras-Chave: Antropologia; Educação; Antropologia da educação; Organização escolar; Inscrição literária

Abstract

The purpose of this article is to describe the practice through which the foreign network of studies on anthropology of education acquired credibility for its writings, using literary inscription. The literary inscription is a methodological principle that allows the analysis of intellectual networks in educational research about learning and knowledge acquisition processes. The threads connecting the components of these networks are explored through the analysis of a seminal book for anthropology of education in the United States and Europe, but which was and continues to be disregarded by Brazilian academia. The book Education and anthropology, edited by George D. Spindler, in 1955, seminally described the main ideas, approaches and theoretical-methodological affiliations that began to organize research on anthropology and education abroad. The work is analyzed to offer Brazilian academia an agenda for uses and interpretations of the anthropology of education outside the country. From the analyzed book, it was possible to perceive the construction of a polysemic agenda of uses and interpretations of the term culture by the field of education studies. In this way, a partial narrative of the conception of the scientific field of anthropology of education is offered, which can be connected to other local, state and national versions.

Key words: Anthropology; Education; Anthropology of education; School organization; Literary inscription

Introdução

Quem disse que a antropologia não teria nada a oferecer à compreensão da vida escolar? A longa história de desencontros entre as perspectivas antropológicas e a pesquisa educacional parece já não conseguir encobrir o enorme interesse que a área tem despertado no meio acadêmico. Atualmente, são inúmeras as obras e coletâneas que se dedicam à educação. Todos os anos são abertos novos fóruns de debate especializado para analisar aspectos diversos dos sistemas de ensino. Cada vez mais estudantes aparecem nas universidades com o desejo de realizar trabalhos de campo nas escolas. Até mesmo a disciplina de antropologia da educação pôde se consolidar em certos cursos de graduação e de pós-graduação com a ambição de qualificar a formação docente. Mas o que motiva toda essa movimentação? O que se espera dessa área hoje que não se esperava, digamos, há quase um século atrás?

Ao discutir as origens desses diálogos entre antropologia e educação, Gusmão (1997) observa que a aparente novidade que teria se instaurado nas últimas décadas do século XX em torno da descoberta da alteridade, do relativismo e das diferenças, por parte dos debates educacionais, invisibiliza uma tradição mais densa e rica entre as duas áreas, que remonta à própria constituição dos projetos modernos de formação humana. Um encontro que teve início ainda no final do século XIX, com as primeiras tentativas de se compreender as interfaces entre a infância e os sistemas educativos (GALLI, 1993), se desenvolveu em diferentes países durante as primeiras décadas do século XX por meio de gabinetes de antropologia pedagógica. Nesses e em outros movimentos do período, a antropologia se fez presente enquanto uma área capaz de colocar em perspectiva a pretensa universalidade com que os modelos educacionais formais habitualmente são apresentados.

Um dos episódios talvez mais promissores dessas tentativas de articular os campos de trabalho da antropologia e da organização escolar, no entanto, ocorreu ao longo das décadas de 1930 e 1940, no contexto das reformas curriculares promovidas nos Estados Unidos. Sob forte influência do culturalismo de Franz Boas, diversos antropólogos participaram da criação de planos curriculares, de materiais pedagógicos e desenvolveram inúmeros relatos e análises comparadas entre sistemas de ensino em diferentes locais e culturas. Entre os desdobramentos conhecidos dessa atuação estão os trabalhos de Margaret Mead. No conjunto de sua obra, Mead (1951) converteu a educação em um objeto privilegiado para a antropologia ao argumentar que seria justamente por meio dos processos educacionais que as pessoas poderiam vivenciar os padrões culturais.

Com tais preocupações em vista, George Spindler conseguiu reunir um grupo de trabalho disposto a discutir a construção do então emergente campo disciplinar da antropologia da educação nos Estados Unidos. Assim, em 1954 ele organizou a primeira conferência dedicada a debater os avanços nos estudos realizados em organizações escolares. Reunidos em Stanford, antropólogos e antropólogas norte-americanas eminentes da época, tais como Margaret Mead, David Baerreis e John Whiting, falaram para um público heterogêneo de profissionais vinculados à educação. A intenção foi explorar as fronteiras entre as áreas, bem como as potencialidades do método etnográfico, seus conceitos e os problemas de investigação que os diferentes campos de trabalho lhes apresentavam. Para sintetizar e divulgar os resultados dessas exposições, Spindler coordenou ainda a editoração de uma obra que se tornaria um dos marcos seminais da antropologia da educação norte-americana, a coletânea Education and anthropology, publicada em 1955.

Evidentemente, cada geração intelectual que sucedeu aos esforços realizados pelo grupo coordenado por Spindler percebeu e atribuiu sentidos particulares a essa história e aos significados de uma antropologia da vida escolar. Contudo, em diferentes contextos intelectuais, o aparente silêncio a respeito dos diálogos entre antropologia e educação travados em Stanford revela quão afastadas da vida escolar estiveram as preocupações de diversos antropólogos e antropólogas. De nossa parte, não interessa reificar a obra de Spindler ou transformá-la em uma espécie de mito fundador de um campo disciplinar que começa a se consolidar no presente com as tentativas de interpretar os contemporâneos sistemas de ensino. Pretendemos apenas assumir a clássica coletânea organizada por Spindler enquanto um documento histórico capaz de revelar aspectos sensíveis da trama de associações e de interesses que movimentou a antropologia norte-americana dos anos 1950. A partir da coletânea organizada por Spindler (1984), o objetivo deste artigo é descrever a prática por meio da qual a rede estrangeira de estudos sobre antropologia da educação adquiriu credibilidade para as suas escritas, utilizando a inscrição literária.

A noção de inscrição literária foi utilizada por Latour e Woolgar (1997) para organizar os dados coletados no decorrer da etnografia do Instituto Salk. A inscrição literária permitiu que esses autores demonstrassem como enunciados foram transformados em fatos em um laboratório desenhado para desenvolver pesquisas biológicas. Nesse caso, trata-se de um princípio organizador que permite classificar e relatar sistematicamente as observações do livro organizado por Spindler (1955). Este artigo assume Spindler (1955) como um sistema de inscrição literária “cuja finalidade é, por vezes, convencer que um enunciado é um fato” (LATOUR; WOOLGAR, 1997, p. 101). Para tanto, nossa visão privilegiou o livro organizado por Spindler (1955) (documento escrito) e os dispositivos de inscrição (metapesquisas, pesquisa bibliográfica, análise de outros artigos) que estenderam e que foram utilizados por Spindler (1955) na exploração do terreno da antropologia da educação.

Trata-se, sem dúvida, de um campo delicado de se etnografar, pois os textos acadêmicos costumam ser percebidos antes pelas ideias que veiculam do que pelas operações materiais que estabelecem (CARNIEL; AMÉRICO, 2018; AMÉRICO; CARNIEL; CLEGG, 2019). No entanto, entendemos que, ao entrar neste texto, podemos acessar também aspectos públicos das relações que favoreceram a postulação de formas legítimas e estáveis de se investigar o universo educacional moderno. Ao final, não teremos a pretensão de reconstituir a história da formação da antropologia da educação, mas apenas apresentar uma visão alternativa àquela que especialistas do campo já oferecem sobre seus trabalhos.

Abrindo o livro

Mesmo sem saber o que encontraríamos nesta coleção de textos de 1955, começamos a leitura. Em “Foreword”, George Spindler revela que esse livro reporta artigos e quatro dias de uma conferência sobre as inter-relações entre educação e antropologia, realizada em 1954. Eddy (1985) argumenta que a Conference on Anthropology and Education, reunida em Stanford, em 1954, representa uma guinada histórica para a antropologia da educação. Tal conferência, como relata Spindler (1955), foi pensada e planejada inicialmente em conjunto com Margaret Mead, David Baerreis e John Whiting no encontro anual de 1952 da American Anthropological Association.

Os meses que seguiram o encontro de 1952 foram dedicados para que as ideias surgidas, tanto quanto os inquéritos, fossem compartilhadas com antropólogos e educadores, cujas respostas e sugestões serviram para embasar a solicitação de recursos concedida pela Carnegie Foundation para realizar a conferência e formalizar seus resultados. Com o recurso em mãos, seguiu a fase de planejamento, que envolveu membros da School of Education e do Department of Sociology and Anthropology da Stanford University e da University of Chicago. Uma última discussão sobre a conferência, que seria convocada em 1954, foi realizada com diferentes grupos de antropólogos no encontro de 1953 da American Anthropological Association. A soma dos esforços, encontros e discussões suscitou contribuições prévias à conferência de mais de dez universidades e de pessoas envolvidas com as áreas da educação e da antropologia. O formato exploratório da conferência e da organização de seus resultados, conforme relata George Spindler, deve-se ao interesse de compreender as fronteiras das relações entre as disciplinas da antropologia e da educação, bem como os aspectos débeis e fortes de seus conceitos, dados, métodos e problemas.

George Spindler manifesta que os tópicos e áreas definidos para a conferência, e em seguida formalizados em um livro, servem como um trampolim para discussões, e não para postular limites desse campo de estudos (em torno de Spindler (1955) mitologicamente) recém-inaugurado por um esforço conjunto entre, em um primeiro momento, educadores e antropólogos. Mais do que a construção de uma perspectiva integrada/privilegiada para o estudo (etnográfico) de escolas e dos sistemas (redes) educacionais onde elas estão inseridas, esse primeiro contato com Spindler (1955) despertou certa inquietação em compreender o modo pelo qual aqueles textos narravam o território acadêmico que acabava de ser inventado e em que eles próprios se viam inseridos.

Então, partimos para a leitura do “Preface” da obra, que foi escrito por Lawrence K. Frank para dar continuidade ao “Foreword”. Pudemos entender, com base na leitura desse prefácio, que para compreender o modo pelo qual os textos que compõem a obra de Spindler (1955) narram o campo da antropologia da educação seria necessário “recall what has taken place during the past fifty years in education” (FRANK, 1955, p. 7). Uma vez que “as ideias e os conhecimentos podem estender-se em todas as direções no espaço e no tempo” (LATOUR, 1994, p. 116), esse livro confirmou o instinto inicial de que um artefato – mesmo apresentando a forma purificada de um livro – tem o poder de oferecer um ponto de partida instigante para refazer a gênese de tal cadeia de associações.

Para Lawrence K. Frank, o cotejamento com a área de estudos da educação se iniciou no século XIX com psicólogos estudando processos de aprendizagem por meio de animais de laboratório e de transferência do treinamento, bem como desenvolvendo testes padronizados para avaliar e mensurar a educação e programas experimentais de aprendizagem diversos. Essas contribuições foram suplementadas por sociólogos e psiquiatras, na percepção de Lawrence K. Frank, quando as variáveis extracurriculares, principalmente ligadas à família dos estudantes, foram assumidas como fatores significativos para os estudos comunitários e para as investigações clínicas das crianças da escola. Esse reconhecimento produziu, para Frank (1955), entre outros, programas de orientação e o diagnóstico de crianças com baixo desempenho escolar, dando início à responsabilização das escolas pelas dificuldades dos estudantes. Lawrence K. Frank segue seu relato cronológico pela contribuição dos estudos sobre desenvolvimento e crescimento da criança na década de 1930, quando comitês foram criados e financiados para desenvolver estudos – longitudinais e quantitativos, apesar de contarem com a participação pioneira de antropólogos – que passaram a questionar a necessidade de um conjunto de requerimentos rígidos impostos aos(às) alunos(as), a focar no desenvolvimento da personalidade dos estudantes, a melhorar as condições de ensino dos professores diante da inserção de novos tópicos educacionais.

O estudo da personalidade, da individualidade e da cultura, incluindo questionamentos a respeito da aculturação e socialização das crianças para revelar padrões e relações existentes nas organizações e sistemas educacionais, são, para Lawrence K. Frank, as principais contribuições da antropologia para a educação na década de 1930 – ao menos até o início da Segunda Guerra Mundial –, merecendo destaque os seminários sobre o impacto da cultura na personalidade (Yale, 1930, sob a direção de Edward Sapir) e sobre relações humanas (Hanover, 1934). Foi nesse período, na percepção de Lawrence K. Frank, que inúmeros estudos demonstraram que cada criança aprende de uma maneira, enquanto se desdobra para afirmar sua individualidade como parte de um grupo social, evidenciando que a escola – e em especial as universidades responsáveis por formar professores – deve contribuir para o desenvolvimento de cada criança, e não apenas socialmente ajustando e adequando-as.

Ao refletir sobre o presente, esse autor aponta que o resultado desses estudos demanda uma maior responsabilidade da escola como provedora de serviços para os(as) alunos(as) e, ademais, para as famílias desses estudantes. A família passou a não ser mais considerada como a primordial instituição responsável pelo ensino de habilidades acadêmicas e de um conjunto predeterminado de conhecimentos. Para conceber essa renovada e responsabilizada organização escolar, que deve operar mais efetivamente e consciente de suas realizações em nossa sociedade, Lawrence K. Frank aponta que a antropologia pode contribuir por meio de seus estudos acumulados, que descrevem o processo educacional desde os primeiros aprendizados em diferentes culturas para além da educação formal.

Antes de partirmos para a análise da primeira das dez seções que compõem a obra de Spindler (1955), o texto de Eddy (1985) é analisado para examinar o desenvolvimento histórico da antropologia da educação dentro dos limites do crescimento e expansão da disciplina da antropologia como um todo. Segundo Eddy (1985, p. 83), as raízes históricas do (um dos muitos) grupo de interesse da antropologia da educação podem ser rastreadas a partir do final do século XIX, “when anthropology emerged as a science”. Eddy (1985), Barnes e Barnes (2012), Chamberlain (1896), Fletcher (1888), Stevenson (1887) e Vanderwalker (1898) foram os primeiros a reconhecer que a antropologia poderia contribuir com a pedagogia, com o currículo escolar e com o entendimento da cultura da infância/meninice. Uma vez que Eddy (1985) considera que a antropologia educacional contemporânea é responsável pelo crescimento e desenvolvimento da antropologia social e cultural na década de 1920, dentro de sua proposta de relacionar profissionalização da antropologia e o desenvolvimento da antropologia da educação como uma área especializada, ela inicia a análise com base nos anos de 1925 a 1954, que ela denomina formative years. A seguir, revisamos a bibliografia citada por Eddy (1985) referente a esse período que antecede Spindler (1955).

De maneira similar a Frank (1955), Eddy (1985), a partir de uma leitura de Robert e Akinsanya, demonstra que, entre as décadas de 1930 e 1960, um notável número de antropólogos se dedicou à análise de sistemas formais de educação e à aculturação de crianças. Eddy (1985) aponta que apenas Malinowski e Boas começaram suas carreiras antes da antropologia romper com o século XIX, ou seja, com um evolucionismo unilinear e com teorias que, de maneira extremista, enfatizavam o papel da difusão na história da cultura. Simbolicamente, Eddy (1985) corrobora que o nascimento da antropologia social – prática/aplicada – pode ser conferido a Malinowski e Radcliffe-Brown. As obras dos antropólogos ingleses, ou ainda, “the scientific knowledge produced by this type of study”, dedicadas a estudar contemporaneamente o comportamento humano e as instituições, poderia ser aplicado a “practical problems of planning administrative and educational policies for native populations in the British colonies” (Eddy, 1985, p. 85). Segundo Eddy (1985), uma transição similar ocorreu nos Estados Unidos por meio dos trabalhos de Boas e Mead, que passaram a revelar a importância prática do trabalho do antropólogo para os problemas educacionais. Para Eddy (1985, p. 85), o trabalho de Margaret Mead, orientado por Boas, arguiu em favor do valor de comparar “American civilizations with ‘simpler’ societies in order to illuminate our own methods of education”.

Ao oferecer uma perspectiva sobre o terreno no qual a antropologia aplicada, prática e/ou social emergiu, e, consecutivamente, foi transladada para a compreensão de temas e inquéritos educacionais, Eddy (1985) descreve as relações entre mudanças institucionais da disciplina da antropologia após 1920 e os desenvolvimentos intelectuais da moderna antropologia social e cultural. A autora passa a narrar mudanças nas bases de financiamento do trabalho antropológico, esforços filantrópicos dos Estados Unidos e da Europa na educação da África e de populações indígenas, a promoção do intercâmbio internacional de estudiosos, o incentivo do trabalho interdisciplinar nas universidades para a compreensão de problemas ligados à raça, imigração, impacto de mudanças sociais, inclusive analisando minuciosamente a história de vida de alguns antropólogos. Contudo, os aspectos econômicos e institucionais, bem como as relações sociais/interdisciplinares evidenciadas por Eddy (1985), muito apressadamente correlacionados à definição das ciências sociais como ciência aplicada, dão a impressão de que a antropologia é outra das inúmeras ciências “cujo ideal estaria pervertido pelo homem, ou desviado pela indústria, pelo dinheiro e pelo século […]” (LATOUR; WOOLGAR, 1997, p. 19). Uma vez que a narrativa da autora carece de uma síntese entre, de um lado, as noções econômicas, institucionais, psicológicas, e, do outro, a produção de problemas, inquéritos, dúvidas, certezas pela antropologia, permanece obscuro e arbitrário o modo de produção do conhecimento antropológico no período formativo.

Decidimos partir para a análise desenvolvida por Eddy (1985) sobre a aplicação da antropologia na educação neste período de 1925 a 1954, que ressalta o embate teórico dos antropólogos dessa época com Freud, Piaget e Watson. Mais do que um embate entre autores, tratava-se de um desafio entre duas perspectivas – uma dedicada a compreender a generalização sobre o comportamento e o desenvolvimento humano e a outra a mapear informações sobre variações entre culturas. Dentre os estudos relacionados pela autora, alguns demonstraram que dentro da sociedade americana há diferentes aculturações e participações nos sistemas educacionais formais em relação com diferentes raças, etnias e classes sociais, como é o caso de Davis, Gardner e Gardner (1941), Dollard (1937), Drake e Cayton (1945), Gillin (1948), Hollingshead (1949), Johnson (1941), Lynd e Lynd (1929), Warner (1942), Warner e Lunt (1941), Warner, Havighurst e Loeb (1944) e West (1945). Outros autores escreveram trabalhos etnográficos para serem usados em textos e ortografias de escolas indígenas bilíngues, conforme relatado por Eddy (1985) com base em Kennard e MacGregor (1953). Assim como Frank (1955), Eddy (1985) aponta o envolvimento de antropólogos americanos, financiados por fundações e corporações, na revisão do currículo de estudos sociais do ensino médio, no estudo da vida na escola e das comunidades nas quais os alunos estavam inseridos, bem como em seminários sobre o impacto da cultura na personalidade (Yale, 1930, sob a direção de Edward Sapir) e sobre relações humanas (Hanover, 1934). Um exemplo oferecido por Eddy (1985) foi a participação interdisciplinar de psicólogos, psiquiatras, médicos e antropólogos em um programa de pesquisa de ação social cooperativa de seis anos, iniciado em 1941 pelo governo dos Estados Unidos em parceria com a University of Chicago e a Society for Applied Anthropology, sobre Indian personality, education, and administration. Como corrobora Eddy (1985), esse estudo foi desenvolvido com aproximadamente mil crianças, em doze reservas, pertencentes a cinco tribos, com vistas a coletar informação científica que embasasse a construção de melhores políticas públicas para o Indian administration e educational programs. A autora ainda relata a participação de Malinowski em uma conferência internacional na África do Sul (New Education Fellowship, 1934), a organização de uma conferência na University of Hawaii para tratar problemas de educação e de ajuste entre as pessoas do Pacífico (KEESING, 1937) e uma conferência no Teachers College em Nova York (The educational problems of special cultural groups, 1949).

Ainda sobre a aplicação da antropologia na educação, até 1954, encontramos, dentre os estudos que citam Spindler (1955), o texto de Yon (2003). Esse autor descreve alguns trabalhos seminais que embasaram a emergência da disciplina antropologia da educação como um campo de estudos legítimo, como Mead (1951), Pettitt (1946), Spindler (1955) e Boas (1962). Yon, de modo inclusivo, parte de Eddy (1985) para caracterizar seu segundo tópico de estudo, denominado The formative years. A antropologia da educação, nesse período, cada vez mais reclamou e defendeu os direitos/interesses de grupos marginalizados. Para Yon (2003), o British structural functionalism influenciou a antropologia da educação nos Estados Unidos em seu período formativo, apresentando o estudo de Pettitt (1946) como uma das pesquisas seminais desse paradigma holístico do campo de estudos da antropologia da educação nas culturas indígenas desse país.

Nesses anos formativos, de acordo com Yon (2003), cada vez mais a cultura era compreendida como algo que mudava dinamicamente no seu processo de transmissão e a etnografia como um empreendimento social e reflexivo. Uma obra que reflete (e inclusive evoca) a postura engajada das pesquisas desenvolvidas na época, segundo Yon (2003), é The school in American culture (MEAD, 1951). Yon entende que essa obra de Margaret Mead justapõe a pequena red schoolhouse à escola da cidade moderna para trabalhar temas relacionados à patologia da cultura norte-americana, personalidades (contrastantes das escolas), mudança cultural. Os temas personalidades e mudança cultural foram predominantes na antropologia da educação nesse período, conforme relata Yon (2003) com base em Spindler (1955). Por último, Yon (2003) sinaliza como algumas ideias de Boas (1962) influenciaram as preocupações e questionamentos que passaram a distinguir a antropologia da educação nessa época e nas próximas décadas, como a preocupação com a análise do modo como significados até então considerados inatos – como a raça – são construídos e culturalmente sustentados, por meio de um método que dá ênfase na formação social do grupo. Como demonstraram Eddy (1985) e Yon (2003), esse período formativo foi marcado por constantes aproximações entre a antropologia e a antropologia da educação europeia e a norte-americana.

Por meio dos estudos desenvolvidos nesse período de formação, o campo de estudos da antropologia da educação pôde, progressivamente, estabelecer-se como um fato. Nesse processo, como demonstram Wolcott (1987), Frank (1955), Eddy (1985) e Yon (2003), a obra organizada e editada por Spindler (1955) – que sumarizou as discussões levadas a cabo durante a primeira Educational Anthropology Conference em Stanford no ano de 1954 – participou ativamente do processo pelo qual a área estabelecida sob o nome da antropologia da educação pôde se estabilizar como um fato inquestionável. O objetivo, portanto, será partir do discurso fixado pela coletânea e, por meio dele, compreender como determinado conjunto de textos científicos, organizados para situar suas pesquisas enquanto antropológicas e educacionais, conseguia estabelecer uma rede de associações materiais e simbólicas que contribuem para sustentar e manter uma parcela das proposições teóricas e dos investimentos empíricos da antropologia da educação ao redor do mundo.

Os significados do campo da antropologia da educação

Abordaremos aqui a primeira das dez seções que compõem a obra intitulada Introduction to anthropology and education. Essa primeira seção foi escrita pelo historiador James Quillen, que esteve vinculado à School of Education da Stanford de 1936 a 1967, quando faleceu. O texto de Quillen (1955, p. 1) almeja definir “some of the problem areas in education where anthropology can make a contribution”. Para o autor, a partir do pressuposto de que a educação é um processo cultural, os antropólogos podem contribuir para dirimir o conflito sobre qual seria a função apropriada da escola, contribuindo com os esforços anteriormente levados a cabo por biólogos, sociólogos, psicólogos, historiadores, filósofos. Ao considerar o conhecimento conceitual e as ferramentas oferecidas pela disciplina, Quillen (1955) reconhece que os problemas enfrentados pelos educadores extrapolam as áreas nas quais os interesses de antropólogos e educadores convergem. A Figura 1 procura tornar visual a descrição de Quillen (1955) sobre os problemas enfrentados por educadores e as áreas nas quais os problemas educacionais estão centrados, bem como os inquéritos comuns às duas áreas em relação a técnicas/estudos antropológicos.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Figura 1 – Inquéritos antropológicos e/ou educacionais e a relação com a antropologia 

É importante notar que a referida descrição de Quillen (1955), representada por meio da Figura 1, é estruturada a partir de dois conceitos centrais: preocupação (real) da escola e função (esperada) da escola. Por um lado, o autor atesta a importância de assumir como função da escola a transmissão cultural e a formação de personalidade dos(as) estudantes, revelando o potencial da antropologia em lidar com temas relacionados à aculturação e socialização. Por outro lado, Quillen apresenta outras funções esperadas da escola, mas que são consideradas conflituosas, a saber: inovação cultural, bem como extensão e desenvolvimento da cultura norte-americana. Logo, o autor passa para o reconhecimento de que a agência educacional da escola compete com outras organizações, não necessariamente formais (família, igreja, comunicação de massa, amigos), para demonstrar como o conteúdo da antropologia sobre a influência de experiências educacionais não ligadas à escola pode ajudar a reforçar a agência – seja esperada ou desejada – da escola. Entretanto, a Figura 1 não deve indicar que a disciplina da antropologia da educação, por meio de sua caixa de ferramentas e de seu banco de estudos culturais comparados, dependa tão somente de seu potencial de avigorar a capacidade de ação da cada vez mais sobrecarregada organização escolar/rede de ensino (FRANK, 1955; QUILLEN, 1955). O reconhecimento de que a autoridade científica de determinada disciplina é inevitavelmente mediada por reivindicações de retórica e poder (BLOOR, 1981; KNORR-CETINA, 1981; KNORR-CETINA; MULKAY, 1983; LATOUR, 1984) permite considerar que a facticidade desses postulados também precisa ser encarada como a causa e não a consequência do universo prático escolar que, paradoxalmente, afirmam representar. Em continuação, Quillen (1955) segue apresentando os problemas e funções da escola e os objetos de interesse da pesquisa da antropologia da educação em uma linguagem suficientemente persuasiva para ambas as áreas. Isso contribui para que, no decorrer de sua narrativa, as múltiplas e complexas funções e problemas da escola se afastem das inúmeras controvérsias que teriam permitido a sua postulação para se estabelecer enquanto fatos estáveis que fundamentariam a organização de toda uma rede de pesquisas.

Quillen (1955) persuade os(as) educadores(as) e antropólogos(as) ao defender que o referencial mobilizado pela antropologia, ao mesmo tempo que representava uma espécie de síntese dos esforços realizados por algumas gerações de estudos devotados aos interlocutores da pesquisa e à observação participante prolongada, também operava como o fundamento dos novos estudos da emergente antropologia da educação. Assim, esse autor pode gerar um efeito de verdade para a sugestão de que a antropologia pode corroborar a definição do(a) homem/mulher cultural ideal e a preservação de valores centrais da sociedade em contexto de prática escolar. Dessa forma, era como se, uma vez estabelecidos enquanto fatos validados por uma rede de trabalho, as categorias antropológicas utilizadas na investigação dos fenômenos empíricos se cindissem em duas entidades distintas. Por um lado, seguiam sendo uma sequência de palavras que comunicariam algo provável a respeito de um objeto particular; por outro, esses mesmos enunciados se transformavam em fenômenos independentes dos anteriormente estudados, ativando uma gramática já consolidada pelo estudo de outras problemáticas correlatas.

Foi ao menos dessa maneira que Quillen (1955, p. 2) conseguiu tratar do currículo (Figura 1) como um problema compartilhado por educadores e antropólogos, já que promove o entendimento de que a seleção do programa escolar, a partir de incontáveis possibilidades, apenas pode ser empreendida com base em “considerable cultural insight and understanding”. Quillen (1955), por meio de outras operações nas quais fenômeno e interpretação do fenômeno se reforçam mutuamente, apresenta os métodos de ensino-aprendizagem (Figura 1) como mais uma problemática que pertence a antropólogos e educadores, ao promover o entendimento de que os estudos sobre aculturação em outras culturas permitem que os educadores busquem formas para que o conhecimento transmitido em sala seja apreendido efetivamente na vida social dos alunos – ajudando a entender que métodos de ensino poderiam desenvolver cidadãos democráticos, valores morais e espirituais e uma personalidade saudável. Dessa maneira, Quillen (1955) segue criando uma interpretação que lhe permite demonstrar como outros problemas educacionais, ao serem igualmente culturais, podem ser solucionados apenas por meio da antropologia social. Dito de outra forma, a resolução dessas adversidades pode ocorrer pela antropologia comparada a outros povos e culturas em relação com métodos formais e informais do conhecimento, tanto quanto pelas técnicas e métodos relacionados à escrita etnográfica. Outra vez, é impossível, dessa maneira, discutir formação de grupos nas escolas (Figura 1) sem tratar da variedade de formações culturais dos povos ou da interpretação (cultural) comparada desses grupos. Igualmente, seria difícil falar da avaliação dos estudantes (Figura 1) sem que se questione se esses testes são culturalmente justos. Sem a invenção – enunciada por Roy Wagner – desses problemas correlatos, seria impossível legitimar o campo de estudos da antropologia da educação. Para esse autor, “uma perspectiva exterior é tão prontamente criada quanto as nossas mais confiáveis perspectivas ‘interiores’” (WAGNER, 2012, p. 19). Esse raciocínio é exemplificado pelo argumento da relatividade cultural, que ao denunciar outras perspectivas generalizadoras, apresenta a cultura como outra ilusão a serviço dos desejos ordenadores de antropólogos. Essa ilusão, evidentemente, participa da construção desse campo comum a educadores e antropólogos.

Embora tenhamos consciência de que a disciplina da antropologia e suas subdivisões, incluindo a antropologia da educação, tenham adquirido validade e cientificidade para suas pesquisas ao longo do tempo por direito próprio, percebemos que faltam elementos suficientes para entrar nessa polêmica acerca da legitimidade dos problemas evocados como homólogos às áreas da educação e da antropologia. O desconhecimento do conteúdo empírico responsável por ter sustentado tais interpretações e, de outro modo, de alternativos pontos de vista que concorreriam com a história da antropologia da educação (teorias, métodos, técnicas) viabilizou o seguinte questionamento: existe qualquer similaridade entre o conhecimento dos problemas da educação de interesse mútuo de antropólogos e educadores e o conhecimento gerado sobre o conhecimento dos problemas da educação partilhados por esses profissionais? Esse inquérito foi elaborado considerando o fato de que a existência de um problema educacional – em torno da função esperada ou devida da escola, da formação de grupos, da avaliação educacional, do currículo, de métodos de ensino-aprendizagem – que produz uma resposta tanto cultural como pedagógica diverge do conhecimento produzido sobre esse problema educacional por antropólogos e educadores. Independentemente do modo de existência da ciência empregada para solucionar esse paradoxo, não é factível negar a existência de ambos os conhecimentos, que parecem se conservar em uma mesma rede de significados; uma textura sustentada pela própria antropologia da educação. Não temos a pretensão de oferecer a mesma resposta tautológica dos(as) epistemólogos(as) (cf. LATOUR; WOOLGAR, 1997). Para tanto, optamos por prontamente retornar a Spindler (1955) antes que esse objeto fosse compreendido pelos caminhos habituais da interpretação científica.

Ao continuar com a leitura da primeira seção de Education and anthropology, deparamo-nos com um capítulo escrito pelo editor dessa obra de 1955, George Spindler. Aludimos ao texto denominado Anthropology and education: an overview, no qual Spindler (1955, p. 5) posiciona seu objetivo geral de “survey the articulation of these two fields” em oposição ao reconhecimento de que não havia, no momento daquela escrita, a existência de uma educational anthropology. A Figura 2 demonstra os campos e interesses considerados como relevantes pela rede desempenhada mutuamente por educadores e antropólogos (SPINDLER, 1955).

Fonte: Elaborado pelos autores.

Figura 2 – Campos e interesses relevantes pela rede desempenhada mutuamente por educadores e antropólogos 

Ao narrar os interesses da antropologia na educação, representados pela Figura 2, Spindler (1955) relaciona a antropologia física (biológica) ao texto Pedagogical anthropology, da autora Montessori (1913). O autor segue seu raciocínio apontando que o tema raça, dentro da antropologia física (biológica), também foi de grande contribuição para a educação, em especial por meio dos trabalhos de Otto Klineberg sobre as relações entre raça, cultura e quociente de inteligência (QI) e de Ethel Alpenfels sobre significados de raça e o mito da superioridade racial. Logo, o autor aponta que percebeu um interesse no seminário de 1954 nos emergentes campos da personalidade na cultura e dinâmicas culturais da antropologia. Cross-cultural education é outro campo da antropologia de importância para a educação, de acordo com Spindler (1955, p. 7), que referenda o trabalho de Pettitt (1946) como “the kind of thing that needs to be done with more comparative cross-cultural data”. Segundo Spindler (1955), há outras áreas da antropologia – mais problemáticas e pouco definidas, com exceção de Herskovits (1943) – de proveito para educação, como cultural dynamics, que analisa processos de mudança e estabilidade cultural a partir do entendimento de que a educação opera em meio a exigências culturais. Existe, também, o campo da estrutura social (social structure) da antropologia, que contribui para os problemas da educação. Por último, ao discorrer diversamente sobre as principais influências da antropologia na educação (Figura 2), Spindler (1955) afirma ser necessário conhecer trabalhos que analisam os processos e problemas educacionais em relação com uma classe social (social class) e com a estrutura da comunidade, e que igualmente se conheça mais sobre as sociedades não literárias (simpler societies) para que se possa verdadeiramente apreender a educação como um processo sociocultural.

Dessa forma, ao passar da narrativa sobre os interesses da antropologia na educação à descrição das principais influências da antropologia na educação, o autor evidencia que para realizar uma antropologia da educação é imprescindível que a educação seja entendida como um processo social e cultural. Como processo sociocultural, a educação – seja ela formal ou informal – deve ser pensada em comparação com a efetivação desse processo em outras sociedades, simples ou complexas. Em prol de uma invenção conhecida por relatividade cultural, que promove a busca por inter-relações entre redes de educação, processo educacional e estrutura social (kinship or rank or complex political-social system) em sociedades não ocidentais, a atenção dos pesquisadores é empurrada para fora da escola. Com tal alvitre, como poderia a educação viver sem a antropologia?

Com esse questionamento, gostaríamos de destacar o que Latour e Woolgar (1997) já chamaram de um processo de cisão e inversão nos significados dos enunciados científicos – uma estratégia discursiva que atribui objetividade e realidade à atividade de pesquisa. No parágrafo anterior, Spindler (1955) começa sua narrativa com a construção de um objeto de estudo que pretendia dizer algo a respeito das áreas da antropologia de interesse da educação. Tal construção, entretanto, apenas conquistaria credibilidade à medida que conseguisse traduzir o fenômeno particular dos problemas da educação a partir de um conjunto de categorias e perspectivas de análise que, por sua vez, permitiriam a fabricação de ferramentas e procedimentos que permitam apreender a educação – observar, descrever, analisar – como um processo sociocultural. Uma vez produzido todo esse arcabouço teórico-metodológico, Spindler (1955) pôde, então, criar certa correspondência entre os problemas da educação e as próprias percepções que a interpretação antropológica – aplicada, comparada, relativa – revela.

Ao longo da leitura que realizamos de Spindler (1955), foi possível evidenciar a coexistência de diferentes estratégias retóricas que sustentavam e organizavam o conteúdo de seus capítulos em torno dessa necessária e interdependente relação entre a educação e a antropologia. Contudo, para não ser acusado de erro, fantasia ou falsidade, Spindler (1955) precisava que suas interpretações sobre a realidade e a realidade por ela mesma se entrelaçassem, mas não se confundissem. Com esse intuito, uma operação retórica deveria possibilitar que o discurso a respeito dos problemas da educação começasse a se distinguir do discurso antropológico sobre o discurso a respeito dos problemas da educação. A implicação imediata dessa cisão não era apenas a separação entre fenômeno e interpretação, mas, principalmente, a inversão na ordem de seus significados. De construto intelectual produzido pelos(as) pesquisadores(as), os problemas da educação passavam a ser descritos tautologicamente por intermédio da reformulação ou reenunciação das próprias narrativas que as haviam gerado. Era justamente essa inversão na qualidade das enunciações que criava a ilusão de que, ao escreverem sobre os significados dos problemas da educação, também estariam escrevendo sobre um fato independente: os problemas da educação, como eles realmente seriam.

Certamente, nada disso garantirá que determinados enunciados conseguirão se estabelecer no universo da antropologia da educação, sobretudo porque, como entenderemos na continuação, inúmeros outros trabalhos surgiram até 2016 sustentando perspectivas divergentes e contestando a credibilidade dessas enunciações pavimentadas em torno da relatividade cultural. No entanto, uma vez que Spindler (1955) pôde estabelecer de maneira formal a área da antropologia da educação por meio de textos que igualmente promoveram a cisão e a inversão de enunciados em torno de problemas educacionais e percursos de pesquisa antropológicos, esse campo pode adquirir certa independência em relação aos seus objetos de estudo e sofrer uma nova transformação: tornando aquilo que era mera constatação dos problemas da educação (realidade particular ou fato) se transformasse no indício de algo mais profundo (episteme). Ao menos, foi esse o modo como Spindler (1955) conseguiu formalizar um campo de estudos dedicado às relações entre os problemas da educação na antropologia – um raciocínio que apenas se revelaria com o exame das práticas das organizações escolares e dos sistemas de ensino. Ou seja, por intermédio de um processo de dedução e generalização, a interpretação conseguia se desprender do contexto da pesquisa para conquistar uma existência relativamente autônoma e, com sucesso, fundamentar a construção (teórico-conceitual) de diversas outras realidades particulares.

Considerações finais

No entendimento de Spindler (1955), o conteúdo apresentado até este momento é radicalmente diferente do restante das pesquisas que foram apresentadas durante o simpósio de 1954. Para esse autor, independentemente dos demais textos extrapolarem o que se conhece por uma antropologia tradicional, as pesquisas puderam “put into motion some applications of mutual relevance to both fields. They are experimental and question-raising, therefore, since no articulated education anthropology structures exists from which they could drawn” (SPINDLER, 1955, p. 6). Desse modo, este texto procurou debater o processo de construção de etnografias na organização escolar a partir da estabilização da antropologia da educação como um fato. Isso porque a edificação desse campo, ou ainda, desse fato, estabilizou inúmeros pontos de partida seguros e estáveis para a produção de novos trabalhos. Consequentemente, também serviam para a criação de toda uma rede de pesquisas devidamente organizada em torno de determinados conceitos e perspectivas de análise. Com isso, a intenção não é negar a ideia de que a realidade possa existir independentemente da atividade científica. Pelo contrário, afirmamos apenas que a existência objetiva dos objetos científicos é a consequência e não a causa do trabalho de pesquisa (LATOUR; WOOLGAR, 1997).

Nos dias de hoje, a antropologia da educação, que teve sua história e escopo como disciplina e campo definidos por inúmeros trabalhos após Spindler (1955) (cf. BANKS, 1993; EDDY, 1985; FISHER, 1998; HESHUSIUS; BALLARD, 1996; LEVINSON; WINSTEAD; SUTTON, 2020; SPINDLER; SPINDLER, 1982; WILCOX, 1982), pode ser compreendida como um fato ainda mais estabelecido. Independentemente de a antropologia da educação e a antropologia, a partir das décadas de 1950 e 1960, não demandarem uma hipotética cientificidade de seus textos, foi exatamente o reconhecimento dos múltiplos significados da cultura, da reflexividade imposta e dos limites associados ao trabalho etnográfico, somados a um objeto de estudo – organização escolar e redes de educação – de interesse multidisciplinar, que permitiu um exponencial aumento de suas publicações (SPINDLER, 1984; 2000). Ainda assim, permanece aberto o apelo a novas representações de técnicas de pesquisa etnográfica empregadas outrora em escolas. Dito de outra forma, esperamos não ter deixado a impressão de haver sugerido que os estudos clássicos da antropologia da educação devam ser descartados. Longe disso. O trabalho de Jackson (1968), por exemplo, oferece insumos substantivos para que se considerem os eventos transitórios na escola, em sala de aula, para que seja possível prover informações a respeito da vida na escola (life in classrooms). Ou ainda, como indica Smith e Geoffrey (1968), é relevante atentar a formas escritas que permanecem ocultas à observação participante, dentro das bolsas dos alunos, em formato de cartas escritas pelos pais às escolas (ou vice-versa) (complexities of an urban classroom). Por um lado, a cultura não pode mais ser encarada como “property of social groups, bounded, determined, and internally coherent, and the kinds of certainty that characterized ethnographic findings in earlier eras could no longer be guaranteed” (YON, 2003, p. 423). Por outro lado, a escrita etnográfica segue como uma forma de alfabeto e de representação (contestada) a partir da qual é factível compreender a organização escolar na (e apesar de qualquer) prática.

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Recebido: 19 de Fevereiro de 2020; Aceito: 02 de Junho de 2020

Bruno Luiz Américo é pesquisador do Grupo de Pesquisa Sociologia do Conhecimento e da Educação, Universidade Estadual de Maringá (UEM), doutor em Administração pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) com período sanduíche pela University of Technology Sydney (UTS).

Fagner Carniel é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Estadual de Maringá (UEM), doutor em Sociologia Política pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e pós-doutorado em Sociologia pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).

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