Introdução
O esporte é um fenômeno sociocultural e um espaço educacional repleto de significados, trocas, encontros e confrontos ( RODRIGUES JÚNIOR; SILVA, 2008 ), sendo transformador para a vida dos participantes ( SANCHES; RUBIO, 2011 ). A prática e o ensino do esporte, que se expressam em diferentes âmbitos como a escola, o lazer e o alto rendimento ( MARQUES; GUTIERREZ; ALMEIDA, 2008 ), derivam de componentes socioculturais relacionados ao contexto em que este processo ocorre, assim como à bagagem cultural dos agentes envolvidos ( BARKER-RUCHTI; SCHUBRING, 2016 ; BARKER-RUCHTI et al ., 2016 ; COAKLEY, 2011 ).
Dentre inúmeras modalidades esportivas, o futsal é produto de um processo de transformações sociais e históricas, fruto de diferentes formas de apropriação pelos agentes envolvidos. Nota-se um processo de mudanças e influências que vem desde os jogos de bola com os pés, adaptados para quadras na década de 1930, até se tornar a modalidade esportiva denominada futsal no final dos anos 1980 e a constituição de sua forma contemporânea e espetacularizada no século XXI ( BERDEJO-DEL-FRESNO, 2014 ; MARQUES; MARCHI JUNIOR, 2019 ; MARQUES et al ., 2021 ; MOORE et al ., 2014 ; SANTANA, 2008a ; SCAGLIA, 2011 ).
No Brasil, o futsal é uma modalidade esportiva muito difundida, sendo a mais praticada em escolas ( VOSER; GIUSTI, 2015 ) e estando entre as quatro que mais envolvem adolescentes no lazer ( BRASIL, 2015 ). Muitos jovens brasileiros que sonham com uma carreira profissional no futebol, durante a adolescência, mudam para o futsal ( MARQUES et al. , 2021 ). No ambiente escolar, o futsal se apresenta em duas formas principais, na educação física curricular, e nas atividades extracurriculares ( OLIVEIRA, 2016 ; RICCI, 2018 ), neste estudo chamadas de práticas esportivas extracurriculares (PEEs) ( LETTNIN, 2005 ).
Compreendendo a escola como um espaço de proteção social para além da socialização ( SANTOS, 2019 ), cuidados com o direcionamento pedagógico são importantes, pois desigualdades na oferta de oportunidades de aprendizagem podem se refletir em outras esferas da vida dos(as) alunos(as) ( SILVA; AZEVEDO, 2018 ).
As PEEs são uma possibilidade de oportunizar, no ambiente escolar, a prática de diversas modalidades esportivas sob um contexto com sentidos diferentes da educação física escolar ( MARQUES; GUTIERREZ; ALMEIDA, 2008 ). Oferecem uma abordagem mais específica e aprofundada sobre o esporte, muitas vezes preparando alunos(as) para participarem de competições interescolares. Tais formas de prática geralmente ocorrem no contraturno das aulas regulares de educação física na escola, com objetivos que se aproximam em maior ou menor escala daqueles ligados às aulas curriculares ( LETTNIN, 2005 ; LUGUETTI et al ., 2015 ).
As formas como as PEEs ocorrem derivam principalmente da relação dialética entre as disposições e o sentido atribuído às mesmas pelos agentes envolvidos, e o contexto pedagógico da instituição escolar em questão ( OLIVEIRA, 2016 ). Tal configuração sociocultural, chamada de cultura de aprendizagem, direciona critérios e valores atribuídos a condutas ou conteúdos de ensino ( HODKINSON; BIESTA; JAMES, 2008 ), norteando questões relacionadas à competitividade e oportunidades de participação de diferentes alunos(as) em treinos e competições esportivas. As culturas de aprendizagem influenciam de forma diversa a constituição de disposições para práticas esportivas ( CUSHION; JONES, 2014 ), de modo a potencializar ou dificultar processos de aprendizagem e incorporação de uma cultura esportiva no cotidiano dos(as) alunos(as) ( BARKER; QUENNERSTEDT; ANNERSTEDT, 2015 ).
Neste contexto, qualquer atividade pedagógica envolve não apenas o ensino técnico-procedimental, mas também, de forma dialética, também questões éticas e de ordem sociocultural, inclusive seus resultados tendo íntima relação com as condições e bagagem cultural prévias dos(as) alunos(as) ( BLOOMER; HODKINSON; BILLETT, 2004 ; HODKINSON, 2005 ).
A ação pedagógica que conecta o desenvolvimento individual ao coletivo, quando organizada em um ambiente acolhedor e seguro, poderia proporcionar ações sociais de empoderamento sociopolítico juvenil, dimensão muitas vezes ignorada pelos programas esportivos ( COAKLEY, 2011 ). Assim, o(a) professor(a)/treinador(a), para além do ensino tático-técnico da modalidade esportiva, assume fundamental importância no direcionamento dos sentidos da prática e formas de apropriação do esporte pelo grupo de alunos(as) ( COAKLEY, 2017 ; CUSHION; JONES, 2014 ), influenciando assim as direções e constituição dos horizontes de aprendizagem ( BLOOMER; HODKINSON; BILLET, 2004 ). O sentido da ação pedagógica, neste contexto, deriva do objetivo e significado atribuído à prática por parte dos envolvidos ( BOURDIEU, 2004 ).
De forma aplicada ao ensino do esporte, especialmente no ambiente escolar, Marques, Gutierrez e Almeida (2008) propõem uma tipologia de sentidos para a prática que considera duas formas em especial:
sentido oficial, que exige um rendimento obrigatório de seus praticantes, sendo pautado na regulamentação, sistematização e universalização das regras, com o objetivo principal da busca pela vitória e comparação direta de desempenhos atléticos;
sentido ressignificado, que objetiva se adaptar e atender às necessidades de seus praticantes, considerando a ideia de um desempenho possível para seu engajamento na prática.
Ao serem ressignificados, os resultados das disputas colocam-se como secundários em relação à priorização das modificações estruturais da atividade, privilegiando a participação mais igualitária de todos os agentes envolvidos, de acordo com suas potencialidades e aspirações ( MARQUES; ALMEIDA; GUTIERREZ, 2007 ).
Na mesma medida, a inserção do esporte oficial no ambiente escolar pode causar um cenário de diferenciação de oferta de oportunidades de prática entre os(as) alunos(as) participantes, assim como uma maior valorização daqueles(as) que demonstrem melhor desempenho esportivo, em detrimento dos(as) que venham a ser considerados(as) como menos aptos(as) ( MARQUES; ALMEIDA; GUTIERREZ, 2007 ). O sentido oficial poderia dificultar, no ambiente escolar, a participação plena de alguns(as) alunos(as), assim como prejudicar a criação do gosto e disposição para a prática de esporte ( BALBINO et al ., 2013 ; SADI, 2013 ).
A ocorrência do sentido oficial pode ser ilustrada quando um(a) professor(a)/treinador(a) privilegia aqueles(as) alunos(as) considerados(as) como mais capazes de produzir um resultado competitivo ótimo, ofertando-lhes mais minutos de jogo do que outros(as) considerados(as) como menos capazes ( SADI, 2013 ).
Em um estudo sobre uma competição de futsal entre equipes de PEEs de escolas do interior do estado de São Paulo, foi verificado que os alunos recebiam de seus professores/treinadores oportunidades desiguais de participação durante os jogos. Tal cenário produzia não apenas uma distribuição irregular de oportunidades de prática, mas principalmente criava condições muito discrepantes de aprendizagem e desenvolvimento esportivo. No mesmo estudo, foi evidenciado que muitos jogadores ficavam praticamente a competição inteira no banco de reservas, sem atuar de forma ativa nos jogos, ou participando por muito pouco tempo ( RICCI; MARQUES, 2018 ).
A criança ou adolescente treina para jogar e participar ativamente das vivências esportivas disponíveis. Sem viver a experiência concreta de treinos e competições, não haverá condições de aprendizagem suficientes e adequadas para a melhoria do desempenho e da construção do gosto pela prática esportiva ( SANTANA, 2018 ).
O ensino do esporte sob um sentido oficial, como no exemplo descrito por Ricci e Marques (2018) , sugere uma prática na qual o banco de reservas poderia ser associado ao lugar dos fracassados, dos menos aptos e derrotados na concorrência por um lugar na equipe ( SANTANA, 2018 ). Em uma perspectiva ressignificada da prática esportiva, com maior revezamento entre os(as) alunos(as) participantes, este local poderia ser considerado como um lugar de transição, onde o(a) jogador(a) aguarda para entrar no jogo, e aquele(a) que está jogando entende que em algum momento cederá o seu lugar para outro(a) entrar, ou seja, um espaço de compartilhamento da oportunidade de participar ativamente do jogo. Ensinar esses valores sob um sentido ressignificado poderia ser considerado pelo(a) professor(a)/treinador(a) como tão ou mais importante do que ganhar o jogo ou ser campeão ( RICCI; MARQUES, 2018 ).
Diante deste problema ligado ao sentido da prática empregado por professores(as)/treinadores(as) em atividades de futsal nas PEEs escolares, e as possíveis decorrências educacionais das mesmas, as perguntas centrais deste trabalho foram: a) qual é o sentido da prática atribuído por professores(as)/treinadores(as) ao ensinar futsal no ambiente escolar extracurricular?; b) de que forma tais práticas são organizadas nestes contextos educacionais?
Frente a tais questionamentos, o objetivo deste estudo foi investigar e analisar as razões e sentidos de se ensinar futsal no ambiente escolar extracurricular, adotados por professores(as)/treinadores(as) de uma cidade do interior do estado de São Paulo.
Método
Este trabalho enquadra-se em uma abordagem qualitativa de investigação e, como opção metodológica, foi adotada a teoria fundamentada (TF), grounded theory no original em inglês ( CHARMAZ, 2009 ). A TF foi desenvolvida pelos sociólogos Barney Glaser e Anselm Strauss como alternativa à tradição hipotético-dedutiva da pesquisa qualitativa. Assim, a partir de divergências quanto a alguns dos procedimentos metodológicos, a TF assume três perspectivas metodológicas diferentes: a clássica, a straussiana e a construtivista ( SANTOS et al ., 2018 ).
A opção deste trabalho foi pelo uso da perspectiva construtivista, ancorada na construção de uma teoria baseada nos dados produzidos. As realidades e os fenômenos estudados são construções coletivas que respondem fortemente à tradição interpretativa ( CHARMAZ, 2009 ).
Os dados deste trabalho são oriundos de entrevistas semiestruturadas com sete professores/treinadores de futsal de escolas privadas de uma cidade do interior do estado de São Paulo. Os contatos iniciais e convites para participação no trabalho foram feitos diretamente com os professores/treinadores, que indicaram as datas e o local adequado para a realização das entrevistas.
Utilizaram-se os conceitos de amostragem inicial 4 e amostragem teórica 5 para a seleção e recrutamento dos participantes. A amostragem teórica orientou os caminhos conceituais até a conquista suficiente de informações para a explicação das categorias, resultando assim na saturação teórica, ou seja, na suficiência teórica para responder às perguntas deste trabalho ( CHARMAZ, 2009 ).
A amostragem inicial foi composta por três professores/treinadores que atendiam aos critérios iniciais. Após as três primeiras entrevistas, sentiu-se a necessidade de qualificar a amostra e os seguintes critérios foram definidos para a amostragem teórica: a) graduados em educação física; b) professores/treinadores de futsal de PEEs de alunos(as) do sexto ao nono ano do ensino fundamental; c) participação em pelo menos uma competição de futsal escolar entre os anos de 2015 e 2017 (de modo a garantir um grupo de participantes que compartilham de um mesmo contexto recente de competições); d) declaração de disponibilidade para participar do estudo.
Para assegurar maior homogeneidade em relação ao contexto de atuação pedagógica entre os participantes deste estudo, optou-se por entrevistar professores/treinadores atuantes em escolas privadas, que participassem de competições interescolares municipais. O Quadro 1 apresenta a caracterização dos professores/treinadores, identificados neste estudo como T1, T2, T3, T4, T5, T6 e T7 para preservar seu anonimato.
T1 | T2 | T3 | T4 | T5 | T6 | T7 | |
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Gênero | M | M | M | M | M | M | M |
Idade na data da entrevista | 27 | 49 | 29 | 44 | 29 | 55 | 46 |
Experiência como praticante de futsal | Lazer | Lazer | Lazer | Lazer | Lazer | Futebol de base | Futsal de alto rendimento |
Forma de atuação na escola | Curricular e PEEs | PEE s | PEEs | Curricular e PEEs | Curricular e PEEs | Curricular e PEEs | Curricular e PEEs |
Tempo desde a conclusão da graduação | 4 anos | 25 anos | 7 anos | 21 anos | 7 anos | 31 anos | 25 anos |
Tempo de experiência como professor/treinador de futsal | 8 anos | 22 anos | 3 anos | 19 anos | 4 anos | 23 anos | 20 anos |
Realizou curso de formação em futsal nos últimos cinco anos? | Sim | Não | Não | Não | Não | Não | Não |
Experiência como treinador fora do ambiente escolar | Futsal universitário | Futsal universitário | Não | Futebol de base | Não | Não | Não |
Fonte: Dados oriundos do estudo.
As entrevistas ocorreram de forma pessoal, individual e foram gravadas em áudio. Quando necessário, foi realizada uma segunda rodada de entrevistas para que pontos importantes ou ausentes na primeira intervenção fossem abordados de maneira mais satisfatória.
O processo de análise seguiu as orientações da TF construtivista ( CHARMAZ, 2009 ):
envolvimento simultâneo na coleta e na análise dos dados;
construção de códigos e categorias analíticas a partir dos dados e não de hipóteses preconcebidas;
utilização de método comparativo constante, que compreende a elaboração de comparações durante cada etapa de análise;
avanço no desenvolvimento da teoria em cada passo da coleta e da análise dos dados;
redação de memorandos para elaborar categorias, especificar as suas propriedades, determinar relações entre as categorias e identificar lacunas; amostragem dirigida à construção da teoria;
realização da revisão bibliográfica após o desenvolvimento de uma análise independente.
Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da universidade sede do último autor deste artigo. Cada participante recebeu e assinou o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para garantir o rigor e fidelidade dos dados produzidos, cada professor/treinador recebeu cópias das transcrições de suas entrevistas, de modo a revisarem, corrigirem e incluírem informações que julgassem necessárias.
Resultados e discussão
O conceito de teoria substantiva, interpretação teórica de um problema delimitado a uma área distinta ( CHARMAZ, 2009 ), é um ponto de convergência entre as três perspectivas da TF ( KENNY; FOURIE, 2015 ). Os resultados aqui apresentados, por meio da interface entre a pedagogia do esporte e a sociologia do esporte constroem, uma teoria substantiva com base nos dados. Tal processo é apresentado nesta seção em três grandes eixos temáticos (ETs), também contando com trechos dos discursos dos participantes e discussão com a literatura: 1) objetivos do ensino do esporte no ambiente escolar: a formação moral como contribuição relevante; 2) disposições dos professores/treinadores para a supervalorização do resultado esportivo; 3) a participação como um privilégio para poucos(as) alunos(as) com melhor aptidão para a competição.
ET 1: Objetivos do ensino do esporte no ambiente escolar: a formação moral como contribuição relevante
No eixo temático 1 encontram-se quatro principais categorias analíticas como resultados: a) as diferenças entre o ensino do esporte nas aulas curriculares e nas PEEs; b) o ensino do esporte nas PEEs não objetiva apenas uma aprendizagem tático-técnica, mas também moral; c) as PEEs podem ser observadas como o início da construção de uma cultura de prática e transformação de um estilo de vida ativo; d) o desenvolvimento do gosto e prazer pela prática esportiva é um objetivo prioritário em relação à formação de atletas.
Nota-se que os discursos dos professores/treinadores se encontram inicialmente relacionados a uma perspectiva ampla da educação esportiva, não vinculado, ao menos em termos idealizados e preliminares, a um sentido oficial da prática. Para os entrevistados, a diferença entre ensinar futsal nas aulas curriculares de educação física e nas PEEs existe e é bem estabelecida. Nas aulas curriculares, o direcionamento seria para uma aprendizagem introdutória do esporte. Neste contexto, os professores/treinadores indicam uma dificuldade muito grande para ensinar futsal. Eles consideram que a turma geralmente é muito numerosa, com pouco interesse em aprender e heterogênea (inclusive evidenciando algumas questões de discriminação de gênero que não serão aprofundadas neste momento por não serem o ponto central deste trabalho). Nas PEEs, os professores/treinadores indicam um ensino do futsal mais aprofundado, especialmente devido ao interesse dos(as) praticantes em aprender e se especializar nessa modalidade esportiva. Os relatos de T1 e T7 exemplificam esta comparação:
No [ensino do] futsal extracurricular, mais [atenção] com a parte tática, técnica, mais aprofundado. Na Educação Física [curricular], a gente dá uma introdução, tentando fazer mais a parte lúdica, com que eles se interessem pelo esporte mostrando as regras, que eles tenham mais conhecimento sobre o esporte, mas não tão aprofundado, como no extracurricular. (T1).
É muito diferente trabalhar no curricular em comparação ao treinamento [extracurricular]. No curricular é mais o básico mesmo, ensina passe, chute, entendimento das regras. No curricular estão juntos meninos e meninas e aí a gente não consegue especificar [o ensino] como no treinamento. (T7).
Estas colocações coadunam com o esperado para as aulas curriculares de educação física. Nestas, as crianças devem conhecer a diversidade de conteúdos da cultura corporal, e o esporte preferencialmente ensinado de maneira ampla ( LUGUETTI et al ., 2015 ). As falas dos participantes também são coerentes com o que se espera para os treinos extracurriculares. As PEEs podem possibilitar um aprofundamento de conhecimento e vivências das manifestações culturais esportivas ensinadas nas aulas de educação física curriculares ( LUGUETTI et al ., 2015 ).
Outro resultado de destaque neste primeiro eixo temático foi a relevância direcionada pelos professores/treinadores ao ensino de valores morais por meio do esporte. T2 e T5 exemplificam tais considerações:
O esporte é a melhor resposta que tem para a formação da pessoa como cidadã. (T2).
O esporte é uma ferramenta para o bom convívio em sociedade. Se você consegue conversar, se você consegue ter uma boa convivência, se você consegue ter disciplina dentro do jogo, as situações que a vida te proporcionar, você vai conseguir administrar melhor. (T5).
O esporte é um fenômeno sociocultural que, assim como qualquer outro, ensina valores, sendo marcado por uma polissemia que se distingue principalmente pelo sentido atribuído à prática ( MARQUES; ALMEIDA; GUTIERREZ, 2007 ). Observa-se nos participantes a preocupação em demonstrar uma dimensão ética de suas aulas, que extrapolam os aspectos técnicos e táticos da modalidade esportiva, tornando as pessoas mais capazes para as relações em sociedade. Tal perspectiva, em muitos momentos, manifesta discursos de cunho puritanos, salvacionistas e, consequentemente, utilitaristas sobre o ensino do esporte, reforçando o mito esportivo como solução para os males da sociedade ( COAKLEY, 2015 ). T7 exemplifica essa dimensão:
O menino que não faz esporte pode ir para as drogas. Quanto mais atividade física você conseguir inserir neste menino, eu acho que melhor vai ser para a formação dele. (T7).
Essa dimensão evangelizadora do esporte precisa ser avaliada cuidadosamente, pois destaca a crença de que a participação esportiva intrinsecamente já produziria um impacto positivo no praticante. No entanto, esta pode ser benéfica quando favorece a capacitação dos jovens para fazer escolhas com base em uma consciência crítica dos fatores que afetam negativamente suas vidas, possibilitando a mudança ( COAKLEY, 2017 ).
O esporte pode sim ensinar valores positivos, como também pode ensinar atitudes discriminatórias, segregacionistas e antiéticas em decorrência da relação construída de forma conjunta por professores/treinadores e alunos(as) associados ao sentido que é dado à prática ( CARON et al ., 2017 ; MARQUES; GUTIERREZ; ALMEIDA, 2008 ).
Outra dimensão que emergiu dos discursos, relacionada às contribuições do esporte para a formação moral e de hábitos dos alunos, pode ser exemplificada pela fala de T1 e diz respeito à constituição de uma disposição duradoura para a prática esportiva como produto da participação nas PEEs.
Treinar não para ser um craque no esporte, mas para nunca deixar de praticar. Quando chegar lá na universidade, que ele tenha interesse por algum esporte, disputar algum torneio, ou de jogar bola com os amigos, de ter uma vida mais ativa fisicamente também. (T1).
Os professores/treinadores reconhecem o potencial das PEEs para influenciar a constituição de um estilo de vida mais ativo. Neste sentido, todos os envolvidos estão inseridos em uma cultura de aprendizagem estruturada pelos próprios agentes, mas que também direciona não apenas conteúdos, como também questões morais relevantes ( HODKINSON; BIESTA; JAMES, 2008 ). Assim os direcionamentos pedagógicos podem favorecer as condições de aprendizagem de valores de maneira adequada e convergente às intenções iniciais ( COAKLEY, 2017 ; CUSHION; JONES, 2014 ; SANTANA, 2018 ).
O eixo temático 1 sugere que os professores/treinadores deste trabalho reconhecem o potencial do ensino do esporte para além dos aspectos técnicos e táticos. Consideram outros objetivos pedagógicos que não apenas o resultado esportivo ótimo, por exemplo, o potencial da prática esportiva para ensinar valores morais positivos e assim proporcionar um sentido diferente do oficial.
Nos eixos temáticos seguintes, quando os professores/treinadores descrevem com maiores detalhes as suas práticas pedagógicas, o sentido oficial surge como um direcionador de muitas ações. Associados à busca por um resultado esportivo ótimo em competições interescolares e com o ensino de valores morais não tão coerentes com os descritos por eles mesmos nas entrevistas.
ET 2: Disposições dos professores/treinadores para a supervalorização do resultado esportivo
No eixo temático 2 encontram-se três principais categorias analíticas como resultados: a) mesmo não sofrendo pressões por resultados ótimos em competições, os professores/treinadores os priorizam em suas ações pedagógicas; b) os pais dos alunos pressionam mais os professores/treinadores para conseguir resultados competitivos ótimos, do que os próprios membros da direção das escolas; c) a busca por resultados competitivos ótimos é parte da disposição e ação pedagógica dos próprios professores/ treinadores.
Ficou evidente pela estruturação das ações pedagógicas e pelas formas de gerenciamento das equipes dos professores/treinadores deste trabalho, certa disposição pela busca por resultados ótimos em competições interescolares. Isso ocorre mesmo diante da ausência de tais expectativas por parte da direção das instituições de ensino. De acordo com os próprios participantes, a direção da escola se preocupa mais com o comportamento dos(as) alunos(as) quando representam a escola do que com os resultados competitivos. T1 e T4 exemplificam esse cenário e T3 apresenta um contraponto, sendo o único dos sete entrevistados que manifestou sofrer algum tipo de pressão por parte da direção da escola por resultados ótimos em competições:
Da direção [da escola] eu tenho certeza que não [há pressão por resultados competitivos]. Esse não é o principal objetivo da escola. (T1).
A [direção da] escola quer que as crianças tenham disciplina e se comportem bem nas competições em outros locais. Porque é uma forma de mostrar a escola e seu comportamento, o ensino. (T4).
Às vezes tem uma premiação que é interessante para a escola, divulgação do nome da escola, eles [diretoria] priorizam muito isso […] a gente sofre uma pressão tanto da escola, quanto dos pais. (T3).
T3 sugere que o ambiente extracurricular esportivo permite ser interpretado como um local de desenvolvimento de equipes que representam o nome da instituição, sendo utilizadas como ferramentas de marketing para a divulgação da escola e captação de novos alunos ( LETTNIN, 2005 ). Porém, a predominante ausência de pressão por parte da direção das escolas poderia significar maior liberdade para os professores/treinadores organizarem seus objetivos de forma a não necessariamente direcionarem suas ações pedagógicas com o sentido principal de vencer os jogos em competições escolares.
Os pais dos(as) alunos(as), figuras de grande importância no esporte infanto-juvenil, também foram lembrados pelos participantes do estudo como agentes que participam da estruturação desta cultura de aprendizagem, influenciando o valor dado ao resultado competitivo, e consequentemente ao sentido da prática.
Os professores/treinadores descrevem uma boa convivência com os pais dos alunos, mesmo que estes pressionem mais do que a direção da escola por bons resultados competitivos. A fala de T2 exemplifica a sensação dos professores/treinadores deste estudo. T3 mais uma vez se apresenta como exceção e relata sofrer muita pressão por parte dos pais de sua escola.
O pai está ali e é o suporte para ele [aluno]. É o melhor alicerce que ele tem na vida, a presença do pai é imprescindível. (T2).
Os pais pressionam muito, então eles cobram muito isso dos filhos. E acaba cobrando mais ainda do professor. […] a gente se sente pressionado. (T3).
A participação dos pais de um praticante esportivo apresenta-se, por vezes, de forma paradoxal em relação aos processos de treino e competições. Significa um fator motivacional importante, de suporte, de apoio para a construção de uma relação agradável com o esporte. No entanto, quando exagerada, pode apresentar efeitos negativos ( GOMES, 2010 ; JORAND et al ., 2019 ).
O terceiro resultado deste eixo demonstra que mesmo diante de pouca pressão, e em alguns casos ausência de cobrança por resultados competitivos ótimos, os professores/treinadores sobrepõem esse objetivo diante de tantos outros que poderiam emergir no ambiente das PEEs. Neste caso, optam claramente pelo sentido oficial do esporte em detrimento do sentido ressignificado, por vezes contrariando muitos dos pressupostos ligados ao ensino de valores morais expressos por eles e retratados no eixo temático 1 deste estudo. T1, T4 e T6 exemplificam essa situação:
A maior pressão de ganhar, eu acho que vem de mim mesmo. De querer ganhar, de querer buscar. Mas sempre dentro de um limite. (T1).
Ganhar é importante, o primeiro colocado é importante, porque segundo ou terceiro não vale nada. Vice-campeão não vale nada. (T4).
Existe [pressão por bons resultados competitivos] com a gente mesmo. Em competição ninguém gosta de perder. (T6).
Pautar o processo pedagógico prioritariamente pela busca por vitórias, mesmo sendo a competição parte do processo de educação no campo esportivo ( MONTAGNER; SCAGLIA, 2013 ), poderia significar um reducionismo diante da complexidade que envolve o ensino de uma modalidade esportiva, especialmente no contexto escolar. Percebe-se que possibilidades pedagógicas mais vinculadas ao processo de desenvolvimento e oferta de oportunidades de aprendizagem igualitárias aos alunos ficam em segundo plano devido à busca pelo resultado esportivo ótimo. É preciso enfatizar que existem outros objetivos no esporte para além do referencial pautado apenas no desempenho e na aptidão física. Existem pressupostos pedagógicos que podem ser aproveitados, como superar os seus próprios limites, sentir-se bem, aprender a cooperar e vencer de maneira sustentável ( MONTAGNER; SCAGLIA, 2013 ).
ET 3: A participação como um privilégio para poucos(as) alunos(as) com melhor aptidão para a competição
No eixo temático 3 encontram-se três principais categorias analíticas como resultados: a) os professores/treinadores selecionam os(as) alunos(as) que possuem melhor aptidão esportiva; b) os professores/treinadores levam poucos(as) alunos(as) aos jogos e competições, de modo a não precisarem dar oportunidades de jogo a todos(as); c) ofertar menos oportunidades de participar dos jogos a alunos(as) considerados(as) com menor aptidão atlética é uma estratégia para melhorar as chances de vitória da equipe.
O eixo temático 3 descreve algumas ações pedagógicas realizadas pelos professores/treinadores que priorizam uma necessidade de vencer os jogos em detrimento de outros possíveis objetivos pedagógicos. Destaca-se o detalhamento, por parte dos participantes, dos critérios de seleção dos(as) alunos(as) para participação nas disputas em competições escolares, e sobretudo quando eles apresentam a maneira como realizam as substituições de jogadores(as) durante esses jogos. A oferta de oportunidades de participação igualitária a mais alunos(as) ou o oferecimento de participações mais equilibradas são opções desconsideradas.
T2 e T4 exemplificam um processo de seleção de alunos(as) atrelado à escolha daqueles(as) considerados(as) como melhores jogadores(as).
Procuro não trabalhar com muitos alunos justamente para evitar problemas na convocação, quando se trata de um grupo que treina para competições […] mas a nata, a cereja do bolo é, sem dúvida, a aptidão física para o futsal. (T2).
É aquele negócio, né ? “você não faz omelete sem ovos”. Não adianta, tem os melhores [jogadores]. Para quem entende de futsal, você sabe. (T4).
Expressões como “a cereja do bolo” ou “não se faz omelete sem ovos”, indicam que esses professores/treinadores privilegiam em suas seleções os(as) alunos(as) que em suas avaliações teriam maior capacidade para jogar futsal e obter bons resultados na competição. Quando se utiliza predominantemente o sentido oficial como princípio pedagógico, ocorre maior valorização da comparação objetiva de desempenhos, na concorrência e exclusão dos(as) tidos(as) como menos aptos(as), e no reconhecimento daqueles(as) que demonstram melhor capacidade, mesmo que ignorando sua história e oportunidades anteriores desiguais de aprendizagem e desenvolvimento esportivo ( RICCI; MARQUES, 2018 ).
Tal perspectiva acaba por transformar o espaço das PEEs não em um contexto de aprendizagem específico e aprofundado do esporte, mas, sim, em um momento de seleção e oferta de oportunidades de prática a uma elite esportiva da escola, algo que nos posicionamos de forma contrária neste trabalho. Tal posicionamento se dá desta forma, pois o sentido oficial expressado pelos discursos dos entrevistados, além de contradizê-los quanto aos sentidos de educação moral almejados por eles próprios (expressos no ET 1), acaba por apresentar um contexto pedagógico pautado na exclusão de muitos(as) e legitimação de poucos(as) alunos(as) como esportistas. O esporte neste contexto, quando utilizado apenas para alcançar resultados esportivos ótimos, está sendo apresentado de forma demagógica ( SANTANA, 2008b ).
Além disso, os professores/treinadores evidenciam que levam menos jogadores(as) para as competições, justamente para não precisar realizar substituições que possam colocar em risco o objetivo principal do resultado esportivo ótimo. Outros trechos destacados das falas dos professores/treinadores reforçam a preocupação em selecionar apenas os(as) considerados(as) bons(boas) jogadores(as) para as competições.
Como é que você vai levar um menino que não tem condição, só por levar? (T4).
Então eu vou sentindo a turma. Eu procuro chamar o menos possível [de alunos], para poder competir melhor. (T5).
Na competição, nem sempre a gente pode colocar todo mundo [para jogar]. Quem manda no time sou eu. (T7).
A descrição dos modos de seleção de alunos(as) para jogos e campeonatos coloca a busca pelo resultado e conquistas esportivas no centro das razões e objetivos de ensinar futsal neste contexto das PEEs. É possível considerar que esses professores/treinadores tenham também preocupações com as demandas formativas, mas observa-se que estas parecem seguir em um segundo plano, principalmente nos momentos de competição. O que se espera de um professor/treinador atuante nas PEEs é o ensino de uma modalidade esportiva direcionada a todos, independentemente do nível de habilidade que a criança apresente. Afinal, trata-se do ensino do esporte em um ambiente escolar. As oportunidades de aprendizagem poderiam ser menos restritas nesse contexto.
Os discursos dos participantes também evidenciam que não realizam substituições que coloquem em risco o resultado ótimo na competição. Eles descrevem que ou não realizam tais substituições, ou as fazem quando o resultado do jogo já parece estar definido, mais uma vez demonstrando a centralidade do sentido oficial da prática esportiva. Um trecho da fala de T1 ilustra essa situação:
Se tiver algum jogo em que você ou está ganhando de muito [grande diferença no placar], ou perdendo de muito, você consegue colocar todos [os(as) jogadores(as)] para jogar. Sempre tem aqueles que jogam mais [tempo], que são aqueles que têm uma qualidade técnica melhor, uma melhor compreensão do jogo, que já estão comigo por mais tempo. Eu costumo falar com eles assim: “esteja preparado para jogar ou os 30 minutos ou os 30 segundos do jogo”. (T1).
Os critérios de seleção indicam um processo de reprodução social sempre favorecendo os(as) mesmos(as) alunos(as) a se desenvolverem mais através das experiências esportivas práticas, tanto nos treinos quanto nas competições. Em outras palavras, um processo de legitimação da desigualdade de acesso a oportunidades de aprendizagem esportiva, semelhante à descrita por Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron (2013) sobre o contexto da educação francesa na década de 1960.
Uma consequência desta relação é a “causalidade do provável” ( BOURDIEU, 2015 ). Esse conceito considera que os agentes sociais se constituem culturalmente por meio de seus esquemas de percepções e de apreciação, e admite que as aspirações e expectativas subjetivas de um agente social se constituem em função de condições objetivas pelas quais estão envolvidos ( BOURDIEU, 2012 ). Essas experiências configuram suas esperanças individuais que lhes permitem fazer ou não escolhas concretas, pleiteando assim uma trajetória de vida mais provável para seu perfil social ( BOURDIEU, 2015 ). Diante de suas expectativas, os agentes diferem em relação aos ganhos esperados com a prática esportiva ( RIAL, 2008 ; SOUZA et al ., 2008), o que influencia a construção de seus horizontes de ação ( HODKINSON; BIESTA; JAMES, 2008 ).
Neste contexto, a maioria dos(as) alunos(as) das PEEs orientados(as) pelos professores/treinadores participantes deste estudo pode estar submetida a um processo de oportunidades desiguais de participação e aprendizagem esportiva. Além disso, incorporam expectativas e percepções de legitimação ou deslegitimação de seu potencial e de participação no esporte, assumindo sua posição de protagonista ou ocupante do banco de reservas.
Considerações finais
O objetivo deste estudo foi investigar e analisar as razões e sentidos de se ensinar futsal no ambiente escolar extracurricular, adotados por professores(as)/treinadores(as) em uma cidade do interior do estado de São Paulo.
As respostas às questões centrais indicam um cenário preocupante no qual o sentido oficial do esporte é preponderantemente utilizado pelos professores/treinadores participantes do estudo em suas atividades pedagógicas nas PEEs.
Chama a atenção que esses professores/treinadores conhecem, em alguma medida, ações mais apropriadas para o contexto das PEEs, expressas em seus discursos relacionados à formação moral e de constituição de hábitos de prática esportiva, principalmente expressos no eixo temático 1 deste estudo. No entanto, ao exercer o trabalho cotidiano de ensinar futsal, eles acabam cedendo aos valores mais associados ao sentido oficial da prática esportiva, principalmente vinculados à conquista do resultado competitivo ótimo, e às ações de exclusão e oferta desigual de oportunidades de aprendizagem atreladas a esse sentido da prática.
O sentido oficial da prática esportiva indica uma série de requisitos obrigatórios que o(a) praticante precisa se adaptar para assim conseguir participar. Sua principal característica é identificar a prática esportiva como um lugar para poucas pessoas, nomeadamente aquelas consideradas como mais aptas. Tal perspectiva em pouco contribui para a constituição de disposições para a prática esportiva para toda a vida.
Não é nossa intenção desvalorizar o sentido oficial do esporte, sendo este muito adequado, por exemplo, ao contexto de alto rendimento. A ideia não é difundir um discurso estereotipado essencialmente negativo. A crítica que se faz neste trabalho habita na incoerência entre o sentido oficial e o ambiente escolar, especialmente diante das perspectivas educacionais idealizadas e manifestadas pelos professores/treinadores, em especial no primeiro eixo temático. O que se questiona é a que consequências se expõem crianças e adolescentes envolvidos com as PEEs diante da reprodução desse sentido. Quantos(as) alunos(as) gostariam de participar e são excluídos(as)? Quantas possibilidades diversificadas de se promover o esporte ficam preteridas? Quantos(as) não chegaram nem a receber a oportunidade de participar de treinamentos e competições? Como desenvolver o gosto pela prática esportiva de forma ampla entre os(as) alunos(as) neste contexto?
Trabalhar pela inclusão do máximo possível de alunos(as) nas atividades das PEEs não significa dizer que todos queiram ser incluídos da mesma maneira, ou participar da mesma forma. No entanto, é preciso ampliar as possibilidades daqueles que desejam uma participação plena neste contexto. Este grave problema precisa ser enfrentado por todos os agentes envolvidos com o ensino do esporte no contexto das PEEs.
Uma alternativa a essa perspectiva é a utilização do sentido ressignificado, principalmente por possibilitar outros objetivos que superam a centralidade do resultado ótimo. Ao adequar a prática esportiva ao praticante, ressignificando as atividades, adaptações são permitidas, inclusive de regras em jogos nos treinos e nas competições. Tais medidas valorizam outros aspectos e não apenas vencer jogos interescolares. Esta abordagem alternativa pode ampliar as possibilidades de mais pessoas se envolverem com o esporte de maneira mais igualitária e bem-sucedida.
Observou-se que os professores/treinadores entrevistados, em um primeiro momento, até indicam em seu discurso, possivelmente enviesado por uma perspectiva tida como politicamente correta e atrelada ao mito salvacionista do esporte, que o ensino do futsal nas PEEs seria pautado pela promoção do gosto pela prática esportiva, ao mesmo tempo que contribui para o ensino de valores morais positivos, como a solidariedade, o senso de coletividade, o respeito ao próximo. O ensino do futsal então teria uma intenção prioritária em formar um(a) bom(boa) cidadão(ã), capacitado(a) com valores que o esporte ensina. No entanto, com o aprofundamento das perguntas e respostas, os professores/treinadores demonstram que em sua prática pedagógica baseiam-se no sentido oficial do esporte. Nota-se uma disposição própria em vencer e ser campeão como pontos de grande importância em suas intervenções, mesmo que tais objetivos estejam desalinhados aos da maioria das escolas em que trabalham.
Essa preocupação central com a vitória fica muito evidente quando os professores/treinadores descrevem as formas de seleção e convocação dos(as) alunos(as) para as disputas de campeonatos. Eles organizam suas equipes, cobram bons desempenhos de seus(suas) alunos(as) e percebem o seu sucesso baseado nos resultados esportivos vinculados a vitórias em competições escolares. A prioridade de escolha é nitidamente voltada àqueles que possivelmente favoreceriam o alcance de vitórias. Isso provoca uma participação diferenciada e desigual dos(das) jogadores(as). A oferta desigual de oportunidades de práticas não favorece o desenvolvimento de todos(as), assim alguns(as) se tornam privilegiados, e muitos(as) excluídos(as) da prática, evidenciando um processo de reprodução que aumenta a diferença de desempenho entre os que têm mais oportunidades de aprendizagem em decorrência de uma melhor aptidão e os que recebem menos possibilidades de aprendizagem e desenvolvimento de suas capacidades.
Para se atingir uma participação e oportunidades mais igualitárias, seria necessária uma desconstrução do foco prioritário pela busca do resultado esportivo ótimo neste contexto. Isso seria decorrente de um processo de formação de professores/treinadores sensíveis às diferenças de ambientes de prática e à ressignificação do sentido das mesmas. Ao mesmo tempo, passa também pela conscientização de pais e diretores de escolas do que realmente representa, ou poderia representar, o contexto das PEEs, que ao mesmo tempo se diferencia das aulas de educação física curriculares, e também do ambiente esportivo vivenciado nos clubes. Encontrar essa medida de equilíbrio é uma missão árdua para os(as) professores(as)/treinadores(as) de PEEs. Isso demanda uma boa formação teórica e sensibilidade para perceber o contexto em que a prática ocorre, assim como as necessidades dos(as) alunos(as).
Este trabalho, favorecido pelo uso da TF, que permitiu uma construção recíproca entre o pesquisador e os professores/treinadores com base nos dados oriundos dos discursos dos participantes, promoveu um encontro entre a sociologia e a pedagogia do esporte, permitindo um diagnóstico do contexto social e a possibilidade de sugestões para intervenções práticas.
Recomenda-se uma revisão do sistema de competições escolares para que regras que permitam uma maior participação de interessados sejam adaptadas. Assim ampliam-se as possibilidades e o compromisso do indivíduo aprender e se transformar por meio da competição esportiva. Acrescenta-se a necessidade de momentos que promovam a reflexão sobre o potencial educativo das PEEs, seja na graduação em educação física, em cursos de formação continuada, ou em congressos técnicos prévios às competições.
É preciso considerar a importância da integração entre as medidas, pois possíveis adaptações e mudanças nas regras das competições só teriam efeitos positivos se associados a uma mudança na perspectiva do sentido da competição para os agentes envolvidos.
Este trabalho foi realizado em um contexto específico e em relação à prática do futsal. Isso se coloca como uma virtude, pois ouviu os professores/treinadores, responsáveis pela condução pedagógica das PEEs. Por outro lado, tal característica coloca-se como uma limitação deste estudo, pois seus resultados não podem ser generalizados para outros ambientes. Deste modo, sugere-se como possibilidades de estudos futuros, a realização de investigações também no contexto das escolas públicas, ou envolvendo outras modalidades esportivas presentes nas PEEs.