SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.48O “bom trabalho” e a formação de pedagogasHistória dos afro-brasileiros, africanos e a educação antirracista: o olhar das/os professoras/es das licenciaturas índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 29-Abr-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248234024 

Artigos

A criança surda na educação infantil bilíngue: a importância do social para a construção da linguagem

The deaf child in bilingual pre-school education: the social importance for language construction

Érica Aparecida Garrutti1 
http://orcid.org/0000-0001-7566-6569

Tarsila Nunes de Andrade Moreira1 
http://orcid.org/0000-0001-6866-9120

1- Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, SP, Brasil. Contatos: egarrutti@yahoo.com.br; nunestarsila@gmail.com


Resumo

Fundamentando-se nas perspectivas histórico-cultural do desenvolvimento humano e bilíngue na educação da criança surda, este artigo analisa situações de interação na Língua Brasileira de Sinais (Libras), entre pares coetâneos surdos matriculados em uma turma de educação infantil e com seus professores, para observar como ocorre a apropriação dessa língua nas trocas cotidianas e a participação das crianças na rotina da turma. Como procedimento de coleta de dados, foram observadas situações de atividades dirigidas e livres em uma turma de educação infantil bilíngue para crianças surdas, tendo a Libras como primeira língua, por dois meses em três semestres consecutivos. Ainda como procedimento de coleta, as professoras da turma foram entrevistadas, bem como a coordenadora pedagógica e a diretora da instituição. Os resultados indicaram a importância da organização de ambientes educativos linguísticos de educação infantil, culturalmente preparados para o desenvolvimento de crianças surdas. As situações de interações revelaram que o aprendizado da língua de sinais acontece de modo rápido e em trocas rotineiras no contexto da turma. As interlocuções nessa língua, por sua vez, paulatinamente permitem que as crianças compartilhem conceitos e práticas comuns no cotidiano da turma.

Palavras-Chave: Educação infantil; Educação de surdos; Linguagem; Libras

Abstract

Based on socio-historical perspectives of human and bilingual development in the education of deaf children, this paper analyzes interactions in Brazilian Sign Language (Libras) between peers of similar age enrolled in a pre-school class, as well as their teachers, in order to observe how this language is appropriated in daily exchange and children’s participation in the class’ routine. For data collection, both guided and free activity situations were observed for two months in three consecutive terms, in a bilingual pre-school class for deaf children, Libras being their first language. Also for data collection, the group’s teachers were interviewed, as were the pedagogical coordinator and the principal of the institution. Results indicated the importance of organizing educational environments for pre-schools that are linguistically, culturally prepared for the development of deaf children. Interaction situations revealed that the learning of Sign Language takes place quickly and in routine exchanges in the classroom context, whilst interlocutions in this language gradually allow children to share concepts and practices that are common to the class’ daily activities.

Key words: Pre-School education; Deaf education; Language; Libras (Brazilian Sign Language)

Introdução

Tendo em vista que os anos iniciais da vida de uma criança constituem também os anos iniciais da socioconstrução da linguagem e do pensamento, este estudo analisa situações de interação de crianças surdas matriculadas em uma turma de educação infantil bilíngue, tendo a Língua Brasileira de Sinais (Libras) como primeira língua e o português escrito como segunda língua, acompanhadas num período de três semestres consecutivos.

A educação bilíngue para surdos é mais intensamente estudada e discutida no Brasil a partir da década de 1990, ganhando destaque essencialmente a partir dos anos 2000, quando importantes normativas legais são sancionadas, como a Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002 e o Decreto nº 5.626, de 22 de dezembro de 2005, que dispõem sobre o reconhecimento da Libras, seu ensino, uso e difusão no Brasil, e trazem importantes orientações quanto à educação bilíngue.

O artigo 22 do referido decreto estabelece a garantia da comunicação em todos os níveis, etapas e modalidades da educação, sempre tendo a Libras como língua de acesso ao currículo. Na educação infantil e nas séries iniciais do ensino fundamental, a educação deve acontecer em salas em que a Libras seja a língua da mediação direta do professor com os alunos e, desse modo, o docente deve ser fluente nessa língua. A partir dessa etapa da escolarização, é requerida a atuação do profissional intérprete, que fará a mediação linguística em Libras-Língua Portuguesa no contexto da sala de aula (BRASIL, 2005).

Mesmo que o acesso a uma educação bilíngue para alunos surdos tenha reconhecimento legal, há um longo percurso a ser trilhado para a garantia desse direito, sobretudo em razão da amplitude de mudanças necessárias para a organização de projetos educacionais bilíngues.

A educação bilíngue precisa ser cotejada numa dimensão política de duplo valor, pondera Skliar (2016, p. 8): “o ‘político’ como construção histórica, cultural e social, e o ‘político’ entendido como as relações de poder e conhecimento que atravessam e delimitam a proposta e o processo educacional”. Nesse sentido, temos como grande obstáculo ligado à construção de projetos de educação bilíngue: a ausência de políticas linguísticas e multiculturais, que retratem e valorizem a diversidade de línguas presentes no Brasil e, dentre elas, a Libras (QUADROS, 2015; SILVA, 2015). É fato recorrente o silenciamento de línguas minoritárias, o que se dá num processo nem sempre explícito, anunciado para e pelos sujeitos. Em vez de se interditar a circulação da Libras, nega-se a possibilidade de usufruir de um ambiente em que se permita aprender essa língua. O aprendizado da Língua de Sinais, quando muito, é tolerado com a expectativa de que melhor seja a fluência e uso da língua majoritária, afirma Silva (2015).

Ao sujeito surdo, nega-se a oportunidade de se constituir na e pela Libras, língua essa acessada pela modalidade visuoespacial e que instrumentaliza sua organização cognitiva. A essa língua confere-se o status de língua secundária, apreendida se os sujeitos não obtiverem sucesso no domínio da língua oral.

Diante do tão comum cenário de acesso tardio à Libras, um questionamento ecoa: qual é o custo da imersão tardia em ambientes em que a Libras seja a língua de interlocução no desenvolvimento dos sujeitos? Linguagem e pensamento já terão sido prejudicados. Se o acesso a uma língua é o que se deixa para depois, nega-se à criança o acesso a tudo o que a linguagem representa na vida humana: a invenção, a criatividade, a narração, a ficção, a vida em comunidade, a exposição ao mundo, a escrita, a leitura, enfim, a tudo o que torna o homem um ser humano, assevera Skliar (2017).

Na contramão desse cenário recorrente de acesso tardio a Libras, este estudo, fundamentando-se na perspectiva histórico-cultural, analisa situações de interação na Libras entre pares coetâneos surdos matriculados em uma turma de educação infantil bilíngue e com seus professores, para observar como ocorre a apropriação dessa língua nas trocas cotidianas e a participação das crianças na rotina da turma.

A socioconstrução da linguagem em crianças surdas

Ao enfatizar o desenvolvimento da criança surda e a organização de espaços educativos de educação infantil que tenham a Libras como língua de interlocução, este estudo se embasa no viés histórico-cultural, especialmente nos escritos de Vygotsky (2008, 2011), que pressupõem a existência das bases biológica e cultural no desenvolvimento de cada sujeito.

A capacidade de representação mental de objetos é uma habilidade exclusivamente humana, tal como de seus mecanismos de compensação, derivados de déficits a serem descobertos nas relações humanas, que são sempre mediadas. O uso social dos sistemas simbólicos, instrumentos e signos, dentre os quais a Libras, enquanto linguagem, exerce papel central no desenvolvimento do sujeito surdo; é o que permitirá a ele a representação da realidade, o domínio do material cultural. Notamos, assim, que o acesso ao conhecimento pelo homem acontece devido à capacidade humana de uso funcional dos signos e pela via de relações compartilhadas socialmente.

Em uma retomada do papel da linguagem no desenvolvimento dos sujeitos a partir da perspectiva teórica de Vygotsky, lembramos que as linhas de evolução da fala e do pensamento no início da vida do homem seguem cursos diferentes: num primeiro momento, o pensamento é não verbal, e a fala, não intelectual.

Por volta de dois anos de idade, essas linhas, até então desligadas no percurso da criança, se encontram e dão início a uma nova etapa. A criança passa a ter consciência da linguagem pela mediação do adulto; é quando ela descobre que cada coisa tem um nome, questiona o nome das coisas e o vocabulário, o que faz com que o conhecimento da língua processualmente se amplie.

A partir da descoberta do significado da palavra, a fala se torna racional, isto é, passa a ser compreendida em sua função generalizante; e o pensamento passa a ser verbalizado.

Em um dado momento, dos 3 aos 7 anos de idade, a linguagem começa a dirigir e orientar o pensamento da criança. É possível ver a criança verbalizando enquanto brinca e executa suas ações, o que Vygotsky denomina como fala egocêntrica, uma marca do começo da função comunicativa da linguagem em nível intrapsíquico. Nessa nova etapa, ela age como se fizesse um diálogo em voz alta consigo mesma, como se numa tentativa de solucionar um problema. Por exemplo, um menino ou menina que monta um edifício com peças na cor cinza de um jogo de encaixe não localiza mais peças nessa cor e, então, verbaliza frases como “as peças cinzas sumiram, preciso de mais”, “vou ter que usar peça marrom” ou “não vou poder terminar o prédio”.

A fala da criança é seu pensamento externalizado, planejando suas ações. Para a criança, o caminho direto para a solução foi rompido, e é preciso encontrar um caminho indireto, diferente. Esse problema leva o menino ou a menina a falar em voz alta enquanto busca uma solução para o problema.

A verbalização que acompanha a execução da ação vai desaparecendo dos 3 aos 7 anos, como se numa transformação da fala egocêntrica em fala interior. A decrescente vocalização da fala revela a abstração do som e esboça uma nova habilidade: a de pensar em palavras, mas sem pronunciá-las.

De uma regulação interpsicológica, passa-se para uma regulação intrapsicológica no desenvolvimento da linguagem, tomando lugar uma fala dirigida ao próprio sujeito com a função de auxiliá-lo em suas operações psicológicas. A partir de então, o homem é guiado pela fala interior e é levado a fazer questões do tipo em sua trajetória de estudos. Por exemplo: “quais leituras preciso fazer para aula seguinte? O caminho que faço regularmente está com muito trânsito, qual é a outra rota para eu chegar mais rápido na universidade?”.

Na fala interior, a linguagem ultrapassa a função de comunicação e assume um plano específico, o plano do pensamento verbal.

A fala interior é, em grande parte, um pensamento que expressa significados puros. É algo dinâmico, instável e inconstante, que flutua entre a palavra e o pensamento, os dois componentes mais ou menos estáveis, mais ou menos delineados do pensamento verbal. (VYGOTSKY, 2008, p. 185).

Tendo em vista que não há uma transição direta do pensamento para a palavra, o pensamento passa pelos significados e pelas palavras, complementa Vygotsky. Assim, quando um sujeito intenciona comunicar uma ideia, o pensamento não está completamente formado, pronto para ser expresso; o pensamento, tal como uma nuvem descarregando uma chuva de gotas, precipita-se em palavras. Nesse sentido, o pensamento se constitui na linguagem e pela linguagem. Da parte de seu interlocutor, há uma busca da compreensão do pensamento e não das palavras isoladamente. Percorre-se, por assim dizer, um movimento contínuo de vaivém: do pensamento para a palavra, e da palavra para o pensamento, até que a ideia seja expressa pelo falante e compreendida pelo outro. Há, então, um vínculo social indesatável entre linguagem e pensamento, seja na fala interior, ou numa situação de troca comunicativa.

O surgimento de tais funções psicológicas superiores está em estreita articulação com a experiência sociocultural da criança. Vygotsky (2008, p. 63) nos diz inclusive que, desde a evolução da fala e do intelecto em crianças muito pequenas para a fala interior e o pensamento verbal em crianças maiores, “a natureza do próprio desenvolvimento se transforma, do biológico para o sócio-histórico”. Somos seres biopsicossociais.

As linhas de evolução do desenvolvimento da linguagem e pensamento em crianças surdas no decurso do pré-linguístico ao pensamento verbal, pressupõem experiências com um código linguístico e não necessariamente com o aparelho fonador; ela pode acontecer em sistemas sígnicos distintos (VYGOTSKY, 2011).

Crianças surdas e ouvintes passam pelo mesmo processo de socioconstrução da linguagem, independentemente das modalidades de expressão e recepção das línguas em uso, ou seja, uma língua de modalidade oral-auditiva ou espaço-visual podem ser adquiridas facilmente na interação com pares coetâneos e adultos. Os interlocutores dessas crianças precisarão propiciar trocas nos códigos linguísticos que lhes são plenamente acessíveis. Crianças surdas imersas em um cotidiano com circulação da língua de sinais se desenvolvem da mesma forma que crianças ouvintes imersas em um ambiente que partilhe de uma língua oral-auditiva.

A grande desvantagem no desenvolvimento das crianças surdas consiste no fato de que a língua de sinais raramente se faz presente nas trocas sociais, uma vez que a sociedade, majoritariamente ouvinte, reconhece exclusivamente a validade da língua oral oficial do país, distanciando substancialmente os surdos do que precisaria ser a sua primeira língua.

Tendo em vista que a maioria dos surdos integram famílias não usuárias da Libras e/ou que não a aceitam como código linguístico suficiente de acesso ao patrimônio cultural construído pela humanidade – o que pode ser consequência das orientações profissionais recebidas - são reincidentes os casos de crianças surdas com atraso na socioconstrução da linguagem, acarretando uma série de dificuldades, como no percurso que deriva o pensamento verbal e na formação de conceitos cotidianos e científicos. Nesse sentido, Briega (2019, p. 17) nos diz:

Se o surdo tem sua interação pela Libras comprometida, logo se percebe que a apropriação dos conceitos científicos não passará satisfatoriamente pela mediação do professor e não estabelecerá conexões com os saberes espontâneos emergidos da vivência coletiva em ambientes não escolares.

As crianças surdas, imersas em um contexto de interações limitadas – na escola e em seu círculo de convívio- revelam defasagens na linguagem que impactam em todo o seu desenvolvimento, o que inclui, por exemplo, o seu pensamento verbal.

Nesse sentido, Araújo e Lacerda (2008) nos apresentam a situação de uma criança surda, representante de muitas outras: aquelas que não se comunicam efetivamente no português e nem na língua de sinais. A criança surda, com 10 anos de idade, não se comunicando oralmente, contou com mediação em Libras nas atividades de coleta de dados que tiveram como foco um filme infantil, e os resultados revelaram que sua compreensão da narrativa foi muito parcial (ARAÚJO; LACERDA, 2008). Devemos, então, considerar a necessidade dessa criança de integrar um ambiente social em que a língua de sinais e suas particularidades culturais sejam a base das trocas comunicativas.

Pesquisas atuais, também fundamentadas numa compreensão histórico-cultural do sujeito surdo (ANDREIS-WITKOSKI; FILIETAZ, 2019; GURGEL et al., 2016; TARTUCI, 2015), fazem a defesa da organização de espaços educativos que, desde a educação infantil, sejam bilíngues; espaços nos quais a língua de sinais seja a língua da mediação pedagógica e das trocas entre pares coetâneos. A criança surda imersa nesses espaços encontra na Libras um meio eficaz para se comunicar, internalizar e produzir significados, se posicionar diante do material cultural humano e se constituir como ser surdo2.

Considerando que grande parte das crianças surdas brasileiras tem contato com sua língua de conforto apenas a partir de seu ingresso nos espaços educativos, sendo privada do acesso a uma língua de trocas comunicativas em seus lares, nestes casos, a socioconstrução de sua linguagem já foi prejudicada. Por isso, eleva-se a necessidade da organização de espaços que, já na educação infantil, sejam bilíngues, permitindo que os pequenos encontrem na Libras o principal sistema simbólico de trocas diretas nas díades criança(s)-criança(s) e criança(s)-adulto(s).

Procedimentos da pesquisa

Esta pesquisa de natureza qualitativa assume o delineamento de um estudo de caso longitudinal, ao observar pelo período de três semestres consecutivos o cotidiano de uma turma de crianças da educação infantil de uma escola bilíngue para surdos.

Estudos de caso são especificamente empregados quando o que se intenciona é o estudo intenso de unidade social (indivíduo, grupo, instituição e comunidade) em seu contexto real (GIL, 1999; SILVA; MENEZES, 2001), investigando a instância social em ação, com o objetivo de compreender seu funcionamento, sem ter a preocupação com o controle de variáveis intervenientes.

Os estudos longitudinais, por sua vez, permitem conhecer determinada unidade social em diferentes épocas, com a duração de meses, anos ou décadas, a depender dos objetivos delimitados. Conforme Cozby (2003, p. 251), “qualquer estudo que tente comparar os mesmos indivíduos em diferentes idades está usando o método longitudinal”.

Nesta pesquisa, inicialmente, foi feito um levantamento de escolas municipais de educação bilíngue para surdos, da mesorregião metropolitana de São Paulo.

Após o levantamento das instituições que atendiam a esse critério e com a aprovação da pesquisa pelo Comitê de Ética, realizou-se a seleção aleatória de uma escola bilíngue para uma visita prévia de escolha da turma para as observações, dando seguimento aos procedimentos de coleta de autorizações e termos de consentimento.

A escola-campo adotava a Libras como a língua das mediações educativas, e o português escrito como segunda língua, tendo como turmas de educação infantil: o minigrupo 2 formado por crianças de 3 a 4 anos; o infantil 1 com crianças de 4 a 5 anos e o infantil 2 com crianças de 5 a 6 anos. Em atendimento a normativas federais, previa-se a presença de surdos no cargo de instrutor de Libras (BRASIL, 2002, 2005). Esse profissional desenvolvia, além das funções pedagógicas e culturais em relação aos alunos, oficinas para o ensino de Libras a funcionários, familiares dos educandos e comunidade.

A coleta de dados teve a duração de dezoito meses, tendo acontecido por três semestres consecutivos. No começo de cada semestre, o cotidiano da turma era observado por uma semana para captar a rotina completa e, após isso, as observações eram realizadas uma vez por semana nos dois últimos meses de cada semestre.

No primeiro ano da coleta de dados, a turma era formada por oito crianças na faixa etária de 4 a 5 anos e tinha Lúcia3 como professora bilíngue. Nenhuma das crianças ingressou na escola com conhecimento prévio da Libras.

Dentre as crianças do primeiro ano, Laura e Mariana ingressaram na educação infantil no ano anterior. Taiana foi matriculada na turma dois meses antes do primeiro grupo de observações, Carlos e Rafael entraram na turma ao final do primeiro semestre, e Bruno, no fim do segundo semestre. Lucas tem deficiência intelectual associada à deficiência auditiva. Fábio tem um bom resíduo auditivo e, por isso, se comunica pela língua oral ou Libras.

A turma do segundo ano da coleta de dados era formada por três crianças do ano anterior (Taiana, Rafael, Carlos) e outras quatro recém-matriculadas (Cesar, Bianca, Fernando e Igor), sendo que Bianca e Fernando ingressaram na escola com um breve contato com a Libras e Cesar e Igor sem contato. A professora era outra, chamava-se Ana.

O foco da observação foi a captura de episódios interativos entre criança(s)-criança(s) e professor(es)-criança(s) em situações de atividades dirigidas e livres, buscando identificar as línguas em uso e recursos comunicativos adicionais que propiciavam as trocas e, por consequência, a significação das vivências pelo grupo. Os dados provenientes das observações foram registrados em diário de campo.

Além da observação do cotidiano da turma na instituição escolar, foram realizadas entrevistas com a diretora, a coordenadora pedagógica e as duas professoras bilíngues, uma de cada ano, com vistas a obter informações sobre a formação das profissionais e particularidades das propostas educativas da escola e do contexto da turma investigada.

Significando trocas em uma turma de educação infantil bilíngue

Como já visto em Vygotsky, a vida social é condição determinante para o desenvolvimento das funções psicológicas superiores, pela via da internalização dos conhecimentos e modos de ação construídos socialmente. A forma como as pessoas que constituem o meio da criança medem e significam o mundo é o que favorece tal desenvolvimento.

Ao analisar os registros do diário de campo de situações observadas na turma bilíngue formada por crianças surdas, somos levados a perceber o quanto um código linguístico visuoespacial, no caso a Libras, permite a comunicação e a significação das situações vivenciadas, tal como acontece com Taiana.

Taiana, representando uma criança surda dentre as muitas outras que ingressam na educação infantil sem ter contato prévio com a Libras, utiliza-se de gestos para sua comunicação e, ao ver a professora da turma e colegas sinalizando, tem sua atenção voltada para signos visuais, que são rapidamente repetidos por ela.

Os gestos, que apesar de compreenderem uma comunicação visuoespacial, não constituem uma língua, geralmente a acompanham. Para Vygotsky, o uso de gestos por uma criança surda ou ouvinte é espontâneo em sua comunicação e, ao longo de seu desenvolvimento, passa a acompanhar a língua, na medida em que esta vai sendo internalizada. Vale lembrar que quando os gestos substituam a língua, o que é o caso do início das experiências de Taiana na turma, a significação das produções culturais é sempre parcial.

Para que a criança surda avance do uso de gestos para sinalização (habilidade de falar na Libras), é preciso experienciar situações de mediação nessa língua.

Dos gestos para a Libras, uma forma possível de acesso à rotina

Em uma situação de contação de história, a professora sentou no chão e pediu que as crianças se sentassem com ela em círculo. Mostrou uma das versões de Chapeuzinho Vermelho que a sala conhece e perguntou se elas se lembravam e sabiam do que se tratava. Laura e Fábio sinalizaram “chapeuzinho vermelho”. Taiana observou os colegas, olhou para o livro e fez os mesmos sinais. (Relato do diário de campo, primeiro semestre, primeiro ano).

No espaço de informática, Laura escolheu um jogo e brincou sozinha por alguns instantes. Taiana a observava e, em seguida, cutucou-a apontando para a tela da coleguinha e depois para a sua própria tela. Laura sinalizou “jogo igual?”, Taiana respondeu que sim gesticulando com a cabeça. Laura colocou o jogo para a amiga e se sentou. O jogo carregou lentamente, Taiana começou a ficar inquieta e cutucou a colega (uso de gestos). Laura olhou e sinalizou “calma, demorado”. Taiana me olhou, apontou para o computador e sinalizou “demorado”. (Relato do diário de campo, primeiro semestre, primeiro ano).

Nos dois momentos anteriores, notamos que Taiana ainda não se apropriou da língua de sinais, mas se identificou com a modalidade visuoespacial, copiando os sinais para interagir com os pares que lhe apresentavam a língua. Esta mesma criança, um ano depois, foi a primeira a reconhecer uma das pesquisadoras no retorno das observações e a mediar atividades da rotina, conforme relato seguinte.

Rotina acessada e mediada na língua de sinais

Conversou comigo em Libras sobre diversos assuntos, foi até a pilha de livros que ficava à disposição das crianças, pegou um livro, veio até mim e contou toda a história conforme virava as páginas, me ensinou sinais que eu não sabia e, em uma atividade de quebra-cabeça, tomou a iniciativa, começou a montar e gerenciou todos os coleguinhas durante a atividade, indicando quais peças iam onde e qual peça estava errada, tudo por meio da Libras.

Carlos, que integrou o grupo no final do primeiro semestre do primeiro ano de observação, sem conhecimento da língua de sinais, também aparentava saber o que tinha que ser feito, mas tentava juntar peças aleatoriamente. Taiana ajudou-o, mostrando o desenho da peça e a parte já montada e perguntou em Libras: “mulher” (aponta para a peça) “onde?” (aponta para a parte já montada do quebra-cabeça). Carlos pegou a peça e começou a procurar na parte montada. Ficou todo feliz ao encontrar a outra parte do corpo da personagem e apontou para Taiana “ali”, correu e colocou a peça no lugar certo. (Relato do diário de campo, primeiro semestre, segundo ano).

A instituição de educação infantil é o único espaço de trocas efetivas em Libras para Taiana e Carlos, e o ambiente, mesmo não sendo aquele em que estão imersos na maior parte do tempo, favorece um avanço explícito no desenvolvimento. Taiana, em seu primeiro ano na escola, de uma participação restrita nas situações de trocas com pares coetâneos que acontecia pela via exclusiva de gestos, se desenvolve a ponto de, em seu segundo ano na escola, orientar na língua de sinais o colega Carlos, ingressante na turma alguns meses depois de Taiana, fornecendo indícios da internalização de práticas culturais da rotina da turma.

Vemos nessas observações indícios do que Vygotsky (2008, p. 63) adjetiva como fato inquestionável e de grande importância: “o desenvolvimento do pensamento é determinado pela linguagem, isto é, pelos instrumentos linguísticos do pensamento e pela experiência sociocultural da criança”. Nas trocas entre Laura e Taiana e depois entre Taiana e Carlos, a língua de sinais é o código linguístico que as permitem acessar os significados do fazer cotidiano, como nos momentos de história infantil, jogos de computador e quebra-cabeças. A fala que ocasiona as trocas assume uma função simbólica e o pensamento vai se tornando verbalizado, uma organização da forma como cada criança participa da atividade.

A interação da criança com o outro, usuário de uma língua, é o gatilho para o desenvolvimento do pensamento verbal, mediado por significados dados pela linguagem, tal como acontece no relato seguinte. Nele, Bianca orienta os colegas em relação à incoerência de estarem agasalhados em um dia de calor. O pensamento é impulsionado “[…] pela própria inserção da criança num grupo cultural” (OLIVEIRA, 2011, p. 45).

Está calor: tirem os agasalhos!

Igor e Fernando estavam agasalhados e todas as outras crianças, a pesquisadora e a professora não. A sala se preparava para ir para a aula de informática. Bianca olha para os dois agasalhados e se espanta, se aproxima e sinaliza “agasalho, por quê? Está calor!”, Rogério e Fernando não dão muita atenção a Bianca e continuam a brincar juntos. Bianca fica um tempo observando e repete a pergunta. Os dois meninos não respondem e voltam a brincar. Bianca vem até a pesquisadora e sinaliza “eles estão agasalhados, está calor!”, ao que a pesquisadora responde na língua de sinais “verdade, está calor!”.

A menina volta para os dois garotos e sinaliza “está calor! Olha, todo mundo está de manga curta!” e, se locomovendo perto de cada pessoa que está na sala, aponta e sinaliza para os dois meninos que a observam “manga curta”.

Igor começa a tentar tirar o casaco, Bianca rapidamente começa a ajudá-lo e depois faz o mesmo com Fernando. Ela dobra os casacos e pega a mochila de cada um e sinaliza para os meninos “guardem na mochila”. Os dois guardam os casacos com auxílio de Bianca. (Relato do diário de campo, primeiro semestre, segundo ano).

Neste estudo, de modo semelhante aos dados encontrados em Silvestre e Lourenço (2013), notamos que as interações entre as crianças surdas ocorrem no compartilhamento espontâneo de uma língua comum e articuladamente na busca de atribuição de sentidos a signos visuais. Em “Está calor: tirem os agasalhos!”, Bianca, não obtendo retorno quando indaga sobre o motivo dos meninos estarem agasalhados em um dia de calor, encontra resposta favorável quando mostra como cada colega está vestido enquanto sinaliza que todos estão de manga curta; os meninos, então, retiram e guardam os agasalhos, sob sua orientação.

As falas das crianças nos fragmentos de observação anteriores são apoiadas numa leitura de pistas visuais, isto é, das imagens do jogo de computador, das imagens do livro de literatura infantil e do que conseguem ler da língua escrita, da imagem formada no quebra-cabeça e da observância da vestimenta de cada colega. As quatro situações revelam a cooperação das crianças na busca da resolução de problemas inerentes à sua rotina e no aprendizado de uma língua comum a elas.

A língua de sinais é apreendida no relacionamento diário de Taiana e Carlos com pares coetâneos ou de idade aproximada, o que é destacado na fala da coordenadora pedagógica: “Aqui na escola eles usam a língua de sinais uns com os outros, isso ajuda muito no desenvolvimento deles”. Como visto em Vygotsky, é por meio da relação com um par mais experiente ou com o adulto que se inicia essa significação do mundo, bem como se oportuniza a socioconstrução da linguagem na criança. Destaca-se, assim, o papel da língua de sinais nas experiências e mediações com a criança surda (ZAITSEVA; PURSGLOVE; GREGORY, 1999).

Ao tratar sobre particularidades do trabalho de uma escola bilíngue para surdos, a diretora afirma: “Administrativamente falando uma escola bilíngue não requer tanta especificidade em relação à regular, mas pedagogicamente a estruturação é completamente diferente, além do uso da Libras e da convivência com outros surdos, que são muito importantes”. Vemos nesta fala o que assevera Quadros (2015), segundo a qual a questão da língua implica em mudanças na arquitetura, nos espaços, nas formas de interação, na formação de professores bilíngues, na atuação de professores surdos e de intérpretes.

Propostas de educação infantil bilíngues para crianças surdas consideram, além de questões linguísticas, particularidades identitárias, culturais e pedagógicas (GARRUTTI-LOURENÇO, 2017). Deve-se favorecer um ambiente que permita à criança surda se constituir como ser surdo, como um sujeito que reconheça, essencialmente na visualidade, as possibilidades para (re)significação do mundo e dele possa fazer parte no uso da língua de sinais.

O adulto educador se munirá de estratégias pedagógicas específicas para fazer isso acontecer, para que ela se aproprie de conceitos, tal como exemplificamos neste fragmento de observação:

Fazendo uma receita de bolo

A receita escrita, e com imagem do bolo, foi fixada na lousa. A professora distribuiu uma cópia igual à lousa para cada um, mostrou que era igual e chamou atenção para partes da receita: ingredientes e modo de fazer. Toda comunicação foi feita em Libras.

A professora pediu que as crianças, uma por vez, dissessem quais ingredientes estavam na lista, através de soletração ou sinal, colocando-os na mesa e experimentando-os.

Depois era a vez da leitura do modo de preparo, realizado passo a passo. A leitura era feita com a mediação dela, que auxiliava na soletração, e mostrava os sinais quando se tratava de algum ingrediente ou procedimento que não reconheciam. Durante a leitura, enfatizava-se a relação do sinal com a escrita, principalmente em sinais já internalizados com escrita simples, por exemplo, ovo.

A massa foi batida no liquidificador e, ao ligá-lo, Fábio fez uma expressão de incômodo e pôs as mãos nas orelhas. As outras crianças não entenderam e a professora convidou uma a uma para sentir a vibração do aparelho com as mãos. Tocavam com ele desligado, ela apontava o botão, ligava o liquidificador e deixava que sentissem o aparelho ligado. Taiana esboçou um grande sorriso, e a professora relembrou os ingredientes que foram postos, explicando que o sinal de liquidificador representava o movimento da máquina, que podia ser sentido pelo toque.

Na cozinha, questionou: “como assaremos o bolo, ele precisa de frio ou calor?” “precisamos do forno (apontou para o forno, fez o sinal de forno e de calor) ou da geladeira (apontou para o eletrodoméstico e fez o sinal de geladeira e de frio)?” Fábio e Laura afirmaram que precisariam usar o forno, e Taiana disse que usariam a geladeira.

A professora explicou que precisavam do forno, pois o fermento (usou a receita escrita na explicação) precisa do calor para que o bolo cresça, e que na geladeira, por ser fria, o bolo não cresceria. Perguntou se faziam bolo na casa deles e se usavam a geladeira ou o forno. Fábio sinalizou que a avó também usa o forno para fazer bolos.

Explicou o funcionamento do forno, onde e como ligava, a luz que acendia indicando que estava ligado, a numeração da temperatura e que sua posição deixava o forno mais ou menos quente, e convidou criança por criança para sentir a temperatura do forno ainda frio e ver o bolo ainda cru e explicou “vamos esperar meia hora, voltaremos e vamos ver como está o bolo e a temperatura do forno”. (Relato do diário de campo, primeiro semestre, primeiro ano).

O episódio “Fazendo uma receita de bolo” ilustra como a mediação na língua de sinais é o que permite compreender situações do cotidiano das crianças surdas. Os integrantes da turma, mesmo tendo presenciado momentos de preparo da receita de bolo em suas casas, encontram na atuação da professora fluente em Libras o significado do gênero textual receita e de seu preparo, desde o conhecimento dos ingredientes ao cozimento do bolo, saboreado pela turma no dia seguinte, caminhando na perspectiva da transformação de um saber cotidiano em científico.

O conhecimento da professora sobre assuntos trabalhados anteriormente com a turma e sobre a individualidade de cada criança direciona as estratégias utilizadas, que incidem no que Vygotsky denomina como zona de desenvolvimento proximal. Trata-se, conforme Oliveira (2011), de um domínio psicológico em constante transformação até que seja consolidado. A surpresa de Fábio ao sentir a vibração do liquidificador leva a professora a explicar o que está envolvido na ação e relaciona-a, inclusive, ao conhecimento da própria língua, especificamente do vocábulo liquidificador na Libras. Com a fala de Taiana identificando a geladeira como utensílio para cozimento do bolo – o acesso recente a Libras pode justificar tal escolha da menina - o grupo recebe a explicação sobre o preparo de alimentos que vão para o forno e para a geladeira.

A atividade com a receita mostra-nos ainda o quanto aspectos não verbais são importantes no planejamento de práticas educativas com surdos. Taveira e Rosado (2017), pontuam que o planejamento de tais práticas surge da combinação das linguagens verbal e visual, dos aspectos culturais que contextualizam os saberes envolvidos e da leitura crítica de todos esses elementos.

A linguagem visual recebe destaque na educação de alunos surdos, uma vez que, como explicam Silva e Favorito (2009, p. 31), para os alunos surdos “são as imagens que ficam na memória”. Tal exploração de imagens no cotidiano, como complementa Lebedeff (2010, 2017), insere-se no contexto do letramento visual, isto é, de uma leitura e interpretação de tudo o que se vê, da linguagem visual, de uma significação pelo uso articulado da linguagem verbal. Nas situações de interação entre as crianças anteriormente apresentadas, essa manipulação de informações visuoespaciais se fizera presente com destaque, o que também notamos no trabalho das professoras.

Com essa compreensão acerca do ser surdo, a professora bilíngue em “Fazendo uma receita de bolo” faz uso de imagens, correspondência da escrita com soletração e sinais da Libras, leva as crianças a observarem e sentirem o movimento do liquidificador e prepara a receita passo a passo. A mediação sustentada no uso da linguagem verbal e acompanhada da leitura das pistas não verbais é central para a internalização do saber compartilhado socialmente, para a formação conceitual das crianças. O preparo da receita de bolo pode ser compreendido desde a seleção dos ingredientes ao modo de fazer.

A organização do trabalho da professora considera a visualidade como elemento do planejamento das práticas com o grupo, o que podemos observar também na situação seguinte, que contou com a intervenção de um instrutor surdo.

O que Carlos nos diz?

Em um momento de brincadeira com massinha, contando com a presença do instrutor Ricardo, que é surdo, com as mesas organizadas em um grande agrupamento, estavam sentadas as crianças e os professores. As crianças sinalizavam animais que gostariam que os professores modelassem para elas. Jacaré e peixe são algumas das opções.

Carlos fez um gesto que a professora não reconheceu, pedindo para que ela modelasse aquilo. A professora pediu ajuda de Ricardo pois não identificou o significado do gesto. Os dois conversaram por um tempo levantando hipóteses do que poderia ser, e a cada ideia perguntavam para Carlos se era isso que ele havia gesticulado. Após aproximadamente seis tentativas para identificar o que a criança sinalizara e não obtendo êxito, o instrutor pediu para Carlos escolher outro animal.

A brincadeira continuou com as cinco crianças e os dois adultos cerca de 10 minutos até que a professora falou oralmente “Pokémon, é o Pokémon que ele quer!” e, então, sinalizou para o professor, ligando o movimento/gesto que Carlos tinha feito antes, com um movimento muito frequente no desenho animado. Ricardo modelou um elemento presente na animação e entregou a Carlos.

Carlos ficou muito feliz, e fez o gesto (aparentemente inventado por ele) diversas vezes seguidas enquanto brincava com a escultura e mostrava para os colegas.

A professora perguntou para Carlos se o gesto feito por ele era de fato sobre o desenho e Carlos respondeu que sim com a cabeça. (Relato do diário de campo, primeiro semestre, segundo ano).

Carlos encontra dificuldades para atribuir significados na Libras ao que vivencia fora do ambiente escolar, possivelmente por não ter oportunidades de falar sobre o que acontece em seu cotidiano com seus familiares. São os seus professores com fluência nessa língua e que, com conhecimento das preferências do grupo, conseguem chegar ao personagem do desenho animado. A modelagem do personagem em massinha, contendo detalhes acessados visualmente, juntamente com a linguagem verbal, é o que desencadeia a compreensão do que foi dito pela criança. Podemos dizer que, neste caso, a criança gesticula, porque o gesto feito por ela não corresponde ao seu significante na Libras.

O episódio nos mostra ainda a importância da presença de um adulto surdo exercendo o papel de professor na turma, uma vez que a criança potencialmente se identifica com pares e adultos surdos (SKLIAR, 1998), conforme notamos no relato seguinte. O instrutor surdo é quem apresenta aspectos culturais para a criança surda, complementam Martins, Albres e Sousa (2015).

O instrutor surdo como referência

Crianças sentadas. Cada uma em seu computador. Taiana parecia ter uma dúvida sobre o conteúdo do seu jogo, levantou-se timidamente e olhou a tela dos colegas, olhou para o grupo de adultos que conversava em outro canto da sala. Taiana se aproximou do grupo e segurou o professor de Libras pela mão e o conduziu até seu computador. (Relato do diário de campo, segundo semestre, primeiro ano).

Mesmo Taiana tendo contato há mais tempo com os outros adultos presentes, ouvintes, ela escolheu o instrutor surdo para ajudá-la. É do encontro com outros surdos que se acessa a diversidade de representações e o trânsito entre novas identidades surdas; narrativas distintas são referências para a construção da própria identidade. Este é um dos exemplos que nos mostram o quanto um par surdo é importante para a construção identitária da criança (DE PAULA, 2009). “O surdo tem que estar rodeado de surdos”, afirma uma das professoras da sala bilíngue. Notamos, assim, o que afirma Skliar (1998): a educação de surdos nos apresenta questões que não são meramente metodológicas e linguísticas, são também culturais.

A criança surda precisa estar imersa em um ambiente permeado pela língua de sinais e, muito mais, pela cultura surda. A educação infantil assume importante papel nessa construção na primeira infância e, como Ladd (2003) observa, o acesso à língua e tradições surdas se fazem presentes em escolas para surdos, tal como é o caso da escola campo deste estudo.

Como Vygotsky afirma e identificamos nos episódios aqui relatados, a mediação e interação com adultos ou pares mais experientes e as vivências no meio social são as geradoras da construção da linguagem na criança. Neste estudo, tal como observado em Gurgel et al. (2016), as experiências de jogos, brincadeiras, atividades de leitura e demais atividades dirigidas que integram a rotina das turmas de educação infantil, tendo a Libras como a língua das interações, permitem ampliar a capacidade linguística das crianças surdas e a internalização dos saberes culturais.

Para exemplificar o rápido processo de evolução no desenvolvimento da linguagem pela criança surda quando ela acessa os conhecimentos de mundo pela via da Libras, descrevemos três situações protagonizadas por Rafael, em seu percurso durante três semestres na turma.

Aproximação com a Libras: recusa do contato visual

Antes de entrar na sala as crianças formaram uma fila e, uma por uma, deram “boa tarde” em Libras à professora e pediram para entrar. Rafael sempre chorava e deitava no chão quando tinha que entrar ou sair de um ambiente. Ele não olhava para as pessoas diretamente, e, se comunicava raramente com o irmão por meio de gestos. Rafael se recusou a entrar na sala e se deitou no chão encolhido. A professora pacientemente, diversas vezes virou o rosto do menino para que ele a olhasse e fez o sinal de “ficar de pé”. Após a criança ficar em pé, ela mais uma vez pacientemente fez com que o menino a olhasse e sinalizou “boa tarde” até o menino responder.

Em um dado momento, o menino se afastou da atividade que o grupo desenvolvia e foi brincar com alguns bichos de pelúcia. Após alguns minutos, ele começou a jogar os bichos nos colegas e na professora. Esta se levantou e foi na direção de Rafael, que deitou no chão e se encolheu. A professora o levantou, e virou seu rosto para que ele a olhasse. Ao perceber que a professora ia sinalizar, Rafael fechou os olhos. A professora esperou até que ele abrisse os olhos e começou a sinalizar novamente, Rafael fechou os olhos novamente. A ação da tentativa de comunicação de Lúcia com Rafael, que fechava os olhos, aconteceu cinco vezes seguidas, até que Rafael manteve os olhos abertos e prestou atenção na professora. (Relato do diário de campo, primeiro semestre, primeiro ano).

A descoberta de aprendizados pela Libras

Toda vez que a professora sinalizava com Rafael, ele prestava muita atenção e ficava feliz. Era perceptível que aprendia a cada contato, seu desenvolvimento na língua era notável de uma semana para a outra. (Relato do diário de campo, segundo semestre, primeiro ano).

Na língua de sinais, uma forma de participação efetiva

Ao acabar a aula de informática, a professora (substituta neste dia) veio buscar as crianças na sala de informática. Piscou as luzes da sala para que todas a olhassem e as chamou sinalizando. Quando todas se reuniram na porta, ela fez o sinal de fila e elas formaram a fila em ordem crescente. Nestes dois momentos, Rafael acompanhou visualmente e demonstrou compreender as orientações, realizando os pedidos da professora.

Quando chegaram na sala da turma, a professora entregou uma atividade de colorir, que requeria que cada objeto fosse pintado de acordo com a cor indicada. A professora apenas entregou as folhas e os gizes de cera e nada foi explicado, uma vez que já tinham explorado o assunto.

Rafael olhou a folha, separou quatro gizes de cores diferentes e pintou as quatro figuras conforme as indicações. Ele foi um dos primeiros a acabar a atividade. Após todos terminarem, a professora pegou uma das folhas e perguntou os sinais dos objetos representados e os sinais das cores usadas, Rafael não só respondeu rapidamente como acertou os sinais. (Relato do diário de campo, primeiro semestre, segundo ano).

A nítida evolução de Rafael no uso da língua de sinais nas situações cotidianas tem estreita relação com a organização de um ambiente educativo onde as trocas se davam numa língua que era plenamente acessível e que aos poucos era por ele aprendida. Vemos, desse modo, o quanto a linguagem permite a Rafael se constituir como ser social.

A linguagem não é somente um instrumento que permite que aluno e professor estabeleçam uma dinâmica de ensino e aprendizagem, de aquisição, processamento e produção da informação e conhecimento; ela é elemento fundante na constituição da pessoa humana – do aluno, do professor. (TARTUCI, 2015, p. 53).

Os três fragmentos de observação revelam uma criança que, da recusa de contato visual no início de seu ingresso na educação infantil, vai se apresentando de outro modo à medida que aprende a Libras. Rafael, no segundo semestre, está integrado na turma. O menino, de modo semelhante a Taiana, revela ter internalizado saberes sociais de seu contexto e conhecer a rotina da turma, o que lhe permite se posicionar na fila, relacionar-se com os colegas e realizar a atividade de pintura com autonomia.

As formas de interação e mediação possibilitadas a Rafael na escola foram decisivas para que ele fosse significando os acontecimentos, tomasse parte da rotina e aprendesse a se relacionar com as pessoas, possibilitando um salto qualitativo em seu desenvolvimento.

Considerações finais

Fundamentando-se numa perspectiva de educação infantil que seja bilíngue para crianças surdas, tendo a Libras como primeira língua, a coleta de dados em uma escola municipal bilíngue para alunos surdos confirma a realidade recorrente de crianças surdas, na faixa etária aproximada de 4 a 5 anos, que ingressam nessa modalidade sem a vivência efetiva em uma língua, e a aprendem muito rapidamente se a língua for visuoespacial e compartilhada por pares coetâneos e adultos.

As observações realizadas no período de três semestres consecutivos revelam o quanto saberes sociais são internalizados quando as crianças surdas os acessam pela via da Libras e quando usufruem de vivências com o melhor aproveitamento de informações não verbais. A organização da rotina da turma se apresenta como espaço central na promoção da interlocução na Libras e na apreensão e no relacionamento com o mundo por formas visuais prioritariamente, como no planejamento dos aspectos pedagógicos pelas professoras.

Os dados coletados colocaram em evidência a importância do relacionamento com pares e adultos que partilham a mesma língua e, mais do que isso, uma cultura comum, permitindo que as crianças socioconstruam a linguagem e aspectos identitários por meio de vivências e mediações que possibilitem a elas se descobrirem como surdas.

Conclui-se que a educação bilíngue se mostra imprescindível para uma criança surda, visto que fornece aspectos culturais e linguísticos suficientes para seu desenvolvimento. Para a socioconstrução de linguagem sem atrasos e deficiências, e constituição identitária e cultural, a criança surda requer a organização de uma educação bilíngue desde a educação infantil.

Referências

ANDREIS-WITKOSKI, Silvia; FILIETAZ, Marta Rejane Proença. A interface entre a apropriação da linguagem por sujeitos surdos e a língua de sinais. Revista Sinalizar, Goiânia, v. 4, p. 1-14, 2019. [ Links ]

ARAÚJO, Claudia Campos Machado; LACERDA, Cristina Broglia Feitosa de. Esferas de atividade simbólica e a construção de conhecimento pela criança surda. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 14, n. 3, p. 427-446, 2008. [ Links ]

BRASIL. Decreto no 5.626, de 22 de dezembro de 2005. Regulamenta Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002, que dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras, e o art. 18 da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 23 dez. 2005. [ Links ]

BRASIL. Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Dispõe sobre a Língua Brasileira de Sinais – Libras e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 25 abr. 2002. [ Links ]

BRIEGA, Diléia Aparecida Martins. Você disse Libras? O acesso do surdo à educação pelas mãos do intérprete de Libras. Araraquara: Letraria, 2019. [ Links ]

COZBY, Paul C. Métodos de pesquisa em ciências do comportamento. Tradução Paula Inez Cunha Gomide e Emma Otta. São Paulo: Atlas, 2003. [ Links ]

DE PAULA, Liana Salmeron Botelho. Cultura escolar, cultura surda e construção de identidades na escola. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, v. 15, n. 3, p. 407-416, 2009. [ Links ]

GARRUTTI-LOURENÇO, Érica Aparecida. Bilinguismo para surdos e inclusão escolar: a busca por um caminho articulado. In: MARTINS, Edna; CANDIDO, Renata Marcílio (org.). Na trilha da inclusão: deficiência, diferença e desigualdade na escola. São Paulo: Alameda, 2017. p. 57-84. [ Links ]

GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. São Paulo: Atlas, 1999. [ Links ]

GURGEL, Taís Margutti do Amaral et al. Aquisição de Libras na educação infantil: um trabalho a partir de narrativas. In: LACERDA, Cristina Broglia Feitosa de; SANTOS, Lara Ferreira dos; MARTINS, Vanessa Regina de Oliveira (org.). Escola e diferença: caminho para educação bilíngue de surdos. São Carlos: UFSCar, 2016. p. 65-78. [ Links ]

LADD, Paddy. Understanding deaf culture: in search of deafhood. Bristol: Multilangual Matters, 2003. [ Links ]

LEBEDEFF, Tatiana Bolivar. Aprendendo a ler “com outros olhos”: relatos de oficinas de letramento visual com professores surdos. Cadernos de Educação, Pelotas, n. 36, p. 175-196, 2010. [ Links ]

LEBEDEFF, Tatiana Bolivar. O povo do olho: uma discussão sobre a experiência visual e surdez. In: LEBEDEFF, Tatiana Bolivar. (org.). Letramento visual e surdez. Rio de Janeiro: Wak, 2017. p. 226-251. [ Links ]

LOPES, Maura Corcini; VEIGA-NETO, Alfredo. Marcadores culturais surdos. In: VIEIRA-MACHADO, Lucyenne Matos da Costa; LOPES, Maura Corcini (org.). Educação de surdos: políticas, língua de sinais, comunidade e cultura surda. Santa Cruz do Sul: Unisc, 2010. p. 116-137. [ Links ]

MARTINS, Vanessa Regina de Oliveira; ALBRES, Neiva de Aquino; SOUSA, Wilma Pastor de Andrade. Contribuições da educação infantil e do brincar na aquisição de linguagem por crianças surdas. Pro-Posições, Campinas, v. 26, n. 3, p. 103-124, 2015. [ Links ]

OLIVEIRA, Marta Kohl de. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento: um processo sócio-histórico. São Paulo: Scipione, 2011. [ Links ]

QUADROS, Ronice Muller de. O “bi” em bilinguismo na educação de surdos. In: LODI, Ana Claudia Balieiro; MELO, Ana Dorziat Barbosa de; FERNANDES, Eulalia (org.). Letramento, bilinguismo e educação de surdos. Porto Alegre: Mediação, 2015. p. 187-200. [ Links ]

SILVA, Edna Lúcia da; MENEZES, Estera Muszakat. Metodologia de pesquisa e elaboração de dissertação. 3. ed. Florianópolis: UFSC, 2001. [ Links ]

SILVA, Ivani Rodrigues. Educação bilíngue para surdos e valorização de línguas minoritárias. Estudos Linguísticos, São Paulo, v. 44, n. 2, p. 574-583, 2015. Disponível em: https://revistas.gel.org.br/estudos-linguisticos/article/view/995. Acesso em: 23 jan. 2020. [ Links ]

SILVA, Ivani Rodrigues; FAVORITO, Wilma. Surdos na escola: letramento e bilinguismo. Campinas: Unicamp, 2009. [ Links ]

SILVESTRE, Carolina Oliveira Jimenez; LOURENÇO, Erica Aparecida Garrutti de. A interação entre crianças surdas no contexto de uma escola de educação infantil. Revista Educação Especial, Santa Maria, v. 26, n. 45, p. 161-175, 2013. [ Links ]

SKLIAR, Carlos. Apresentação: a localização política da educação bilíngue para surdos. In: SKLIAR, Carlos (org.). Atualidade da educação bilíngue para surdos: interfaces entre pedagogia e linguística. v. 2. 6. ed. Porto Alegre: Mediação, 2016. p. 7-14. [ Links ]

SKLIAR, Carlos. As diferenças e as pessoas surdas. Fórum, Rio de Janeiro, n. 36, p. 15-22, 2017. [ Links ]

SKLIAR, Carlos. Bilinguismo e biculturalismo: uma análise sobre as narrativas tradicionais na educação dos surdos. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 8, p. 44-57, 1998. [ Links ]

TAVEIRA, Cristiane Correia; ROSADO, Luiz Alexandre da Silva. O letramento visual como chave de leitura das práticas pedagógicas e da produção de artefatos no campo da surdez. In: LEBEDEFF; Tatiana Bolivar et al. (org.). Letramento visual e surdez. Rio de Janeiro: Wak, 2017. p. 17-47. [ Links ]

TARTUCI, Dulcéria. A educação bilíngue e o acesso à Língua brasileira de sinais na educação infantil. Espaço, Rio de Janeiro, n. 44, p. 47-66, 2015. [ Links ]

VYGOTSKY, Lev Semenovitch. A defectologia e o estudo do desenvolvimento e da educação da criança anormal. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 37, n. 4, p. 861-870, 2011. [ Links ]

VYGOTSKY, Lev Semenovitch. Pensamento e linguagem. Tradução Jefferson Luiz Camargo. 4. ed. São Paulo: Martins Fontes: 2008. [ Links ]

ZAITSEVA, Galina; PURSGLOVE, Michael; GREGORY, Susan. Vygotsky, sign language, and the education of deaf pupils. Journal of Deaf Studies and Deaf Education, Oxford, v. 4, n. 1, p. 9-15, 1999. [ Links ]

2- Conforme Lopes e Veiga-Neto (2010, p. 116), a expressão ser surdo abrange uma experiência de ser, de estar no mundo, que é vivida no coletivo e sentida de maneiras particulares, pontuando que: “além da língua de sinais, da arte, do teatro e da poesia surda, a noção de luta, a necessidade de viver em grupo e a experiência do olhar são marcadores que nos permitem falar de identidades surdas fundadas em uma alteridade e uma forma de ser surdo”.

3- Todos os nomes são fictícios para preservar a identidade dos participantes.

Recebido: 13 de Fevereiro de 2020; Revisado: 02 de Setembro de 2020; Aceito: 20 de Outubro de 2020

Érica Aparecida Garrutti é doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP), professora adjunta do Departamento de Educação e Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Tarsila Nunes de Andrade Moreira é graduada em pedagogia pela Unifesp e professora estatutária de educação básica, no município de Jundiaí.

Creative Commons License  This is an Open Access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution Non-Commercial License, which permits unrestricted non-commercial use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original work is properly cited.