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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 29-Abr-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248238149por 

Artigos

Educação e condição feminina em um tratado de Alexandre de Gusmão escrito na América Portuguesa no final do século XVII

1- Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil.Contatos: fernandoripe@yahoo.com.br; gianalangedoamaral@gmail.com


Resumo

Neste artigo apresentamos uma análise dos discursos acerca da educação e da condição feminina presentes na obra Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia. Escrita na América Portuguesa, mas publicada inicialmente em Portugal no ano de 1685, a obra de autoria do padre jesuíta Alexandre de Gusmão (1629-1724) destinou seu último capítulo, “Do especial cuidado que se deve ter na criação das meninas”, para tratar das advertências necessárias à boa educação de raparigas. No contexto de produção da obra educativa proposta por Alexandre de Gusmão, queremos propor a análise de um conjunto de enunciados que colocam em evidência uma espécie de ordenamento das condições de vida e das orientações educativas de sujeitos infantis femininos. Inferimos que a propagação de obras de cunho moralista no espaço luso-brasileiro entre os séculos XVII e XVIII possibilitou a circulação de tais ordens enunciativas, influenciando, significativamente, o comportamento social da época. A partir de uma perspectiva histórica e filosófica, principalmente através de referenciais teóricos foucaultianos, entendemos que a obra foi um eficiente mecanismo que atuou na constituição discursiva de modelos específicos de educação para garantir a produção de um determinado tipo de sujeito infantil feminino. Notadamente, identificamos duas normativas que advertiam sobre a boa criação das meninas cristãs através das práticas de guarda e recolhimento.

Palavras-Chave: História da educação; Alexandre de Gusmão; Educação feminina; Infância

Abstract

In this paper we present an analysis of the discourses about education and the female condition present in the work Arte de crear bem os filhos na Idade da Puericia [Art of raising children well at the age of childhood]. Written in the Portuguese America, but initially published in Portugal in 1685, the work by the Jesuit priest Alexandre de Gusmão (1629-1724) assigned its last chapter, “Of the special care that must be taken in raising girls”, to address the warnings necessary for the good upbringing of girls. In the context of production of the educational work proposed by Alexandre de Gusmão, we want to propose the analysis of a set of statements that put in evidence a kind of ordering of the living conditions and educational guidelines of female children. We infer that the propagation of works of a moralist nature in the Luso-Brazilian space between the 17th and 18th centuries enabled the circulation of such enunciative orders, significantly influencing the social behavior of the time. From a historical and philosophical perspective, mainly through Foucauldian theoretical references, we understand that the work was an efficient mechanism that acted in the discursive constitution on specific models of education to guarantee the production of a certain type of female child subject. Notably, we identified two regulations that warned about the good upbringing of Christian girls through the practices of guardianship and retreat.

Key words: History of education; Alexandre de Gusmão; Female education; Childhood

Introdução

A conformação de uma educação feminina no Ocidente moderno foi, em grande medida, fundamentada pelas representações que a mulher ocupava no imaginário masculino. De tal modo que, durante o período colonial brasileiro, a representação ideal de mulher era aquela de mulher honrada e devota, cujas funções se voltavam para o lar e para a reprodução familiar (ALGRANTI, 1993). Grosso modo, a mulher honrada seria aquela “que controla seus maus instintos e, recatada, oculta seu corpo, ciente das paixões que é capaz de desencadear […]. Ela reprime sua sexualidade e a transforma em função procriadora” (ALGRANTI, 1993, p. 120). Na América Portuguesa os conventos e recolhimentos foram as principais instituições para a busca de asilo, proteção, devoção, pensão e de educação para mulheres que pretendiam garantir sua honra, expandir sua fé, enaltecer os valores cristãos católicos e desenvolver no interior desses espaços a aprendizagem da leitura e, quando possível, da escrita e de trabalhos manuais.

Na historiografia colonial o tema da instrução feminina, por meio do estabelecimento de clausuras e acolhimentos, tem despertado a atenção de pesquisadores2. No entanto, o processo educativo de meninas, envolvendo aspectos mais amplos do que a aquisição das práticas de leitura e escrita – primeiras letras –, não é frequentemente abordado3. A análise sobre outras tipologias de fontes distintas dos regulamentos das casas de recolhimento e dos conventos e das cartas administrativas coloniais podem viabilizar outras abordagens historiográficas sobre as práticas de educação, as condições, as normas e as regras de comportamento social femininas – muitas vezes disponíveis em manuais de civilidade ou na literatura religiosa publicados à época.

Nesse sentido, propomos nos deter sobre a análise do discurso de tratados de comportamento social publicados e/ou que circularam no espaço luso-brasileiro, entre os séculos XVII e XVIII, e que atuaram discursivamente na produção de um determinado tipo de sujeito infantil moderno. Todavia, temos identificado a ocorrência de enunciados sobre a educação e as possíveis condições para o gênero feminino infantil que indicavam, através de discursos edificantes, a exigência de um “fundo normativo antigo que vinha lembrar as exigências disciplinares às quais o corpo devia ser submetido, e àquelas de instituição que revelam para que ele se mantivesse como tal” (COURTINE, 2013, p. 14).

Neste texto, analisaremos a obra do jesuíta português Alexandre de Gusmão, Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia, que foi escrita na América Portuguesa e publicada em Lisboa no ano de 1685. Esse livro está dividido em duas partes: a primeira contém 19 capítulos que orientam os fundamentos teológicos para a “boa educação”; já na segunda parte da obra, intitulada “Como se hão de haver os pais na criação dos meninos”, os 25 capítulos prescrevem aconselhamentos práticos e edificantes para que os pais eduquem seus filhos. Ao longo de 387 páginas, o autor desenvolveu ensinamentos que foram retomados várias vezes, seja pela demonstração de modelos exemplares, seja por representações assustadoras, ou mesmo através da incitação à punição e castigo como modo corretivo e disciplinador da boa criação. Ainda que sua atenção estivesse voltada para a formação e educação de meninos, Gusmão, no último capítulo de sua obra, constando de dez páginas e intitulado como “Do especial cuidado que se deve ter na criação das meninas”, apresenta advertências necessárias à boa educação de raparigas.

Elomar Tambara e Gomercindo Ghiggi (2000) editaram uma versão fac-símile dessa obra, em que chamam a atenção do leitor para o fato de o tratado perceber a educação jesuítica como manutenção fiel do modelo tradicional da Ratio Studiorum. Para Tambara e Ghiggi, o padre Alexandre de Gusmão tinha como estratégia discursiva todo um cuidado para agradar a Deus, de modo que essa religiosidade católica fazia emergir algumas temáticas como a boa e correta alimentação, os modos de se vestir, os jogos e as brincadeiras infantis admitidas, a preocupação com os meninos rejeitados, os bons costumes, maneiras e hábitos socialmente aceitos como princípios organizadores da família e da república4.

Os pesquisadores Renato Venâncio e Jânia Ramos (2004), ao prefaciarem outra reedição da obra que estamos analisando, alertaram para o debate acerca da importância da infância na literatura eclesiástica, que se deu numa tentativa de generalizar, para o mundo infantil, o rigor e a disciplina empregados até então nos projetos estritos e normativos dos conventos e mosteiros. Cabe chamar a atenção para a forma como se pensava, nesse período, que a educação era equitativa ao modelo de formar crianças. Tanto através da educação domiciliar empregada por mestres, tutores, aios e preceptores, quanto na forma interna instituída em mosteiros e conventos religiosos. Todavia, esses modelos eram empregados quase exclusivamente aos mais abastados socialmente, que, diferentemente daqueles que detinham, em suas relações sociais, alguma forma de avizinhação, também poderiam ter acesso aos conhecimentos e aos modos de vivência da corte. Vale ainda destacar que a Arte de crear os filhos na idade da Puericia faz parte de um conjunto de obras que integram um padrão utilizado por muitos discípulos de Santo Inácio de Loyola (1491-1556). Uma tipologia de narrativa que pretendia “enquadrar numa perspectiva religiosa, moral e espiritual” uma sociedade cristã, massivamente de hábitos e comportamentos camponeses, mas que “investindo numa estratégia de expansão do saber, condicionada por um programa preciso de afirmação ideológica, adequado à crescente complexidade do mundo, pelo uso de técnicas específicas” (SANTOS, 2004, p. 581) configuravam modos de comportamentos mais próximos à nobreza.

Alexandre de Gusmão (1629-1724), natural de Lisboa, ainda na sua adolescência se mudou para o Rio de Janeiro. Aos 17 anos ingressou na Ordem inaciana, tendo atuado inicialmente como ministro após ter cursado Filosofia e Teologia no Colégio da Bahia. Considerado de “particular gênio” para o governo, bem como um “escritor doutíssimo”, o jesuíta foi sequencialmente promovido a diversos cargos da Religião da Ordem na província. Atuou como mestre de humanidades, mestre de noviços, vice-reitor e reitor de alguns Colégios da Companhia (LEITE, 1949; MACHADO, 1741; ROCHA PITTA, 1950).

Algumas pesquisas, como as de O’Neill e Domínguez (2001), Arnaut Toledo e Araújo (2009) e Arnaut Toledo e Barboza (2015), consideram o jesuíta Alexandre de Gusmão o primeiro pedagogo do Brasil. Esse precedente título não se refere apenas ao fato de ele ser o primeiro autor a escrever obras de cunho educativo para crianças, ainda no período colonial,5 mas a sua atuação no projeto evangelizador instaurado pela Companhia de Jesus em grande parte do território ocupado na principal colônia, bem como ao seu importante papel na fundação do Seminário de Belém da Cachoeira, na Bahia. Este seminário foi descrito nas palavras de Serafim Leite (2004, p. 241) como uma instituição de características marcadamente populares, em virtude de “nele se criarem os filhos dos moradores, sobretudo dos pobres, que viviam no sertão, e poderem estudar não só os primeiros elementos de ler e escrever, mas também latim e música”. Contando com a contrapartida da Coroa portuguesa e com a colaboração privada, o Seminário de Belém teve importante papel na formação de missionários da Companhia de Jesus e no processo educativo dos sujeitos letrados no Recôncavo Baiano (SOUZA, 2015).

O tratado escrito por Gusmão é considerado a primeira obra escrita em terras brasileiras que tinha por objetivo apresentar um modelo pedagógico para educar as crianças através dos bons costumes cristãos. O sentido dado à educação em muito se assemelha ao trabalho artesanal que configura a transmissão pedagógica de um preceptor, tutor, religioso, ou, nesse caso, um possível missioneiro jesuíta para moldar a mocidade na constância do “real caminho dos mandamentos de Deos” (GUSMÃO, 1685, p. 27).

A Figura 1, que retrata o jesuíta Alexandre de Gusmão, chama a atenção pelo fato de o padre ter sido representado ensinando um pequeno grupo de crianças, todos meninos, através do simbólico presépio do Menino Jesus. Esta representação simbólica de ensino demonstra que a vida do Menino Jesus deveria ser um exemplo a ser seguido pelas crianças.

Fonte: ÖNB Digital6.

Figura 1 – Representação do padre Gusmão feita pelo artista Gottlieb Heüfs [s.d.] 

Para a análise da obra Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia, contamos com sua versão digital disponível no repositório da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP). O impresso foi publicado na Officina de Miguel Deslandes, em 1685, na cidade de Lisboa e estava regularmente licenciado, como padrão da época, pela Real Meza da Comissão Geral sobre o Exame e pela Censura dos Livros, conforme se percebe no frontispício (Figura 2).

Fonte: Biblioteca Nacional Digital.

Figura 2 – Frontispício da obra Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia 

Considerando esse cenário de práticas educativas e de modelos de sujeito cristão, acreditamos que a publicação da obra de Alexandre de Gusmão tem aspectos peculiares para o contexto editorial e social da época, que merecem ser destacados. Primeiro, por se tratar de um tratado católico escrito no território da principal colônia ultramarina de Portugal, distante da sede do reino, pode evidenciar além da existência de uma rota comercial de livros e livreiros7, também o interesse na leitura de obras que demonstravam o modelo de educação que era implementado na Corte e que vislumbrava sua formação na Colônia; segundo, por apresentar um discurso cristão católico que atendia aos anseios oficiais da Igreja de difundir a sua fé e a sua moral e aos desejos dos leigos por instrução e elevação espiritual através da leitura de obras religiosas; terceiro, por Alexandre de Gusmão acreditar, distintamente da maioria dos pensadores de seu tempo que definiam a mulher como detentora de reduzida racionalidade, que as meninas deveriam aprender além das “boas artes”, o domínio da leitura e da escrita.

Ao destacarmos o contexto de produção da obra educativa proposta por Alexandre de Gusmão, queremos propor a análise de um conjunto de enunciados que colocam em evidência uma espécie de ordenamento das condições de vida e das orientações educativas de sujeitos infantis femininos. Inferimos que a propagação de obras de cunho moralista no espaço luso-brasileiro entre os séculos XVII e XVIII possibilitou a circulação de tais ordens enunciativas, influenciando, significativamente, o comportamento social da época. Essa operação moralizadora influenciava desde os conhecimentos que deveriam ser ensinados até a prescrição de certos ditames práticos para o cotidiano das jovens donzelas. Esses comportamentos esperados eram tidos como legítimos e adequados e faziam parte da construção discursiva que desejava produzir uma moça pura, casta, inocente, devota à cristo, submissa às vontades do pai e do futuro marido ou das regulamentações de alguma ordem religiosa.

Para uma melhor sistematização da análise empreendida neste artigo, dividimo-lo da seguinte maneira: primeiro, apresentamos algumas notas referentes à historiografia da condição feminina no contexto colonial, chamando a atenção para os reduzidos direcionamentos que as meninas tinham para a aprendizagem da leitura e da escrita, quando comparadas àquelas instruções que eram preconizadas para os meninos. Nesse sentido, destacamos nossa principal fonte de análise como um potente objeto de investigação que apresenta um programa pedagógico específico para a educação de crianças; segundo, identificamos nas prerrogativas da guarda e do recolhimento dois dispositivos disciplinadores recomendados pelo jesuíta Gusmão, capazes de atuar na conformação dos comportamentos e das condutas, bem como de ampliar os mecanismos de controle sobre a população feminina.

Notas sobre a historiografia da condição feminina no contexto colonial e o programa pedagógico de Alexandre de Gusmão

Acreditamos que tanto os estudos de história da infância como os relativos à história das mulheres têm assinalado a importância da compreensão dos discursos religiosos e das práticas de cuidado, assistência e salvação que os católicos, no Ocidente, direcionavam aos infantis e às mulheres como interessante objeto da historiografia. Numa perspectiva ampliada, a ideia de educação será aqui percebida tanto por sua “natureza escolar” quanto por suas “práticas educativas não escolares, envolvendo ou não instituições como o Estado e a Igreja, irmandades e ordens leigas e grupos profissionais” (FONSECA, 2009b, p. 10). Ainda que a educação de meninas, nos séculos XVII e XVIII, não participasse dessa corrente de valorização da infância, alguns religiosos dedicaram certa preocupação com os modos como se devia educá-las. Nesse universo educativo interessa confrontar os distintos discursos acerca dos significados culturais atribuídos aos diferentes modos de instruir as meninas – ligados aos valores, às crenças e aos costumes –, bem como perceber como elas foram descritas historicamente. Como, por exemplo, as três histórias, narradas por Natalie Davis (1997) em Nas margens, de mulheres que no século XVII se constituíam com desenvoltura dentro de um universo misógino, cujo imaginário lhes impunham restritas possibilidades de ação.

No campo historiográfico brasileiro não foram poucos os estudos que tiveram como mote a condição feminina na sociedade colonial. Os pioneiros estudos apontavam as expectativas em relação à mulher e a importância da maternidade8, as práticas de reclusão e submissão9, sendo que outros temas também despertaram o interesse de reflexão histórica, como as relações familiares, a sexualidade, a criminalidade, a morte ou o pecado. Entretanto, no âmbito da História da Educação são poucos os estudos que se dedicam aos séculos XVII e XVIII10. Ademais, restritas são as investigações que demarcam a condição de educação feminina no mundo luso-brasileiro. Um interessante estudo, no campo da História da Educação, sobre o discurso normativo ditado pela sociedade setecentista sobre a representação feminina foi levado a cabo por Arilda Ines Miranda Ribeiro (2002) na obra Vestígios da educação feminina no século XVIII em Portugal11.

A educação feminina não participou, no final do século XVII europeu, do movimento de valorização da educação e das transformações sociais.12 Desse modo, permaneceu com poucas alterações, “apegada aos princípios estabelecidos nos séculos anteriores: uma instrução bastante reduzida, se comparada à preconizada para os meninos, e dirigida para os papéis que as jovens deveriam representar na idade adulta” (ALGRANTI, 1993, p. 240). A maioria das meninas, nesse contexto luso-brasileiro seiscentista, não partilhava da cultura letrada, reservada aos filhos dos nobres e dos mais privilegiados, portanto às aristocracias urbanas e fidalgas. No entanto, a religião no século XVII não somente exerceu um domínio sobre a devoção da população como também promoveu uma série de discursos que orientavam modos de vida, no âmbito familiar e da vida privada,13 através de um regime de “bem viver”, que consistia em uma série de instruções, aconselhamentos e regras para se educar o corpo, a mente e a alma. Não obstante, constatamos a presença, no seiscentos colonial, de um programa pedagógico para educar crianças desenvolvido pela Companhia de Jesus14. Trata-se, especificamente, da obra que analisaremos do jesuíta Alexandre de Gusmão, que aqui será percebida como uma potente fonte em que se pode escorar o estudo dos paradigmas de pedagogia infantil no mundo luso-brasileiro, cuja eficiência permite marcar além dos evidentes espaços religiosos e culturais, a existência de um modelo de educação católica de longa duração. A obra de Gusmão reproduz muitas das ideias registradas pelos programas pedagógicos humanistas, como os saberes contrarreformadores e preceitos morais propagados entre a Companhia de Jesus.

Identificamos, através do cotejo com outras obras religiosas que circularam à época, que a escrita de Alexandre de Gusmão, em a Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia, em muito se assemelha aos discursos mobilizados no tratado Philosophia moral de príncipes, para su buena criança y govierno: y para personas de todo estado publicado inicialmente em Burgos (Espanha), no ano de 1596, pelo também jesuíta Juan de Torres da província de Castela15. Equivalem-se, ainda, com a obra de Alexandre de Gusmão, os enunciados descritos por Torres que constituem o modelo de criança nobre, os capítulos que prescrevem os modos e as virtudes que se desejavam criar nos filhos na puerícia. Similaridades também podem ser percebidas nos ideais pedagógicos humanistas propagados por François de Salignac de La Mothe Fénelon (1651-1715). Possivelmente o arcebispo francês Fénelon tenha sido o autor que mais exerceu influência sobre a educação feminina no século XVIII europeu. Apesar de sua obra mais famosa ser Les aventures de Télémaque (1699), foi em Traité de l’éducation des filles16 (1687) que Fénelon ampliou um pouco mais as orientações sobre as instruções para as meninas. Ainda que essas práticas educativas fossem ministradas muito comedidamente, o autor destacou a importância da leitura de bons livros17, dos necessários conhecimentos à literatura, história, latim, música e pintura.18

Vale ressaltar que em um outro estudo discutimos como a cultura escrita se firmou no período moderno como condição de possibilidade para a constituição dos infantis19. Naquela investigação detectamos uma série de impressos, desde o século XVI, que indicavam modos de como se deveria educar os filhos desde o nascimento. Ocasião em que também chamamos a atenção para a potencialidade de propagação discursiva da obra De Pueris (1529) de Erasmo de Rotterdam. No período moderno europeu não foram poucos os pensadores que propagavam indistintamente as ideias de Erasmo. Os aconselhamentos do teólogo Erasmo foram extraordinariamente divulgados, uma vez que naquele período e nos séculos subsequentes, suas obras tiveram grande número de edições e constantes traduções. Mas, acreditamos ser importante destacar que a mulher ocupou um reduzido espaço em sua pedagogia, pois a função feminina de esposa e mãe deram notas para a educação feminina.

De fato, acreditamos que a educação de meninas é uma proposição contraditória entre os letrados dos séculos XVI e XVII, cuja uniformidade enunciativa só será estabelecida na centúria seguinte. Foi através de um conjunto de condições de possibilidades que a presença do debate em torno da educação feminina no mundo luso-brasileiro se deu com maior constância. Uma das possíveis condições foi, ao longo dos séculos XVII e XVIII, as inúmeras mobilidades de religiosos que vinham para a América Portuguesa trazendo em suas bagagens livros de literatura devocional obtidos em Portugal e nos principais centros europeus. Tais literaturas, de acordo com Ana Rodrigues Oliveira (2007, p. 136), indicavam que a maioria dos pedagogos, desde a Baixa Idade Média, já aconselhavam a idade dos 7 anos para a intensificação do ensino, que poderia ser através da frequência de uma escola ou na forma privada por meio de um preceptor. Contudo a autora acredita que a educação das meninas, sobretudo as mais próximas da nobreza, era concebida pelos pedagogos como sendo dotada de fraca racionalidade:

[…] tendo em conta tais pressupostos [condição infantil de debilidade], bastante devedores de Aristóteles, os pedagogos defendiam para as raparigas uma disciplina ainda mais rígida e rigorosa do que as reservadas às mulheres, porque a débil racionalidade da sua natureza feminina se aliava à ainda incompleta racionalidade da condição infantil. (OLIVEIRA, 2007, p. 137).

Contrário aos discursos que negavam o desenvolvimento da boa educação às meninas e mulheres, ainda no século XVI, o humanista Juan Luís Vives (1493-1540) na obra Instrucción de la mujer cristiana20 condenava aqueles que não acreditavam na educação feminina por pensarem que a mulher instruída seria uma possível pecadora. Semelhante constatação teria feito M. Claude Fleury (1640-1723) no tratado Traité du choix et de la méthode des études (1685), segundo o qual a educação feminina merecia mais atenção, para além daquela pífia desenvolvida. Na opinião de Fleury a educação feminina deveria estar contemplada pelo estudo da religião, da história sagrada, aspectos elementares da aritmética, práticas de redação e conhecimentos rudimentares de farmácia e jurisprudência. Ainda observava o autor que outras disciplinas lhes poderiam ser úteis21.

Nas constantes publicações que orientavam as instruções femininas, as prerrogativas de guarda e recolhimento eram intensificadas. Regulava-se que essas prerrogativas se dariam desde o desmame, mas, sobretudo, após os 12 anos até uma segunda condicionante da menina, que poderia ou vir a se casar ou entrar para alguma ordem religiosa. Nesse sentido, aconselhava-se o encerramento dos passeios, as brincadeiras ao ar livre e até mesmo as conversas privadas com outras meninas. Essas interdições tinham claras motivações, fossem a de preservar a natural castidade das meninas, fossem a de controlar o pudor e a timidez próprios da idade.

A guarda e o recolhimento: enunciações de como se deveria criar as meninas

Houve um episódio enunciado por Santo Ambrósio22, “que por ser tão ilustre Autor”, mereceu atenção do padre lisboeta Alexandre de Gusmão. Tratava-se da imposição que alguns senhores pretendiam dar ao quererem “cazar hũa donzella” contra sua vontade. O que eles não sabiam é que esta donzela já havia firmado compromisso, “que pelo voto de virgem avia tomado Jesu Christo por Esposo”. A atitude tomada pela menina em muito estava associada à pressão imposta por seus familiares para que esposasse, de modo que “fugio como victima da castidade para os sagrados Altares, por fugir âs instancias dos parentes, com que a importunizavam, para que se cazasse”. Satisfeita com as condições que o “Autor da natureza” lhe destinara, a virgem replicava: “Que he o que pretendeis de mim, senhores. Que tome Esposo?”. Parecia não ser entendimento dos senhores que a jovem donzela já teria feito a eleição de um esposo melhor, de forma que não adiantaria lhe “exageray riquezas, nobreza, & fermosura”. Que “outro mais rico, mais nobre, & mais bello achei já” afirmava a jovem. Outro de “maior empenho” emendou a conversa: “se vosso pay fora vivo, vôs nam cazarieis”. Ao que a menina respondeu ser esta “por ventura que por isso morresse, porque me nam fosse de impedimento a meu santo proposito” oque o jovem pai, de breve vida, não entendia era o fato de sua filha, sendo “poldrinha”23, não desejasse esposar, como poderia “guardar perpetuamente a preciosissima perola da virgindade, & viver para isso em perpetua clausura no Mosteiro, que melhor felicidade podei dèllas esperar?” (GUSMÃO, 1685, p, p. 382-384).

A alegoria narrada por Gusmão em muito representa as condições femininas no espaço luso-brasileiro seiscentista. Gilberto Freyre (1994) descrevera ser comum, na sociabilidade colonial, o fato de meninas esposarem aos 12 anos, evidenciando a relativização do que é ser infantil para o período e, mais especificamente, quais as possibilidades de vida para o gênero feminino. Duas possibilidades estavam acentuadas no imaginário dessa época, ou a menina seria direcionada a ser boa mãe e esposa, ou firmaria os votos de ser “Religiosa consagrada a Deos, nosso Senhor, & Esposa de Jesu Christo” (GUSMÃO, 1685, p. 385).

Alexandre de Gusmão destacava em seu tratado que o modelo de criação das “mininas de casa” deveria ser semelhante ao modo como se cuida das “mininas dos olhos”. A analogia apresentada pelo jesuíta tem como base um provérbio de Salomão que “chama as mininas, porque na palavra grega soa mesmo minina dos olhos, que minina de casa” (GUSMÃO, 1685, p. 377). De acordo com Gusmão, a primeira advertência que deveria ser oferecida na boa criação das meninas:

[…] he a guarda, & recolhimento, porque assim como a natureza guardou as mininas dos olhos com tantas teas, portas, & prizoens de capellas, pestanas, humores, veas, & membranas, assim se devem guardar as de casa com toda a vigilância, & cuidado. (GUSMÃO, 1685, p. 377).

A partir de uma analíse foucaultiana identificamos que o processo de prescrições discursivas, que organizavam os modos de ser menina no espaço luso-brasileiro no seiscentos, a partir do arranjo interno da Igreja (entenda-se Companhia de Jesus), e mobilizado na narrativa de escritores, incitaram um minucioso processo de fabricação individual da infância feminina através da vigilância e do aprisionamento. Esse processo de produção de sujeitos se torna eficiente na medida em que se adotam uma série de regulações dos espaços, um cerceamento das práticas e um permanente olhar sobre as condutas do sujeito. Segundo Michel Foucault (1997, p. 131):

Cada indivíduo no seu lugar: em cada lugar, um indivíduo. Evitar as distribuições por grupos, decompor as implantações coletivas; analisar as pluralidades confusas, maciças ou fugidias. O espaço disciplinar tende a se dividir em tantas parcelas quanto corpos ou elementos há a repartir. É preciso anular os efeitos das repartições indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa; tática de antideserção, de antivadiagem, de antiaglomeração. Importa estabelecer as presenças e ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, instaurar as comunicações úteis, interromper as outras, poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou méritos. Procedimentos, portanto, para conhecer, dominar e utilizar. A disciplina organiza um espaço analítico.

Portanto, compreendemos a prática da disciplina como sendo um mecanismo de poder, cuja intenção é regular o comportamento do sujeito (infantil) e adequá-lo aos padrões sociais desejáveis. Esse processo de regulação é estrategicamente pensado a partir de um sistemático controle do espaço (por exemplo os agrupamentos de acampamentos, as modernas arquiteturas escolares, prisionais, hospitalares etc.), do controle do tempo (a criação de rotinas, estabelecimento de horários) e da promoção de comportamentos moderados e aceitos socialmente (gestos, postura, brincadeiras etc.). Todavia, esse processo de disciplinamento é reforçado por um complexo sistema de vigilância.

Para Gusmão, a tarefa da vigilância sobre as meninas deveria ser partilhada por todos os familiares e serviçais. Como estratégia discursiva, o jesuíta recorre à São João Chrysostomo, que teria afirmado que “toda familia de casa, pay, mãy, ama, eunucos, & criados se devé occupar na guarda das mininas, porque toda a guarda de casa nam basta para guardar hũa só” (GUSMÃO, 1685, p. 378). A constância da vigilância e do recolhimento, como forma de conformação, de correção, do uso dos bons costumes, do fortalecimento da alma, criaram certas moderações e tornaram, possivelmente, a imagem de uma menina de boas esperanças, da mesma forma que também livraria, simbolicamente, o pai de uma morte temporal – uma ameaça constante que Gusmão traz da morte repentina, ou seja, a incitação ao medo do possível falecimento imprevisto.

De certo modo, podemos inferir que as filhas dos mais privilegiados partilhavam das mesmas reflexões contidas nos manuais e tratados pedagógicos, principalmente no que se refere aos valores e princípios que as crianças deveriam ter. Em geral, as crianças cristãs deveriam respeitar uma rotina muito calcada nos preceitos católicos, tendo como exemplos os modelos hagiográficos, que eram difundidos desde a Idade Média, que apresentavam a boa educação através de narrativas sobre a infância dos santos.

É sabido que desde o século XII no Ocidente medieval as hagiografias desenvolviam a temática da infância dos santos na intenção de promover “modelos de vivência e espiritualidade a incutir desde cedo nos jovens cristãos e respectivos educadores” (OLIVEIRA, 2007, p. 166). Essas hagiografias persistem prematuramente no apego infantil tanto às doutrinas e máximas da fé católica como à aprendizagem da significação e da prática da renúncia aos prazeres e ideais profanos.

Esse modelo santificado de infância estaria na base educativa proposta por Gusmão para a criação das meninas. Não apenas no que se refere às elogiosas distinções que o autor faz aos santos que, enquanto crianças, viriam a se tornar sagrados pelo acesso à educação letrada, mas pela condução da vida virtuosa e pura com práticas caridosas, solenes, piedosas, inocentes, recatadas, imaculadas e castas. Sobre a influência do letramento nas meninas, Gusmão destacou a entrega de muitas delas ao estudo das letras, que “na erudiçam excedia a qualquer Varam douto de seu tempo”:

Para vossa doutrina basta saber que Santa Catherina desde minina se deu ao estudo da Rethorica, & Philosophia, em que saio eminente. Santa Eustochio filha de Santa Paula de tal sorte se deu ao estudo das Letras, Hebraica, Grega, & Latina, que foi chamada milagre do seu tempo. (GUSMÃO, 1685, p. 385-386).

Evidente que, nesse contexto, o estudo das letras direcionado às meninas não tinha interesse em melhorar as condições intelectuais, mas sedimentar ainda mais a “visão de mulher que deve ser educada nos preceitos morais e religiosos, porque é ela a responsável pelo destino da família” (ALMEIDA, 2003, p. 256). Desse modo, o reformismo católico possibilitou a ampliação da educação feminina por considerá-la importante na organização social da família moderna.

Gusmão ainda teria recorrido aos Antigos24 para aconselhar que a guarda e a vigilância sobre as meninas deveria ser constante, até mesmo escusando o pai do sono para a vigília de sua filha. De acordo com o jesuíta, a prática da vigilância também tem por finalidade o cuidado espiritual sobre a criança:

[…] digo que em tres cousas principalmente devem vigiar os pays, em quanto os filhos sam infantes: primeira, guardalos das Bautismo; segunda, que se bautisem a tempo, & com a solenidade, & boa eleiçam de padrinhos, que a Igreja costuma. Terceira, quando for possivel criem as mays os filhos a seus peitos, & quando por justas causas nam possam estas, tenham grande escolha na eleiçam das amas. (GUSMÃO, 1685, p. 171-172).

Dentre os conselhos oferecidos pelo padre Gusmão aos pais vigilantes, estavam as práticas de não consentir que as meninas e donzelas “saiam á rua depois de desmamadas, a folgar com os meninos, nem lhes permitindo depois de crescidas visitas escusadas” (GUSMÃO, 1685, p. 378). Gusmão também sobre o perigo que tais visitas podem causar às filhas guardadas. Nesse caso, mesmo “as de maior idade” deveriam se esconder das visitas masculinas. Nas palavras do jesuíta, “onde nam he menos urbanidade, senam açam de policía Christaã esconderemse as mininas para suas recameras25 interiores, quando sucedem entrar quaesquer visitas de varoens na casa de seus pays” (GUSMÃO, 1685, p. 379).

Não bastava o olhar vigilante do pai, era necessário de tudo se afastar, nada poderia corromper o pensamento puro e casto, os “humores de dentro, que caem do interior do cerebro” devem permanecer angélicos. Logo, se “encerradas na sua recamera estam seguras de qualquer poeira, que lhes pôde fazer danno” (GUSMÃO, 1685, p. 380). Os enunciados que compõem o discurso sobre a sexualidade infantil na obra analisada apontam para a prescrição de um regramento das condutas das crianças. Vale lembrar que os discursos sobre a sexualidade, em distintos períodos históricos, aparecem como uma tentativa de normatizar as práticas sexuais de acordo com os padrões desejados à época. De acordo com o pensador Michel Foucault (1985), esse controle da vida social somente poderia ser alcançado pelo domínio do corpo e da sexualidade. É nesse sentido que o filósofo percebeu a sexualidade como uma construção discursiva, uma invenção indissociável do discurso e das relações de poder dentro das quais ela é instituída.

Decerto a regulamentação do sexo se tornou mote de preocupação do Estado e da Religião. As apreensões constantes nas obras em análise, bem como em outras prédicas religiosas, denotam que desde o século XVII a sexualidade estava guiada por um discurso religioso marcadamente moral que visava regular e controlar, ou ainda, curar qualquer manifestação sexual na infância. Para Foucault, foi somente no século XVIII que o sexo se tornou objeto discursivo central, e no século subsequente,

[…] a sexualidade foi esmiuçada em cada existência, nos seus mínimos detalhes; foi desencavada nas condutas; perseguida nos sonhos, suspeitada por trás das mínimas loucuras, seguida até os primeiros anos da infância; tornou-se a chave da individualidade: ao mesmo tempo, o que permite analisá-la e o que torna possível constituí-la. (FOUCAULT, 1985, p. 137).

Ainda de acordo com Michel Foucault, o decoro das atitudes, a ocultação de partes do corpo e “a decência das palavras limpa[m] o discurso”, a castidade e o sexo restrito ao matrimônio suavizam a interdição de se falar sobre sexo (FOUCAULT, 1985, p. 10). Cabe ressaltar que “se o sexo é reprimido, isto é, fadado à sua proibição, à inexistência e ao mutismo, o simples fato de falar dele e de sua repressão possui como que um ar de transgressão” (FOUCAULT, 1985, p. 12). Igualmente, seria possível esperar os seus efeitos para um religioso, ou mesmo para uma criança; assim, falar sobre sexo, ou até mesmo sobre a prática da castidade, se torna limitante, considerando que “os castos, até de fallar da castidade se envergonhão” (BLUTEAU, 1712, p. 188). O efeito dessa repressão no campo religioso fez com que se operassem rigorosos discursos morais sobre os modos de ser e de se manter casto. O puritanismo, a incitação à castidade, o imperativo da criança inocente, a culpabilização das práticas infantis mais afetuosas ou brincadeiras mais robustas, as classificações de anormalidades, a punição jurídica dos desviantes sexuais, as projeções arquitetônicas e as redes de vigilância que controlavam os sujeitos tendenciosos, bem como outras tecnologias e aparatos modernos que moldavam o comportamento social, colocaram a “economia geral dos discursos sobre o sexo no seio das sociedades modernas a partir do século XVII” (FOUCAULT, 1985, p. 17). Todavia, a conduta sexual da população infantil não foi objeto exclusivo de análise do poder eclesiástico26. Na dinâmica temporal do século XVII para o XVIII se alargou a rede discursiva que observou e determinou seus efeitos e limites, de modo que o seu interesse passou a ser biológico, econômico e político, como coisa pública e questão de Estado (CORAZZA, 2004).

Philippe Ariès (2012, p. 136) bem destacou que “uma noção essencial se impôs: a da inocência infantil”, de modo que a passagem do despudor à inocência era promovida por meio da condição de castidade daqueles que começavam a nascer. Dois aspectos, para o autor, colaboraram para que os discursos de religiosos e de moralistas reformadores, a partir da segunda metade do século XVI, evidenciassem a infância como um estágio de inocência: primeiro, a inocência, que se deveria conservar e, segundo, a ignorância, que se necessitava suprimir. Assim, o “sentido da inocência resultou, portanto em uma dupla atitude moral com relação à infância: preservá-la da sujeira da vida, e especialmente da sexualidade tolerada – quando não aprovada – entre os adultos, e fortalecê-la, desenvolvendo o caráter e a razão” (ARIÈS, 2012, p. 91).

Considerações finais

Na reflexão apresentada neste texto se pretende oferecer um pequeno contributo à História da Educação a partir da análise do tratado do jesuíta Alexandre de Gusmão, Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia. Notadamente, a maior peculiaridade talvez esteja na fonte utilizada, uma vez que permite analisar os discursos acerca da educação e da condição feminina infantil na América Portuguesa colonial. Outra singularidade reside no horizonte teórico foucaultiano, que possibilitou perceber e problematizar a vigilância e a punição como sendo mecanismos reguladores de um comportamento social feminino compartilhado, propagado e ensejado por uma sociedade patriarcal e profundamente devota.

Cabe, no entanto, afirmar que o debate em torno das capacidades intelectuais e do processo de educação feminina, particularmente na França, foi intenso desde os finais do século XVII. Ao mesmo tempo que o projeto reformista católico possibilitava um relativo aumento no número de escolas femininas dentro de conventos e recolhimentos, a proliferação de letradas parecia se tornar uma preocupação/ameaça social. Nessa complexa relação das instituições religiosas femininas com o saber, Zechlinski (2013, p. 175) revelou que, se por um lado a educação abria “as portas para a erudição feminina, possibilitando às freiras o exercício cotidiano da escrita e da leitura”, por outro, “quando essa erudição começou a evadir os muros dos monastérios, enviando meninas letradas para o mundo, ela foi considerada nociva aos preceitos da Igreja”.

Na elaboração deste texto apreendemos que a expansão da produção intelectual concernente à educação feminina foi possibilitada através do pensamento moderno europeu, entre os finais do século XVII e por todo o subsequente, que através de diferentes modelos de enunciação – científico, pedagógico, religioso, filosófico etc. – difundia modos específicos de ser mulher, de ser mãe, de ser esposa, mas, mais especificamente, de como ser educada. Nesse sentido, ganharam visibilidade em nosso empreendimento analítico os direcionamentos cristãos, de guarda e recolhimento, para as meninas, enunciados pelo padre jesuíta Alexandre de Gusmão ao promover uma série de aconselhamentos edificantes para a criação dos filhos. Teve importância, também, nesse processo o controle da sexualidade infantil, pois nada poderia desvirtuar o pensamento puro e casto das meninas.

Nesse contexto discursivo identificamos a disseminação de que a educação feminina poderia fixar valores e normatizar comportamentos. Tais funções, naquele momento, não procuravam integrar um discurso de transformação civilizatória, mas sim de impor condutas de submissão e ampliar os mecanismos de controle sobre a população feminina que estava marcadamente associada à égide dos fundamentos cristãos.

Nessa perspectiva de instrução e educação feminina se destacou a formação espiritual. A dimensão religiosa cada vez mais se firmava como parte integrante do processo de formação do sujeito feminino. Fundamentada por meio de regras e de mecanismos de controle, como a guarda e o recolhimento, a educação de mulheres no espaço luso-brasileiro pretendia ser modelar, reforçando o desprendimento, o altruísmo, o espírito de sacrifício, o amor filial lado a lado com a humildade, a obediência e a submissão, consideradas como virtudes desejáveis para uma boa mãe e futura esposa.

Por outro lado, circulava na segunda metade do século XVIII, uma literatura cujo principal objetivo também era ser edificante, mas que indicava o domínio da leitura e da escrita pelas mulheres. Não foram poucos os sermões sobre virtudes e aulas de ética que preparavam as meninas mais próximas da nobreza para serem percebidas como boas, exemplares, castas, cristãs, moderadamente intelectuais, “verdadeiras damas, conhecedoras de seu lugar e de seu papel” (MACHADO, 2008, p. 19).

Por fim, identificamos nas prédicas do jesuíta Alexandre de Gusmão uma série de enunciados que incitaram os pais na disposição da vigilância e do aprisionamento das filhas. Esses enunciados compunham um conjunto de recomendações sobre a importância de vigiar as meninas e de como discipliná-las através da guarda e do recolhimento. Contudo, Gusmão diferiu da maioria dos pensadores de seu tempo ao indicar o acesso à educação letrada como forma de criação das meninas. Para o jesuíta, o letramento de meninas parece ser uma possível constante nas “naçoens mais politicas, & Respublicas bem ordenadas” (GUSMÃO, 1685, p. 386-387). Nesse sentido, Gusmão partilha que:

Do qual consta, que nam só he conveniente, mas muy louvavel ensinar as boas artes às filhas desde mininas; ao menos ao ler, & escrever devem aprender todas, & as que se criam para Religiosas devem aprender alguns principios da lingua Latina. (GUSMÃO, 1685, p. 386).

Dessa forma, compreendemos que a orientação cristã à educação das meninas tinha por finalidade atuar na produção de subjetividades, no governamento das almas e no gerenciamento da vida infantil feminina, criando donzelas disciplinadas, obedientes e letradas. A partir da recomendação de variadas técnicas disciplinares, identificamos que os pais deveriam guardar, recolher e letrar para conhecer a fundo suas filhas e incliná-las ao “amor santo da pureza virginal” (GUSMÃO, 1685, p. 381).

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2 - Ver Rocha (2008), Villalta (2012), Oliveira (2008) e Lage (2013). Percebe-se, contudo, a existência de uma concentração dessa produção sobre os espaços conventuais e de recolhimentos localizados em Minas Gerais. Acrescentam-se os estudos de Azzi e Rezende (1983), Almeida (2003) e Bellini (2010).

3- Cabe, no entanto, destacar o estudo levado a cabo por Algranti (2014) que, por meio de documentos de caráter normativo – tais como tratados de educação, planos de estudos e manuais de boas maneiras e civilidade –, refletiu sobre as representações da sociedade em relação às mulheres e ao que se esperava que elas aprendessem para melhor desempenharem suas funções e atuarem em sociedade.

4- Sobre esta última assertiva, Gusmão destacou o quinto capítulo, intitulado “De quanta utilidade he para toda a Republica a boa creaçam dos mininos”. No sentido percebido por Gusmão a ideia de república não está relacionada a forma de governo, mas à noção de uma comunidade de interesse, na qual os sujeitos partilham finalidades comuns.

5- Alexandre de Gusmão escreveu, entre textos catequéticos, sermões e tratados para a educação e comportamento moral, um total de treze obras: Escola de Belém, Jesus nascido no presépio (Évora, 1678); Arte de crear bem os filhos na idade da Puericia (Lisboa, 1685); História do predestinado peregrino e seu irmão Precito (Lisboa, 1682); Sermão na catedral da Bahia de Todos os Santos (Lisboa, 1686); Meditação para todos os dias da semana (Lisboa, 1689); Meditationes digestae per annum e Menino cristão (ambos publicados em 1695); Rosa de Nasareth, nas montanhas de Hebron (Lisboa, 1709); Eleição entre o bem & mal eterno (1717); E as publicações póstumas O corvo e a pomba da arca de Noé e Árvore da vida (ambos publicados em Lisboa, 1734), Compendium perfectionis religiosea (Veneza, 1783) e Preces recitandae statis temporibus ab alumnis Seminarii Bethlemici (s.d., possivelmente em 1783).

6- Disponível em: https://digital.onb.ac.at/rep/osd/?10CE6E73. Acesso em: 2 mar. 2022.

7- Sobre o comércio de livros e livreiros, sugere-se consultar Neves (2002).

8- Este é o caso de Del Priore (1993).

9- Aqui vale destacar a obra de Algranti (1993).

10- Vale, aqui, destacar o panorama crítico esboçado pelo historiador Álvaro de Araujo Antunes (2015), acerca da produção sobre História da Educação na América Portuguesa, e os levantamento realizados por Denice Catani e Luciano Faria Filho (2005) e Thais Nivia de Lima e Fonseca (2009a), que constatam o reduzido percentual de trabalhos abrangendo o período entre o século XVI e XVIII nos anais dos principais eventos das áreas de História e História da Educação.

11- Ainda que se detenha em outra temporalidade, neste caso no oitocentos, é importante destacar o estudo de Mônica Yumi Jinzenji (2010) que identificou a circulação de impressos que divulgavam ações e conhecimentos sobre a mulher no contexto de relações entre Metrópole e Colônia na obra Cultura impressa e educação da mulher no Século XIX.

12- Norbert Elias (1993), na obra O processo civilizador, assinalou as incessantes prescrições de “decoro corporal externo” – postura, vestuários, expressões faciais – que eram amplamente publicadas através de tratados na Europa desde o final da Idade Média, buscando atender a uma necessidade de civilité da época.

13- De acordo com Perrot (1991), durante todo o século XVIII europeu operava-se uma forte distinção entre o que pertencia à esfera do público e aquilo que cabia à esfera do privado na vida das pessoas. Com a contrarrevolução, essa distinção transformou-se na definição dos papéis sociais, por exemplo, a diferenciação que colocou em oposição homens (como sujeitos públicos) e mulheres (assujeitadas ao modelo doméstico, portanto, privadas).

14- Como referência de estudo sobre o modelo de educação implementado pela Companhia de Jesus no processo das missões ultramarinas sugerimos Serafim Leite (1949).

15- A obra de Torres impressiona não só pelo volumoso tratado, cerca de 995 páginas acrescidas de apêndices, mas pelo tom discursivo de suas recomendações e prescrições para a boa criação e governo dos príncipes.

16- Em 2012, Maria Helena Câmara Bastos publicou na Revista História da Educação uma tradução dessa obra para o português. Ela localizou na Bibliothèque Nationale de France uma edição de 1852 traduzida supostamente por José Fonseca (também tradutor de Aventuras de Telêmaco). Nesse documento, Bastos acresce que a educação das mulheres, dirigidas por Fénelon, devia ser exclusivamente moral e particular, não coletiva, mas com finalidade pública, social. Não obstante, o principal propósito da educação feminina estava na habilidade de educar os filhos e governar o lar. Nessa finalidade, Fénelon denunciava a má influência de mães ignorantes e fúteis, a má companhia dos serviçais, que não seriam bons modelos, pois tornavam a criança indolente, insignificante, medrosa, mentirosa. Recomendava, então, uma educação atraente, virtuosa e equilibrada, a partir de bons modelos, preferencialmente aqueles propagados e compartilhados pelos cristãos. Distintamente de Alexandre de Gusmão, que, recorrentemente, enunciava a punição como método corretivo, Fénelon condenava o castigo e recomendava penas leves, aplicadas em circunstâncias que não provocassem na criança a vergonha ou remorso. A educação também deveria proporcionar distrações e alguns divertimentos, mas não recomendava que rapazes e moças ficassem juntos, tivessem saídas frequentes, muitas conversas, especialmente, com pessoas caracterizadas por má índole (BASTOS, 2012).

17 - Fénelon destaca a vigilância que os pais deveriam ter sobre o consumo de leituras proibidas, como os romances, ou da leitura de entretenimento.

18- Como sugestão de leitura indicamos: Ferreira (1988); Rogers e Thébaud (2010).

19- Em Ripe e Amaral (2017), caracterizamos a modernidade como sendo condição de possibilidade para a proliferação discursiva sobre a infância. Nessa ocasião apresentamos um conjunto de obras que foram publicadas e/ou traduzidas em Portugal, entre o final do século XVII e o século XVIII, que versaram sobre os cuidados relativos à infância. Tais produções impressas foram tomadas como tecnologias da subjetividade e, portanto, operaram efetivamente no processo de constituição do sujeito infantil moderno.

20- Publicado inicialmente em latim no ano de 1524 e em castelhano a partir de 1528.

21- Conforme a historiadora Leila Algranti (1993, p, p. 242), para Fleury seria “uma audácia” conferir para as meninas “outras disciplinas” que “lhes seriam inúteis”.

22- Santo Ambrósio configura, entre os santos, o de maior recorrência no tratado de Gusmão. Ao todo constatou-se dezessete narrativas aludidas a Santo Ambrósio.

23- De acordo com o Dicionário de Bluteau (1712, v, v. 6, p. 571), poldrinha refere-se a uma égua nova. Contudo, no contexto enunciado parece designar uma menina que é bonita.

24- Conforme Ripe e Amaral (2017), ao evocarem os textos dos escritores antigos, os autores do século XVIII exemplificam modelos de vidas virtuosas, destacando como as principais virtudes morais: a prudência, a justiça e a temperança. Da mesma forma, eram prestigiadas as atitudes virtuosas teológicas de fé, esperança e caridade, que, além de combater os possíveis vícios – o sujeito infantil, nesse período, era considerado como facilmente corruptível –, edificavam a educação espiritual e moral.

25- O significado de recamera, no contexto utilizado por Gusmão, refere-se a algum tipo de câmara interior e reservada. Também pode significar quarto de vestir ou guarda-roupa. Também citado na Bíblia, em Cantares 1.4, como o lugar onde podemos ter um contato íntimo e pessoal com Deus. Fonte: Dicionário Priberam da Língua Portuguesa. Disponível em https://www.priberam.pt/dlpo/rec%C3%A2mara. Acesso em: 2 ago. 2017.

26- Cabe destacar a exemplificação que Philippe Ariès (2012) arguiu ao descrever que o comportamento sexual das crianças era uma ideia recorrente que remontava desde o século XV, através do tratado De confissione mollicei, escrito por Gerson (1606) para auxiliar os confessores a promover, nos pequenos penitentes, o sentimento de culpa. Para Ariès as proposições que Gerson apresentou em seu tratado se aproximavam muito da doutrina moderna, pois não consideravam a criança como consciente de culpa. Nesse caso, um exemplo é que o onanismo seria um estágio inevitável da sexualidade. Ainda que se aproxime de uma ideia de inocência, Gerson na verdade promoveu uma “modificação dos hábitos da educação e do estabelecimento de um novo comportamento em relação às crianças”. Para Ariès seu regulamento é tão interessante, pelo ideal de moral que Gerson impunha, que se tornaria referência para os jesuítas e “dos irmãos da doutrina cristã e de todos os moralistas e educadores rigorosos do século XVII” (ARIÈS, 2012, p. 81-82).

Recebido: 16 de Maio de 2020; Revisado: 25 de Agosto de 2020; Aceito: 29 de Setembro de 2020

Fernando Ripe é doutor em educação pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), professor permanente nos Programas de Pós-Graduação em Educação (PPGE) e Educação Matemática (PPGEMAT), membro dos grupos de pesquisa: Centro de Estudos e Investigações em História da Educação (Ceihe/UFPel) e do Cultura e Educação nos Impérios Ibéricos da Universidade Federal de Minas Gerais (CEIbero/UFMG).

Giana Lange do Amaral é doutora em educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), professora titular da UFPel, coordenadora do Centro de Estudos e Investigações em História da Educação (Ceihe/UFPel) e bolsista de produtividade CNPq/PQ2.

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