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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 11-Mar-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248236862 

Artigos

Ascese do amor e fragilidade da formação humana n’O banquete, de Platão1

Love’s askesis and fragility of human formation in Plato’s Symposium

Claudio A. Dalbosco2 
http://orcid.org/0000-0003-3408-2975

Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio3 
http://orcid.org/0000-0003-4166-9942

2- Universidade de Passo Fundo, Passo Fundo, RS, Brasil. Contato: vcdalbosco@hotmail.com

3- Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Contato: hipias@usp.br


Resumo

Inspirado por Martha Nussbaum e tomando como referência a ideia formativa inerente à ascese amorosa, o artigo investiga o significado atribuído a Eros por Platão em O banquete. Primeiro, reconstruímos o discurso de Aristófanes, enfatizando o aspecto de dupla comédia da vida humana. Depois, analisamos o caráter formativo do discurso de Diotima em termos de um duplo ensinamento: o da sacerdotisa a Sócrates e o de Sócrates a nós. Em seguida, indicamos o quanto a dialética do amor, ao ter que responder à objeção de Alcibíades, conduz à mudança da postura de Sócrates à medida que a presença de Alcibíades o faz retornar ao mundo sensível. Por fim, destacamos a dimensão formativa da ascese do amor e da reversibilidade de papéis entre erasta e erômeno, amante e amado.

Palavras-Chave: Platão; Eros; Beleza; Ascese; Formação

Abstract

Inspired by Martha Nussbaum and taking as its guideline the discussion on the formative idea inherent to the askesis of love, this paper investigates the meaning Plato attributes to Eros in the Symposium. First part reconstructs the speech from Aristophanes, emphasizing the double comedy of the human life. The second part summarizes the formative aspect of Diotima’s speech from the perspective of a double lesson: from the priestess to Socrates, and from him to ourselves. The third part tries to point out how much the dialectic of love, by having to respond to Alcibiades’ objection, is what leads to the change on Socrates’ posture, insofar as the presence of Alcibiades makes him to back into the sensible. Finally, the formative dimension of the askesis of love is highlighted, stressing how much it leads to the reversibility of roles between erasta and eromeno, between lover and beloved.

Key words: Plato; Eros; Beauty; Askesis; Formation

“Neste instante da vida, se algum outro houver, meu caro Sócrates,” disse a estrangeira de Mantineia,

“ao homem a vida vale a pena: na contemplação do Belo em si.”

Platão4

Introdução

O banquete, de Platão, escrito há mais de dois mil anos, ainda nos faz pensar . Tendo passado pelas leituras da Antiguidade, em que experimentou as asceses do neoplatonismo, foi lido também pelos cristãos – “mostrar que o poder do amor nada mais é que aquilo que eleva a alma da terra às alturas do céu, e que a mais alta bem-aventurança só pode ser alcançada sob o estímulo do desejo amoroso” (ORIGEN, 1957, p. 23-24, tradução nossa) era o propósito dos “escritos na forma de diálogo” dos sábios pagãos que Orígenes de Alexandria louvava –, e com atenção zelosa pelo Renascimento: Marsilio Ficino, primeiro tradutor, na Europa, da obra completa de Platão, escreveu um Commentarium in convivium platonis (1474-1475) como apresentação de sua versão latina do texto grego (vertido ao vernáculo pelo tradutor, mas editado somente em 1544), que favoreceu, junto ao “I dialoghi d’amore”, de Leão Hebreu, a criação do tratado do amor como gênero literário (FICINO, 2001; JAYNE, 1944).

Na obra, ocupando-se do amor em perspectiva individual, Platão tem sempre como objetivo o que dele se possa dizer de universal, superando o belo particular em nome do Belo em si. Tocando na fragilidade da condição humana e nas possibilidades de seu enfrentamento – filosófico e formativo –, o diálogo discute a origem, o significado e a finalidade do apego erótico. Ao fazê-lo, busca desvendar quem o ser humano foi um dia, quem ele parece ser e, com o olhar voltado à ideia do humano, quem ele fundamentalmente é. Entre as tentativas de explicação de Eros que Platão apresenta, escolheremos as de Aristófanes e de Sócrates/Diotima, ao lado daquela de Alcibíades – que não explica Eros, mas descreve seus efeitos. Recorrendo ao mito cômico, Aristófanes dá a origem de Eros, revelando a fenda que cindiu, em definitivo, o ser humano. Sócrates, recorrendo às palavras da sacerdotisa, apresenta o programa de ascese do amor5 à sabedoria, visando superar seu entendimento pré-dialético. Por sua vez, Alcibíades, certamente a figura mais enigmática do diálogo e também a mais interessante do ponto de vista formativo, declara seu amor a Sócrates e representa, por meio de sua experiência prática, um contraponto incômodo ao amor filosófico.

Considerando suas possibilidades de leitura, O banquete favoreceu inúmeras interpretações ao longo da história. Tendo em vista nossos propósitos, escolhemos refletir sobre aquela oferecida pela filósofa norte-americana Martha Nussbaum (2009), A fragilidade da bondade6. Na trilha de outros pesquisadores que já identificaram o duplo caráter do Sócrates platônico – ao mesmo tempo amante e amado7, em O banquete e outros diálogos –, a autora não concebe o discurso de Diotima, ainda que apresentado por Sócrates, como a expressão acabada do pensamento de Platão sobre o amor, no diálogo8. Tomado dessa maneira, ele justificaria a crítica feita por muitos, e tão bem expressa por Gregory Vlastos (1999, p. 61), de que a teoria platônica do amor não se ocupa das pessoas, mas de sua versão abstrata, que “consiste do complexo de suas melhores qualidades”. Não haveria como pessoas empíricas competirem com abstrações de significado universal, ou com a Ideia do Belo, sendo o amor ao indivíduo o ponto mais baixo da scala amoris platônica, na qual todos os amores inferiores são pensados como “degraus” [epanabásmoi] na escada que leva à “forma do Belo sem mistura, limpo, puro, e não repleto de carnes humanas, de cores e outras tantas futilidades mortais” (PLATÃO, 2001, 211c; e)9.

Para Nussbaum (2009), no entanto, permanecer no discurso ascético de Diotima é não levar em conta o conjunto do diálogo para, daí sim, alcançar uma compreensão de eros que ultrapasse a “visão unilateral” (VLASTOS, 1999, p. 157-158) e incompleta da sacerdotisa, dada por Sócrates. Prova disso é que, na sequência, surge quem promete “dizer a verdade” (PLATÃO, 2001, 214e) sobre Sócrates, implicando, no caso, dizer a verdade sobre o amor. A interpretação de Nussbaum (2009) ressalta a intervenção de Alcibíades como elemento fundamental para um entendimento que considere a articulação de todas as partes da obra. Para a autora, se o Sócrates platônico desenvolve um programa filosófico para a ascese do amor, tanto a fala tragicômica de Alcibíades quanto a fala cômica de Aristófanes, que antecede as duas, contêm objeções sérias a tal programa, evidenciando a tensão central do humano, entre uma busca incessante de autodomínio e autocontenção (a enkráteia e a autárkeia socráticas), simbolizadas metaforicamente pela forma da esfera, e a vulnerabilidade, marcada pela plasticidade e inconstância dos desejos e das paixões (páthe). Nesse contexto, o amor, vital para a continuidade da vida, é compreendido como forma de “cura” da aflição humana.

Partindo daí, pode-se afirmar que o Eros platônico, em sua dimensão formativa de ascese filosófica, submete-se a um deslocamento, em favor das transformações sofridas pelos amantes do saber ao assumirem, em menor ou maior grau, a disposição para a própria ascese. Isto é, quando a ascese do amor é tomada em dimensão formativa, interessa-nos, tanto ou mais que o resultado final, o processo dialético. Conforme a Carta VII, a relação professor-aluno (sunousía), na investigação de um tema, e a “convivência”, assim criada, serão tão, ou mais, importantes que a “luz nascida na alma e que a si própria se alimenta” (PLATÃO, 2008, 341c-d).

Nossa argumentação se divide em quatro partes. Na primeira, reconstruímos a fala do Aristófanes platônico, destacando a dupla comédia da vida humana. Na segunda, resumimos o aspecto formativo da fala de Diotima na perspectiva de um duplo ensinamento: da sacerdotisa para Sócrates, e dele para nós. Na terceira parte, tratamos do lógos de Alcibíades, mostrando o quanto ele evidencia a dialética do amor e o quanto tal dialética, ao ter que responder à objeção de Alcibíades, conduz à mudança formativa da própria postura de Sócrates. Por fim, na quarta parte, realçamos a dimensão formativa inerente à ascese do amor e a reversibilidade de papéis entre amante e amado.

A dupla comédia da vida humana: a fala de Aristófanes

Na sequência das falas do banquete, Aristófanes deveria ter sido o terceiro a se pronunciar, precedido apenas por Fedro e Pausânias. Contudo, uma crise de soluços o faz ceder seu lugar ao médico Erixímaco. Quando volta, já está perfeitamente recuperado para tecer seu discurso a Eros. A causa do soluço e seu papel na discussão é um tema que ocupa muitos comentaristas10. De todo modo, o soluço significou a suspensão da fala de Aristófanes e, por conseguinte, o adiamento de seu lógos.

Soluço, mas também espirro e riso: expressões do corpo que raramente encontramos em Platão, no entanto, aparecem juntas em Aristófanes. “Pois é de se espantar que para a boa ordem do corpo precise ele de ruídos e comichões como o espirro. O soluço passou completamente tão logo me servi do espirro” (PLATÃO, 2001, 189a), diz, após seguir a recomendação de Erixímaco, que critica sua falta de seriedade – “Fazes graça antes de falar” (189b), reclama o médico –, prometendo vigiá-lo para impedir qualquer outra piada. Erixímaco, figura pedante, evita o cômico como exigência para tratar de Eros. Aristófanes, rindo, lhe responde que teme não dizer coisas engraçadas [géloia], mas ridículas [katagékasta]. Para o comediógrafo, não há incompatibilidade entre os “ruídos e estímulos” do corpo e Eros, ou entre eles e um lógos sobre Eros.

Que elogio Aristófanes tece a Eros, orientando-se pela comédia? Que especificidade assume em relação à ascese socrática e que possível objeção sinaliza a ela? A interpretação de Nussbaum (2009) vê na fala de Aristófanes uma dupla comédia que atinge o núcleo da dialética do amor. A primeira compreende a cisão originária que dividiu o ser humano, fazendo emergir o apelo erótico pela totalidade perdida. A segunda, vinculada à primeira e operando como sua negação, afirma que, se a metade fosse encontrada, implicaria a autossupressão de Eros. Ou seja, a união completa entre as metades, representada metaforicamente pela forma da esfera, significa o fim do desejo humano: ao sentir-se completo, o ser humano, deixando de desejar, morreria. Antes de analisar essa dupla significação, vamos parafrasear o mito narrado por Aristófanes (PLATÃO, 2001, 189c-194b).

No começo, havia três sexos em vez de um e o seres eram arredondados como uma bola. Ao invés de duas, possuíam quatro mãos e quatro pernas, o que lhes tornava seres estranhos e cômicos quando tinham que andar ou correr. Por terem desejado escalar os céus para pelear com os deuses, Zeus os castigou, partindo-os ao meio, “como com cabelo se corta ovos” (PLATÃO, 2001, 190e), tornando-os mais fracos e úteis. Zeus ainda ordenou que Apolo, deus da purificação e da cura, virasse o rosto dos homens para o lado do corte, para que se tornassem moderados, sem pretensões de chegar aos céus. A intensa saudade sentida pela metade perdida não é outra coisa, segundo Aristófanes, que a vontade incansável de recriar a natureza humana primitiva: “O desejo [epithymía] e a busca por essa totalidade é o que denominamos amor” (PLATÃO, 2001, 192e-193a). Retornar à esfera que um dia fomos – autocontida e perfeita. Resta, porém, o perigo de sermos partidos em dois por Zeus novamente, caso não sigamos o caminho da moderação. Já sentimos no corpo o resultado de nossa hybris e, por isso, é imperativo que, desde já, continuemos a honrar a divindade – esperando encontrar, em meio às metades misturadas, aquela que nos cabe, com o auxílio de Eros, chefe e guia dos amantes, único capaz de nos conduzir à felicidade possível em nossa condição.

A primeira comédia consiste, então, no embaraço nascido da propensão à onipotência e, também, de nossa dependência da alteridade. A cisão faz emergir desejos que provocam risos: seres inteligentes e ambiciosos “envolviam-se com os braços, agarravam-se, desejosos de serem um só, e morriam de fome e lassidão, por nenhum querer fazer nada sozinho” (PLATÃO, 2001, 191a-b). Segundo Nussbaum (2009, p. 151):

Finalmente, a partir de dentro, a desarmonia da natureza dessas criaturas, cuja razão ainda aspira à completude e ao controle, mas cujos corpos são tão dolorosamente necessitados, tão desviantes – a partir de dentro, isso se faria sentir como um tormento.

O tormento de quem anseia pela completude, carregando um corpo necessitado, é motivo de riso quando visto de fora. A solução encontrada por Zeus, que via “desaparecer a raça” humana – presa até a morte em um abraço insatisfatório e estéril – foi “trazer suas partes íntimas para a frente”. Antes, “geravam e concebiam não uns com os outros, mas na terra, como as cigarras” (PLATÃO, 2001, 191c). A saciedade temporária que a união sexual passou a oferecer, além de garantir a geração humana, tornou-se simulacro da junção primitiva, capaz de fazer, assim, com que os homens “voltassem às tarefas e às outras exigências da vida” (191c). O gozo antes desfrutado por sermos quem éramos surge agora como um instante apenas, no qual esquecemos de nossa condição insuficiente.

A ação formativa do cômico provoca a torção do olhar, fazendo-nos reconhecer uma profunda e insolúvel fragilidade:

A comédia vem na percepção repentina de nós mesmos a partir de uma outra perspectiva, a repentina volta de nossas cabeças e olhos para olhar os genitais e rostos humanos, nossas partes desarredondadas, desejosas e vulneráveis. (NUSSBAUM, 2009, p. 152).

Desde já, o aspecto formativo da primeira comédia permanece como crítica à ascese filosófica do amor – que será exposta por Diotima, a sacerdotisa de Mantineia, na sequência de O banquete – à medida que o Aristófanes, de Platão, faz a aspiração espiritual mais elevada ao não esquecer de seus vínculos umbilicais com os desejos humanos corpóreos. Nesse sentido, o mito pode ser visto como repreensão da ambição humana desmedida, chamando a atenção para a cicatriz que nos constitui.

A segunda comédia surge do ímpeto para a unidade. Pois, se o apelo erótico que movimenta as metades tivesse força suficiente para uni-las novamente em uma totalidade duradoura, tal força destruiria a união, pondo fim à energia erótica. Como afirma Nussbaum (2009, p. 154):

Uma esfera não teria intercurso com ninguém. Não comeria, não duvidaria e nem beberia. Sequer se moveria, como sagazmente observou Xenófanes, nessa ou naquela direção, porque não teria uma razão; seria completa.

Não é, de fato, uma forma esférica perfeita o que caracteriza os seres humanos, mas sim suas cicatrizes, que os aproximam uns dos outros. Um ser humano completo, nesses termos, deixaria a condição humana – incomunicável e perfeito, sucumbiria a si mesmo, pois o que chamamos de humanidade nasce da cisão divina. Por isso, a situação tragicômica da condição humana exige muita capacidade imaginativa: “Gostaríamos de encontrar um modo de manter nossa identidade como seres que desejam e se movem, e ainda nos tornar autossuficientes. Isso requer uma considerável inventividade” (NUSSBAUM, 2009, p. 155). Tal inventividade talvez esteja, nas entrelinhas d’O banquete, relacionada diretamente à dimensão formativa do amor, que poderia ser motivo suficiente para que Sócrates se deixasse sensibilizar em relação à fala de Aristófanes e Alcibíades.

O duplo ensinamento do amor: a fala de Diotima

Do mesmo modo que O banquete é um texto “em abismo” (ouvimos do amigo de Apolodoro o relato de Aristodemo, que narra os diálogos do banquete e o relato de Sócrates, que conta o relato de Diotima…), a presença de Diotima opera o distanciamento de um tema perigoso. Uma sacerdotisa iniciada nos mistérios mânticos lidaria com Eros de maneira adequada, já que o possuído pelo amor se encontra na mesma situação dos transportados pelo transe daimônico. Não à toa, Eros é caracterizado por Diotima como um “grande daímon” e, como todo daímon, “intermediário entre os deuses e os mortais” (PLATÃO, 2001, 202d-e). Mais que isso, a fala de Diotima indica um processo paidêutico inerente à ascese filosófica empreendida por Sócrates. O sentido filosófico da ascese como transformação da vida de Sócrates, e como transformação de nossas próprias vidas, enquanto leitores da obra, será compreendida ao explorarmos a dimensão formativa inscrita no diálogo.

Neste contexto, para Nussbaum (2009), a fala de Diotima contém um duplo ensinamento: o primeiro refere-se ao que a sacerdotisa ensina a Sócrates, elevando-o da condição de jovem amante do saber à posição de iniciado, com domínio ético de si mesmo. O segundo ensinamento é aquele do próprio Sócrates, à medida que nos ensina o que está em jogo no conteúdo da ascese filosófica, levando-nos a entender que as experiências que a ascese favorece nele e as transformações que provoca em sua vida também são, em certa medida, nossas próprias experiências e transformações. Ou seja, ao meditarmos sobre o conteúdo da ascese socrática, somos levados a fazer nossa própria ascese, pondo em questão nosso modo de vida.

Como se observa, Sócrates é figura de proa nos dois movimentos formativos. Considerando isso, e orientados por Nussbaum (2009), façamos duas perguntas: qual é o núcleo do ensinamento de Diotima a Sócrates? Em que sentido a figura exemplar de Sócrates pode ainda nos ensinar algo? A investigação das duas questões é importante para entendermos a ideia de formação humana nascida do confronto entre a ascese filosófica e a perspectiva trágico-cômica. Ou seja, a noção de formação humana subjacente ao banquete não se limitaria exclusivamente ao lógos socrático, mas dependeria de seu confronto com as falas de Aristófanes e Alcibíades. Tal confronto não é oferecido por Platão nesta obra, mas pede uma interpretação criativa do leitor, uma leitura ampliada de O banquete que coloque a filosofia em diálogo com outras expressões culturais, como a poesia trágico-cômica, a medicina, a retórica e a política.

O ensinamento de Diotima a Sócrates, visando atingir a beleza da forma, pode ser reduzido a três etapas. A passagem de uma etapa à outra retém aspectos importantes da anterior, impedindo que a fase posterior tenha de se iniciar do nada, retendo uma ideia de uniformidade que conduz e amarra as diferentes etapas da ascese, impedindo a dispersão autodestrutiva de cada uma delas. Assim, afirma Nussbaum (2009, p. 157): “Em sua consideração do desenvolvimento da alma em direção ao entendimento mais pleno do bem, a ideia de uniformidade desempenha um papel crucial”. A uniformidade, que não deve ser confundida com padronização, é importante porque impulsiona o jovem amante a ir além da beleza corpórea individual, fazendo-o perceber outras belezas e levando-o a confrontá-las entre si, para que, mais tarde, possa alcançar o Belo em si. Nesse sentido, tornar algo uniforme significa buscar, em forma ascendente, a complementação, e não o aniquilamento. O amor, metaforicamente, seria a música composta pela harmonia entre diferentes notas, as quais, dispersas e isoladas, não fazem sentido. Ou, como na metáfora que trataremos logo adiante, o amor, na forma da busca humana pela sabedoria, garantiria visão semelhante àquela dada pela contemplação do oceano: a beleza corpórea individual sendo apenas uma ilha, cercada pelo mar do Belo em si.

A etapa inicial da ascese é marcada pelo tatear confuso do jovem amante, enfeitiçado pelas seduções do amado: “O jovem que começa a ascese, sempre sob a direção de um guia ‘correto’ (210a, 6-7) começa amando um corpo singular ou, mais exatamente, a beleza de um corpo singular” (NUSSBAUM, 2009, p. 157). Vê-se apaixonado pelo objeto amado e, decidido a entregar-se inteiramente a ele, corre o risco de anular a si mesmo. Encantado, não se interessa por outras belezas, por isso, não pode compará-las. Nessa condição, o jovem amante está de posse de um saber disperso, incapaz de formar juízo homogêneo. Sem que a sacerdotisa venha em seu socorro, e, sem poder decidir por si próprio, permanece agarrado a seu ponto de vista restrito. Em síntese, por manter-se em estado de alienação, não se interessa pelas leis e instituições sociais e menos ainda pela política. Tomado pelo amor particular, não se importa de viver à margem da sociedade, do direito e da política.

Instado pela sacerdotisa, no entanto, passa a perceber o quanto é pouco ambicioso ao se manter prisioneiro. Conduzido, descobre que não possui vida própria, que não almeja nada além do desejo de ter seu amado para si e, por isso, não busca descobrir outras coisas nem o modo relacional que as constituem. Começa aqui, então, a reviravolta da fase intermediária da ascese, caracterizada pela direção do olhar do jovem amado para outras belezas e por sua capacidade de compará-las. Como afirma Nussbaum (2009, p. 158): “Assim, em cada estágio da ascese, o aspirante ao amor, auxiliado por seu mestre, vê relações entre uma beleza e outra, reconhece que estas belezas são comparáveis e intercambiáveis, diferindo apenas em quantidade”. Para poder alcançar essa etapa de comparação, Sócrates abandona convicções antigas e assume novas. São as novas convicções, surgidas das transformações sofridas pelo amante do saber, que o conduzem a novas preocupações, referidas à curiosidade pelas leis e pela política, e que remetem à pergunta sobre as formas mais justas de vida na pólis. A ascese intermediária possibilita a ampliação das perspectivas na medida em que eleva o amante, de seu foco inicial restrito, ao mundo ético e político da pólis.

Finalmente, a mestra pedagoga conduz Sócrates para o último degrau da ascese filosófica do amor. A ascese filosófica não se esgota na paixão embriagada pelo questionamento sobre as formas justas e corretas da vida cidadã. A condição humana possui pretensão mais abrangente e elevada. O amor não consiste somente na comparação das diferentes belezas ou na ambição individual pelo aplauso público: ele precisa ser uma força maior, mais poderosa, que permita “passar de uma visão das coisas dominada pelas paixões individuais a uma representação do mundo governada pela universalidade e objetividade do pensamento” (HADOT, 1987, p. 40, tradução nossa)11, um olhar do topo do mundo, de onde Sócrates possa formular o questionamento externo da justiça das leis e da correção da ação política. Em síntese, é o olhar externo que lhe permite descobrir a imbricação entre duas questões que, aos olhos do estadista, se apresentam como distintas: a dependência intrínseca entre o bem governar os outros e o autogoverno ético de si.

A perspectiva de Sócrates ao alcançar o Belo em si garantiria visão semelhante àquela dada pela contemplação do oceano: enquanto a primeira etapa da ascese, caracterizada pela dimensão restritiva do olhar à beleza corpórea individual, pode ser comparada à percepção de uma ilha, e a segunda, na medida que repousa na capacidade de confrontar diversas belezas entre si, compara-se ao retrato de uma baía, porção de mar cercada de terra por quase todos os lados, a terceira etapa, a do Belo em si, assemelha-se, metaforicamente, à visão do oceano. Nessa etapa, depois de ter passado pela ilha e ter se fixado momentaneamente na baía, Sócrates adquire a sabedoria oceânica do amor, que o transforma em iniciado experiente. Nas palavras de Diotima:

E neste instante, mirando a vastidão do Belo – e não mais o belo particular, como se fosse um servo, apaixonado por um belo menino, alguma pessoa ou certos hábitos, à maneira de um escravo sem valor ocupado com futilidades – ele se voltará ao vasto oceano do belo e do contemplado, e dará à luz muitos, belos e grandiosos discursos, e pensamentos generosos, por amor à sabedoria. (PLATÃO, 2001, 210c-d).

A sacerdotisa afirma que o ser humano deixa de ser escravo e de se ocupar com o fútil quando ultrapassa o amor pelo individual e questiona o conjunto de costumes e leis no qual ele fora educado. Contudo, o olhar abrangente só é possível porque, na base da ascese filosófica – e essa é a tese de fundo deste ensaio – colocou-se desde o início um intenso e exigente processo formativo. Tal processo foi o que provocou, na ascese percorrida em três etapas diferentes, profundas e conflitivas transformações em suas crenças e certezas imediatas. Assim, a dialética do amor é o exercício paidêutico exigente oriundo da profunda imbricação entre filosofia e formação.

Retomemos, agora, a segunda questão: O que nós aprendemos com o aprendizado de Sócrates? Em primeiro lugar, inspirados pelo modelo autoformativo socrático, do cultivo interior em busca da contemplação “oceânica”, podemos desencadear um processo de autoformação, de superação de nossas crenças particulares, normalmente eivadas de preconceitos e elementos não-pensados. A contemplação possibilita um retorno a nós mesmos e, nessa torção de pensamento, a formulação de juízos mais amplos, capazes de incluir os outros e o mundo da melhor forma possível. É neste sentido que a educação, como processo autoformativo inspirado na figura do bom mestre, do educador amante do saber, nos vira ao contrário, permitindo descobrir o que antes ignorávamos por completo.

O segundo aspecto formativo relaciona-se à própria liberdade humana. O aprendizado de Sócrates – quando meditamos sobre ele – nos liberta para descobrir novos territórios, agora por nós mesmos, guiando-nos por um ponto de vista superior, no sentido de ser mais abrangente e inclusivo. Se a dimensão formativa da ascese filosófica mostrou a Sócrates a liberdade como possibilidade de sua condição humana, também nos mostra, igualmente, que podemos encontrá-la na disposição de orientar nosso Eros na direção da sabedoria. Em síntese, o aspecto formativo inerente à ascese filosófica do amor provoca profundas transformações nos amantes do saber, na direção da liberdade. Pois, ao meditarem sobre o significado e a importância de se autoconceberem como sujeitos livres, amante e amado, educador e educando podem alcançar o autogoverno de si mesmos, compreendendo a si e ao mundo a partir da fragilidade de que são feitos. Ora, é precisamente a entrada em cena de Alcibíades, n’O banquete, que nos faz perceber a fragilidade humana como elemento fundamental da ascese contemplativa do amor.

O elogio tragicômico a Sócrates: a fala enigmática de Alcibíades

Alcibíades é o último a falar. Com sua inesperada entrada, bufônica e barulhenta, temos ainda outro enigma nesse diálogo cifrado: quais razões conduziram Platão a deixá-lo falar por último e, sobretudo, fazê-lo elogiar as virtudes de Sócrates, em vez dos atributos do amor?12 De acordo com Nussbaum (2009), Alcibíades, ao lado de Aristófanes e por razões distintas, significa séria objeção ao programa ascético de Platão. É chegado o momento de lidarmos com tal objeção, procurando interpretá-la à luz da ideia formativa.

Consideramos que a entrada em cena de Alcibíades garante-nos uma ideia embrionária de educação crítica, ao permitir a reciprocidade formativa entre amante e amado e provocar a inversão de papéis entre eles. Com base em Nussbaum (2009), destacamos três aspectos do lógos de Alcibíades, ressaltando a dimensão formativa que acompanha cada um deles. A posição ativa assumida por Alcibíades coloca Sócrates na posição de erômeno, exigindo dele nova atuação na ascese filosófica do amor. É a profunda tensão formativa entre educador e educando, presente na interioridade de todo amante do saber, que caracteriza a ascese em direção da sabedoria. Isso revela a mais pura, e difícil, trivialidade educacional: para poder ensinar, o educador precisa se colocar no lugar do educando, que, por sua vez, só consegue aprender como convém se for capaz de ambicionar ser o próprio educador.

O primeiro dos três aspectos diz respeito à comparação que Alcibíades faz entre Sócrates e as estátuas de silenos fabricadas pelos artesãos. Esses brinquedos não eram lisos ou inteiriços, mas constituídos por uma fenda – ou “cicatriz”, segundo Nussbaum (2009) – que guardava riquezas escondidas. Tais brinquedos, feios por fora (como os Silenos), revelavam sua beleza ao serem abertos. A metáfora do brinquedo, ao remeter ao esforço humano (sobretudo o infantil), de abrir coisas, caracteriza a curiosidade originária de nossa condição. Na interpretação de Nussbaum (2009, p. 166):

Usando esses brinquedos como imagens, Alcibíades nos faz lembrar que o ímpeto de abrir coisas, alcançar e explorar o interior escondido pelo exterior, é um dos nossos primeiros e mais fortes desejos, um desejo em que a necessidade sexual e a necessidade epistemológica são reunidas e, aparentemente, inseparáveis.

O ponto é que Alcibíades só consegue comparar os efeitos dos ensinamentos socráticos em si ao trabalhá-los ativa e internamente, confrontando-os com seu modo de vida espontâneo e extravagante. Isso exige, no entanto, profundas transformações na postura tanto de Alcibíades, quanto do próprio Sócrates.

O segundo aspecto brota diretamente da condição emocional de Alcibíades, atravessado pelas paixões: ela não é orientada pelo intelecto, nada tem de meditativo. Esse aspecto ressalta a importância da “experiência prática” como núcleo constitutivo da dimensão formativa da ascese filosófica do amor. É essa experiência prática que permite a Alcibíades perceber o outro, seu mestre, de maneira diferente. De acordo com Nussbaum (2009, p. 168):

Para receber o outro, cumpre que ele não seja autossuficiente, fechado contra o mundo. Ele deve colocar de lado a vaidade de sua beleza e se tornar, ele mesmo, aos seus próprios olhos, um objeto no mundo: no mundo da atividade do outro, e no mundo mais amplo dos acontecimentos que influenciam sua conduta para com o outro.

Portanto, o senso aguçado de sensibilidade, que só pode brotar do solo da experiência, coloca-se, a partir do elogio amoroso de Alcibíades a Sócrates, na base da relação entre os dois amantes do saber, modificando a postura de ambos. Como destaca Nussbaum (2009, p. 168):

Pode-se dizer que o amante entende o amado quando, e somente quando, ele sabe como tratá-lo: como falar, olhar e mover-se em vários momentos e em várias circunstâncias; como dar e receber prazer; como lidar com a complexa rede de necessidades intelectuais, emocionais e corporais do amado.

Tal passagem caracteriza a dimensão formativa inerente à postura do amante (mestre), tornando-a referência obrigatória da modificação sofrida pelos amantes na busca amorosa da sabedoria. Ao deixar-se enamorar de Sócrates, Alcibíades instala-se na expectativa de se converter, também, em novo erasta, pois a ascese contemplativa do amor conduz à própria autoformação do sujeito que contempla.

O terceiro e último aspecto que caracteriza a postura formativa ativa de Alcibíades refere-se à metáfora do relâmpago (PLATÃO, 2001, 213c)13. Ela caracteriza tanto o objetivo epistêmico como a vulnerabilidade do amante, pondo em questão a concepção platônica da alma “como uma coisa que é a um só tempo o depositário da personalidade e algo imortal/invulnerável” (NUSSBAUM, 2009, p. 169). Se Sócrates, ao aparecer para Alcibíades, provocava como que um choque e o fazia questionar seu apego às mazelas de sua experiência prática, agora, na aparição repentina de Alcibíades no banquete e na descrição de seu apego erótico a Sócrates, vemos Alcibíades na posição de erasta e causador de apreensões: Sócrates teme tanto sua loucura [manía] quanto sua devoção apaixonada [philerastía]. Neste sentido, a imagem do relâmpago simboliza bem a ambição sexual, o conhecimento e o risco do personagem Alcibíades. Conforme Nussbaum (2009, p. 169):

Um relâmpago atinge de uma só vez, de maneira imprevisível, sem permitir normalmente nenhuma esperança de defesa ou controle. É a um só tempo um brilho que traz iluminação e uma força que tem o poder de ferir e matar. É, pode-se dizer, luz corporal.

Cabe ressaltar a ambiguidade da imagem: o relâmpago tanto ilumina quanto é mensageiro da morte. Ambiguidade da própria formação humana afeita à ascese do amor: como o exemplo de Alcibíades comprova, o ser humano não só não consegue buscar retilineamente a forma do bem, como também pode, simplesmente, negar-se a fazê-lo. Pode-se querer viver muito bem sem a custosa ascese do amor.

Dimensão formativa do amor: a relação recíproca entre educador e educando

Aproximando-nos da conclusão, gostaríamos de tratar da ideia de formação humana presente nos lógoi de Aristófanes e de Alcibíades, assim como da transformação que provoca na relação entre os amantes do saber, considerando o que isso significaria para a relação entre educador e educando, destacando a transformação necessária do próprio educador.

No que se refere ao lógos de Aristófanes, temos dois aspectos importantes de uma ideia promissora sobre a formação humana. O primeiro evidencia que, no elogio cômico a Eros, as qualidades apontadas pertencem tanto ao corpo quanto à alma humana, e não só a um deles. Aristófanes reconhece isso em sua própria fala: “Então, (os amantes) maravilhados, se surpreendem com a amizade [philia], a intimidade [oikeiotes] e o desejo (eros), não se dispondo, de modo algum, a se separar um do outro, ainda que por pouco tempo” (PLATÃO, 2001, 192c-d). São os afetos que constituem o laço humano, aproximam os seres humanos uns dos outros oferecendo-lhes o alívio da separação imposta pela divindade. Se a fala do poeta é uma objeção antecipada à posição de Sócrates, ela repousa na ideia de que não são só valores espirituais ou intelectuais, mas também os desejos e afetos tomam parte no processo formativo. A ascese, que conduz o ser humano a níveis cada vez mais elevados, precisa tomar como ponto de partida suas fendas e rachaduras, sem ilusões quanto à possibilidade de total reparação. Ao narrar o mito da cisão originária, Aristófanes instala a fragilidade da formação humana na base da ascese contemplativa do amor, resultando daí um questionamento à rigidez autárquica de Sócrates, quando ele se torna mestre iniciado.

Daí emerge o segundo aspecto formativo do mito cômico. A cisão originária aponta para a incompletude humana e o desejo de preenchimento demonstrado pelo apego erótico ao outro. O problema, do ponto de vista educacional, repousa na natureza desse apego e no modo como ele é formado e conduzido. Nesse contexto, o lógos aristofânico contém os germes de uma ideia profunda e aberta de formação por não assegurar que o ser humano vai encontrar, ao final, sua outra metade e que tal metade, ainda que fosse encontrada, pudesse completá-lo. Ou seja, o mito cômico não garante o apego erótico ao outro como realização do humano e, também, não prescreve os atributos da metade que o completaria. A narrativa da comédia da vida humana não prescreve o tipo ideal dos amantes e, menos ainda, atribui qualquer papel de superioridade de um em relação ao outro, mas deixa em aberto a possibilidade de que a relação erasta/erômeno assuma posição ativa recíproca. Ora, como algumas teorias educacionais modernas e contemporâneas sustentam, a reciprocidade ativa dos sujeitos educacionais é condição indispensável para o autogoverno ético de si – a autarquia possível de seres cindidos, distantes da perfeita forma parmenídica da esfera14.

No que se refere a Alcibíades, os três aspectos de sua posição ativa lançam a reciprocidade erótica dos amantes no centro da formação humana. Cada um dos aspectos exige determinada postura tanto de Alcibíades quanto de Sócrates, colocados um no lugar do outro em alternância simétrica e recíproca. Quanto à metáfora dos silenos de brinquedo – primeiro aspecto da posição ativa de Alcibíades –, nota-se que Alcibíades só consegue compreender a riqueza interior de Sócrates ao se colocar na posição ativa, ou seja, como sujeito da ação que reconhece conscientemente os efeitos que a dialética socrática provoca em sua alma, impelindo-o a avaliar sua posição cômoda e passiva de erômeno. Sócrates, por sua vez, precisa tomar a sério tal reconhecimento e colocar-se ironicamente na posição de erômeno, transformando o amor individual de seu novo erasta em amor maior, que consiga comparar diferentes belezas e, finalmente, contemplar o Belo em si, ultrapassando o amor pelo mestre rumo ao amor universal.

No que se refere ao segundo aspecto, o da experiência prática, Alcibíades questiona a autossuficiência socrática, comparada à imobilidade e frieza de uma rocha, e apela para o reconhecimento de seu modo de vida. A experiência prática e a ascese contemplativa do amor, muito longe de excluírem uma à outra, complementam-se, não havendo a existência formativa de uma sem a presença da outra. Sem a irrupção estrondosa e inesperada de Alcibíades na casa de Agatão, o diálogo se encerraria com um Sócrates suspenso nas alturas da dialética, sem a possibilidade de concebermos a mudança recíproca de posição entre os amantes do saber ou uma sequência no diálogo, em que Sócrates, como mestre, incluiria a experiência prática de Alcibíades em sua ascese erótica.

A metáfora do relâmpago, o terceiro aspecto formativo da postura ativa de Alcibíades, revela a tensão entre luz e escuridão, mostrando a ambiguidade que constitui a condição humana. A luz corporal que incendeia Alcibíades é a mesma que, sob outra perspectiva, contrasta a imutabilidade e impassibilidade radiantes do céu estrelado do filósofo com sua respectiva ideia luminosa do bem. Neste sentido, Alcibíades, como concebe Nussbaum (2009, p. 169), “ao dispor sobre seu escudo o raio do trovão, assinala ao seu próprio modo o tipo de ser que ele alega ser, o tipo de entendimento que ele deseja”. Ao fazer emergir a ambiguidade da condição humana como energia luminosa e, ao mesmo tempo, força destrutiva, a metáfora do relâmpago relativiza o poder inabalável do belo em si, permitindo vê-lo como resultado de uma busca mais modesta, porque está enraizada na fraqueza e sofrimento humanos. Sob a perspectiva formativa, a busca do belo em si é um processo no qual amante e amado se complementam reciprocamente. Agora, talvez possamos compreender a razão que levou Platão a pôr em cena Alcibíades como último personagem do simpósio: sua presença contribui decisivamente para que Sócrates se transforme em um mestre humanizado, e não mais uma rocha imóvel e impenetrável.

Esses três aspectos formativos ganham mais sentido ao pensarmos no modo como Alcibíades se apresenta no diálogo. Coroado de hera e violetas, ele pergunta se Sócrates está preparado para ouvir a verdade. O significado da coroa de violetas é duplo: primeiro, é um tributo à Afrodite. No mito narrado por Diotima, as festividades em honra de Afrodite, deusa da beleza, possibilitaram que Eros fosse gerado, quando Pobreza foi fecundada por Recurso nos jardins da casa festiva (e é indicativo Alcibíades ataviar-se como divindade feminina, logo ele, que se apresentava orgulhosamente agressivo e fanfarrão).

O segundo significado é, de longe, o mais importante, uma vez que a coroa de violetas simboliza também a cidade de Atenas. Ela caracteriza a dimensão política de Alcibíades, sua trajetória como estadista e sua disputa com as forças políticas rivais. O uso da coroa de violetas coloca Alcibíades ao lado das demandas democráticas da cidade, que exigia dos cidadãos a capacidade de deliberar e escolher, e não apenas obedecer. A confiança excessiva no regime de Atenas, porém, coloca a democracia e o próprio Alcibíades, como reconhece Nussbaum (2009, p. 170), “em grande medida à mercê da sorte e das paixões irracionais”. Não devemos esquecer, então, como prossegue a autora, que a “coroa de violetas é usada por um embriagado talentoso, que logo cometerá crimes imaginativos” (NUSSBAUM, 2009, p. 170).

Encontramos aqui, novamente, a tensão constitutiva da dimensão formativa, inerente à dialética do amor, pois é na condição de líder político, agindo movido pelas paixões, que Alcibíades permanece enamorado das virtudes socráticas. Se a experiência prática de Alcibíades podia despertar Sócrates de sua imobilidade e dureza rochosas, agora, num ataque do jogo dialético amoroso, Sócrates ressurge para indicar os limites da experiência prática e seus riscos, não só para a vida desregrada de Alcibíades, mas também para a frágil democracia ateniense. A coroa trazida por Alcibíades, assim, simbolizaria a riqueza e a complexidade da formação humana, que repousa na permanente e inesgotável tensão entre a experiência vivida e a capacidade teorético-contemplativa de colocar tal experiência em cheque. Podemos nos perguntar se não é precisamente a compreensão adequada de tal tensão que ainda hoje se coloca como possibilidade de fortalecimento de nossa frágil democracia.

O acento dado à dimensão formativa da ascese erótico-filosófica nos permitiu fazer descer à terra a figura suprassensível e aparentemente soberana de Sócrates e do filósofo em geral, porque, mesmo envoltos na complexidade dialética, não deixam de estar vinculados umbilicalmente à fragilidade humana. Desse modo, o significado do papel desempenhado por Aristófanes e Alcibíades na trama discursiva construída por Platão n’O banquete seria, justamente, mostrar que o olhar ampliado da contemplação do Belo em si não significa a elevação do humano à perfeição e a eliminação de nossa vulnerabilidade. Ao contrário, simbolizaria o ápice do doloroso e sincero reconhecimento dessa profunda carência. A dimensão formativa da ascese proporcionada pela contemplação do amor, antes de arrancar o ser humano do mundo, elevando-o à esfera diáfana da abstração conceitual, insere-o, sob outra perspectiva, exatamente no miolo do mundo empírico, levando ao reconhecimento da incompletude que o constitui. Aristófanes e Alcibíades querem nos ensinar, cada um à sua maneira, que a dialética contemplativa do amor ganha sua dimensão ética e formativa ao manter o pé cravado na fragilidade da condição humana, tendo que se importar mais com o processo formativo da ascese do que com seu resultado final.

Mas que atualidade educacional mostraria essa perspectiva interpretativa que acabamos de esboçar, a da ascese filosófica do amor, indicando sua base formativa? Ela deixa-se sentir, do lado do educador, quando o orienta a assumir seriamente a reversibilidade de papéis. Somente quando sabe colocar-se adequadamente no lugar do educando, por mais incômodo e desconfortável que isso possa parecer, é que tem início a ascese formativa, transformando-se na mesma proporção em que auxilia na transformação do outro. Enquanto educador, jamais poderá esquecer que ele próprio, um dia, foi também educando e que, precisamente por isso, sempre continuará a sê-lo. Em síntese, é essa contínua lembrança que o coloca na condição do educador que, pela ascese do amor, também forma a si mesmo, ao fazê-lo, ou porque consegue fazê-lo, tem a capacidade de transformar vidas humanas. Neste sentido, a dimensão formativa da ascese filosófica do amor não significa outra coisa senão a incessante e sofrida experiência humana pela busca da formação de si.

Agradecimento

1 - Agradecimento ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela Bolsa Produtividade em Pesquisa, que possibilitou a realização de parte da pesquisa para a escrita deste ensaio.

Referências

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1- Agradecimento ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pela Bolsa Produtividade em Pesquisa, que possibilitou a realização de parte da pesquisa para a escrita deste ensaio.

4- PLATÃO, 2001, 211d. Todas as traduções do grego são nossas.

5- No âmbito da interpretação filosófica especializada de O banquete, a ascese do amor refere-se à scala amoris, ou seja, à escada do amor, constituída de vários degraus, que conduzem da beleza corpórea individual (primeiro degrau) à Beleza em si (último degrau). Voltaremos a esse ponto na terceira parte do ensaio. Em todo caso, para interpretação atual e bem justificada do problema, que constitui o núcleo do discurso de Diotima, ver Sier (1997).

6- Primeira edição em inglês de 1986.

7- Quanto à duplicidade de Sócrates como erasta e erômeno, ver Foucault (1985), Gagarin (1977) e Halperin (1986).

8- Ainda sobre o eros em Platão, o Fedro é obra incontornável. Tema do sétimo capítulo do livro de Nussbaum (2009), intitulado “‘Essa história não é verdadeira’: loucura, razão e retratação no Fedro”, ele não aparece aqui tanto por razões de espaço quanto por desejarmos, neste momento, compreender as consequências, para o pensamento sobre a formação, de se considerar como críticas “internas” ao discurso de Diotima a fala de Aristófanes e o elogio de Sócrates por Alcibíades.

9- Quanto a isso, é também o que lemos na obra clássica e bem representativa de Robin (1908, p. 196, tradução nossa): “Tudo o que diz Alcibíades, da natureza contraditória de Sócrates e de seus discursos, a comparação com o divino Mársias e com as estatuetas na forma de Sileno (215a-d, 216d-217a, 221c-222a), nada mais é que a aplicação do que foi dito antes sobre o Amor como síntese de opostos. Não é sem razão que Platão substitui, na boca de Alcibíades, o elogio do amor pelo elogio de Sócrates (214d): louvar Sócrates é também louvar o amor, porque Sócrates é o amor, e o amor é a filosofia, o império da inteligência sobre os sentidos, em vista da Beleza”.

10- Ver Guthrie (1993). Para Leo Strauss (2001), o soluço de Aristófanes serve aos propósitos dramáticos de Platão: colocá-lo, desde o início, junto de Agatão e Sócrates na segunda parte do diálogo seria “indelicado”, pois criaria uma primeira parte com participantes mais fracos (Fedro, Pausânias e Erixímaco) e outra com os mais fortes. A crise de soluços, no entanto, permite que isso aconteça e encadeia os discursos dos poetas com o do filósofo, que triunfará sobre eles, ao final do diálogo.

11- Platão, 2017, 518c, sobre a exigência platônica de uma visão “com a totalidade da alma” [syn hólei têi pshychêi].

12- Em seu comentário sobre O banquete, Goldschmidt (2002, p. 220) defende que a fala de Alcibíades assinala o movimento descendente, remetendo-nos novamente ao mundo sensível. Isso corrobora, em certo sentido, a interpretação deste ensaio, pois, como veremos adiante, é a “experiência prática” de Alcibíades que apresenta duro questionamento à última etapa da ascese filosófica do amor, ou seja, da contemplação do Belo em si.

13- É um “perceber de repente” [exaíphnes anafaínesthai], como um súbito brilho, luz ou explosão. Ver também Platão (2001, 210), em que subitamente se enxerga a forma do Belo.

14- Pensamos, aqui, exatamente nas ideias pedagógicas de Jean-Jacques Rousseau, Johann Friedrich Herbart e John Dewey, pertencentes, respectivamente, aos séculos XVIII, XIX e XX (DALBOSCO, 2018). Sob este aspecto, O banquete lança germes importantes dessa posterior tradição pedagógica crítica.

Recebido: 19 de Abril de 2020; Revisado: 08 de Julho de 2020; Aceito: 01 de Setembro de 2020

Claudio A. Dalbosco é doutor em filosofia pela Universität Kassel, Alemanha, e professor do Programa de Pós-graduação em Educação (PPGEdu) da Universidade de Passo Fundo (UPF).

Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio é professor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP) e coordenador do Paideuma – Grupo de Estudos Clássicos da FEUSP.

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