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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 29-Abr-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248234744 

Artigos

História dos afro-brasileiros, africanos e a educação antirracista: o olhar das/os professoras/es das licenciaturas

History of Afro-Brazilians, Africans, and anti-racist education: the perspective of professors working on teacher training

Cíntia Santos Diallo1 
http://orcid.org/0000-0001-9142-3284

Cláudia Araújo de Lima2 
http://orcid.org/0000-0002-0712-9101

1- Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul, Dourados, MS, Brasil.Contato: cintiadiallo@gmail.com

2- Universidade Federal de Mato do Grosso do Sul, Corumbá, MS, Brasil.Contato: claudia.araujolima@gmail.com


Resumo

Este artigo tem como objetivo expor a compreensão das/os docentes do ensino superior sobre a incorporação da temática que trata do ensino de história e cultura africana e a educação das relações étnico-raciais nos currículos dos cursos de licenciatura em ciências humanas da região Centro-Oeste. Sobretudo, no que diz respeito à adequação dos itinerários formativos das/os futuras/os docentes da Educação Básica, ao preconizado na Lei nº 10.639/2003 e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (2004). São objetos da pesquisa a Universidade de Brasília, Universidade Federal de Goiás, Universidade Federal de Mato Grosso, Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e Universidade Federal da Grande Dourados. Dos 104 cursos de licenciatura, cinquenta incorporaram a temática, 48 ainda não possuem disciplinas específicas sobre questões étnico-raciais e em seis cursos não foi possível fazer a identificação. Complementa o estudo a análise das respectivas disciplinas, ementas e bibliografias. A análise dos questionários aplicados indicou que a reestruturação das matrizes curriculares está muito mais relacionada aos esforços de professoras/es pesquisadoras/es da área pelo reconhecimento da importância da temática do que ao cumprimento das exigências legais. Do mesmo modo, não foi possível identificar envolvimento institucional robusto, para além das ações desenvolvidas pelos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e Africanos (NEABs).

Palavras-Chave: Lei nº 10.639/2003; Educação antirracista; Licenciaturas

Abstract

This article aims to expose the understanding of higher education professors about how they approach topics related the teaching of African history and culture and the education for the ethnic-racial relations in the curriculum of the teacher-training courses in human sciences in the Center-West region of Brazil. Above all, in relation to the adequacy of the formation itineraries of future teachers of Basic Education, as set forth by Law No. 10.639/2003 and in the National Curriculum Guidelines for the Education of Ethnic-Racial Relations (2004). The objects of the research are the University of Brasília, the University of Goiás, the Federal University of Mato Grosso, the Federal University of Mato Grosso do Sul, and the Federal University of Grande Dourados. Out of the 104 teacher-training courses, 50 have absorbed the them, 48 still do not have specific disciplines on ethnic-racial issues and, in six courses, it was not possible to identify them. The study complements the analysis of the respective disciplines, programs and bibliography. The analysis of the applied questionnaires indicated that restructuring the curricular grids has much more to do with the efforts of professors/researchers in the area as to acknowledge how important theme is than fulfilling legal requirements. Likewise, it was not possible to identify robust institutional involvement beyond the actions developed by the Afro-Brazilian and African Studies Centers (NEABs).

Key words: Law No. 10,639/2003; Anti-racist education; Teacher-training courses

Introdução

Este artigo tem como objetivo expor a percepção de professores do ensino superior sobre as condições políticas e pedagógicas em que foram inseridos o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira e a educação das relações étnico-raciais nos cursos de licenciatura, com a finalidade de atender a formação de professores para o cumprimento da obrigatoriedade prevista na Lei nº 10.639/20033, e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNERER). O artigo divide-se em duas partes, a primeira abrange o mapeamento das disciplinas nas universidades e a segunda contempla a análise dos questionários respondidos pelas/os docentes.

O resultado apresentado é parte da pesquisa4 na qual mapeamos a incorporação da história da África, dos afro-brasileiros e a educação das relações étnico-raciais às matrizes curriculares dos cursos de licenciatura das instituições federais de ensino superior (IFES) da região Centro-Oeste, entre os anos de 2003 e 2019, mediante levantamento dos cursos, disciplinas específicas, análise das ementas, bibliografias e aplicação de questionários.

Após a análise dos questionários consideramos que, apesar das dificuldades enfrentadas para penetração e consolidação da temática nos cursos de licenciatura, a abertura, ainda que tímida aos saberes, narrativas, modos de ser e existir, é capaz de produzir deslocamentos epistêmicos que questionam a hegemonia da matriz eurocêntrica do conhecimento e, ao mesmo tempo, reconhecem outras matrizes como igualmente válidas. Essas perspectivas eram até pouco tempo atrás negligenciadas pelo currículo acadêmico. O horizonte desse longo caminho, permeado por disputas de poder-saber, poder-ser, poder-dizer, é o reconhecimento da/o outra/o em sua diferença, sem hierarquizações, sem negação da humanidade, sem subalternidades (WALSH, 2009).

É importante ressaltar que o movimento pela inclusão da história e cultura de um grupo marginalizado ao currículo escolar e acadêmico, como instrumento de combate à discriminação e/ou (re)construção da identidade racial/cultural/étnica, de promoção da igualdade e de questionamento da matriz europeia do conhecimento, não é algo exclusivo do Brasil. Um movimento similar ocorreu durante as lutas pela descolonização do continente africano, por meio das quais líderes e intelectuais locais reivindicaram que os manuais didáticos produzidos pelos colonizadores (França e Inglaterra) fossem retirados das escolas, e substituídos por outros que contemplassem as línguas tradicionais e os saberes originários. Uma exigência interessante nesse movimento era a de que as novas narrativas fossem produzidas por africanos (KI-ZERBO, 2002).

A análise dos projetos pedagógicos, em especial das matrizes curriculares dos cursos das IFES – Universidade Federal de Goiás (UFG), Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e Universidade de Brasília (UnB) – revelou que a inclusão da temática nos cursos de licenciaturas ocorreu por intermédio de diferentes disciplinas, assim nomeadas: História da África, História da África e dos Afro-Brasileiros, História e Antropologia Indígena e Afro-Brasileira, Relações Étnico-Raciais, Teoria e Prática em Diversidade Étnico-Racial, entre outras.

A leitura das ementas das disciplinas nos possibilitou identificar um número amplo e diversificado de temas/conteúdos abordados, tais como África pré-colonial; expansão do islã; escravidão; colonialismo; resistência na África; movimentos pela libertação; quilombos, pós-abolição; movimento negro, raça, racismo; antirracismo; promoção da igualdade racial; interculturalidade; diáspora; religiões afro-brasileiras (DIALLO; LIMA, 2019).

Quanto às referências bibliográficas relacionadas à história da África, a obra mais utilizada é a coleção História da África, organizada pela Unesco. Somam-se a essa obra, a História da África Negra, de Joseph Ki-Zerbo, África negra: história e civilizações, de Elikia M’Bokolo, e A África na sala de aula: visita à história contemporânea, de Leila Hernandez. Sobre a história dos afro-brasileiros, o tema escravidão ainda ocupa lugar central em parte significativa das disciplinas e as discussões são orientadas a partir das obras de Alberto da Costa e Silva e Gilberto Freyre.

Em relação às abordagens dos conceitos referentes à educação das relações étnico-raciais, tais como racismo, antirracismo, raça, discriminação e preconceito, entre outros, as bibliografias registradas nas ementas dos cursos indicam obras de Kabengele Munanga, Nilma Lino Gomes e Eliane Cavalleiro (DIALLO; LIMA, 2019).

De acordo com os questionários, a reestruturação das matrizes curriculares está relacionada ao cumprimento das exigências legais e aos esforços de professoras/es pesquisadoras/es da área. Não foi possível identificar envolvimento institucional robusto, para além das ações desenvolvidas pelos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros e Africanos (NEABs). As respostas das/os docentes indicaram, por um lado, que ainda é reduzido o número de docentes efetivos com formação específica na temática e, por outro, que os discursos que tratam da promoção da igualdade racial nas universidades ainda são fortemente marcados pelo mito da democracia racial, do racismo estrutural e institucional5.

No Brasil, desde a abolição da escravidão, o racismo tem produzido desigualdades econômicas e sociais. Negras/os são a maioria da população brasileira, entretanto, a presença desses corpos em espaços de poder e decisão é muito pequena. Os dados de diferentes institutos de pesquisa6 indicam que elas/es são maioria entre os mais pobres; têm menor tempo de escolaridade; são as maiores vítimas de homicídios; sofrem violência ou negligência médica com maior frequência; estão em maior número sujeitas/os às relações precarizadas de trabalho; e sofrem cotidianamente discriminações raciais.

Os múltiplos processos de exclusão geradores de desigualdades sociais e econômicas são denunciados por negros há décadas, por meio de diversas organizações, dentre as quais destacamos: as associações e imprensa negra no início do século passado, a Frente Negra Brasileira e o Teatro Experimental do Negro, nas décadas de 1930 e 1940, e o Movimento Negro Unificado, no final da década de 1970. Atualmente, existem diversos coletivos, organizações não governamentais e movimentos sociais que tensionam as relações contra o poder público, não apenas para cobrar punição às múltiplas expressões do racismo, mas também para reivindicar a implementação de políticas públicas que contemplem ações afirmativas para promoção da igualdade racial (DOMINGUES, 2007).

Fruto da luta do movimento negro, em 2003, a Lei nº 10.639 tornou obrigatória a inclusão dos conteúdos referentes à história dos afro-brasileiros e africanos. No ano seguinte, o Conselho Nacional de Educação, através da Resolução nº 1/2004, instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (DCNERER). Tal arcabouço legislativo tem exigido dos sistemas de educação o oferecimento de cursos específicos de formação inicial e continuada para professoras/es, a fim de que esses profissionais possam tratar adequadamente a temática em sala de aula.

Quanto à escola, espera-se que recorra progressivamente ao seu corpo docente, com o objetivo de fazer com que a temática dialogue interculturalmente com os demais conteúdos, de modo que essa reflexão deixe de ser uma alegoria exótica, abordada apenas em momentos específicos, como os dias 13 de maio e 20 de novembro. A inclusão da história africana e afro-brasileira no currículo escolar pode contribuir para que todas/os alunas/os construam uma nova visão do outro e de si mesmos, ao compreender a história de luta e resistência das/os negras/os e ao adquirir conhecimentos sobre a África e o Brasil, assumindo, assim, novas atitudes que as/os levem a um posicionamento antirracista (GOMES, 2012).

Desse modo, a educação antirracista no cotidiano escolar exige ações que reconheçam o racismo como fenômeno estruturante da sociedade brasileira, produtor de exclusões, invisibilidades e subalternidades para mulheres e homens negros (ALMEIDA, 2016). Neste sentido, é importante que o corpo docente e administrativo adote um posicionamento que repudie a discriminação racial e, ao mesmo tempo, valorize a diversidade racial, étnica e cultural presente na escola, promovendo a igualdade e encorajando a participação de todas/os. Para tanto, evidenciamos a necessidade de adotar um currículo escolar que contemple os saberes e os modos de ser, existir e sentir de afro-brasileiros e africanos. O grande desafio da educação antirracista é envolver os negros e não negros na luta para a promoção da igualdade racial (CAVALLEIRO, 2000).

A obrigatoriedade do ensino da história e cultura dos afro-brasileiros e africanos na Educação Básica reflete também na organização dos componentes curriculares no ensino superior, em especial nas licenciaturas. A Resolução CNE/CP nº 01/2004, em seu artigo 1°, dispõe que as diretrizes devem ser “observadas pelas instituições de ensino que atuam nos níveis e modalidades da educação brasileira e, em especial, aqueles que mantêm programa de Formação Inicial e Continuada de professores”. O §1º desse artigo estabelece que:

As Instituições de Ensino Superior incluirão nos conteúdos de disciplinas e atividades curriculares dos cursos que ministram a Educação das Relações Étnico-Raciais, bem como o tratamento de questões e temáticas que dizem respeito aos afro-descendentes, nos termos explicitados no Parecer CNE/CP 3/2004. (BRASIL, 2004a, p. 31).

Portanto, as ações das instituições de ensino superior devem mobilizar a inclusão de conteúdos e disciplinas, desenvolver atividades acadêmicas, congressos, simpósios e colóquios que discutam as relações raciais e garantam a formação adequada dos professores em relação ao ensino de história e cultura afro-brasileira e africana. Devem, ainda, fomentar pesquisas e desenvolver habilidades e atitudes que permitam às/aos acadêmicas/os da licenciatura contribuírem para a educação das relações étnico-raciais (BRASIL, 2004a).

Mapeamento da incorporação da temática nos cursos de Licenciatura

Para Gomes (2007), mapear os conteúdos relativos à diversidade e já incorporados nos currículos pode ser um dos caminhos para orientar ações futuras de efetivação da educação das relações étnico-raciais. Para situar o/a leitor/a, retomamos, brevemente, os dados divulgados em outro artigo (DIALLO; LIMA, 2019), sobre o número de cursos que incluiu essa temática em disciplinas específicas. Conforme mencionamos, foram examinadas as matrizes curriculares dos cursos das seguintes instituições: UFG, UnB, UFMT, UFGD e UFMS. O acesso aos dados ocorreu por meio das informações disponibilizadas nos sites oficiais dessas universidades. Identificamos 104 cursos de licenciatura da área de ciências humanas, dos quais cinquenta ofertam disciplinas específicas sobre a temática, 48 não ofertam e seis não informaram, conforme descrito no Quadro 1:

Quadro 1 – Relação universidades, disciplinas e curso7 

UNIVERSIDADE Cursos Com disciplinas específicas sobre a temática* Sem disciplinas específicas sobre a temática** Não Informado
UnB 11 1 9 1
UFG 29 5 19 5
UFMT 20 5 15 0
UFMS 34 29 5 0
UFGD 10 10 0 0
  104 50 48 6

Fonte: Elaborado pelas autoras.

* Com a disciplina.

** Sem a disciplina.

A Universidade de Brasília possui onze cursos de licenciatura, dos quais apenas o curso de História atende à legislação e tem a disciplina História da África em sua matriz curricular. O curso de Artes Visuais não disponibilizou o projeto pedagógico em sua página eletrônica. Os outros nove cursos, entre eles os de Pedagogia e Letras, não atendem à temática-objeto desta pesquisa em disciplinas específicas.

A Universidade Federal de Goiás oferece em diferentes campi o total de 29 licenciaturas. O curso de História da cidade de Catalão tem, em sua matriz curricular, duas disciplinas: História das Populações Negras e Indígenas na Sociedade Brasileira e História da Antiguidade Oriental8. O mesmo curso, ofertado nas cidades de Jataí e Goiânia, oferece a disciplina História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. O curso de Geografia de Jataí oferece a disciplina Geografia e Relações Étnico-Raciais. No curso de Artes Visuais de Goiânia, as disciplinas História da Arte: da Pré-História ao Barroco e História da Arte: no Brasil e América Latina, fazem referência em seus conteúdos à arte africana e afro-brasileira, respectivamente. Os cursos de Educação Física de Catalão e Artes Cênicas, Educação Intercultural, Filosofia e Música da cidade de Goiânia não disponibilizaram, em suas páginas, os projetos pedagógicos. Os demais dezenove cursos não atendem às demandas específicas da educação étnico-racial.

A Universidade Federal de Mato Grosso oferece vinte licenciaturas na capital Cuiabá. No curso de Educação Física, existe a disciplina Cultura Afro-Brasileira. Nos cursos de Geografia e Pedagogia, é ofertada a disciplina Educação das Relações Étnico-Raciais. Já no curso de História, verificamos a disciplina História da África. Em Rondonópolis, o curso de História oferece a disciplina História da África. Contudo, os demais quinze cursos não contemplam o objeto pesquisado.

A Universidade Federal de Mato Grosso do Sul oferece, em diferentes campi, 34 cursos de licenciaturas, dos quais apenas cinco não abordam a temática étnico-racial. Vale destacar que a disciplina história da África e cultura brasileira é ofertada no curso de Letras, e que a disciplina Educação das Relações Étnico-Raciais é ofertada nos cursos de Educação Física e Filosofia.

A Universidade Federal da Grande Dourados, dentre as universidades pesquisadas, é a única que em seus dez cursos de licenciatura oferece disciplinas cujos conteúdos formativos tratam de maneira geral da História e Cultura Afro-brasileira e Africana e da Educação das Relações étnico-raciais.

Uma vez identificadas as disciplinas, para conhecer o currículo prescrito em cada uma delas, levantamos informações sobre suas respectivas ementas, conteúdos e bibliografias9. O currículo como construção social (GOODSON, 1998), estabelece-se como espaço em que os conteúdos, narrativas e saberes, produzidos por diferentes grupos hegemônicos e periféricos, estão em permanentes movimentos de disputa, hierarquização, legitimação, negação, apagamento e concessão. Somam-se a esses movimentos, outros marcadores de exclusões, como aqueles calcados no racismo, no patriarcado e na heteronormatividade.

Arroyo (2014) destaca que, nas últimas décadas, diversos movimentos identitários têm exigido dos currículos de formação e de Educação Básica o reconhecimento de suas identidades coletivas e a legitimidade de seus conhecimentos, memórias, histórias e culturas. Tendo em vista que o currículo é palco de variadas disputas – com larga vantagem para as narrativas hegemônicas que, em última análise, reproduzem lugares de privilégios e lugares de subalternidade – torna-se imprescindível conhecer os modos como disciplinas que nascem com a vocação de veicular narrativas contra-hegemônicas organizam seu conteúdo. Buscamos, dessa forma, entender se o currículo prescrito das disciplinas pesquisadas aborda conteúdos que permitam superar ideias estereotipadas do continente africano e se, em alguma medida, contribui para a reelaboração da história da/o negra/o no Brasil, reconhecendo-a/o como sujeito de direito. Em outras palavras, buscamos compreender se há de fato um currículo que busca provocar mudanças nos discursos, raciocínios, lógicas racistas que retiram a humanidade da/o negra/o e produzem múltiplos processos de exclusão (SILVA, 2011).

No que diz respeito à história da África, encontramos conteúdos que envolvem temas diversificados: os processos de construção dos primeiros estados agroburocráticos da história da humanidade; as lutas e rivalidades políticas entre os povos e nações africanos, desde a antiguidade até a contemporaneidade; o processo de islamização; os tráficos negreiros intracontinentais e transoceânicos; os processos de desintegração de espaços sócio-históricos constituídos e a regressão social; a conquista e a colonização europeia; as lutas de libertação e descolonização da África.

Quanto à história do afro-brasileiro, identificamos conteúdos relacionados à resistência negra durante o regime escravista; as tecnologias de agricultura, de beneficiamento de cultivos, de mineração e de edificações trazidas pelos escravos; produção científica, artística, política e movimento negro contemporâneo.

A respeito da educação das relações étnico-raciais, as disciplinas contemplam temas relacionados à raça, racismo, antirracismo, preconceito, discriminação; teses eugenistas (dos séculos XIX e XX); mito da democracia racial; branquitude; ações afirmativas; interseccionalidade; formas de enfrentamento do racismo e identidade e diferença.

O que dizem as/os professoras/es sobre o ensino de história e cultura africana e afro-brasileira nas licenciaturas

A organização das disciplinas dos cursos é orientada por documentos institucionais e legislativos, contudo, é preciso considerar o papel da/o docente para colocá-los em movimento ou, em outras palavras, para atuar como indutor de rupturas, avanços e lutas contra as permanências das matrizes hegemônicas do conhecimento. Nesse sentido, procuramos compreender de que forma os docentes percebem a incorporação da temática em tela nos cursos de licenciatura.

Os questionários aplicados às/aos docentes das instituições pesquisadas buscaram dar sentido às condições nas quais a temática tem sido incorporada nos cursos de licenciaturas e, ao mesmo tempo, entender o porquê de sua ausência em tantos outros cursos. A exploração interpretativa dos questionários será realizada por meio da análise de conteúdo, que possibilita a sistematização de unidades textuais para a evidenciação de núcleos de sentidos. Assim,

[…] a situação em que determinada abordagem investigativa demandar a sistematização de conteúdos para o uso exploratório na interpretação e na inferência de significados, bem como a compreensão das suas condições de produção e de recepção, poder-se-á adotar como recurso a análise de conteúdo. Esse método é uma ferramenta de pesquisa que se aplica à grande diversidade de tipos e gêneros textuais e se presta à exploração interpretativa de documentos, organizando e sistematizando unidades de seu conteúdo, das quais se possam extrair inventários estatísticos de estruturas textuais, como palavras, temas e classes de sentido. (BARDIN, 2011 apud FERREIRA, 2014, p. 34).

O questionário semiestruturado possui vinte perguntas, por meio das quais buscamos conhecer o vínculo do professor com a instituição, sua faixa etária, sexo/gênero, cor/raça, formação acadêmica, área de atuação e disciplina que leciona. Buscamos, ainda, compreender a familiaridade desse professor com a legislação que normatiza a temática no campo educacional, a importância que ele atribui à temática étnico-racial no currículo acadêmico, a existência de práticas de racismo no ambiente acadêmico e as ações institucionais voltadas à valorização e ao reconhecimento da história e cultura afro-brasileira, os subsídios necessários para a implementação da temática no currículo acadêmico e a articulação da temática com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

O questionário foi elaborado com o auxílio da ferramenta Google Forms e enviado por e-mail a 22 professoras/es e seis chefes de Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEABs), dos quais apenas nove foram respondidos. Com o propósito de garantir o anonimato das respostas, os questionários são representados pela letra Q (questionário), seguidos pelo número correspondente: de Q1 até Q9.

Todas/os professoras/os são efetivas/os, cinco se reconhecem pertencentes ao gênero feminino e quatro ao masculino. Entre eles, quatro se autodeclararam pretas/os, dois pardas/os e dois brancas/os. Quanto aos títulos de pós-graduação, três têm pós-doutorado, quatro são doutores e dois mestres. Em relação à área de formação, cinco professores são da área da História, dois das Ciências Sociais, um da Pedagogia e um da Geografia. Com o intuito de conhecer por quais caminhos pedagógicos/teóricos a temática-objeto da pesquisa é veiculada, destacamos em seguida as disciplinas lecionadas por estas/es docentes relacionadas aos respectivos questionários de pesquisa:

As/os docentes conhecem a Lei nº 10.639/2003 e as DCNERER, pois se identificam como pesquisadoras/es da temática. Um/a docente afirma ter acompanhado todo o processo que culminou na promulgação da lei, relacionando essa conquista às lutas empreendidas pelo Movimento Negro: “Acompanhei todo o processo que culminou na promulgação da lei que é ponto de chegada e de partida para o movimento negro brasileiro” (Q9). Outra/o docente relaciona a lei à gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva: “Gestão do então presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. Altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional — LDB (1996)” (Q5).

Ainda é atual a reflexão feita por Abdias do Nascimento (CARTA…, 2009) ao reconhecer o grande avanço que significou a Lei nº 10.639/2003, cujo objetivo é recuperar a história e a memória do negro e torná-las patrimônio cultural do Brasil. A legislação, no entanto, ou não estava sendo cumprida, ou estava sendo obstaculizada por todos aqueles que não queriam as transformações nas relações de dominação racial no Brasil.

Um/a docente diz ter pouco conhecimento sobre as DNCERER. E as/os demais reconhecem o documento como instrumento altamente qualificado e norteador para a implementação da temática, cujo parecer foi produzido pela professora Petronilha Silva10:

Documento de base que prescreve as razões, objetivo e caminhos para a constituição e efetivação da educação para as relações Étnico-raciais. (Q4).

Conheço ou li muito pouco a respeito dos documentos e pareceres sobre as Diretrizes para a Educação das Relações Étnico-raciais. (Q7).

De acordo com Gomes (2012), a legislação propõe uma ruptura epistemológica ao tornar públicas e legítimas as narrativas, saberes, modos de ser e existir no mundo dos afro-brasileiros e africanos. O “outro”, anteriormente invisibilizado, torna-se sujeito com quem se fala e de quem se fala.

Há consenso de que a sociedade brasileira é racista, o problema está em reconhecer quais são os sujeitos e as instituições racistas (MUNANGA, 2000). As/os docentes relacionam o racismo ao sistema de opressão que estrutura as relações sociais no Brasil. Sendo estrutural, o fenômeno está presente na escola e na universidade, o que faz com que as/os negras/os11 sejam sistematicamente classificadas como incapazes, limitadas ou pouco inteligentes. De modo análogo, suas narrativas são negligenciadas nos conteúdos escolares e acadêmicos:

Existe e age na manutenção de privilégios de uma elite branca, reproduzindo ciclos de desvantagens sociorraciais ao longo de gerações. (Q5).

A discriminação racial no Brasil quanto à cor dos indivíduos está presente em todos os lugares e situações. Seja na escola ou na universidade, nos locais de trabalho quando as pessoas são julgadas pela sua cor como menos capaz, competente ou inteligente. E o principal, as pessoas negras são sempre vistas como propensas ao crime, por exemplo. (Q7).

Na universidade em especial, o racismo epistêmico dificulta a produção e divulgação dos conhecimentos sobre negros, africanos e quilombolas, uma vez que ainda persistem a contestação e a invalidação dessas epistemologias.

As/os docentes reconhecem a necessidade da inclusão da temática étnico-racial no currículo acadêmico dos cursos de licenciatura, à medida que ações de combate ao racismo e das desigualdades raciais se articulam com a reeducação das relações étnico-raciais, podendo contribuir para a promoção do respeito e para a desconstrução de estereótipos.

Desse modo, a educação antirracista tem como características o reconhecimento da existência do problema racial na sociedade brasileira, a reflexão permanente sobre os efeitos nefastos do racismo no cotidiano acadêmico, bem como a promoção do diálogo entre a diversidade presente no ambiente acadêmico (CAVALLEIRO, 2000).

Sem sombra de dúvidas, não é possível exercer um combate antirracista e enfrentar as desigualdades raciais sem uma educação para as relações étnico-raciais no ensino superior. Nas licenciaturas, é uma questão de compromisso social da educação. E nos bacharelados, tecnológicos e sequenciais é uma questão moral que tem como fundamento a justiça social. (Q4).

Para evitar o desconhecimento a respeito do tema e para que, além de evitar o preconceito por desconhecimento, o acadêmico possa usar as informações futuramente, sobretudo se ele vir a se tornar um professor. (Q7).

A educação antirracista, portanto, envolve múltiplas estratégias organizacionais, curriculares e pedagógicas com o objetivo de promover a igualdade racial e superar formas de discriminação e opressão. Essas mudanças envolvem a reavaliação tanto do currículo oculto como do currículo formal.

Quanto à situação de preconceito e/ou discriminação racial nas universidades, as/os docentes afirmam tê-la presenciado tanto entre acadêmicos como entre docentes, bem como em outras formas institucionais, estruturais e interseccionais.

Vários estudos, realizados nas instituições escolares e acadêmicas, observaram situações que geram práticas de discriminação racial e racismo, além do uso de expressões para desumanizar pessoas negras, qualificando-as como inferiores, violentas, indolentes e perigosas, e do uso de apelidos e ofensas que depreciam os negros nas relações entre estudantes em todos os níveis e modalidades da educação. Tais estudos apontam, ainda, que é comum a ideia de que ser negro é igual a ser pobre (SILVA; TEIXEIRA, 2009; SILVA; PALUDO, 2011):

Quando um acadêmico, servidor ou outro que se referir a uma pessoa, ela não diz aquela “branquela safada”, “aquele branco ignorante não me deu nota”. A referência é sempre àquela “professora preta”, “àquele negro sacaneou comigo ou não me deu nota” e assim por diante, sempre colocando a questão da cor na frente. (Q7).

Tendo em vista que os racismos institucional e estrutural ressoam também na universidade, solicitamos aos professores que descrevessem o modo como as instituições têm se posicionado diante das questões que envolvem a diversidade étnico-racial, da incorporação dessa temática no currículo e quais ações de combate ao racismo e de promoção da igualdade vêm sendo desenvolvidas. Segundo as/os professoras/es, há pouco envolvimento institucional. Apesar da existência das ações afirmativas nos termos da lei, são necessárias ações preventivas das práticas de discriminação, de monitoramento das políticas de acesso e permanência, bem como do fortalecimento de órgãos como ouvidorias.

Outro aspecto a ser destacado é que a inclusão da temática está circunscrita à responsabilidade de grupos de pesquisa, núcleos ou centros específicos. As/os professoras/es entendem que a ampliação da incorporação da temática pode ser alcançada com o aumento de profissionais negras/os (técnicos e professores):

A questão é pormenorizada na academia, tanto no campo epistemológico como no campo das políticas sociais, sendo foco, sobretudo, de grupos e núcleos de pesquisa focados nessa temática, os quais, quase sempre, são os responsáveis pela inserção da pauta étnico-racial nos diferentes âmbitos das IES. (Q4).

É positiva a existência de uma ouvidoria, de grupos de pesquisa direcionados à temática, do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação, do Conselho de Políticas de Ações Afirmativas da Pró-Reitoria de Assistência Estudantil, estes dois últimos dos quais sou integrante. No entanto, é preciso avançar no acompanhamento e monitoramento, na implementação de ações preventivas e afirmativas de valorização da população negra, indígena e quilombola. (Q5).

De acordo com as Orientações e ações para a educação das relações étnico-raciais:

A abordagem das questões étnico-raciais na Educação Básica depende muito da formação inicial de profissionais da educação. Eles ainda precisam avançar para além dos discursos, ou seja, se por um lado, as pesquisas acadêmicas em torno da questão racial e educação são necessárias, por outro lado precisam chegar à escola e sala de aula, alterando antes os espaços de formação docente. (BRASIL, 2006, p. 128).

Quanto às ações voltadas para valorização e reconhecimento da história e cultura afro-Brasileira, as/os docentes avaliam que ainda estão restritas às disciplinas e, em alguns casos, sob o “guarda-chuva da diversidade”. O alcance dessas ações se revela baixo, contudo as/os docentes destacam as iniciativas dos NEABs que, por meio de eventos específicos, fomentam discussões, debates e divulgação de pesquisas e relatos de experiência sobre a temática. Cabe a esses núcleos, ainda, a tarefa de induzir, monitorar e avaliar a implementação de políticas públicas de ações afirmativas nas IFES.

Em uma das respostas ao questionário, mereceu destaque o envolvimento de uma IFES em parceria com algumas pró-reitorias, o que demonstra que há esforço institucional localizado para romper a condição de subalternização e/ou invisibilidade da história e cultura afro-brasileira. No entanto, é preciso considerar que, apesar de não ficar evidente uma resistência aberta ao tema, a morosidade para implementar a temática revela e expõe a face do racismo institucional:

Sim, mas precisa avançar. Anualmente é realizada a Jornada Desigualdades Raciais na Educação Brasileira, direcionada especialmente aos/às professores/as da Educação Básica. Porém, casos de racismo, assédio etc. são denunciados e desvelam uma realidade que precisa de um tratamento mais incisivo e permanente. Há indicativos por parte da Pró-Reitoria de Assistência Estudantil para realização de campanhas preventivas, formação do corpo docente e administrativo, porém ainda não materializadas. A existência do Conselho de Políticas de Ações Afirmativas da Pró-Reitoria de Assistência Estudantil é uma instância importante, que tem como desafio a instalação de uma comissão de avaliação das políticas afirmativas na instituição e de verificação fenotípica das/os estudantes que optam pelas cotas. Não há ainda esse monitoramento e avaliação. (Q5).

As políticas afirmativas iniciaram em 2018 e projetos concomitantes à temática racial também, ou seja, trajetória recente na instituição. Embora sendo fruto de esforços do NEAB, a instituição não se opõe às nossas ações, apesar de fazer muito pouco institucionalmente. (Q8).

De acordo com os docentes, as IFES, por meio de suas coordenações de curso, pró-reitorias, ouvidoria e outras instâncias da universidade, têm buscado, de modos diferentes, solucionar as situações que envolvem preconceito e discriminação racial:

Na UnB, temos a Diretoria de Diversidade. Desde sua criação os encaminhamentos têm sido mais efetivos: tratamentos psicológicos para vítimas; [abertura de processos para apuração de] denúncias para quem de direito, quando necessário. Ações de integração do NEAB, GEPPHERG [Grupo de Estudo e Pesquisa em Políticas Públicas, História, Educação das Relações Raciais e de Gênero] e outros grupos. (Q2).

Normalmente são denunciadas à ouvidoria da instituição, que a encaminha para a pró-reitoria competente. Infelizmente punições com o enquadramento de racismo são inexistentes. Quase sempre são enquadrados como injúria racial. (Q9).

Os estudos das questões que envolvem a educação das relações étnico-raciais, a história e cultura afro-brasileira e africana, a discriminação racial, o racismo e a branquitude na formação de professores são apontados pelas/os docentes como fundamentais para o combate ao racismo:

Sim. É de fundamental importância. Tenho trabalhado nisso há dez anos e sou testemunha de professores formados, que passaram por nossas ações de extensão e de disciplinas obrigatórias de educação étnico-racial (para todas as licenciaturas na UFMS) e conheço vários ex-alunos que incorporaram a temática em sua prática profissional. (Q9).

Os caminhos apontados pelas/os docentes para a implementação da Lei nº 10.639/2003 e da educação das relações étnico-raciais e do ensino de história e cultura afro-brasileira e africana no espaço acadêmico são: a formação de professores, alicerçada em uma bibliografia especializada, produção acadêmica robusta, conhecimento do arcabouço legal e dos documentos norteadores produzidos pelo Ministério da Educação, por meio da extinta Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI), bem como a sensibilização para incorporação da temática a todos os projetos pedagógicos dos cursos de licenciatura:

A constituição de currículos acadêmicos (prescrito e praticado) que contemplem de fato as relações étnico-raciais. (Q4).

Currículo obrigatório, ser disciplina no primeiro ano do curso; material didático; eventos; campanhas; ações de ensino, pesquisa e extensão; etc. (Q5).

Fomentar a discussão política e empoderar os coletivos negros e NEABs. O problema é político e não de falta de formação ou acesso a conteúdos. (Q9).

Quanto à articulação entre a BNCC e os conteúdos da educação étnico-racial, as/os docentes afirmam ser possível, uma vez que a temática pode perpassar todas as disciplinas. Assim, é importante que a/o docente da Educação Básica adote uma postura crítica e antirracista em relação à ideia de sujeito universal apresentado pelo documento. O posicionamento é para que sejam inseridos discursos de valorização da diversidade nas brechas encontradas nos conteúdos:

Mas exige uma postura crítica e prática engajada por parte das instituições e redes de ensino, tanto na educação básica quanto superior. (Q3).

Diretamente é mencionado no oitavo e nono ano, na disciplina de História, onde é citada a Lei 10.639/2003. No entanto, na menção à valorização das diferenças, valorização da diversidade, termos usados na BNCC em diversos momentos, encontramos brechas para tratar desses conteúdos. (Q5).

A BNCC, ainda em implementação, deve se adequar às demandas éticas e sociais que nos levaram a aprovação da Lei 10.639. A reforma educacional que representa a BNCC não deve significar o fim dessas demandas. (Q8).

Todas/os docentes afirmaram que, nos cursos em que lecionam, existem disciplinas obrigatórias e/ou eletivas que abarcam o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana e/ou a educação das relações étnico-raciais e/ou tema correlato. E, apenas uma/um docente relatou que sua universidade oferece à comunidade externa, na modalidade de extensão, o curso de História da África.

Finalmente, em relação à incorporação da temática às suas práticas pedagógicas, todas/os se mostram comprometidos e alguns elencaram os conteúdos abordados em suas disciplinas. Outras/os afirmaram que embora a ementa da sua disciplina não contemple a temática, ainda assim estão comprometidos com a temática.

Considerações finais

A análise das respostas expressas nos questionários leva-nos a considerar que as condições políticas e pedagógicas, a partir das quais foram construídas as ações para inserção da temática nos cursos de licenciatura, estão fortemente atreladas às ações desenvolvidas, quase que individualmente, por docentes antirracistas e pesquisadores das relações étnico-raciais. A inexistência de ações conjuntas envolvendo cursos e pró-reitorias de ensino explica a ausência da temática em 48 cursos de licenciaturas, pois, como explicitamos anteriormente, as inclusões verificadas derivaram das ações de docentes comprometidos com a luta antirracista e dispostos a disputar espaços nas matrizes curriculares hegemônicas.

A legitimidade das ações desses docentes está alicerçada no conhecimento que elas/es demonstram ter do arcabouço legislativo (Lei nº 10.639/2003 e DCNERER) e da luta do Movimento Negro pelo reconhecimento da importância da história e cultura afro-brasileira e africana para a promoção da igualdade racial. A inclusão obrigatória da temática na Educação Básica pública e privada tem demandado dos cursos de formação de professores novos arranjos curriculares, cujo atendimento ainda é deficitário.

Ao reconhecer o racismo como elemento estruturante das relações sociais no Brasil, as/os docentes explicam que a discriminação racial também ocorre nas IFES. As práticas são identificadas entre as/os acadêmicas/os, docentes e técnicas/os. O que chama a atenção é que nesses casos as instituições disponibilizam vários canais para denúncia. Porém, à exceção de uma instituição que tem enquadrado os casos como injúria racial, não foi possível identificar quais encaminhamentos são dados às denúncias.

O ensino de história e cultura africana e afro-brasileira bem como a educação das relações étnico-raciais são considerados pelas/os docentes como um dos caminhos para o combate ao racismo e para a promoção da igualdade racial. Para tanto, as/os docentes ressaltam ser imprescindível que as licenciaturas incorporem a temática aos seus projetos pedagógicos, tenham em seus quadros docentes especializados, acervos diversificados e atualizados, além do fomento para a pesquisa e extensão.

Quadro 2 – Relação de disciplinas e questionários de pesquisaFonte: Elaborado pelas autoras. 

DISCIPLINA QUESTIONÁRIO CORRESPONDENTE
Sociologia Contemporânea, Sociologia Brasileira, Educação Sociedade e Cidadania, Tópicos em Cultura e Diversidade Étnico-Racial, Estágio e Educação em Direitos Humanos Q1
Ensino de História (graduação) e Políticas Educacionais (pós-graduação) Q2
História do Brasil Q3
Didáticas e Estágio em Geografia Q4
Educação das Relações Étnico-Raciais; Política e Gestão Educacional; Educação e Movimentos Sociais Q5
Tópicos em Cultura e Relações Étnico-Raciais Q6
Pesquisa em Educação, Métodos e Técnicas de Pesquisa e Estágios Supervisionados. Q7
Sociologia Q8
História da África e Educação das Relações Étnico-Raciais Q9

Fonte: Elaborado pelas autoras.

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3- “Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira’, e dá outras providências” (BRASIL, 2003).

4- Pesquisa realizada durante o estágio de pós-doutoramento efetuado no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (Campus do Pantanal) no período de julho/2018 a julho/2019.

5- No Brasil, o Programa de Combate ao Racismo Institucional (PCRI), implementado em 2005, definiu o racismo institucional como “o fracasso das instituições e organizações em prover um serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem racial ou étnica. Ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho, os quais são resultantes do preconceito racial, uma atitude que combina estereótipos racistas, falta de atenção e ignorância. Em qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados pelo Estado e por demais instituições e organizações” (CRI, 2006, p. 22).

6- Ver dados estatísticos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

7 - O Quadro 1 foi originalmente publicado no artigo DIALLO, Cíntia Santos; LIMA, Claudia Araújo. Alguém sabe? Alguém viu? Qual o lugar da história e cultura africana e afro-brasileira e educação das relações étnico-raciais nos cursos de Licenciatura na região do Centro-Oeste? Ensaios e Pesquisas em Educação e Cultura, Seropédica, v. 4, n. 7, p. 40-60, 2019.

8- Os conteúdos da disciplina abarcam temas referentes à história da África pré-colonial, como poderemos observar no tópico em que faremos a análise dos conteúdos formativos de cada disciplina.

9- Nem todos os cursos disponibilizam, em suas páginas eletrônicas, informações completas sobre as disciplinas que oferecem. Desse modo, foi possível identificar o nome das disciplinas, mas nem todas traziam informações sobre a ementa, conteúdo ou bibliografia.

10- Por indicação do Movimento Negro, foi conselheira da Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de Educação, mandato 2002-2006. Nessa condição, foi relatora do Parecer CNE/CP nº 3/2004 que estabelece as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (BRASIL, 2004a).

11- Classificação utilizada pelo IBGE. De acordo com o instituto, no quesito cor/raça, a categoria negro é composta por pessoas de cor parda e preta.

Recebido: 04 de Março de 2020; Revisado: 12 de Maio de 2020; Aceito: 24 de Novembro de 2020

Cíntia Santos Diallo tem pós-doutorado em educação, é doutora em história, mestre em educação e licenciada em história e pedagogia. É professora adjunta da Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), coordenadora do Centro de Estudos, Pesquisa e Extensão em Educação, Gênero, Raça e Etnia (CEPEGRE/UEMS), presidente da Comissão de Verificação Fenotípica/UEMS e membro da Cátedra Unesco Diversidade da Universidade Federal da Grande Dourados.

Cláudia Araújo de Lima tem doutorado em ciências na área de saúde pública e master en reabilitación de personas con discapacidad. É licenciada em pedagogia, professora adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), campus do Pantanal, coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Interdisciplinares (NEPI/Pantanal) e do Projeto Observatório Eçaí – Educação, Saúde, Desenvolvimento e outros direitos humanos de crianças e adolescentes na fronteira Brasil e Bolívia e líder do Grupo de Pesquisa Estudos Mulheres da Fronteira/CNPq.

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