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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 03-Jun-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248239195 

Artigos

Contribuições da teoria histórico-cultural para a compreensão das questões raciais na educação escolar

Contributions of cultural-historical theory to the understanding of racial issues in school education

Edmundo Fernandes Souza Filho1 
http://orcid.org/0000-0003-4160-7901

Edna Martins1 
http://orcid.org/0000-0003-2795-1503

1- Universidade Federal de São Paulo, Guarulhos, SP, Brasil. Contatos: edmundo.fernandes@unifesp.br; edna.martins@unifesp.br


Resumo

Este trabalho discorre sobre as contribuições da teoria histórico-cultural para a discussão das questões raciais no âmbito da educação escolar. Para tanto, aborda pontos relacionados com a constituição do sujeito, a importância da linguagem e a produção de sentido e significado, a partir de autores contemporâneos que estudaram a perspectiva vigotskiana. O estudo de natureza teórica procura contextualizar o pensamento de Vigotski relacionando conceitos de sua obra com a problemática do racismo e da discriminação racial, estruturantes das relações sociais no Brasil. No intuito de apresentar uma psicologia capaz de dar luz às questões raciais, busca-se nos fundamentos da teoria histórico-cultural e de seus interlocutores um aporte para o entendimento das concepções de desenvolvimento humano e o papel das relações étnico-raciais na formação da subjetividade, especialmente da população negra. Discutem-se também os impactos do racismo estrutural brasileiro no processo de subjetivação humana, tomando a área da educação como um dos âmbitos capazes de contribuir para a perpetuação do preconceito racial, ao mesmo tempo que possibilita o aparecimento de iniciativas para a resolução dessa problemática. Constata-se que a teoria histórico-cultural pode constituir-se como fundamento basilar para a compreensão das múltiplas relações raciais que estruturam os espaços educacionais, permitindo o entendimento dos significados e sentidos elaborados pela população a respeito do lugar das pessoas negras numa sociedade em que imperam as desigualdades entre brancos e não brancos.

Palavras-Chave: Relações étnico-raciais; Teoria histórico-cultural; Lev Semenovich Vigotski; Racismo; Educação

Abstract

This paper focuses the contributions of cultural-historical theory to the discussion of racial issues in the context of school education. Therefore, it addresses points related to the constitution of the subject, the importance of language and the production of sense and meaning, based on contemporary authors who studied the Vygotskian perspective. The theorical study seeks to contextualize Vigotski’s thought by associating concepts of his work to the problem of racism and racial discrimination, which structure social relations in Brazil. In order to present a psychology capable of enlightening racial issues, it seeks, in the foundations of the historical-cultural theory and its interlocutors, a contribution to the understanding of the conceptions of human development and the role of ethnic-racial relations in the formation of subjectivity, particularly in the black population. The impacts of Brazilian structural racism on the process of human subjectivation are also discussed, taking education as capable of contributing to the perpetuation of racial prejudice, while enabling the emergence of initiatives to resolve this problem. It appears that the cultural-historical theory can be constituted as a basic foundation for understanding the multiple racial relations that structure educational spaces, allowing the understanding of meanings and senses elaborated by population regarding the place of black people in a society in which inequalities between white and non-white people prevail.

Key words: Ethnic-racial relations; Cultural-historical theory; Lev Semenovich Vigotski; Racism; Education

Introdução

O escravismo da população negra no território brasileiro teve início por volta da década de 1530 e perdurou legalmente até 1888. Com o passar do tempo, desde o período colonial, a escravatura passou por momentos de instabilidade que culminaram na sua completa derrocada. Com a revogação oficial da escravidão, um grande contingente de pessoas negras, antes escravizadas, não encontrou condições mínimas para o exercício da cidadania numa sociedade caracteristicamente racista e preconceituosa. Ainda hoje, o Brasil permanece como o “país da segregação racial não declarada” ( DOMINGUES, 2005 , p. 165), no qual a população negra sobrevive em condições de vulnerabilidade social e marginalidade.

Em 2014, mais da metade da população do país declarou ser de cor/raça preta ou parda (53,6 por cento), enquanto as pessoas que se declararam brancas somaram 45,5 por cento ( IBGE, 2015 ). Entretanto, disparidades entre brancos e negros podem ser verificadas em diversos indicadores socioeconômicos. No que se refere ao ensino superior, por exemplo, em 2012 as taxas de escolarização de negros (9,6 por cento) foram expressivamente inferiores às de brancos (22,2 por cento), conforme análise do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada ( IPEA, 2014 ).

O estudo sobre o tratamento recebido historicamente por determinadas parcelas da sociedade, bem como da perpetuação das desigualdades, ocupa papel de destaque nas discussões educacionais, uma vez que o fracasso escolar, por muitas décadas, foi tomado como instrumento de culpabilização da classe trabalhadora. De acordo com Patto (2015) , a escola, ao não reconhecer seu insucesso na função de educar, responsabiliza de modo singular as famílias pobres e negras, o que contribui para a marginalização dos estudantes provenientes desses grupos familiares. As teorias raciais identificadas pela autora, e sancionadas inicialmente por diferentes áreas do conhecimento, repercutem fortemente nos modos de funcionamento dos diversos setores da sociedade brasileira, com destaque para a educação.

Estudos de Guimarães (2003) , Munanga (2004) e Bastide (2008) evidenciam a exclusão do negro no sistema de ensino e os obstáculos vivenciados na escolha de uma profissão e inserção no mercado de trabalho. Historicamente, os ambientes educacionais têm se constituído em campos propícios para a manifestação de atitudes discriminatórias decorrentes de diferenças étnico-raciais e para a preservação das injustiças sociais, gerando maiores obstáculos para a população negra e acesso diferenciado às oportunidades. Humilhações frequentes acabam por reforçar um ciclo de derrotas e muitas vezes são tratadas com omissão pela instituição escolar ( MARTINS; GERALDO, 2013 ). Os silenciamentos contribuem para a invisibilidade do racismo e reavivam o mito da “democracia racial” ( FERNANDES, 2008 ).

Muitos acontecimentos percebidos nos espaços educacionais demonstram a existência de um problema racial vivenciado pelos educandos negros, permitindo a constatação de que o âmbito escolar, por meio de práticas irrefletidas e sutis, propicia aos estudantes negros e aos estudantes brancos oportunidades diferenciadas e discrepantes de desenvolvimento social, educacional e cognitivo. Tais distinções tendem a contribuir para a perpetuação das desigualdades sociais.

Em relação aos percursos educacionais, Souza Filho (2018) afirma que as diversas ocorrências marcadas pela discriminação racial, nos âmbitos social e educacional, afetam singularmente as trajetórias acadêmicas de negros e negras. Além dos impactos na formação da subjetividade, na construção da autoimagem e autoestima, assim como na autoafirmação e constituição da identidade negra, as consequências do racismo podem ser determinantes para a continuidade ou desistência dos estudos, para o estabelecimento de uma relação positiva ou negativa com a educação formal e para a realização de escolhas profissionais.

Outro ponto importante pode ser localizado em Duarte (2004) que, ao estudar a obra de Leontiev, discute a criação de obstáculos à apropriação cultural como uma das formas de alienação que podem cercear o desenvolvimento da personalidade humana. Em virtude do regime de acumulação capitalista, muitos indivíduos, classes e grupos, ficam alijados de se apropriarem da cultura, o que resulta na desigualdade entre os seres humanos.

Como a base do desenvolvimento cognitivo e afetivo encontra-se, sobretudo, na infância, é necessário que as condições sejam adequadas para que o desenvolvimento transcorra de forma plena e saudável. Todavia, percebe-se que, para os indivíduos pretos e pardos, as circunstâncias a que estão submetidos afetam negativamente os percursos de seu desenvolvimento. Os efeitos do preconceito e da discriminação racial, na vida cotidiana e educacional, atuam como complicadores no desenvolvimento da sua personalidade e subjetividade.

Para Vigotski (2007) , as relações sociais são fundamentais na formação do indivíduo. Apesar de o autor não ter produzido discussões acerca das questões étnico-raciais, suas ideias a respeito do desenvolvimento humano, especialmente em relação à linguagem e às interações sociais como condições humanizadoras, podem contribuir de maneira significativa para a compreensão desse fenômeno em seus diversos aspectos ( MARTINS; GERALDO, 2013 ).

Leontiev (2004) traz algumas discussões que oferecem subsídios para o campo das questões étnico-raciais e indica como a teoria histórico-cultural, baseada numa concepção marxista, visualiza este fenômeno. O autor afirma que os caracteres e aptidões propriamente humanos não são adquiridos por hereditariedade biológica. Essa aquisição ocorre por meio do processo de apropriação da cultura produzida pelas gerações anteriores. Assim, segundo a concepção de homem apresentada, independentemente da etnia, todas as pessoas detêm as disposições geradas no período de constituição do homem e que possibilitam – quando verificadas as circunstâncias requeridas – a efetivação do processo de humanização.

Pode-se afirmar, assim, que o processo de formação do ser humano é marcado pelo contexto histórico e pela singularidade das relações que os indivíduos estabelecem, ou a que estão submetidos. Desse modo, são pontos essenciais na constituição do ser humano a história da espécie, a história do indivíduo, o contexto cultural, a historicidade do psiquismo de cada sujeito e suas particularidades: “ao se apropriar da cultura e de tudo o que a espécie humana desenvolveu – e está fixado nas formas de expressão cultural da sociedade – o homem se torna humano” ( MORETTI; ASBAHR; RIGON, 2011 , p. 478).

Nesse sentido, o contexto relacional promovido pela escola é determinante para que o indivíduo se perceba como membro de um grupo social e parte do mundo que o circunda. Além disso, a maneira como esse indivíduo é tratado nas interações estabelecidas influencia na construção de uma autoimagem positiva ou negativa, base para a formação da identidade. Do mesmo modo, nas interações sociais, acontece a apreensão de comparações de estrato social e de raça que dizem respeito a conceitos socialmente aprovados. Contudo, estudos apontam que as crianças negras, desde os anos escolares iniciais, vivenciam problemas decorrentes de seu pertencimento racial ( CAVALLEIRO, 2004 ; SILVA, V., 2002).

Ao discutir os impactos da realidade discriminadora e preconceituosa que se originam nas relações interpessoais das quais os estudantes negros participam no interior das escolas e que contribuem para uma ordem social desigual e injusta, Vera Lúcia Neri da Silva (2002) destaca a relevância do conhecimento acerca das origens sociais do desenvolvimento humano e da criação de uma pedagogia que objetive a superação de atitudes, valores, preconceitos e comportamentos racistas aprendidos.

Considerando que a teoria histórico-cultural postula o caráter mediatizado do psiquismo, tendo como premissa fundamental que a relação dos homens com a natureza ocorre de maneira mediada por objetos imateriais e materiais criados ao longo da história da humanidade, este trabalho propõe reflexões sobre a problemática referente à constituição da subjetividade defendida na obra vigotskiana e o papel da educação no que tange às concepções de desenvolvimento humano, especialmente de crianças e jovens negros. Para tanto, a partir de interlocuções com autores da Psicologia Histórico-Cultural, busca aproximações entre o campo das relações étnico-raciais e os conceitos de sentido, significado, internalização, apropriação, dentre outros, na compreensão dos aspectos que compõem a complexidade e a multideterminação humana.

Pressupostos da teoria histórico-cultural e aproximações com o campo das relações étnico-raciais

O pressuposto da origem social das funções psíquicas, apresentado por Vigotski (2007) e Leontiev (2004) , representa a suposição basilar da Psicologia Histórico-Cultural e reflete uma importante mudança de rumo na ciência psicológica ( PINO, 1993 ). O método materialista histórico e dialético que fundamenta essa abordagem possibilita estudar todos os fenômenos como processos dinâmicos em constante movimento e mudança. Desse modo, de acordo com Vigotski, encontra-se na sociedade e na cultura a origem dos mecanismos de mudança de cada indivíduo ao longo de seu desenvolvimento.

Destarte, o passado escravocrata do país, o “racismo cordial” típico da sociedade brasileira, as práticas discriminatórias silenciadas, os símbolos e as características negativas associadas à cor negra e impregnadas na linguagem, a forma como as contribuições da cultura africana são retratadas ou omitidas nos livros didáticos, os condicionantes e determinantes históricos que geram barreiras impeditivas e condições não equânimes são aspectos fundamentais no estudo das questões étnico-raciais e das desigualdades entre negros e brancos, uma vez que as relações sociais nas quais o indivíduo está envolvido “podem explicar seus modos de ser, de agir, de pensar, de relacionar-se” ( SMOLKA, 2000 , p. 30).

Sobre este aspecto, Zanella et al. (2007) , ao refletirem sobre os princípios metodológicos presentes nas obras de Vigotski, identificam a “busca dos sentidos” como uma unidade de análise da teoria histórico-cultural. Nessa abordagem, quaisquer análises devem considerar as relações estabelecidas, as circunstâncias dessas relações, as condições de possibilidade de cada sujeito e o contexto histórico.

O conceito de sentido aparece inicialmente na obra de Vigotski, quando o autor investiga as relações entre o pensamento e a linguagem. Posteriormente, o conceito é apropriado por Leontiev, que o chama de “sentido pessoal”, relacionando-o à atividade e consciência humana ( ASBAHR, 2014 ). Ao discutir essa questão, Vigotski (2009) diferencia sentido e significado, indicando a relação entre esses conceitos. Conforme seu ponto de vista, o sentido é marcado pela dinamicidade e fluidez, enquanto o significado apresenta certa estabilidade:

[…] o sentido é sempre uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem várias zonas de estabilidade variada. O significado é apenas uma dessas zonas do sentido que a palavra adquire no contexto de algum discurso e, ademais, uma zona mais estável, uniforme e exata. Como se sabe, em contextos diferentes, a palavra muda facilmente de sentido. O significado, ao contrário, é um ponto imóvel e imutável que permanece estável em todas as mudanças de sentido da palavra em diferentes contextos. ( VIGOTSKI, 2009 , p. 465).

A partir da teoria histórico-cultural, o conceito de sentido pode ser entendido como “acontecimento semântico particular” ( BARROS et al , 2009 , p. 180) gerado por meio de relações sociais, nas quais uma multiplicidade de signos é colocada em jogo, circulando nos diversos contextos em que o sujeito está inserido. Isso possibilita o surgimento de processos de singularização por meio de uma gama de interações constituídas histórica e culturalmente.

A maneira como o sujeito se apropria de certas significações – ou como não realiza tal apropriação – depende do sentido pessoal que tenha para o indivíduo. Segundo Duarte (2004 , p. 53-54) a resposta para o questionamento sobre o que conecta a ação de um sujeito ao motivo dessa ação, ou seja, o que dá sentido à sua atividade “são as relações sociais existentes entre ele e o restante do grupo ou, em outras palavras, é o conjunto da atividade social. Somente como parte desse conjunto é que a ação individual adquire um sentido racional”.

Dessa forma, o modo como os sentidos são constituídos pelos estudantes negros pode oferecer pistas para chegar ao entendimento acerca da relação que esses alunos estabelecem com o estudo e das relações que se estabelecem no interior da escola. Entende-se também que, diante da temática racial, o sentido pessoal atribuído à atividade de estudo por tais estudantes pretos e pardos pode ser perpassado pelas vivências decorrentes das questões étnico-raciais presentes na sociedade de um modo geral. Sendo assim, é clara a necessidade de se identificar as especificidades das relações que marcam as trajetórias educacionais da população negra, bem como as histórias individuais de estudantes pretos e pardos, com vistas ao entendimento dos sentidos atribuídos ao processo educacional, às expectativas para o futuro universitário e aos projetos de vida.

Outro ponto fundamental para a discussão sobre os significados sociais e sentidos pessoais é o fenômeno da alienação, questão central na obra de Leontiev. Apesar de não ser um traço ontológico do ser humano, o aspecto da alienação precisa ser considerado na constituição do psiquismo, uma vez que se trata de um elemento formador da consciência, da atividade e da personalidade ( ASBAHR, 2005b ). Conforme a teoria histórico-cultural, existe uma relação entre a atividade humana e a formação da consciência, tanto na perspectiva de uma formação alienante da consciência quanto na perspectiva de uma formação humanizadora.

As categorias consciência e atividade apresentam uma vinculação íntima e constituem uma unidade dialética, o que resulta na interconexão, na regulação mútua e na impossibilidade de separar essas dimensões. Como produto subjetivo da atividade dos homens com os objetos e com outros homens, a consciência tem a atividade como substância, fazendo com que o estudo da consciência passe pela investigação das especificidades da atividade. Estreitamente ligada à atividade, a consciência não se restringe ao mundo interno, pois é resultado das relações do sujeito com outros homens e com o ambiente que o circunda.

De acordo com Leontiev (2004) , em etapas pregressas da evolução humana, significado social e sentido permaneceram unidos, coincidindo de certa maneira, o que caracteriza o desenvolvimento da consciência primitiva. Todavia, na sociedade de classes contemporânea, marcada pela divisão do trabalho intelectual e manual e pela propriedade privada dos meios de produção, a estrutura da consciência passa por uma transformação importante na qual os significados sociais e sentidos pessoais deixam de ser coincidentes e se tornam contraditórios, provocando uma cisão entre eles. Tal incongruência entre significados e sentidos é denominada de alienação.

Em consonância com os objetivos deste estudo, interessa refletir acerca da relação entre o fenômeno da alienação e o racismo. Uma análise breve permite perceber que a formação social escravista se caracterizou pela exploração do trabalho alheio pela classe dominante, influenciando a acumulação e concentração de capital. Assim, a exploração do homem pelo homem se dava no colonialismo de forma evidente. O racismo, como consequência da escravidão, serviu como justificativa para a utilização sistemática do trabalho escravo africano nas colônias e contribuiu para estabelecer o capitalismo como sistema mundial.

Uelber Barbosa Silva (2012) apresenta o racismo como expressão da alienação. Neste sentido, para a compreensão do primeiro é preciso entender o homem como ser de natureza social, constituído por meio do trabalho. Segundo o autor, ao longo da história surgiram justificações de natureza política, cultural e ideológica, como o racismo, a fim de oferecer uma explicação e defender o regime escravista para a apropriação e acumulação de riquezas. A alienação racional, posta pelo advento do capitalismo, se manifestou em “mecanismos ideológicos com teorias racistas produzidas para manter sob controle as populações negras submetidas ao trabalho alienado e em condições de desigualdade social” (SILVA, U., 2012, p. 95). Nessa perspectiva, o racismo apresenta-se como fenômeno desumanizado e conduzido pela ideologia burguesa.

Questões étnico-raciais e formação da subjetividade: o papel dos contextos social e educacional

Em sua discussão acerca do desenvolvimento humano, Vigotski tem como tema principal o processo de interação social. Como ideia fundamental, destaca que o alicerce do desenvolvimento são as relações interpessoais. As funções mentais superiores são formadas socialmente, o que possibilita a constituição do ser humano, que se apropria de experiências culturais e históricas. A partir de uma relação dialética, o sujeito intervém em seu meio social, uma vez que internaliza e transforma as formas culturais por meio desses processos de interação. De acordo com Vera Lúcia Neri da Silva (2002 , p. 64) “é na aprendizagem originada neste plano intersubjetivo, apoiado em recursos auxiliares oferecidos pelo outro (de forma direta ou indireta), que se constrói o desenvolvimento de cada pessoa humana”.

Com base no enfoque histórico-cultural, considera-se que a aprendizagem humana e o processo de desenvolvimento acontecem por meio de assimilações da cultura, compreendidas a partir da ação de dominar e transformar maneiras culturais de pensar, agir e se relacionar – consigo mesmo e com os outros. No processo de formação de um indivíduo, são fundamentais as relações sociais em que se envolve para a compreensão do seu modo de pensar, de relacionar-se, de agir e de ser. Na história dessas relações, as pessoas são afetadas de diferentes formas, pelos variados modos de produção dos quais participam.

O significado das práticas humanas e o sentido decorrente dos relacionamentos sociais são diversificados e tornam-se importantes para os indivíduos conforme seus lugares e formas de participação nas relações são estabelecidos. Desse modo, a apropriação de alguma prática relaciona-se intimamente com o modo de pertencimento e participação dos sujeitos que, na diferenciação e dependência do outro, se constitui nas interações vigentes. Nessa perspectiva, a imitação, o afeto, a interação e as ações comuns entre os sujeitos que estabelecem uma relação têm função essencial no processo de desenvolvimento do homem. Tal processo ocorre de “forma permanente e indeterminável, do nascimento à morte, dando-se em todo ciclo vital, em ambientes estruturados pela cultura, regulados pelo meio social e marcados pela história da humanidade, na singularidade de cada sujeito” ( VASCONCELLOS, 2002 , p. 47-48).

Ao retomar a história do Brasil, no que se refere às classificações de cor e à presença da cultura do embranquecimento, constata-se a existência do ideário racista combinado com uma hierarquização de cor, na qual a pele mais escura é associada com menor prestígio e pior posição social e econômica, resultando em dificuldades para se avançar na hierarquia social (SILVA, V., 2002). Nesse sentido, a cor tornou-se decisiva para as relações sociais, pois sinalizava uma determinada raça, cultura e civilização ou uma ideia de natureza religiosa a respeito de uma descendência divina. A nação brasileira é formada a partir da prevalência da ideia de cor em detrimento da ideia de raça. Como ideologia fundadora dessa sociedade destaca-se o antirracialismo.

Guimarães (1999) discute como este ideário antirracialista está fortemente cristalizado no modo de ser do brasileiro, uma vez que se tornou comum a concepção de que as diferenças em relação às oportunidades de vida são decorrentes das classes sociais. Para o autor, embora as raças não existam do ponto de vista biológico, elas orientam formas de classificação e identificação influenciadoras de atitudes e ações que se repercutem em contrastes marcantes em termos de indicadores sociais relacionados à população negra, representando um construto teórico importante para a discussão do racismo e da discriminação que atinge os pretos e não brancos.

Isto posto, é necessário discutir o papel das relações étnico-raciais na formação da subjetividade, especialmente das pessoas negras. Para tanto, é preciso considerar como se dá a formação do ser humano, assim como os impactos do racismo estrutural brasileiro nesse processo, tomando a área da educação como um dos âmbitos capazes de contribuir para a perpetuação do preconceito racial, ao mesmo tempo que aparece como um meio favorável para a resolução dessa problemática.

Sabe-se que a teoria histórico-cultural não compreende o desenvolvimento humano como um processo universal, natural, abstrato, mas que dependente de condições culturais, históricas, sociais e econômicas. Nessa perspectiva, o homem se humaniza conforme se apropria da cultura e, do mesmo modo, as diferenças percebidas entre os seres humanos não são entendidas como propriamente naturais. Assim, de acordo com Leontiev (2004 , p. 293):

[…] esta desigualdade entre os homens não provém das suas diferenças biológicas naturais. Ela é produto da desigualdade econômica, da desigualdade de classes e da diversidade consecutiva das suas relações com as aquisições que encarnam todas as aptidões e faculdades da natureza humana, formadas no decurso de um processo sócio-histórico.

Para Vigotski, o sujeito constitui seus modos de ação e sua consciência nas interações sociais. Dessa maneira, a ação de cada pessoa precisa ser considerada tendo como parâmetro a ação entre sujeitos ( GÓES, 2000 ). Com isso, a construção do plano psicológico ou da intrasubjetidade somente pode ser entendida a partir de suas dimensões cultural, social e individual. Assim, a ideia basilar da teoria histórico-cultural é a de que o homem, desde o seu nascimento, torna-se humano por meio das relações estabelecidas em espaços organizados pelos seus outros sociais, desenvolvendo-se como tal na medida em que se apropria de experiências culturais e históricas.

Vasconcellos (2002) indica que, nas diferentes formas de parceria e nas interações com o outro, o ser humano exerce papel constitutivo e ativo. A internalização de experiências significativas que recebem influências determinantes do meio físico e social propicia o ato de conhecer. Desse modo, o caminho do desenvolvimento humano ocorre de “fora para dentro” e é assinalado pela entrada do sujeito em certo grupo sociocultural, como aponta Marta Kohl de Oliveira (1993 , p. 15):

Isto é, primeiramente o indivíduo realiza ações externas, que serão interpretadas pelas pessoas a seu redor, de acordo com os significados culturalmente estabelecidos. A partir dessa interpretação é que será possível para o indivíduo atribuir significados a suas próprias ações e desenvolver processos psicológicos internos que podem ser interpretados por ele próprio a partir dos mecanismos estabelecidos pelo grupo cultural e compreendidos por meio dos códigos compartilhados pelos membros desse grupo.

Segundo a concepção vigotskiana, o processo de internalização das influências sociais provenientes do meio externo consiste no ato de transformar de maneira ativa a experiência social, interpessoal, em novas formas semióticas intrapessoais, permitindo a reconstrução das atividades psicológicas por meio do uso de signos. O ato de reconstrução interna envolve a utilização de instrumentos psicológicos, como a linguagem, e abrange o mundo pessoal e afetivo numa relação interdependente. Conforme Vasconcellos (2002 , p. 69) o sujeito “incorpora a cultura, age nela, participando das experiências culturais e reestrutura suas atividades psicológicas”.

Destarte, por meio de palavras e imagens, os sujeitos incorporam afetos e desafetos, bem como ideologias e representações típicas do mundo circundante. Através da imitação, principalmente, as crianças expressam e experimentam os sentidos e significados das coisas positivas e negativas, o que contribui para a formação de sua identidade ( VASCONCELLOS, 1997 ).

Conceber o homem como um ser concreto e histórico significa, portanto, entender o desenvolvimento humano como um processo efetivado por meio da assimilação da cultura, dos aspectos sociais e historicamente constituídos na evolução da humanidade. Nessa perspectiva, o sujeito é marcado pelos conhecimentos e representações da sua sociedade e época, pois, no decorrer de sua vida, o homem se apropria paulatinamente da experiência das gerações que o antecederam.

Smolka (2000) , por sua vez, discute a questão da apropriação das práticas culturais com base no problema da significação. Ultrapassa, assim, a elaboração teórica restrita ao conceito de internalização, partindo da ideia de mediação do signo no desenvolvimento humano e da concepção de que as funções psicológicas superiores são resultado das relações sociais internalizadas. A apropriação, como uma categoria substancialmente relacional, torna essencial a problemática das significações das ações humanas que, por seu turno, adquirem sentidos diversificados e transformam-se em práticas significativas, a depender dos modos de participação e das posições que os sujeitos ocupam nas interações. No Brasil, rotineiramente, identificam-se disparidades importantes entre a população negra e a população branca no que se refere às posições e aos modos de participação nas relações sociais em razão dos diversos impactos do racismo.

Diante desse quadro, é possível discutir as especificidades do que é ser negro ou negra no Brasil. Dessa questão emanam elementos relacionados diretamente aos modos como as pessoas negras se apropriam da realidade estruturalmente racista do país, o que nos leva a refletir sobre a influência das relações étnico-raciais no desenvolvimento e na formação da subjetividade desses indivíduos. Marques (2005) destaca um ponto importante ao chamar a atenção para a predominância e domínio da cultura e dos valores sociais brancocêntricos em nossa sociedade. Para as pessoas pretas e pardas, ser negro é um fato objetivo, que não se pode negar ou esconder, inscrito em sua história, sua fisionomia, seus traços da pele. Contudo, a formação dessa identidade acontece “a partir de um corpo negro num mundo branco” ( MARQUES, 2005 , p. 6).

A autora também questiona a possibilidade do reconhecimento, da aceitação e da autonomeação como negro numa sociedade em que a representação do negro é marcada por atributos negativos. Aponta como consequência o sentimento de inferiorização e, por conseguinte, a dificuldade de assumir a identidade negra ou o refúgio em uma identidade simbólica outra. Fanon (1983) , nas suas discussões acerca do estatuto social do negro no período colonial, indica que, diante da impossibilidade biológica de embranquecer, restava ao negro a alternativa de absorver a cultura do branco e assumir um modo de ser que não lhe pertencem.

O significado das práticas humanas e os sentidos produzidos socialmente são diversificados e adquirem importância para as pessoas conforme se posicionam e participam das interações sociais. Dessa forma, a apropriação de tais práticas remete fundamentalmente ao “fazer parte” e atuar nestas relações, nas quais os sujeitos, a partir da diferenciação e dependência do outro, se constituem na interação significativa com esse outro. Assim, a imitação, o afeto, a interação e a ação partilhada desempenham papel essencial no processo de desenvolvimento humano que, por sua vez, acontece de “forma permanente e indeterminável, do nascimento à morte, dando-se no transcorrer da vida em ambientes estruturados pela cultura, regulados pelo meio social e marcados pela história da humanidade, na singularidade de cada sujeito” ( VASCONCELLOS, 2002 , p. 47-48).

Diversas tensões aparecem nas muitas possibilidades de significação e maneiras de apropriação: “tornar próprio, de si mesmo; atribuir pertença ou propriedade; assumir; tornar adequado, pertinente; desenvolver capacidades e meios (instrumentos, modos) de ação, de produção” ( SMOLKA, 2000 , p. 37). Pode haver coincidência entre todos, alguns ou nenhum desses significados e modos. Estas tensões geram sentidos ou efeitos de sentido diferenciados de acordo com as especificidades das situações e os posicionamentos dos sujeitos nas interações.

Ao tomar o movimento de apropriação/internalização da realidade física e cultural em que cada sujeito está inserido, pode-se entender como acontece a aquisição de determinados conteúdos disseminados pelos outros, bem como a forma como ocorre a assimilação e a vivência dessa experiência. Para Vigotski, as funções mentais superiores se formam na medida em que as relações sociais são internalizadas, o que permite a humanização do homem. A internalização, portanto, decorre dos processos de aprendizagem e desenvolvimento humano fundados no campo das interações sociais, e as funções mentais originadas e consolidadas neste plano são incorporadas pelo indivíduo e passam a constituir o próprio modo de cada um ser. Assim, a forma de funcionamento intrassubjetivo é resultado da apropriação dos modos de agir – consonantes com as normas e valores socialmente vigentes –, que dependerá do contexto interativo e dos conhecimentos e estratégias sob o domínio dos diferentes indivíduos.

A apropriação, com efeito, diz respeito a uma questão de pertencimento e participação nas práticas sociais em vez de um conceito restrito ao ato de tomar posse, de domínio ou propriedade, atingido individualmente. O sujeito, nessas práticas, constitui-se nas relações significativas de forma dependente do outro social. As funções mentais propriamente humanas, portanto, decorrem da relação com o outro. Do mesmo modo, a relação social possui caráter semiótico. Os signos e sentidos são sempre produzidos por sujeitos em interação, e as muitas maneiras de agir e interpretar (no atribuir pertença, no tornar próprio, no tornar pertinente, no adequar, no transformar etc.) fazem parte de uma prática construída historicamente, de uma complexa trama de significações nas quais as pessoas participam sem a capacidade de controle no que se refere à produção, retenção ou apropriação dos variados, realizáveis e contrastantes sentidos que são produzidos nestas relações.

Neste sentido, vários dados socioeconômicos evidenciam as disparidades vividas pela população negra na sociedade brasileira. Os efeitos do racismo estrutural dificultam a mobilidade social e repercutem em diversos âmbitos. O preconceito e a discriminação racial, produzidos histórica e culturalmente, se refletem na esfera simbólica e cultural por meio de práticas cotidianas como as estabelecidas pela escola e pela família. Tais práticas se baseiam na ideologia dominante de superioridade da raça branca que desfigura a identidade das pessoas negras.

Rotineiramente, um grande número das manifestações racistas são “clandestinas e mal dimensionadas” ( BENTO, 2014 , p. 147). A herança histórica da discriminação, que se traduz em prejuízos para uns e vantagens para outros, assim como as iniquidades sociais evidenciadas no cotidiano são explanadas e muitas vezes admitidas por meio de chavões ilógicos, mas que têm o efeito de manter o sistema de privilégios e evitar o enfrentamento dos conflitos. Com isso, apesar das repercussões do racismo, observa-se a tendência de fuga ou esquecimento das condições de discriminador e de discriminado.

A discriminação racial, entendida como a manifestação de ordem comportamental que expressa materialmente o preconceito, tem o sentido de diferenciar, segregar, separar. Manifesta-se em práticas negativas concretas, em ações individuais ou institucionais que desrespeitam a igualdade de tratamento e os direitos humanos e sociais a partir de critérios preconcebidos, de modo sutil ou não. É definida por Munanga (1998 , p. 46) como “um comportamento suposto observável e relativamente mensurável”.

Conectados à questão da discriminação racial e do preconceito, os estereótipos povoam o imaginário social e ditam, muitas vezes, a natureza das relações sociais. Podem ser entendidos como “opiniões predeterminadas que afetam as relações interpessoais e são os fios condutores para a propagação do racismo” (SILVA, V., 2002, p. 58). Os estereótipos racistas estão intimamente relacionados com o processo de aquisição da ideologia de raça e do senso comum. A tese do branqueamento se vale dessas construções para firmar a imagem negativa do negro no Brasil. O uso dessa estratégia tem servido historicamente para segregar e imputar marcas a determinados indivíduos ou grupos sociais.

Neste processo, expressões categóricas de natureza discriminatória e depreciativa alusivas às pessoas negras são verificadas nas mais diversas situações sociais. Tratam-se de construções simbólicas caracterizadas por estigmas de ordem racista, identificados no imaginário popular e reproduzidos nas relações sociais. Os componentes raciais observados nas expressões correntes contêm atributos desabonadores e, apesar de uma constituição aleatória, condizem com a ideologia da superioridade branca e da inferioridade intelectual, física e moral das pessoas negras. Estes pontos, associados às complexas relações que os marcam, possibilitam que os sujeitos produzam, via atividade, significados e sentidos diversos, de acordo com as experiências e trajetórias de cada indivíduo e de todos, assim como as “condições e características do contexto histórico em que vivem” (ZANELA et al ., 2007, p. 31).

Expostos esses aspectos, é possível depreender algumas particularidades no caminho do desenvolvimento e apropriação cultural dos sujeitos negros. Assim, observa-se que a construção da subjetividade das pessoas negras é atravessada por distinções de raça e classe. As relações humanas no seu íntimo, tendo como parâmetro a sociedade brasileira, são marcadas de maneira profunda e central por um emaranhado complexo de concepções, valores e preconceitos raciais internalizados, cultural e historicamente.

Considerações finais

Após a análise conceitual, incursões e diálogos com o enfoque teórico, acredita-se que, além de contribuições direcionadas para temáticas diversificadas da área educacional, há indicativos importantes que apontam e destacam as potencialidades da teoria histórico-cultural na elucidação do fenômeno das relações étnico-raciais. Nesta discussão, o reconhecimento da capacidade de significar a raça implica considerá-la como signo e, como tal, reconhecer sua fundamental relevância na ordenação dos sistemas sociais.

Os signos se mostram como elementos que representam, por meio de atos, a definição de posicionamentos estruturais neles contidos. Assim, percebe-se que a existência de raças no Brasil é um fenômeno que demonstra a utilização da raça como categoria de controle, visto que, enquanto signo, ela existe estritamente para demarcar posições sociais ( SEGATO, 2005 ).

Observa-se, tendo como base a perspectiva histórico-cultural, que para entender como um sujeito se constitui é preciso contemplar as condições históricas, sociais e econômicas que nele repercutem, e formar uma imagem a respeito de suas vivências, cotidianidade e projetos futuros. O contrário também é verdadeiro, conhecer o sujeito permite fazer um retrato da sociedade ou camada social a qual pertence. Isso se deve ao fato de a atividade mediada ser uma categoria elementar de análise, uma vez que, pela mediação, o homem modifica seu contexto e realiza apropriações de suas significações, formando-se como sujeito ( ZANELLA, 2004 ). Tal entendimento oferece elementos para discussões sobre a constituição da subjetividade nesta sociedade caracteristicamente marcada pelo preconceito e discriminação racial, colocando em pauta os efeitos deletérios do racismo.

Desse modo, este trabalho, longe de apresentar uma generalização sobre as questões que envolvem o fenômeno das relações raciais no Brasil, buscou apontar a teoria histórico-cultural como uma perspectiva promissora na compreensão dessa problemática no âmbito da educação, evidenciando a necessidade de ampliar o debate sobre o racismo e eliminar as estruturas que o perpetuam. As consequências negativas constatadas nas mais diversas esferas da sociedade brasileira se apresentam de modo singular na área da educação, com grandes repercussões e fortalecimento de condições (re)produtoras de desigualdade. Destarte, é urgente o combate à discriminação racial e a organização de práticas educacionais antirracistas em todos os ambientes de socialização, com a participação das instituições de ensino, professores e famílias.

A educação, entendida a partir do materialismo histórico-dialético como o meio de compartilhamento e assimilação da cultura historicamente produzida, abre caminho para a formação da natureza social e a consequente humanização do homem. Assim, é possível constatar que a esfera educacional brasileira pode ser o lugar de construção de práticas sociais mais humanizadas e humanizadoras que propiciem condições equânimes para todos os educandos, independentemente da classe social e da cor/raça/etnia, como constatado no estudo de Souza Filho (2018) . Do mesmo modo, destaca-se a importância do planejamento e a efetivação de propostas que colaborem para modificações culturais dirigidas ao enfrentamento do preconceito racial, tal como a Lei nº 10.639/2003, que visa contribuir para a valorização da história e da cultura afro-brasileira, mas que ainda tem sido sistematicamente desconsiderada.

A respeito do papel dos educadores, Asbahr (2005a) assinala que o significado social da atividade pedagógica é propiciar condições para que os estudantes aprendam ou, mais precisamente, se envolvam em atividades de aprendizagem. Para alcançar este objetivo, o docente é responsável por organizar situações favorecedoras da aprendizagem, tendo em vista os conteúdos a serem compartilhados e a melhor forma de fazê-lo. Dessa forma, o professor apresenta-se como o mediador entre o conhecimento e o educando, entre as produções “humano-genéricas” e os sujeitos em aprendizagem e desenvolvimento.

Considerando a significação social da atividade pedagógica e o caráter mediador do trabalho docente, é importante que os professores contemplem as especificidades dos educandos, entendam suas possíveis dificuldades e busquem proporcionar condições de aprendizagem para todos os estudantes, compreendendo o desenvolvimento como um processo marcado pelas relações sociais próprias de cada sociedade, assim como pelas condições históricas e culturais ( SOUZA FILHO, 2018 ). Desse modo, a temática racial não pode ser deixada de lado, tanto na formação do docente e na organização do seu trabalho quanto na abordagem em sala de aula em função da responsabilidade de contribuir para a tomada de consciência e a reflexão constante sobre as questões de natureza racial, papel compartilhado por toda a escola. Para tanto, é preciso abordar constante e adequadamente as relações étnico-raciais, colaborando gradativamente para mudanças culturais e formação de sujeitos humanizados e agentes na valorização de quaisquer diferenças.

Além da educação formal, geralmente observada em instituições com propriedades e fins particulares, a educação ocorre em vários momentos e muitas vezes sem planejamento, o que torna fundamental a participação da família na constituição de sujeitos com “consciência racial”. Assim, as famílias negras, não negras e interraciais têm o racismo como um problema a ser tratado. Sabe-se que a subjetividade humana é constituída nas relações estabelecidas com o entorno social. A identidade e a vida social dos sujeitos em formação, desde os primeiros anos, recebem influência determinante das interações construídas por meio da comunicação e da linguagem próprias do contexto familiar. As repercussões e experiências provenientes da família, as informações acerca do mundo social e escolar, as internalizações do meio, paulatinamente, constituem a subjetividade do indivíduo.

Nessa direção, no que diz respeito ao combate ao racismo, apesar do discurso social a respeito do negro como instrumento de subjetivação importante, a família do aluno negro, especificamente, tem uma atuação essencial para o desenvolvimento da relação dos educandos com os estudos, além de se revelar como um suporte “elementar na valorização de sua identidade e enfrentamento dos obstáculos impostos frente à sua condição étnico-racial” ( MARTINS; GERALDO, 2013 , p. 71).

Existem muitos desafios a serem vencidos quando se trata das relações étnico-raciais. Como apontado nesta discussão, o tratamento adequado desse tema não prescinde da consideração de aspectos sociais e culturais, bem como da formação política como elemento mobilizador de forças de libertação e emancipação em favor de uma sociedade justa e democrática. De acordo com Junqueira (2007) , a luta contra o racismo e as diferentes formas de discriminação demanda a busca constante pela cidadania plena, libertária, igualitária e participativa.

Para tanto, é fundamental compreender que a escola precisa cumprir sua função articuladora no alcance e na afirmação dos direitos à educação, ao trabalho e às demais áreas humanas essenciais, proporcionando de modo decisivo a garantia de uma participação digna no mundo social a todos os cidadãos. Tal empreendimento exige uma educação pluralista e de qualidade, que possibilite e contribua para a diversidade das escolhas e das vivências nas mais variadas esferas da experiência humana. Do mesmo modo, requer uma formação que viabilize um trabalho socialmente reconhecido e que enseje a valorização das diferenças e a superação de desigualdades, por meio da criação de oportunidades para o desenvolvimento individual e da coletividade ( JUNQUEIRA, 2007 ).

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Recebido: 05 de Junho de 2020; Revisado: 19 de Março de 2021; Aceito: 27 de Abril de 2021

Edmundo Fernandes Souza Filho é mestre e doutorando em educação pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e psicólogo escolar do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP) – campus São Paulo.

Edna Martins é doutora em educação (Psicologia da Educação) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professora associada do Departamento de Educação da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Unifesp.

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