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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 17-Mar-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248241234 

Artigos

Gustavo Alberto: “invenção” e circulação da primeira carteira escolar patenteada no Brasil (1881-1884)1

Gustavo Alberto: “invention” and circulation of the first patented school desk in Brazil (1881-1884)

Juarez José Tuchinski dos Anjos2 
http://orcid.org/0000-0003-4677-5816

2- Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil. Contato: juarezdosanjos@yahoo.com.br


Resumo

Um dos elementos materiais de maior centralidade na escola do final do Oitocentos foi, sem dúvida, o móvel destinado aos estudantes: a carteira escolar. Emergindo como alternativa aos antigos bancos e mesas coletivas, difundida nas Exposições Universais, debatida nos Congressos Pedagógicos e de Higiene, a criação e a produção dos chamados bancos-carteiras ajudaram a configurar uma nascente indústria escolar. No Brasil Império, a década de 1880 foi o momento em que essa questão passou a ser debatida com vigor. Salvo exceções, a investigação dos primórdios dessa produção de carteiras escolares no país ainda é tema a reclamar tratamento historiográfico. Nesse contexto, o artigo tem por objetivo investigar o processo de “invenção” e circulação da primeira carteira escolar patenteada no Brasil, por iniciativa de seu inventor, o professor Gustavo José Alberto, entre 1881 e 1884. Para tanto, ancora-se nos recursos metodológicos da micro-história e toma como fontes privilegiadas jornais do período, publicados na Corte Imperial, bem como relatórios oficiais. Os resultados apontam que o interesse do professor em produzir um protótipo de banco escolar parece ter nascido de sua experiência docente e de seu contato com debates pedagógicos então em andamento e dos quais tomou parte ativa. Ao mesmo tempo, ao criar um modelo de carteira a ser utilizado em sua escola, decidiu patenteá-lo junto ao Ministério da Agricultura para, posteriormente, oferecê-lo ao governo, que, naquela época, vinha realizando compras significativas desse material, tanto via importações quanto via fabricação local.

Palavras-Chave: Carteira escolar; Cultura material escolar; Brasil Império; Século XIX

Abstract

One of the most central material elements in schools at the end of the 19th century was, undoubtedly, the furniture used by the students: the school desk. Appearing as an alternative to the old collective benches and tables, disseminated at the World’s Fairs, debated at Pedagogical and Hygiene Congresses, the creation and production of the so-called chair-desks contributed to establish a rising school industry. In the Empire of Brazil, this matter came to be vigorously debated in the 1880s. With few exceptions, the investigation of the beginnings of this production of school desks in the country is still a subject lacking historiographical treatment. In this context, this paper aims at investigating the process of “invention” and circulation of the first patented school desk in Brazil, on the initiative of its inventor, Professor Gustavo José Alberto, between 1881 and 1884. Therefore, it is based on the methodological resources of microhistory and uses, as privileged sources, periodicals of that time published in the Imperial Court and official reports. The findings point out that the interest by the professor in producing a prototype of a school desk seems that it resulted from his teaching experience and contact with pedagogical debates – then in progress – in which he played an active role. At the same time, upon creating a desk model to be used in his school, he decided to patent it in the Ministry of Agriculture in order to subsequently offer it to the government. At that moment, the government was making significant purchases of this material, both via imports and local manufacturing.

Key words: School desk; School material culture; Empire of Brazil; 19th century

Introdução3

Um dos elementos materiais de maior destaque na escola no final do Oitocentos foi, sem dúvida, o móvel destinado aos estudantes: a carteira escolar. Despontando como alternativa aos antigos bancos e mesas coletivas artesanais, difundida nas Exposições universais, debatida nos Congressos Pedagógicos e de Higiene, alçada por vezes à panaceia para os problemas da escolarização, a criação e a produção dos chamados bancos-carteiras ajudaram a configurar uma nascente indústria escolar, cujo desenvolvimento seria marcado por diferentes ritmos e temporalidades nos diversos países do ocidente (MEDA, 2015; VIDAL, 2009).

No Brasil, as décadas de 1870 e 1880 foram o momento em que essa questão passou não só a ser debatida com mais vigor por médicos, políticos e educadores, como também a delinear o interesse em aliar a importação de carteiras escolares consideradas modernas (dos Estados Unidos, da França e da Inglaterra) a uma produção local (e com menores custos) desse tipo de mobília. Salvo algumas exceções – como as pesquisas de Wiara Alcântara (2014) acerca dos primórdios da produção de carteiras escolares em São Paulo, desvelando neste quadro a carteira escolar como vetor de relações pedagógicas, transnacionais e econômicas; de Gustavo Rugoni de Sousa (2019) sobre o impacto dos saberes médicos, higiênicos e econômicos na reinvenção do mobiliário escolar na segunda metade do século XIX, com especial ênfase nas carteiras escolares; de Juarez dos Anjos (2019) sobre a atuação da Fábrica Röhe & Irmãos, instalada na Corte Imperial, na fabricação de bancos-carteiras segundo modelos norte-americanos em circulação, num estágio técnico que denominou de protoindústria escolar; e Gizele de Souza e Vera Lúcia Gaspar da Silva (2019) num estudo sobre os modos de provimento material das escolas na passagem do Oitocentos para o Novecentos, dentre os quais destacam a articulação de diversas estratégias de fabricação e fornecimento de mobílias, como carteiras escolares, que batizaram de negócios combinados –, pode-se dizer que a investigação dos primórdios da produção de carteiras escolares no país, na interface com a história da cultura material escolar, ainda é tema a reclamar tratamento historiográfico, seja pelo aprofundamento da investigação sobre as primeiras indústrias envolvidas neste negócio (com suas estratégias comerciais), seja pelo estudo dos primeiros sujeitos que se propuseram a criar modelos de carteiras a serem colocados em circulação nas escolas e no mercado, dentre outros possíveis problemas de pesquisa.

Dentro deste contexto histórico e historiográfico, este artigo tem por objetivo estudar o processo de “invenção” e circulação da primeira carteira escolar patenteada no Brasil, por iniciativa de seu inventor, o professor público Gustavo José Alberto, entre 1881 e 1884.

Falar em primeira carteira escolar, de início, pode soar prematuro, uma vez que, como já ensinava Marc Bloch (2011), a história é a ciência em eterna mudança, de modo que interpretações construídas hoje podem, amanhã, à luz de novas fontes ou novas questões, terem de ser revisadas ou abandonadas. Todavia, o que permite afirmar que será estudado o processo de invenção e circulação da primeira carteira escolar patenteada no Brasil é, justamente, uma das bases do conhecimento histórico: a empiria compulsada e interrogada.

Em decorrência de um projeto de pesquisa que tem inventariado, nos arquivos existentes em Brasília (como o da Câmara dos Deputados e do Senado, com suas respectivas bibliotecas e seções de obras raras), fontes para a história da educação imperial, empreendi, dentre outras frentes de trabalho, uma leitura minuciosa da coleção completa de todas as leis do Império, que se encontram na Biblioteca da Câmara dos Deputados e disponíveis para consulta on-line no site da casa legislativa4. Inicialmente, buscava por informações relativas a escolas, programas de ensino, instituições de assistência, inspeção etc. Mas, inspirado pela leitura da tese de Wiara Alcântara (2014) e posteriormente de um posfácio de Juri Meda (2018), voltei minha atenção às leis relativas a patentes (chamadas à época de privilégios industriais) de objetos destinados ao ensino e que, como se verá mais adiante, eram concedidas exclusivamente pelo governo geral. Assim, guiado no olhar – como afirma Michelle Perrot (2005), é ele que faz a história –, localizei, para o ano de 1882, o Decreto nº 8.473, de 8 de abril, que “concede a Gustavo José Alberto privilégio para o banco de sua invenção destinado às escolas” (BRASIL, 1882, p. 405). Assim, é dentro dessa perspectiva da primeira lei localizada – dentro de uma série completa, em sequência cronológica, desde 1822, recorte anterior, inclusive, à primeira lei nacional de patentes, de 1830 – concedendo o privilégio de um banco-carteira para escolas que se pode afirmar que será estudado, aqui, o processo de invenção e circulação da primeira carteira escolar patenteada em nosso país. É claro que não afirmo – e as bases empíricas e mesmo a historiografia não permitem fazê-lo – ter sido a primeira carteira escolar inventada no Brasil5. Mas, sem dúvida, foi a primeira que um inventor teve êxito em patentear junto ao governo imperial.

Para além da Coleção de Leis do Império do Brasil – que foi o ponto de partida para este estudo –, tomo como fontes privilegiadas um corpus disperso em vários acervos: notícias veiculadas em jornais do período, publicados na Corte Imperial, em que Gustavo Alberto exercia o ofício de professor de primeiras letras, disponíveis na Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional; relatórios oficiais; catálogos de móveis escolares americanos e ingleses em circulação no período histórico em tela, existentes no repositório digital Archive.org; e os documentos da Exposição Pedagógica do Rio de Janeiro, encontrados em formato impresso na seção de obras raras da Biblioteca do Senado Federal. Algumas incursões foram feitas, ainda, no sistema de buscas do Arquivo Nacional e em seus inventários publicados.

Dado o caráter lacunar, disperso e fragmentário da empiria, para o seu tratamento historiográfico ancoro-me nos aportes metodológicos da micro-história – particularmente a operação com indícios (GINZBURG, 1989; LEVI, 1992) e o método onomástico (GINZBURG, 1991a). Conforme sintetiza Giovanni Levi (1992, p. 155):

A abordagem micro-histórica dedica-se ao problema de como obtemos acesso ao conhecimento do passado, através de vários indícios, sinais e sintomas. Esse é um procedimento que toma o particular como seu ponto de partida (um particular que com frequência é altamente específico e individual e seria impossível descrever como um caso típico) e prossegue identificando seu significado à luz de seu próprio contexto específico.

O recorte cronológico privilegiado vai de 1881, ano em que Gustavo Alberto iniciou o processo de patente de seu invento, até o ano de 1884, quando foram localizadas as últimas informações sobre a circulação do seu banco-carteira. Todavia, opero também com a diacronia temporal, recuando até a década de 1870 e avançando até perto do fim da década de 1880, para delinear, da forma mais completa possível, o tecido de relações sociais (GRENDI, 2009) em que nosso personagem e seu invento estavam imersos.

Este estudo divide-se em dois momentos. No primeiro, apresentarei o professor e inventor Gustavo José Alberto no quadro histórico-educacional em que atuava, a Corte Imperial entre as décadas de 1870 e 1880. Num segundo momento, tentarei reconstituir, na medida em que a documentação permita, o itinerário que o professor seguiu no processo para obtenção da patente da carteira escolar de sua invenção e algumas características materiais do seu invento. Ainda que com maiores limitações documentais, procurarei, também, analisar a recepção da carteira patenteada por ele. Ao final, encerrarei com algumas considerações a título de conclusão ou, se o leitor preferir, abertura para novas investigações.

Um professor público primário numa teia de relações sociais

Operando com o método onomástico descrito por Carlo Ginzburg (1989, p. 174) e com isso tomando “o fio de Ariana que guia o investigador no labirinto documental […] que distingue um indivíduo de um outro em todas as sociedades conhecidas […]”, isto é, o fio do nome do professor Gustavo José Alberto, como pista para reconstituir o tecido social em que estava imerso, persegui-o nas páginas de diversos jornais publicados na Corte Imperial e nos relatórios oficiais do Ministério dos Negócios do Império, pasta responsável pela instrução pública no município neutro do Rio de Janeiro. Atentei, também, para a sua presença direta ou indireta na historiografia recente sobre a profissão docente na Corte Imperial. Foi possível, ao cabo, identificar alguns dados que ajudam a compreender suas relações com a instrução pública e as possibilidades históricas (DAVIS, 1987) de seu interesse pela invenção de uma mobília escolar.

Conforme relatórios do Ministério dos Negócios do Império, Gustavo Alberto atuava como professor público primário na Corte desde 1863, provido na primeira cadeira de meninos da Freguesia do Espírito Santo (JORNAL DO COMMERCIO, 1881). Pesquisas de Alessandra Schueler (2007) e Heloísa Villela (2012) indicam que ele era irmão do também professor Philippe Alberto, sendo naturais da Bahia, formados na Escola Normal daquela província e homens negros que construíram suas carreiras profissionais, Gustavo Alberto na capital do Império e seu irmão em Niterói. Das tensões raciais que possivelmente Gustavo Alberto experimentou, não encontrei evidências diretas, embora o próprio silêncio de sua parte e das fontes consultadas acerca de seu pertencimento racial possa ser indicador de que, para ascender e circular numa sociedade escravista atravessada pelo preconceito de raça, ele tenha tido de assumir, a exemplo de outros negros como André e Antonio Rebouças, estratégias de embranquecimento social, já que “a alusão à condição racial […] apresentava interdições e certas regras” (BARBOSA; ANJOS; SILVA, 2020, p. 8) no período em tela. Em que pese isso, sabe-se que seu irmão Philippe chegou a unir-se ao movimento abolicionista na década de 1880 (VILLELA, 2012), e que, por ocasião da Abolição da Escravidão em 1888 – quando Philippe já era falecido –, Gustavo Alberto participou, com seus alunos, das comemorações realizadas na capital imperial.

O envolvimento com a vida pública por meio do exercício profissional do magistério foi, seguramente, marca comum na trajetória de ambos os professores, permitindo identificá-los com aquele grupo de mestres que Alessandra Schueler (2007), analisando a região em que viveram, denominou de intelectuais da cidade. Segundo a historiadora,

Por meio da imprensa e da participação nos trabalhos das Conferências Pedagógicas e, ainda, da elaboração de livros e compêndios didáticos, os mestres não apenas contribuíram para os debates sobre a educação imperial, mas, principalmente, disputavam entre si ideias, opiniões e propostas políticas para a sua sociedade […]. Apresentavam concepções diversas em relação ao seu próprio papel social, às funções do Estado na promoção da instrução pública e aos significados da educação formal por intermédio das instituições de ensino. Atuaram como intelectuais urbanos, como intelectuais do ensino, envolvidos com as questões da instrução primária, do ofício docente e da cidade. (SCHUELER, 2007, p. 135).

Com efeito, nas duas décadas seguintes à sua nomeação, Gustavo José Alberto, um desses intelectuais citadinos, encontra-se profundamente envolvido com o mundo da escola e da escolarização: ora participando, como orador, das Conferências Pedagógicas (BRASIL, 1873) e das famosas Conferências Populares da Glória, onde, segundo notícia do Jornal do Commercio de 3 de novembro de 1875, “foi ouvido com muita atenção e mereceu os aplausos que teve ao deixar a tribuna” (JORNAL DO COMMERCIO, 1875, p. 5); ora como vice-presidente do grêmio de professores públicos primários da Corte, uma das primeiras associações docentes de que se tem notícia no Brasil (GAZETA DE NOTICIAS, 1882c); ora, ainda, sendo reconhecido e recebendo menções honrosas na Exposição Pedagógica de 1883 (GAZETA DE NOTICIAS, 1884); ou tendo o trabalho de seus alunos – uma maquete em relevo da Freguesia do Espírito Santo, exposta no Museu Escolar na Corte, em 1886 – apreciada demoradamente pelo Conde D’Eu, esposo da princesa Isabel, herdeira do trono (GAZETA DE NOTICIAS, 1886).

É, sobretudo, nas Conferências Pedagógicas e nas Conferências da Glória que se tem contato, ainda que de forma indiciária, com parcela do repertório pedagógico de Gustavo José Alberto diante dos problemas e dilemas enfrentados pela instrução pública do seu tempo.

Em 1873, por exemplo, proferiu uma conferência pedagógica sugerindo formas de organização da distribuição do tempo e dos conteúdos para o ensino elementar em uma escola pública, de acordo com os dias da semana (BRASIL, 1873). Discorreu, ainda, de acordo com as teses previstas para análise, acerca do número de anos necessários à completa instrução das crianças; sobre a conveniência ou não da instituição de escolas mistas (para ambos os sexos) na Corte; sobre o método de ensino mais racional a ser utilizado nas escolas; e, finalmente, e, sobre a melhor maneira de ensinar o sistema métrico aos meninos (BRASIL, 1873). Já em 1881, numa Conferência da Glória, dissertou sobre o que chamava de escolas auxiliares, que seriam escolas de ler, escrever e contar regidas por alunos sob a supervisão de um professor público das escolas oficiais (JORNAL DO COMMERCIO, 1881). Nessas conferências a que tive acesso, sobretudo a segunda, ele revela estar a par do funcionamento de sistemas de ensino de diversos países, como Inglaterra, França, Suíça e Dinamarca, assim como dos debates nacionais e internacionais sobre a instrução no seu tempo.

Uma questão que estava começando a se impor à época no debate educacional da Corte e da qual, por seu envolvimento com o mundo da instrução, Gustavo Alberto parece não ter estado alheio era a do provimento material das escolas, com objetos e móveis modernos, adequados e necessários ao ensino. Como já observado (ANJOS, 2019), o governo imperial, em especial no que dizia respeito ao mobiliário escolar, vinha procurando equipar as escolas públicas da Corte com carteiras escolares produzidas de acordo com os princípios ergonômicos e higiênicos defendidos por educadores e médicos em âmbito nacional e internacional. Todavia, esse intento esbarrava em problemas como o alto custo da importação desse tipo de mobília de países como Inglaterra, França e Estados Unidos, tidos como referências na produção desses móveis, bem como nas dificuldades técnicas e financeiras para a produção industrial em massa no próprio país e a falta de envolvimento da chamada iniciativa particular no sentido de socorrer as carências econômicas do Estado sentidas nessa matéria (ANJOS, 2019).

Essa escassez do vil metal que obstava o desenvolvimento intelectual e material da instrução pública não era desconhecida de Gustavo Alberto e a busca por soluções que a contornassem também ocupava sua fala e ação.

Na sua mencionada conferência pedagógica de 1873, quando discutiu o ponto relativo à criação de escolas mistas, foi favorável à sua instituição, desde que para crianças entre 6 e 8 anos, entregues a professoras mulheres por conta de seus supostos dotes naturais para a maternidade, ou, na sua falta,

às esposas dos professores que no mesmo edifício [em que os maridos lecionam], com uma remuneração menor que a de uma professora especial [provida e financiada pelo Estado], cuidará delas, educá-las-á com mais carinho e o ensino a esta idade será mais profícuo que o dos monitores de classes e a despesa dos cofres públicos será muito menor. (BRASIL, 1873, p. 398, grifo nosso).

Em palavras simples, ao mesmo tempo em que defendia a difusão da instrução elementar a meninos e meninas, o professor sabia que toda economia era bem-vinda ao erário público, razão pela qual sua proposta um tanto quanto criativa tentava equacionar essas duas variáveis tão presentes na história da educação imperial e no seu próprio cotidiano docente.

Já na conferência acerca das escolas auxiliares – escolas tributárias ligadas a escolas públicas oficiais –, Gustavo Alberto revela-se a par, como dito, dos feitos dos outros países em matéria de instrução, mas cônscio das limitações materiais do seu. Suas palavras chegam pela pena do articulista do Jornal do Commercio de 24 de janeiro de 1881:

Nem o sistema seguido na França para o derramamento da instrução, nem o adotado pela Prússia pode convir ao Brasil, cuja rareada população luta com a dificuldade das distâncias. Os Estados Unidos da América e a Suíça são bons modelos para o nosso país; mas não podemos dispor de somas fabulosas como a Grande Confederação com a instrução pública, nem temos, como a Suíça, a facilidade de derramar o ensino pelo interior das nossas províncias. O único sistema que poderíamos tomar como norma seria o adaptado na Suécia, Noruega e Dinamarca. O principal motor do progresso da instrução pública nestes estados, de clima aspérrimo e onde por consequência as dificuldades são maiores do que no Brasil, foi a religião. Lá, nenhum cidadão pode casar-se sem saber ler. É da leitura da bíblia, com a qual se conforma, que lhe vem a confirmação do luterano. E dessa confirmação religiosa obrigatória deriva a instrução obrigatória. Eis porque eles pedem a instrução que lhes é dada tanto por meio das escolas principais, semelhantes às nossas, como por meio de escolas ambulantes, regidas por professores que seguem de uns para outros pontos. Este sistema deu em resultado, ultimamente, a fundação de escolas de mais modestas proporções do que as principais, isto é, de ensino mais limitado e de menor número de alunos. Assim pode o nosso governo criar escolas auxiliares regidas por adjuntos que se queiram sujeitar aos professores e com um pequeno ordenado. É este o plano que formulou e que concilia a grandiosa ideia de derramar a instrução com limitado dispêndio dos dinheiros da nação: estabeleça o governo, por exemplo, em uma das freguesias do interior, uma escola chamada principal e o professor dela seja o encarregado de percorrer o distrito que lhe pertencer, para observar os pontos em que houver alunos que, pela distância, não podem frequentar a escola do centro; ali ele prepararia os seus alunos, os quais, logo que estivessem prontos para serem seus delegados, ficariam estabelecidos nessas escolas elementares de aprender a ler, escrever e contar, que são as noções mais aproveitáveis ao povo dos nossos recôncavos. Já fez, a expensas suas, experiências nesse sentido, na freguesia do Espírito Santo, onde é professor, as quais deram ótimo resultado. Como a ideia é excelente, julga que será abraçada, não só pelo governo como pela iniciativa particular. É este o plano que com a maior despretensão apresenta. O orador foi aplaudido. (JORNAL DO COMMERCIO, 1881, p. 1).

O professor Gustavo José Alberto não deve, aqui, tornar-se pretexto para retornar àquele conhecido – e já superado – debate das ideias fora do lugar (SCHWARZ, 1977). Antes, ele nos conduz para o das traduções culturais (PALLARES-BURKE, 1996) e das apropriações (CHARTIER, 2002) que os sujeitos do mundo educacional brasileiro oitocentista realizavam, na tentativa de adaptar e ajustar modelos estrangeiros às especificidades, possibilidades e disponibilidades da realidade em que estavam inseridos e a qual conheciam muito bem. Assim, ao mesmo tempo em que ele rejeita modelos de instrução como os praticados nos Estados Unidos e na Suíça, por reconhecer que as condições financeiras desses países eram mais favoráveis que as nossas, acredita ser possível praticar o sistema sueco, norueguês e dinamarquês nos quais escolas auxiliares itinerantes teriam contribuído, com baixo custo aos cofres públicos, para a difusão da instrução entre aquelas populações. Traduzindo o modelo para seu país, o professor pondera as adaptações e vantagens delas decorrentes: escolas auxiliares, regidas por professores adjuntos (isto é, em começo de carreira) e que se sujeitem a exercer ofício recebendo um ordenado menor que o dos professores oficiais. Tudo para conciliar o que considera uma grandiosa ideia: “derramar a instrução com limitado dispêndio dos dinheiros da nação” (JORNAL DO COMMERCIO, 1881, p. 1).

Neste ponto da análise, Gustavo Alberto revela ser um homem da palavra, mas também da ação, anunciando que ele próprio – às próprias custas, já que professores não podiam servir-se livremente dos minguados recursos do erário – dera início a um experimento nesse sentido, na localidade onde exercia o magistério. Isto é, ele procurou colocar em prática – com ótimo resultado, segundo afirmou – a proposta que defendia na tribuna. Talvez – e aqui uso essa palavra, tão refletida por Carlo Ginzburg (1991b) ao prefaciar O retorno de Martin Guerre, de Natalie Davis, para significar as lacunas que precisam ser por vezes preenchidas pela imaginação histórica do historiador – tenha sido com esse mesmo espírito proativo que o professor tenha, ele próprio, mais uma vez, alguns anos depois, em 1883, fornecido vários móveis necessários à sua escola e mandando, ainda, proceder a diversas obras no edifício em que ela funcionava, razão pela qual recebeu público agradecimento do inspetor geral da Instrução Pública da Corte (GAZETA DE NOTICIAS, 1883).

Assim, parece plausível afirmar que, por estar mergulhado e devidamente atualizado nos problemas e necessidades da instrução escolar do seu tempo – particularmente quanto a modelos internacionais de organização da instrução em circulação –, é que Gustavo Alberto, engajado na teoria e na prática com o mundo da educação, teve a iniciativa de, em fins de 1881, inventar e patentear um modelo de carteira escolar para as escolas primárias do país como mais uma entre as muitas formas pelas quais ele, intelectual da cidade, vinha tentando agir e intervir no campo educacional do qual era um dos agentes. O caminho que trilhou para atingir esse intento e a recepção que teve nos meios educacionais da Corte é apresentado a seguir.

Gustavo Alberto e seu banco-carteira: processo de patente e circulação

No tempo em que Gustavo José Alberto buscou obter a patente para o banco-carteira de sua invenção, vigorava no Brasil a Lei de Patentes, de 28 de agosto de 18306. Em linhas gerais, explicam Andrea Cabello e Luciano Póvoa (2016, p. 889):

A patente era concedida gratuitamente aos inventores e melhoristas que comprovassem por escrito a autoria da invenção. Havia, ainda, a realização de um exame prévio para comprovar a novidade e a utilidade da invenção. Rodrigues (1973) com base nos Relatórios Ministeriais, indica que vários pedidos de patente foram recusados por não cumprirem os requisitos de novidade e utilidade, o que sugere que os exames de mérito de patente foram realizados com algum rigor. Além disso, a lei adotava a prática da “revelação” da invenção, em que o requerente deveria depositar “no arquivo público uma exata e fiel exposição dos meios e processos, de que se serviu, com planos, desenhos e modelos, que os esclareça e, sem eles, se não puder ilustrar exatamente a matéria” (art. 2º). Nesse sistema, a patente era concedida ao “primeiro a inventar” e o inventor perderia a patente caso não colocasse em prática a invenção no prazo de dois anos após a concessão da patente ou já tivesse obtido patente no exterior pela mesma invenção. Neste último caso, teria direito apenas ao prêmio por ter sido introdutor.

Consultando os instrumentos de pesquisa disponíveis no Arquivo Nacional brasileiro, não há cópia dos desenhos e modelos que Gustavo José Alberto deve ter apresentado quando de sua petição pela patente do banco que havia inventado. Tampouco há registros do processo. Entrementes, isso pode ser atribuído ao fato de que nem toda a documentação relativa a privilégios industriais está organizada e catalogada no Arquivo. Por outro lado, essa documentação existiu e, segundo notícias veiculadas na imprensa da Corte, sobre ela botaram os olhos, em dezembro de 1881, o amanuense da repartição e a comissão da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, responsável pela emissão de um primeiro parecer (GAZETA DE NOTICIAS, 1881) e, em março de 1882, o conselheiro procurador da Coroa, Soberania e Fazenda Nacional (GAZETA DE NOTICIAS, 1882a). Finalmente, cumpridas as exigências legais, “por decreto n. 8.473 de 8 do corrente [abril] concedeu-se a Gustavo José Alberto privilégio por 8 anos para o banco de sua invenção, destinado ao uso das escolas, a que se denominou misto, segundo o desenho que apresentou e ficou arquivado” (GAZETA DE NOTICIAS, 1882b, p. 3).

Como seria a carteira escolar – ou banco-carteira, como é designado nas fontes – “inventada” e patenteada por Gustavo José Alberto? Na ausência dos desenhos e projeto submetidos à avaliação, tive de me valer do relatório elaborado pela comissão formada por membros da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, no qual foi, em caráter inicial, feita uma primeira análise de mérito, que resultou na aprovação e recomendação da concessão da patente requerida junto ao Ministério da Agricultura do Império. É bastante difícil tentar chegar à materialidade da carteira apenas por meio da descrição. Mas, no caso brasileiro, essa é uma limitação documental com a qual tenho aprendido a lidar enquanto historiador do período, na busca por compreender essa dimensão do nosso passado educacional.

Ao que parece, o banco-carteira era composto de banco e mesa, articulados sobre um eixo (provavelmente de ferro), “com todas as peças em um só móvel”, cuja mesa “pode ser mais ou menos inclinada [podendo] servir facilmente para o estudo de desenho e música” (O AUXILIADOR DA INDUSTRIA NACIONAL, 1882, p. 26). Daí o adjetivo misto dado ao banco em algumas das fontes, uma vez que serviria para mais de uma finalidade. Haveria, ainda, segundo a descrição encontrada, uma espécie de aparador, debaixo da mesa, para nele serem colocados os livros escolares. Porém, nesse ponto, a comissão recomendava que esse aparador fosse substituído por uma gaveta embaixo do banco, a fim de evitar que os livros fossem danificados pelas crianças que fariam uso do móvel, mantendo-se, porém, o aparador, para descanso dos pés (O AUXILIADOR DA INDUSTRIA NACIONAL, 1882).

Como observou Wiara Alcântara (2014), no debate pedagógico estabelecido sobre o mobiliário escolar nas décadas finais do Oitocentos destacava-se a preocupação de que as carteiras escolares tanto fossem adaptáveis aos corpos dos alunos como funcionassem de suporte para diferentes atividades, como a escrita, a leitura e o desenho. Da mesma maneira, o design articulado do móvel deveria possibilitar que fosse regulado de acordo com a altura dos alunos e os espaços disponíveis nas salas de aula. Diante dessas considerações, percebe-se que a carteira proposta por Gustavo José Alberto visava, de fato, atender a várias dessas demandas higiênicas e ergonômicas colocadas para o móvel escolar destinado aos estudantes.

Por outro lado, desde o início, os avaliadores observaram que haveria alguma semelhança entre o banco-carteira inventado por Gustavo Alberto e certo modelo que, nessa e noutras fontes, vem, simplesmente, denominado de Victória. Infelizmente, apesar de buscas em catálogos internacionais de mobília escolar no repositório Archive.org, não foram encontradas descrições detalhadas desse modelo que permitam tomá-lo como parâmetro para análise das possíveis inspirações utilizadas em modelos brasileiros. Em que pesem as semelhanças, na opinião dos avaliadores haveria inovação e vantagem no banco brasileiro em relação ao modelo estrangeiro:

Os dois desenhos apresentados pelo pretendente ao privilégio evidenciam que o banco-misto é uma espécie de banco para uso dos estudantes das escolas primárias, comumente chamado banco-carteira. Entre as espécies de bancos-carteiras, Cunha Guimarães & Cia. importaram dos Estados Unidos da América um que denominaram Victória. O Victória, construído de faia e de ferro, tem três peças principais, mesa, banco e a parte que liga estas duas peças e que serve de pés a todo o banco-carteira, a mesa e o banco, girando sobre os eixos, unem-se a essa parte, formando uma só peça. Alberto copiou o Victória, modificando-o de modo a fazer com que o encosto do banco sirva de mesa do próprio móvel. Resulta daqui que há invenção no móvel de Alberto, consistindo em que a mesa, girando sobre os eixos, passa a ser encosto do banco, de modo a adaptar-se a carteira banco ao mister da escrita e da leitura, achando-se tudo em um só objeto. […] A vantagem do banco misto sobre o Victória consiste em que a mesa e o banco daquele, girando sobre os eixos, adaptam-se à peça central, de modo a formar volume que ocupa pequeno espaço. (O AUXILIADOR DA INDUSTRIA NACIONAL, 1882, p, p. 26, grifo do autor).

Se, de fato, o banco inventado por Gustavo Alberto imitava em alguns aspectos o modelo americano a que se refere a comissão da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional, isso significa que o professor, também nessa matéria, estava atualizado no que dizia respeito à circulação de modelos pedagógicos, no caso, modelos de mobiliário escolar, como o que teria sido introduzido no país pelos empresários Cunha, Guimarães & Cia. Ao mesmo tempo, o fato de ter introduzido nele modificações significativas demonstra que não só no mundo das ideias, mas também dos materiais, as interpretações e apropriações eram feitas pelos sujeitos ligados ao mundo da instrução, tanto que, ao final da avaliação, a comissão acabou por considerar “que há invento no banco misto e é de parecer que seja concedido o privilégio requerido” (O AUXILIADOR DA INDUSTRIA NACIONAL, 1882, p. 26). Além disso, haveria ainda uma vantagem: o pouco espaço que o móvel ocuparia no interior das salas de aula.

Evidencia-se, assim, que os critérios de utilidade e novidade, estabelecidos pela Lei de Patentes para que um privilégio industrial fosse concedido a um inventor, foram levados em conta na análise empreendida pela comissão da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional. Mas, para cumprir plenamente o que a lei regulava, era preciso, ainda, que, após receber a patente solicitada, Gustavo José Alberto conseguisse, de algum modo, introduzir seu banco no mercado, uma vez que com isso a legislação brasileira de patentes visava, segundo observam Andrea Cabello e Luciano Póvoa (2016, p. 889), “transformar esses inventos em benefícios para a sociedade, indo além da mera proteção de direitos de propriedade”. Por isso, é preciso indagar como Gustavo José Alberto procurou realizar a difusão e a introdução de seu invento nas escolas brasileiras da época, inclusive apresentando-o como um produto a ser consumido e adquirido pelas escolas.

Uma primeira evidência da circulação e da tentativa de difusão do banco-carteira criado por Gustavo Alberto é a divulgação que foi feita, ainda em 1882, em diversos jornais da Corte, em forma de breve nota, da lei que lhe concedeu a patente (GAZETA DA TARDE, 1882). Com isso, fazia-se uma espécie de propaganda de um novo invento a ser colocado a serviço da melhoria da instrução pública no país. Esse tipo de nota adquiria um caráter de propaganda se, pensando o jornal impresso como suporte na perspectiva de uma história da leitura, for levado em conta que vinha veiculado nos mesmos periódicos que andavam divulgando carteiras importadas e outros materiais didáticos colocados à venda no comércio do Rio de Janeiro, oferecendo aos leitores uma espécie de rol de produtos escolares que poderiam ser introduzidos nas escolas como forma de modernização do ensino, indo ao encontro dos debates e discussões educacionais feitas à época.

Também em 1882, no mês de junho, sabe-se que Gustavo José Alberto deixou em exposição, no prédio onde funcionava a Inspetoria Geral da Instrução da Corte, um exemplar do seu banco misto, junto de um aparelho gráfico de invenção de Hermenegildo Neves. Na ocasião, a exposição do banco-carteira ganhou uma nota no jornal Diario do Brazil por ter sido examinado por ninguém menos que o próprio Imperador D. Pedro II – conhecido por seu interesse pela educação – acompanhado do ministro dos Negócios do Império e o inspetor interino da Instrução Pública, o Barão de S. Félix (DIARIO DO BRAZIL, 1882). Dois anos mais tarde – embora não seja possível saber se por consequência dessa visita – consta, no relatório do então inspetor geral da Instrução Pública do município da Corte, redigido em 1884, o único registro localizado de compra, por parte do Estado, dos bancos-carteiras inventados por Gustavo José Alberto: cinquenta exemplares feitos segundo o modelo por ele inventado (BRASIL, 1884).

Por ocasião dessa compra, o inspetor geral da Instrução Pública na Corte oferece uma importante informação, que ajuda a lançar alguma luz sobre os prováveis motivos de ter sido feita uma compra tão pequena do invento de Gustavo Alberto. Segundo o relatório,

Logo em princípio, recebi constantes reclamações quanto à deficiência de bancos e carteiras para os alunos das escolas públicas. Nesse sentido, representei à V. Ex., e usando da autorização concedida pelo aviso de 28 de junho fiz a aquisição de 150 bancos-carteiras de modelo americano para 4 alunos e de mais 50 para dois alunos, segundo o modelo do professor Gustavo José Alberto. Todos esses bancos foram distribuídos entre as escolas onde a falta de mobília era mais sensível. Ao mesmo tempo fiz reparar bancos carteiras arrecadados por estarem estragados, e pouco restam atualmente em depósito, tornando-se necessário comprar novos bancos para atender as requisições. […]

Salvo algumas exceções, a mobília escolar ficou toda uniformizada. O modelo americano está geralmente adotado. Apenas subsiste a diferença de que em algumas escolas servem os bancos-carteiras para 4 alunos e em outras para 2.

Deixo de entrar em considerações sobre o melhor tipo de mobília a adotar para as escolas, porque me parece que a questão não pode ser atualmente ventilada com proveito. Pode-se discutir em tese o melhor tipo quando as escolas têm seus prédios apropriados, com os requisitos pedagógicos indispensáveis. Entre nós não se dá isso. Elas funcionam em casas particulares inteiramente impróprias para o serviço. É, pois, forçoso que a mobília corresponda à sala para a qual é destinada. Debaixo deste ponto de vista, não haverá durante muito tempo outro remédio senão continuar com os bancos carteiras-americanos para 4 alunos, porque oferecem a vantagem de economizar espaço nas estreitas salas onde as escolas trabalham. (BRASIL, 1884, p. 35, grifo nosso).

Mais uma vez é da tensão entre os desejos ideais e as possibilidades reais da instrução pública que emergem alguns elementos que a interpretação histórica precisa considerar. Ao mesmo tempo em que era do interesse da Inspetoria de Instrução da Corte dotar suas escolas com as mobílias modernas que todos almejavam para fazer moderno o próprio ensino, a complexa realidade de onde funcionavam essas escolas – “casas particulares inteiramente impróprias” – e do pouco espaço que nelas dispunham as salas de aula era outro forte limitador para que mobílias ergonômicas fossem nelas introduzidas. Assim, não sendo possível adaptar as salas para receberem carteiras individuais, a única solução era aceitar que em algumas escolas, por conta do espaço disponível, poderiam ser colocadas carteiras de quatro ou dois lugares. Aquilo que era vantagem na carteira de Gustavo Alberto, segundo a comissão avaliadora de seu invento, aqui já não fazia tanta diferença, pois a depender da configuração material das escolas a que fosse destinada ela não poderia ser utilizada, mesmo ocupando provavelmente menos espaço que outros modelos. Em salas estreitas, as carteiras de quatro lugares, mesmo vistas como inadequadas e ultrapassadas, eram as que cabiam melhor. Esse contexto, assim, torna compreensível que a compra de apenas cinquenta carteiras segundo o modelo de Gustavo Alberto tenha sido feita, conquanto sua mobília possuísse vantagens reconhecidas.

Por fim, foi possível apurar que, em 1883, por ocasião da Primeira (e única) Exposição Pedagógica realizada no Império – um evento que mobilizou a atenção do país para a causa da instrução pública, embora frustrado no intento de preceder a um Congresso de Instrução, jamais realizado –, Gustavo José Alberto compareceu como um dos expositores. Ali teve oportunidade de exibir seu invento ao lado de diversos outros modelos de carteiras escolares, produzidas por empresas já conhecidas e reconhecidas no mercado tanto interno quanto externo ao Império, vindas de países como Estados Unidos, Alemanha, Bélgica, França e Inglaterra. Sobre o banco-carteira, o júri da seção em que este foi exposto opinou que “é um tipo privilegiado e adotado, segundo o anúncio que o acompanha, em uma escola pública desta corte. Têm várias posições: sofá, mesa plana, mesa inclinada para escrita, estante de música e desenho” (PRIMEIRA…, 1884, p. 44). A informação de que o móvel já era adotado em uma escola da Corte é importante, provavelmente a escola do próprio professor, caso se recorde que, como visto anteriormente, no mesmo ano de 1883 Gustavo José Alberto havia, às próprias expensas, reformado e fornecido vários móveis à sua escola (GAZETA DE NOTICIAS, 1883). Não seria, assim, improvável ter aproveitado a oportunidade para introduzir seu invento em sua própria escola.

Porém, na distribuição final dos prêmios da Exposição Pedagógica de 1883, fica bem evidenciado que, em comparação com a variedade de móveis então expostos, o banco carteira brasileiro ficou bem atrás dos modelos belgas, franceses, ingleses e mesmo de outros modelos nacionais, como um banco-carteira inteiramente de madeira feito por Carlos Augusto de Carvalho, um conhecido político da época (PRIMEIRA…, 1884). Recebeu, tão somente, uma menção honrosa, que na gradação empreendida pela comissão organizadora da exposição era apenas um diploma de participação. A partir daí, nada mais encontrei na documentação compulsada sobre o primeiro banco-carteira patenteado no Brasil.

A modo de conclusão

No decorrer deste artigo, procurei, junto do leitor, estudar o processo de “invenção” e circulação da primeira carteira escolar patenteada no Brasil por iniciativa de seu inventor, o professor público Gustavo José Alberto, entre 1881 e 1884. Interrogando e interpretando documentação dispersa em vários arquivos e acervos, os resultados a que pude chegar nesse exercício historiográfico apontam que o interesse desse professor público primário em produzir um protótipo de banco escolar parece ter nascido de sua experiência docente e de seu contato com debates pedagógicos então em andamento nas chamadas Conferências Pedagógicas do Rio de Janeiro desde a década de 1870, e das quais tomou parte ativa como um dos intelectuais da cidade, dimensão que esse seu envolvimento com a instrução pública o foi transformando ao longo do período em tela.

Ao mesmo tempo, as interpretações aqui produzidas apontam que, ao criar um modelo de carteira a ser utilizado em sua escola, ele decidiu patenteá-lo junto ao Ministério da Agricultura para, posteriormente, oferecê-lo ao governo, que, naquela época, vinha realizando compras significativas desse material, via importações e fabricação local. Sua carteira, embora guardasse semelhança com modelos estrangeiros, introduziu peculiaridades técnicas destacadas no parecer de aprovação de seu invento. Tal carteira chegou a ter cinquenta exemplares adquiridos para as escolas da Corte Imperial e foi divulgada em importantes eventos nacionais, como a Exposição Pedagógica Nacional de 1883, embora não tenha alcançado maior circulação, possivelmente por não poder competir com a variedade de modelos artesanais e industriais mais vantajosos que naquele período começaram a ser introduzidos no país ou pelas próprias condições materiais das escolas que, nem sempre, em suas acanhadas salas, podiam receber a moderna mobília com a qual as autoridades do ensino desejavam dotá-las.

Para pesquisas futuras, seria interessante investigar, no âmbito dos estudos sobre cultura material escolar no Império, outros inventores e seus inventos, sejam carteiras como a inventada por Gustavo José Alberto ou outros móveis e objetos engendrados como elementos a serviço do ensino e da propagação da instrução no período. Ao mesmo tempo em que esta pesquisa joga um pouco de luz sobre um sujeito anônimo e a primeira carteira escolar patenteada em nosso país, chama a atenção para o intenso debate e as igualmente intensas ações em prol da instrução que vinham materializando-se em objetos e móveis escolares naqueles anos finais do Brasil Império.

Agradecimentos

Pesquisa financiada com recursos da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF) e do Decanato de Pesquisa e Inovação da Universidade de Brasília (Edital 04/2019), aos quais sou grato. A argumentação deste trabalho foi originalmente apresentada em forma de comunicação oral no 41º International Standing Conference for the History of Education (ISCHE), realizado na Universidade do Porto, em julho de 2019. Estendo os agradecimentos, por isso, à audiência, que na ocasião levantou algumas questões que procuro contemplar nesta versão final bem como à Alessandra Schueler, que, noutro momento, me forneceu uma valiosa indicação bibliográfica sobre os irmãos Alberto. As limitações que persistem, é claro, são de minha responsabilidade.

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1- Pesquisa financiada com recursos da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF) e do Decanato de Pesquisa e Inovação da Universidade de Brasília (Edital 04/2019), aos quais sou grato. A argumentação deste trabalho foi originalmente apresentada em forma de comunicação oral no 41º International Standing Conference for the History of Education (ISCHE), realizado na Universidade do Porto, em julho de 2019. Estendo os agradecimentos, por isso, à audiência, que na ocasião levantou algumas questões que procuro contemplar nesta versão final bem como à Alessandra Schueler, que, noutro momento, me forneceu uma valiosa indicação bibliográfica sobre os irmãos Alberto. As limitações que persistem, é claro, são de minha responsabilidade.

3- Disponibilidade de dados: todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo está publicado no próprio artigo.

4- Além da legislação geral, isto é, imperial, uma bolsista de iniciação científica, ao longo de dois anos, pesquisou também a coleção completa de toda a legislação das províncias. Diferente da legislação geral, essa se encontra disponível apenas fisicamente na seção de obras raras da Biblioteca da Câmara dos Deputados.

5- Maria Helena Câmara Bastos (2002), por exemplo, demonstra que Joaquim José de Menezes Vieira, na década de 1870, já criara e mandara fazer modelos de bancos-carteiras para sua escola, embora não as tenha patenteado. Assim como ele, não é improvável que outros também tenham feito seus modelos de carteira e, certamente, identificá-los e estudá-los será de grande importância em investimentos futuros de pesquisas na área da história da cultura material escolar no Império. Mesmo assim, permanece o fato de que a primeira patente continuará sendo a concedida a Gustavo José Alberto.

6- Por questão de poucos meses, Gustavo Alberto não precisou sujeitar-se à segunda lei de patentes brasileira, que viria a ser aprovada em 14 de outubro de 1882. Por essa razão, a referência neste estudo ainda é a lei de 1830. Sobre os impactos da lei de 1882 no âmbito da produção de móveis e materiais para as escolas, vide Alcântara (2014).

Recebido: 21 de Julho de 2020; Aceito: 01 de Setembro de 2020

Juarez José Tuchinski dos Anjos é professor adjunto da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) e líder do Grupo de Pesquisa em História e Historiografia da Educação da Universidade de Brasília (GRUPHE-UnB).

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