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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 07-Mar-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248238747 

Artigos

O papel da violência escolar no abandono da carreira docente: proposta de uma matriz analítica1

Sullyvan Garcia-Silva2 
http://orcid.org/0000-0002-9843-5672

Paulo Lima Junior3 
http://orcid.org/0000-0002-3382-8387

2- Polícia Militar de Goiás, Goiânia, GO, Brasil. Contato: sull.garcia@pm.go.gov.br

3- Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil. Contato: paulolimajr@unb.br


Resumo

A violência escolar é tema de pesquisa no Brasil desde os anos 1980 e está entre os principais desafios enfrentados pela educação no país. O objetivo central deste artigo é discutir o papel das experiências de violência escolar no abandono da carreira docente. Para isso, entrevistamos uma ex-professora que, assim como muitas outras, abandonou a docência após sofrer exaustão emocional em decorrência das violências sofridas na escola. A partir da literatura e da investigação narrativa dos relatos da ex-docente, consideramos importante reconhecer que a violência escolar é uma experiência objetivamente regulada e subjetivamente vivida. Enquanto realidade objetivamente regulada, a violência pode ser classificada como crime, incivilidade e violência simbólica. Como experiência subjetivamente vivida, podemos distinguir diferentes graus de banalização que, no sentido empregado por Arendt, designa a superfluidade e a superficialidade das relações humanas em sistemas totalitários. Juntas, as duas dimensões, objetiva e subjetiva, formam o que denominamos matriz da violência escolar, uma ferramenta analítica potencialmente útil para investigar como a violência influencia os percursos profissionais docentes. Os resultados ainda permitiram entender como os diversos agentes escolares (alunos, diretor e a própria professora) participam da produção da violência escolar e como as partes envolvidas têm percepções conflitantes. Por fim, implicações na formação de professores são discutidas.

Palavras-Chave: Violência escolar; Formação de professores; Abandono docente; Sociologia da educação

Abstract

School violence has been a research topic in Brazil since the 1980’s and it is one of the main challenges the national education system faces. The central objective of this article is to discuss the role of the experiences of school violence in the abandonment of the teaching career. To this end, we interviewed a former teacher who – as many others - had given up teaching after suffering emotional exhaustion due to the violence experienced at school. Based on literature and on the narrative inquiry of the former teacher’s reports, we considered it important to realize that school violence is an experience which is objectively regulated and subjectively experienced. While an objectively regulated reality, violence can be classified as a crime, incivility and symbolic violence. As a subjectively lived experience, we can distinguish various levels of trivialization that – in Arendt’s sense – designate the superfluity and the superficiality of the social relationships in totalitarian systems. Together, both dimensions – objective and subjective – constitute what we term as the school violence matrix, which is an analytical tool that is potentially useful for investigating how the violence can influence the paths of teaching professionals. Also, the results enabled us to understand how the several school agents (students, the principal and even the teacher) participate in the production of school violence and how the parties involved have conflicting perceptions. At last, implications for the teachers’ education are discussed.

Key words: School violence; Teacher education; Teaching abandonment; Sociology of Education

Introdução

A violência escolar tem sido tema importante para o sistema educacional brasileiro e um fator preponderante na razão para o abandono da carreira por parte de professores que se sentem violentados (FAVATTO; BOTH, 2019; SOUTO, 2016). Em tempos de proletarização da docência e escassez de professores (CONTRERAS, 2002; RUIZ; RAMOS; HINGEL, 2007; WATANABE; GURGEL, 2017), passa a ser fundamental entender o papel estruturante da violência na constituição da vida escolar, tanto para evitar que esse problema se perpetue, como para diminuir os seus efeitos em quem permanece no sistema de ensino, evitando, assim, o aumento do déficit de professores no Brasil (LIMA JUNIOR, 2018; TARTUCE; NUNES; ALMEIDA, 2010).

Diversas pesquisas têm apresentado a violência escolar, sob a perspectiva dos estudantes, como um sintoma ligado à exclusão escolar (DUBET, 2004), às relações de gênero, classe e raça (DUBET, 2004; SANTOS, 2001; SILVA NETO; BARRETO, 2018; WILLIS, 1977), à identidade (ARAÚJO, 2001), à reafirmação da masculinidade (CARVALHO, 2003; SILVA NETO; BARRETO, 2018), ao tráfico de drogas (CUNHA, 2014; PRIOTTO; BONETI, 2009; SILVA; ASSIS, 2018), à falta de acesso a políticas públicas, de oportunidades e de trabalho (PRIOTTO; BONETI, 2009; SILVA; ASSIS, 2018), e, à perda da legitimidade da escola e dos diplomas como forma de ascensão social (SILVA; ASSIS, 2018; SILVA; SALLES, 2010; WILLIS, 1977).

Algumas pesquisas analisam as experiências de violência a partir das memórias dos professores. Tais investigações se apoiam nas lembranças estudantis de quando esses professores eram mais jovens e que contribuíram, em certa medida, para adiar seu desejo de ser professor. Ainda sobre violência, Watanabe e Gurgel (2017), por exemplo, argumentam que a violência simbólica funciona como um motor, que potencializa as experiências de discriminação de classe e cor no ambiente escolar, contribuindo para que lembranças negativas dos professores de ciências e matemática permanecessem em suas memórias.

Contudo, quando passamos a observar o professor e sua relação com a violência escolar, percebemos que muitos não se sentem preparados suficientemente no início de carreira (GESTRADO, 2010; NUNES; OLIVEIRA, 2017), sendo que um dos desafios a serem enfrentados é a mudança do contexto ao qual estão habituados (GESTRADO, 2010). De fato, os cursos de licenciatura têm negado acesso a um conjunto de saberes sobre a violência o que dificulta o trabalho dos professores em ambientes marcados por esse tipo de experiência.

Diante desse quadro, lançamos a seguinte questão de pesquisa: qual é o papel das experiências de violência no abandono da carreira docente?

Como parte de um projeto de pesquisa mais amplo, apresentamos aqui uma matriz analítica que acrescenta a noção de banalidade do mal (ARENDT, 2018) à classificação de violência escolar proposta por Charlot e Émin (1997). Essa matriz analítica será colocada em prática na investigação narrativa (CONNELLY; CLANDININ, 1990) das experiências profissionais de Madalena Valente, jovem branca, de classe média e ex-professora de história da rede pública de Goiás. Formada por uma das melhores universidades brasileiras, Madalena abandonou a docência após passar por experiências de violência no início da carreira.

A investigação narrativa da vivência de Madalena Valente poderá, em um primeiro momento, colaborar para que outros professores, que vivem experiências de violência, se identifiquem com a história dela. Em um segundo momento, esperamos que a pesquisa possa contribuir para a diminuição dos índices de abandono da carreira docente e que a matriz da violência escolar elaborada seja capaz de trazer avanços para a literatura existente.

Fundamentação teórica

A matriz da violência escolar, que surgiu ao investigarmos as histórias contadas por Madalena Valente, está baseada no simples pressuposto de que todas as experiências de violência escolar são (1) objetivamente reguladas e (2) subjetivamente vividas. Afirmar a regulação objetiva da violência escolar significa dizer que ela está relacionada a normas e instituições sociais que ultrapassam os limites da ação individual. Normas e instituições podem prever sanções para alguns atos violentos ao mesmo tempo que legitimam outros. Nesse contexto, a escola pode ser considerada, ao lado de outros aparelhos do Estado (ALTHUSSER, 2013), uma instituição fundamental para regular e praticar a violência legítima (BOURDIEU; PASSERON, 2009). Por outro lado, legítimos ou não, todos os atos violentos podem ser vividos ou percebidos de maneira diversa por indivíduos diferentes. Isso não se deve à existência de uma individualidade essencial e pré-social em cada um de nós, mas justamente porque variações no processo de socialização tendem a produzir formas muito diferentes de ser e de agir no mundo (LAHIRE, 2005).

Violência escolar objetivamente regulada

Historicamente, a pesquisa sobre a violência escolar esteve mais voltada à violência da escola sobre o aluno, especialmente por parte do professor que recorre a sansões, punições e castigos como parte do trabalho escolar (BOURDIEU; PASSERON, 2009). De maneira complementar, a literatura contemporânea tem privilegiado o estudo sobre a violência escolar em sentido estrito, praticada entre alunos ou de alunos contra a propriedade privada. Há, portanto, uma dificuldade em definir o que chamamos de violência escolar em sentido amplo, pois ela designa um conjunto muito diverso de experiências que têm em comum a desconstrução da fantasia de que a escola é um “refúgio da paz” (ABRAMOVAY, 2015, p. 21).

Como resposta à dificuldade de delimitar os contornos da violência escolar frente à polissemia conceitual e aos modelos analíticos existentes (GARCÍA; MADRIAZA, 2006), Charlot e Émin (1997) recomendam distingui-la em três tipos.

O primeiro diz respeito à violência tipificada como crime e corresponde a qualquer ato violento que justifique a ação policial por estar registrado no ordenamento jurídico, por exemplo, lesão corporal, homicídios; violência sexual, furtos, roubos e dano. O segundo tipo é composto pela violência como incivilidade, caracterizada por atos cuja tipificação criminal não existe ou é duvidosa, mas que constituem desrespeito às normas morais e de convivência, como humilhações, insinuações, palavras grosseiras, gestos obscenos (ABRAMOVAY, 2015; DEBARBIEUX; BLAYA, 2002). Por último, a violência simbólica é qualquer ato de imposição praticado em uma ação pedagógica por um agente pedagógico. Ela é um poder que impõe significações, e as impõe como legítimas, dissimulando as relações de força que estão em sua base (BOURDIEU; PASSERON, 2009) e fazendo parte de qualquer trabalho pedagógico legítimo ou não.

Essa conceituação é importante para explicitar que, ao falar de violência escolar, estamos designando um conjunto muito variado de experiências. Podemos nos referir, por exemplo, aos atos violentos (roubos, agressões, estupros, homicídios) que justificam acionar o aparelho repressor do Estado e que causam prejuízo aos estudantes e profissionais da educação. Ao mesmo tempo, a violência escolar pode designar experiências de imposição não autoritárias que, previstas pelo funcionamento “normal” da escola, não deixam de configurar atos de violência.

Como essa tipificação da violência escolar é bastante consagrada na literatura (BOURDIEU; PASSERON, 2009; CHARLOT; ÉMIN, 1997), não iremos exaurir seus significados aqui. Para os propósitos da nossa matriz, importa perceber que os conceitos de crime, incivilidade e violência simbólica permitem posicionar a experiência de violência em relação às estruturas, normas e instituições sociais. Assim, a violência é uma realidade objetiva por exceder os limites da pele e da percepção.

A tipificação de um crime pode não depender de como os autores e vítimas percebem e justificam suas ações. Doloso ou culposo, movido por motivos torpes ou passionais, um homicídio ainda é um homicídio. De maneira análoga, a violência simbólica (BOURDIEU; PASSERON, 2009) praticada pelo professor ao impor significações como legítimas não deixa de ser objetivamente uma imposição quando é aceita e desejada pelos estudantes. Quando acolhida com docilidade, a imposição torna-se mais eficiente. Portanto, dentro de certos limites, as experiências de violência podem ser identificadas a despeito de como seus autores e vítimas se sentem e se justificam nessas experiências. Isso só é possível porque a violência não é um fenômeno estritamente individual, voluntarista, mas é regulado (isto é, tipificado, reprimido, legitimado, incentivado) por estruturas, normas e instituições sociais que ultrapassam o limite da consciência individual.

Violência escolar subjetivamente vivenciada

Para a segunda dimensão da matriz, recorremos ao conceito de banalidade do mal esculpido por Hannah Arendt (2018) ao tratar do julgamento do oficial nazista Adolf Eichmann, responsável por organizar as deportações de judeus, levando-os aos campos de concentração. Tendo em vista o número de artigos, cartas públicas, debates, réplicas e tréplicas entre seus defensores e detratores, a obra foi considerada uma das mais polêmicas escritas em língua inglesa nos anos 1960 (ANDRADE, 2010).

Hannah Arendt tentou permanecer afastada das polêmicas advindas do livro, respondendo apenas a poucos amigos e intelectuais que a procuravam. Havia um ar de descontentamento de muitos: o povo judeu, que foi acusado de falta de resistência e passividade; a elite judaica, acusada de certa ingenuidade e cumplicidade; o povo alemão, acusado de omissão e conveniência; os políticos alemães, de falta de punição aos funcionários nazistas que ainda trabalhavam para o governo; e a juventude alemã, de “teatralização” de uma culpa coletiva (ANDRADE, 2010).

Eichmann foi considerado um hostis humani generis (inimigo do gênero humano) que participou de um assassinato em massa promovido por um sistema totalitário. Essa figura pitoresca é descrita como um burocrata, um criminoso, que só pode ser entendido como agente de uma organização. Para Arendt (2018), a função do burocrata não é a responsabilidade pelo ato, mas sim a execução dele, daí dizer “eu só cumpro ordens”. Esse, aliás, foi o principal argumento de Eichmann: “Não sou o monstro que fazem de mim. Sou uma vítima da falácia” (p. 269).

Eichmann apresentava-se como um homem virtuoso e bom – “minha honra é minha lealdade” (ARENDT, 2018, p. 121) –, e afirmava que seu único erro foi o de cumprir as ordens dos superiores, não entendendo o porquê era acusado de ser um criminoso por aquele tribunal, pois era um bom cidadão, ainda que em um Estado assassino. Se estivesse em um Estado justo, seria um bom cidadão. Eichmann era, de fato, um bom cumpridor de ordens, pois cumpria com rigor o seu dever de encaminhar milhares de judeus à morte. Para Arendt, Eichmann exibia uma personalidade condicionada e sem motivação aparente, tornando-o capaz das maiores atrocidades. Esses aspectos levaram-na a se convencer de que Eichmann não era um monstro, ao contrário, era um homem comum, tão comum quanto os outros alemães: “o problema de Eichmann era exatamente que muitos eram como ele, e muitos não eram nem pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais” (ARENDT, 2018, p. 299).

A autora se recusava a acreditar que o genocídio seria o resultado de um desvio moral. O comportamento de normalidade de Eichmann assustou Arendt, que buscou outros modelos teóricos para explicar “o mal” para além do determinismo histórico e da distorção moral identificável na ideologia nazista. Segundo psicólogos e sacerdotes que examinaram Eichmann, o seu comportamento “não é apenas normal, mas inteiramente desejável”, “um homem de ideias muito positivas” (ARENDT, 2018, p. 37). Eichmann era um homem que, além de parecer normal, era bom pai de família, um filho e irmão exemplar e dedicado. Outra característica de Eichmann que chamou a atenção da autora foi sua dificuldade em se expressar espontaneamente, pois sua fala era cheia de clichês, que ele próprio admitia, “minha única língua é o oficialês” (p. 61). As falas de Eichmann despertaram o senso irônico de Arendt.

Apesar de todos os esforços da promotoria, todo mundo percebia que esse homem não era um “monstro”, mas era difícil não desconfiar que fosse um palhaço […]. De minha parte, estava efetivamente convencida de que Eichmann era um palhaço. (ARENDT, 2018, p. 67).

Para Andrade (2010), Hannah Arendt desloca a concepção kantiana já consolidada no pensamento moral, de que o mal é radical, para um novo conceito, o de que o mal é superficial. Assim, Arendt refuta a concepção kantiana de mal e o inscreve na normalidade das relações humanas. Ela estava convencida de que o mal não tinha raízes, profundidade, nem semente, mas se espalhava sobre a massa de cidadãos inaptos a pensar por si e incapazes de dar um significado aos acontecimentos por meio de atos próprios (ANDRADE, 2010).

Arendt (2018), no entanto, esclarece que a banalidade de Eichmann não significava que fosse inocente e, ainda, que a banalidade não significava a normalidade. Ela estava convencida de que ele era culpado e precisava pagar por seus crimes. Portanto, o conceito não surge como uma forma de isentar atos ilícitos, mas de compreendê-los. A banalidade tampouco corresponde ao que é frequente, ordinário. Dizemos que algo é “lugar comum” quando se trata de um fenômeno ordinário e trivial, algo que, de certa maneira, acontece com regularidade. O banal, por outro lado, acontece na superficialidade e superfluidade. Para ela, o banal não seria algo comum, tampouco trivial, mas que ganha espaço justamente por ser percebido e praticado como algo supérfluo.

Arendt argumenta que a superficialidade dos algozes e a superfluidade das vítimas resultam do vazio do pensamento, núcleo central do banal para a autora, que significava a falta, a ausência, um não ser (DINIZ, 1995). Ora, se um ser humano não consegue ter uma relação de profundidade com outro ser humano, isso significa, para Arendt (2018), que lhe faltava algo, que há uma ausência que, no caso de Eichmann, foi preenchida pela ideologia de um sistema totalitário.

Metodologia

A matriz analítica

Como é possível perceber, a violência ocupa lugares diferentes na vida das pessoas. A matriz que apresentamos aqui constitui um instrumento analítico para investigar o abandono da carreira docente. Com base no pressuposto de que a violência é objetivamente regulada (pela lei, pelos costumes, pela escola) e subjetivamente vivenciada (com diversos graus de superficialidade e superfluidade), nossa matriz classifica as experiências de violência dos professores no cruzamento de duas dimensões. A primeira dimensão trata da regulação objetiva da violência, distinguindo: (1) violência tipificada como crime; (2) violência como incivilidade; e (3) violência simbólica. A segunda dimensão, distingue as experiências de violência tal como são subjetivamente vividas: (1) violência percebida e (2) violência banalizada (Quadro 1).

Quadro 1 – Matriz das experiências de violência escolar 

  Violência percebida Violência banalizada
Violência tipificada como crime    
Violência como incivilidade    
Violência simbólica    

Fonte: Elaborado pelos autores.

A violência percebida (primeira coluna) é o tipo de violência que ainda nos choca como seres humanos, sendo o oposto da violência banalizada. Ela nos conecta por meio de relações empáticas profundas. Essa empatia está relacionada tanto ao reconhecimento da importância de cada ser humano quanto à nossa capacidade de nos sentirmos tocados em nossa vulnerabilidade quando o outro é vítima de violência. Já a violência banalizada (segunda coluna) caracteriza-se pela superficialidade e superfluidade das relações humanas violentas (ARENDT, 2018). Nesse tipo de relação, o agente não consegue perceber a violência porque a ligação com a vítima é vazia, sem raízes profundas e, portanto, desumanizadora. É como se o indivíduo que agride e o que sofre a violência, ambos presentes na mesma cena, fossem inumanos. O algoz se torna inumano por negar a condição humana do outro; a vítima, por ser o objeto dessa negação (CAVARERO; BUTLER, 2007).

Nas linhas da matriz, distinguimos a violência com respeito à regulação objetiva (isto é, realizada por instituições e costumes que ultrapassam a escala individual). A primeira linha representa as experiências de violência escolar que, tipificadas como crime, são passíveis de coerção por parte do aparelho repressor e reguladas negativamente por punições previstas em lei. Em oposição, estão as experiências de violência escolar legitimamente exercidas como parte de um processo educativo (promovido pela escola, igreja, polícia ou qualquer outra instituição que detenha o legítimo exercício de algum tipo de violência). No meio-termo, as incivilidades representam desrespeitos aos costumes e normas sociais, que nunca estão muito claramente especificados e, por isso, tendem a gerar dúvida quanto à tipificação e regulação. Cada uma dessas três formas de violência pode ser percebida ou banalizada.

Enfim, a matriz da violência anterior surge como uma ferramenta analítica para compreendermos de que maneira as diferentes experiências de violência escolar reportadas por professores repercutem em um possível abandono da carreira.

Procedimentos e métodos

Ainda que tenhamos apresentado a matriz da violência escolar como se ela tivesse surgido a partir da fundamentação teórica, não foi por esse caminho que chegamos a ela. A possibilidade de organizar a experiência dos professores dessa maneira surgiu durante a investigação narrativa (CONNELLY; CLANDININ, 1990; CLANDININ, CONNELLY, 2011) de Madalena Valente4 (nome fictício), ex-professora da rede pública do estado de Goiás que abandonou a carreira docente depois de vivenciar diversos episódios de violência escolar. O conceito de experiência utilizado neste trabalho parte da narrativa tridimensional de Clandinin e Connelly (2011), apoiada na teoria da experiência de Dewey (1938), e se estrutura em três dimensões: pessoal e social; passado, presente, futuro; e local.

Madalena foi entrevistada pelo primeiro autor do artigo, que não a conhecia, mas sabia que ela tinha abandonado a docência muito cedo por ter vivido uma série de experiências de violência escolar. As falas de Madalena foram gravadas e transcritas posteriormente. A compreensão empática dos relatos e a percepção crítica das relações de poder e autoridade foram instrumentos fundamentais para conduzir a entrevista e analisar os resultados (BOURDIEU, 1998). A entrevista não tinha um roteiro, mas o diálogo livre do entrevistador com a ex-professora tinha o propósito claro de responder às seguintes questões:

  1. Quais experiências de violência foram vividas pela entrevistada no exercício da profissão?

  2. Como essas experiências contribuem para o abandono da carreira docente pela entrevistada?

É importante destacar que, ao perguntar sobre violência, o entrevistador não fez nenhum tipo de definição sobre qual tipo de violência seria abordada. Permitiu que a entrevistada falasse livremente, sem interrupções, sobre suas experiências, segundo seu olhar.

Análise

Nossa discussão dos resultados será apresentada em dois movimentos. Primeiramente, apresentamos uma narrativa em primeira pessoa da história de vida de Madalena. Nessa narrativa, quem diz “eu” é o primeiro autor do artigo, responsável por conduzir a entrevista e dar acabamento à história. A escolha da redação em primeira pessoa permitiu destacar como o entrevistador se posiciona com relação à entrevistada, que conflitos e sentimentos ele experimenta em seu processo de escuta. Após esse primeiro movimento, categorizamos as experiências reportadas segundo a matriz analítica proposta, permitindo distinguir as diferentes formas de violência que aparecem no relato.

A violência escolar como rotina

Madalena Valente tinha 27 anos na ocasião da entrevista. Nós nos encontramos em um café na cidade de Goiânia, em que ela se mostrou muito disposta e confortável ao falar das experiências ocorridas há mais de cinco anos. Apesar disso, o grau de detalhe com que ela se lembrava das cenas e dos diálogos era impressionante. Madalena foi escolhida para a entrevista porque o segundo autor já conhecia previamente suas experiências de violência e seus desdobramentos na formação da entrevistada. Foi por meio da fala de Madalena, juntamente com às concepções teóricas apreendidas, que a matriz de violência foi construída.

Qualquer pessoa com empatia se sensibilizaria com o que ela contou. Para narrar a história, senti a necessidade de me colocar no lugar de Madalena, tentar ver pelos seus olhos, o que não foi tarefa fácil, afinal, sou professor e policial; como lido com a violência diariamente, por vezes não percebo o quanto um ato violento machuca, pois nem sempre o lugar do outro é perceptível. Uma das consequências de ter a violência como objeto de trabalho é correr o risco de nos tornarmos seres humanos menos sensíveis, burocratas que não se compadecem da dor da vítima. A partir de um lugar mais empático, pude perceber as violências sofridas por Madalena e entender os motivos que a levaram a desistir de uma carreira promissora.

Logo após a graduação, em torno dos 22 anos de idade, Madalena foi aprovada em um concurso público e designada para uma escola em um bairro de classe média alta, próximo de sua residência. Lá, ela ministrava aulas de ciências humanas e sociais aos jovens que vinham de uma região muito violenta e vulnerável que fica no limite do município de Goiânia com o de Trindade: o Jardim Cerrado. Madalena trabalhava na segunda etapa de uma turma de “aceleração”, o equivalente ao ensino médio, mas de curta duração, composta por estudantes que, por alguma razão, não conseguiram concluir o ensino médio em tempo regular.

Madalena disse ter uma relação “horizontal” com os alunos, mas deixou implícito um modelo tradicional de educação.

Eu sou uma professora muito tranquila. Sempre tratei os adolescentes numa relação muito horizontal [sem hierarquia]. Sempre fui uma professora que mantinha o diálogo em sala de aula. Comigo, nas minhas aulas, eu até autorizava, em algum grau, que os alunos mantivessem conversas paralelas. Eu não me importo desde que eu perceba que a conversa está relacionada ao tema da aula, mesmo que seja piada.

Inicialmente, ela me contou como era o trabalho em sala de aula, de onde eram os alunos e como aparentemente tudo possuía uma “ordem” estranha marcada por vários tipos de violência. Madalena relatou brigas frequentes na escola e suas tentativas de evitar que elas acontecessem: “Eu via brigas no pátio e já tentei apartar briga várias vezes entre meus alunos”. Como Madalena era recém-formada, jovem e sem contato anterior com o tipo de violência ao qual as populações da periferia são constantemente submetidas, suas intervenções carregavam uma mistura de inconformidade e inexperiência.

A escalada da agressividade

Em certo momento de sua aula, Madalena pediu que os alunos fizessem uma atividade em grupo, mas, diferentemente dos trabalhos anteriores, ela selecionou os grupos de acordo com o grau de competência dos estudantes.

Eu percebia que, toda vez que eu passava uma atividade em grupo, eles se agrupavam conforme suas afinidades. Eles faziam uma atividade meia-boca e ficavam felizes. Então, eu tive uma ideia brilhante… vou escolher os grupos! Peguei a lista de chamada. Como estava mais para o final do ano, e eu já conhecia os alunos. Então, eu separei os grupos assim: os com mais facilidade e os com mais dificuldades. […] Eu sabia que viriam palavrões. Quando eles começaram a arrastar as cadeiras, eu disse: “Espera aí! O trabalho é em grupo e eu vou escolher os integrantes”.

Neste instante, um dos alunos mais queridos dessa professora, aquele que sempre a tratou com muito carinho, mudou de comportamento, afirmando que não cumpriria o que lhe fora pedido.

Caralho, professora, se a senhora colocar pra fazer com fulano eu não vou fazer não!” Aí, ele estava lá, e percebi que ele não se movimentou, cheguei perto e eu o enfrentei: “O que tá acontecendo? Você não vai fazer a atividade com seus colegas?” Ele disse: “Eu não vou fazer! Eu vou fazer atividade sozinho”. “Eu não vou aceitar se você fizer sozinho”. Ele disse: “Não! Não vou fazer!” Pegou o papel e começou a escrever. Eu disse: “Aí que você se engana, eu falei das regras e é o que eu vou fazer. Qual é o problema?!”

Neste momento, o clima ficou tenso e a turma silenciou. Talvez outras pessoas soubessem dos motivos que o aluno tinha para fazer o trabalho sozinho, mas Madalena só ficaria sabendo algum tempo depois e seguiu tratando o comportamento do estudante como um desrespeito à sua autoridade como professora. Para pressionar o estudante, lançou mão de uma das sanções mais usuais e legítimas da educação escolar:

Quando eu reafirmei que zeraria a nota, ele surtou: “Você é uma professorinha de merda, uma burguesinha que o pai vem buscar depois do trabalho. Você não sabe nada da vida! Você acha que esse diploma da UFG vale alguma coisa? Vale porra nenhuma, garota! Você não sabe de nada da vida não! Se enxerga! Se eu falei que vou fazer o trabalho assim, vou fazer assim”. Nessa hora, ele estava gritando comigo, a uma distância de um metro de mim. Eu fiquei em estado de choque, sem me mexer. Ele me chamou de piranha, filha da puta, desses xingamentos tradicionais, eu fiquei em estado de choque. Hoje, eu não reagiria da forma que eu reagi, faria diferente. Hoje eu ficaria tranquila.

Os xingamentos (incivilidades) não eram incomuns e estavam presentes no dia a dia da escola. Para os estudantes, xingar era uma banalidade: “Eles xingavam uns aos outros o tempo todo!”. Para ela, era um comportamento extremamente ofensivo. Enquanto as agressões não tinham Madalena como alvo, ela conseguia contornar seu constrangimento. Porém, quando os ataques verbais vieram em sua direção, ela ficou paralisada. Sem entender, insistiu que sua ordem fosse cumprida e jogou o caderno de desenhos do aluno para fora da sala de aula. O estudante tinha muito carinho por aquele caderno, pois gostava de desenhar aviões e sempre dizia que seu sonho era entrar para a Aeronáutica. A partir desse momento, o aluno partiu para agressão física, arremessando uma cadeira contra ela, que conseguiu se desviar e se esconder no banheiro.

Uma professora que estava na sala do lado e que ouviu os berros, mas não sabia o que tinha acontecido, foi até o banheiro e falou pra eu ir conversar com o diretor. Aí eu fui no diretor e contei o que aconteceu e ele disse: “Olha, você é muito nova, não deveria ter feito isso, porque eles são cheios de rixas entre eles, mas você está bem? A cadeira acertou em você?” “Não.” “Então, tá! Respira um pouco e volta pra sala.” Se fosse hoje eu teria dito: “Voltar pra sala!? Tá maluco?!”. Mas, naquele dia, eu voltei pra sala.

O episódio mostra, em primeiro lugar, que a troca de ofensas entre professora e aluno foi em um tom elevado, considerado pela entrevistada como “berros”, ou seja, foi possível ouvir a gritaria fora da sala de aula. Em segundo lugar, destaca-se a atitude do diretor que minimizou uma experiência tão forte de violência em sala de aula, que parece não o perturbar mais, pois foi tomada como normal em um ambiente onde as pessoas estão expostas a esse fenômeno. Ao olharmos a reação do diretor, podemos concluir que ele enxergava uma relação superficial com a professora, sentindo que ela era uma pessoa supérflua, não merecedora de uma atenção maior, agindo, portanto, como o burocrata descrito por Arendt (2018).

Ao narrar esse trecho, ela demonstrou indignação pela atitude tomada pelo diretor. Era perceptível sua dor ao contar esse episódio e a frustração de ouvir do diretor o pedido para que voltasse para sala de aula. Inexperiente, ela voltou. Enquanto voltava, ela descreveu o medo que sentia de ser agredida novamente, do quanto ela estava vulnerável naquele momento ao pensar na possibilidade de ficar sozinha com o agressor. Afinal, ela poderia ter sido gravemente ferida se o mobiliário arremessado a tivesse acertado.

Com os ânimos mais calmos, os dois agressores-agredidos (a professora e o estudante) entraram em um acordo para que o episódio fosse deixado para trás e as aulas pudessem continuar. Apesar do acordo feito, a professora não era mais a mesma. Com o tempo, ela começou a apresentar sinais de depressão e síndrome do pânico. Ela contou que sentia falta de ar quando saía com amigos e iam a ambientes barulhentos. Os episódios de violência a marcaram profundamente.

Algum tempo depois, a professora ficou sabendo o motivo de aquele aluno ter se tornado um agressor. Ao me contar, ela demonstrou um sentimento genuíno de compreensão, como se entendesse a reação do aluno. Ela disse que a fúria se deu porque ela havia colocado o aluno, que lhe agrediu, no mesmo grupo do irmão do assassino do primo dele, que havia sido morto por dívidas relativas ao tráfico de drogas. Quando ela soube disso, percebeu que a violência sofrida pelo aluno foi muito maior que ter seu caderno arremessado. Ela pôde imaginar o quanto era difícil para ele estar no mesmo ambiente do algoz de um membro querido de sua família e, ainda, ser obrigado, por determinação dela, a trabalharem juntos. Todos foram afetados pela violência e ninguém seguiu imune a ela.

As festas na escola

No mês de outubro, os alunos queriam saber mais sobre o Dia das Bruxas. Como professora de humanidades, Madalena deu uma aula sobre o Halloween, a partir da qual eles resolveram organizar uma festa que seria realizada na sexta-feira de manhã. Fizeram uma vaquinha para comprar os materiais necessários e decorar o espaço com muita simplicidade. “Para eles não terem que chegar mais cedo na sexta-feira, eu dei uns vinte minutos antes de acabar a aula pra eles arrumarem o auditório.” Madalena não sabia que o auditório tinha sido reformado por uma igreja evangélica, que o utilizava todas as quintas-feiras.

No outro dia, quando eu chego, logo após sair do carro, vieram alguns alunos na minha direção dizendo: “Professora, você viu o que aconteceu no auditório?” “Não, estou chegando agora.” “Destruíram tudo! Rasgaram tudo e jogaram no saco de lixo. E, quem fez isso, vamos encher de porrada!” Fui ao diretor e perguntei o que aconteceu. Ele disse que deveria ter sido o pessoal da Igreja, que era uma igreja bem tradicional. O pessoal da igreja rasgou tudo e jogou fora.

Nesse episódio, a igreja praticou violência simbólica/institucional contra a turma que havia confeccionado todos os adereços da festa de Halloween. A violência foi notória, caracterizada pela imposição do cristianismo como uma cultura dominante. Ao rasgar os adereços, ela passou uma mensagem que deve ter parecido legítima: “não aceitamos isso aqui!”

Em outra época, a escola organizou uma Festa junina que contou com a participação de todos os alunos – tanto os da aceleração, que vinham do Jardim Cerrado, com transporte da secretaria de educação, quanto os estudantes do ensino médio regular, moradores do bairro de classe média onde a escola se localizava. Quando o ônibus da secretaria de educação chegou, os alunos de Madalena foram todos revistados pela polícia antes de poderem entrar na festa. Professores, estudantes e demais moradores da região foram dispensados.

Quando eles chegaram na barraquinha, porque tudo pra eles vira piada, os alunos do Setor Bueno [bairro de classe média alta em Goiânia] diziam (porque eram amigos), em tom de brincadeira: “Marginal tem que ser revistado mesmo!” Aí um dos meus alunos virou pra mim e disse: “PM [policial militar] é bicho burro, né, professora? Porque, a droga, quem traz, é o pessoal do Setor Bueno”. […] Depois eu fui no diretor saber se teve alguma denúncia que justificasse a abordagem, mas ele me disse que ele havia pedido porque achava que seria mais seguro. Eu falei pra ele que não havia sido revistada, e ele disse que a revista não era pra mim. Eu disse pra ele que, se é um procedimento de segurança, todo mundo tinha que passar pela revista, ou ninguém passava. Eu acho que o que aconteceu com os alunos foi uma situação muito constrangedora. […] Além disso, a droga e a arma poderiam entrar na escola por outros meios, por pessoas que não haviam sido revistadas. Então ele disse: “entendi, entendi, professora; é que você também tem que entender meu lado”.

No uso equivocado da violência legítima, a Polícia Militar revistou todos os ônibus que vinham do Jardim Cerrado. É importante perceber que a motivação para a abordagem não partiu da polícia, mas do diretor da escola, que instruiu o procedimento. Madalena parece ter sido a única pessoa realmente incomodada. Para todos os demais, tratava-se de um procedimento banal. No caso do diretor, destaca-se a falsa sensação de estar cumprindo com o dever.

Categorizando as experiências de violência

Ao observar as experiências narradas por Madalena Valente, percebemos que essas experiências são muito variadas e que, além da regulação objetivamente realizada por instituições e normas sociais, a percepção subjetiva da violência é fundamental para compreender como os atores dão sentido e se orientam com relação ao que vivem.

O Quadro 2 sintetiza a fala da ex-professora, apresentando como o ambiente violento da escola marcou sua história de vida.

Quadro 2 – Matriz das experiências de violência escolar de Madalena Valente 

  Violência percebida Violência banalizada
Violência tipificada como crime Arremesso da cadeira e brigas no pátio (percebidos pela professora). Arremesso da cadeira (percebido pelo diretor).
Violência como incivilidade Xingamentos (percebidos pela professora). Xingamentos (percebidos pelos estudantes).
Violência simbólica Ameaça de redução de nota do aluno (percebida pelo aluno); e enfeites de Halloween rasgados pelos membros da igreja (percebida pelos alunos). Ameaça de redução de nota do aluno (percebida pela professora); e abordagem policial na festa junina (percebida pelo diretor).

Fonte: Elaborado pelos autores.

Cabe destacar que representar as experiências como um quadro tem suas limitações, pois as fronteiras entre as categorias da matriz são, na verdade, fluidas. A demarcação entre violência percebida ou banalizada e entre crime, incivilidade ou violência simbólica podem não ser bem definidas. Ademais, o que estamos classificando como violência simbólica aqui é uma violência legitimamente exercida pela professora, por meio de uma ação pedagógica escolar considerada legítima, e, também, por uma instituição cuja autoridade é mais ou menos reconhecida (a escola, a polícia, a igreja) e que, por essa razão, tem efeitos simbólicos. Na verdade, a violência simbólica é a mais transversal e ilimitada de todas, pois, todo e qualquer ato violento (legítimo ou não), tem efeitos simbólicos.

Sobre o abandono da carreira docente

As experiências de violência escolar vividas por Madalena Valente repercutiram globalmente em sua vida, interrompendo a carreira docente. Essas experiências não reverberaram apenas na esfera profissional, mas também em seus relacionamentos pessoais. Porém, o abandono docente após vivenciar experiências de violência não é uma regra. Existem professores que, mesmo diante de circunstâncias negativas (por exemplo, precarização do ensino, racismo, classe, cor e violência) em sua formação escolar e docente, optam pela continuidade da carreira (WATANABE; GURGEL, 2017). No âmbito profissional, Madalena deixou suas convicções acadêmicas quando se deparou com uma realidade geralmente ignorada nos cursos de licenciatura. Uma transformação perceptível foi sua mudança de comportamento em relação aos alunos. Antes dos episódios de violência, ela buscava não seguir um sistema tradicional de ensino para tentar tornar suas aulas mais atrativas, sendo amável e gentil com todos. Após os eventos de violência, ela continuou amigável, mas se distanciou dos alunos. Quanto aos aspectos psicológicos, a professora relatou que as experiências de violência prejudicaram o prazer em estar em sala de aula, além de passar a viver com transtorno de ansiedade e síndrome do pânico. Frequentemente, chegava em casa chorando e se trancava no quarto. Assim que foi possível fazer novo concurso público, abandonou a docência.

Considerações finais

Este trabalho buscou explorar os conceitos da violência escolar com o objetivo de entender seu papel no abandono da carreira docente. Para isso, apresentamos uma matriz da violência escolar, visando captar os episódios de violência vividos por professores. A matriz foi construída em duas dimensões: regulação objetiva e vivência subjetiva. A primeira distingue crimes, incivilidades e violência simbólica, enquanto a segunda distingue a percepção ou a banalização da violência.

Ficou claro que a violência escolar teve influência na decisão da ex-professora em abandonar a carreira docente (FAVATTO; BOTH, 2019; HONG, 2010; SOUTO, 2016), além da exaustão gerada pelo desgaste emocional (HONG, 2010). Isso impacta diretamente todo o sistema de ensino, pois, diante do déficit existente, cada professor se torna importante para a constituição do ensino no país (GOBARA; GARCIA, 2007; TARTUCE; NUNES; ALMEIDA, 2010). Porém, é indispensável considerar que a violência também pode partir do professor, construindo lembranças negativas acerca da escola, que podem ser internalizadas e carregadas durante a vida (WATANABE; GURGEL, 2017).

Portanto, compreendemos que a violência escolar é um componente social importante diante da realidade que cerca nossas escolas e que precisa ganhar ressonância, principalmente na formação de professores, para que casos como o de Madalena não se tornem mais recorrentes do que já são. Identificamos, também, uma prática a ser inibida no sistema de ensino: a alocação de professores mais inexperientes nas posições mais desafiadoras. Afinal, sua formação ainda não está completa, uma vez que ela se constrói também pelas interações contínuas estabelecidas no ambiente de trabalho (HONG, 2010). Por isso, o exemplo de Madalena é importante, pois mostra aos professores recém-formados e inexperientes, a necessidade de buscar informações no ambiente escolar que contribuam para diminuir os riscos a serem enfrentados.

A partir dessas questões, percebemos que os objetivos a serem alcançados se alicerçam principalmente na abordagem das pautas sobre a violência nas licenciaturas e a não banalização decorrente disso, como também na capacitação com relação às experiências de violência escolar de professores, gestores e de toda comunidade escolar que convive diariamente nesse espaço, já como profissionais experientes. Portanto, é possível nos adaptarmos às condições existentes nos diversos espaços sociais que percorremos ao longo da carreira e que são percebidas, no Brasil, em termos de pesquisa, desde os anos 1980.

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4- A entrevistada autorizou a publicação da entrevista mediante a preservação de sua identidade, bem como das instituições relatadas.

1- Os autores agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) – Processo n. 436910/2018-7 –, à Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF) – Processo n. 00193.00002099/2018-65 –, e ao Comando da Academia da Polícia Militar do Estado de Goiás pelos incentivos à pesquisa.

Recebido: 27 de Maio de 2020; Revisado: 22 de Julho de 2020; Aceito: 01 de Setembro de 2020

Sullyvan Garcia-Silva é doutor em educação em ciências pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em educação pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-Goiás), licenciado em física pela PUC-Goiás e professor da Escola de Pós-graduação da Polícia Militar do Estado de Goiás.

Paulo Lima Junior tem pós-doutorado em didática das ciências naturais pela Universidade de Estocolmo, Suécia, é doutor e mestre em ensino de física pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), graduado (licenciatura e bacharelado) em física pela UnB e vencedor do prêmio CAPES de tese na área de ensino em 2014. Atualmente é professor adjunto do Instituto de Física e membro permanente do Programa de Pós-graduação em educação em ciências da UnB.

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