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Educação e Pesquisa

versión impresa ISSN 1517-9702versión On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 07-Jun-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248241891por 

Artigos

Sociologia da infância e reprodução interpretativa: um modelo redondo do desenvolvimento infantil

Childhood sociology and interpretative reproduction: a round model of child development

Nislândia Santos Evangelista1 
http://orcid.org/0000-0001-9972-8752

Rita de Cássia Marchi2 
http://orcid.org/0000-0002-3408-2732

1- Centro Universitário Leonardo da Vinci, Indaial, SC, Brasil. Contato: nissevangelista@gmail.com

2- Universidade Regional de Blumenau, Blumenau, SC, Brasil. Contato: atoseditora@gmail.com


Resumo

A sociologia da infância (SI), disciplina surgida no final da década de 1980 na cena teórica europeia, concebe a criança como ator social e a infância como construção social. Com esta perspectiva, ela vai na contramão das teorias tradicionais da socialização, sobretudo impulsionadas pela psicologia do desenvolvimento, que concebem o desenvolvimento infantil como individual, linear, natural e universal. William Corsaro, sociólogo da infância, propõe o conceito de “reprodução interpretativa” como substitutivo ao de socialização, assim como o modelo redondo de desenvolvimento infantil, com ênfase nas ações sociais das crianças. A SI, nesse sentido, propõe um novo paradigma para os estudos sociais da infância, com conceitos, métodos e concepções éticas para a realização de pesquisas com crianças. Este artigo tem como objetivo discutir o conceito de reprodução interpretativa, apresentando a trajetória de seu desenvolvimento e suas críticas ao conceito tradicional de socialização. Além disso, discute-se brevemente a importância e as críticas que esse conceito e o de ator social recebem pelo modo como têm sido utilizados em pesquisas na área da educação.

Palavras-Chave: Psicologia do desenvolvimento; Reprodução interpretativa; Socialização; Sociologia da infância

Abstract

The sociology of childhood (SC), a discipline that emerged in the late 1980s on the European theoretical scene, conceives the child as a social actor and childhood as a social construction. With this perspective, it goes against traditional theories of socialization, especially driven by developmental psychology, which conceive child development as individual, linear, natural and universal. William Corsaro, a sociologist of childhood, proposes the concept of “interpretative reproduction” as a substitute for socialization, as well as the round model of child development, with an emphasis on children’s social actions. The SC, in this sense, proposes a new paradigm for the social studies of childhood, with concepts, methods and ethical concepts for conducting research with children. This article aims to discuss the concept of interpretative reproduction, presenting the trajectory of its development and its criticisms of the traditional concept of socialization. Furthermore, it briefly discusses the importance and criticism that this concept and that of the social actor receive due to the way they have been used in research in the field of education.

Key words: Developmental psychology; Interpretative reproduction; Socialization; Sociology of childhood

A sociologia da infância e as crianças teóricas

As disciplinas que propuseram um novo paradigma para as investigações sobre a infância e as crianças surgiram no final da década de 1980, sendo que a sua emergência se deveu ao recuo das teorias funcionalistas nas ciências sociais associado ao impulso tomado pelas perspectivas interacionistas, interpretativas e etnometodológicas (MONTANDON, 2001; SIROTA, 2001; MARCHI, 2009)3.

Nessa reviravolta teórica desenvolveram-se críticas à visão clássica do processo de socialização e educação das crianças, decorrendo disso uma mudança paradigmática na forma de se refletir sobre a infância e de realizar pesquisas com crianças, e não somente sobre elas. O sentido passa a ser o de produzir uma escuta de suas vozes, numa perspectiva não adultocêntrica e na busca por horizontalidade nas relações de investigação. Destarte, o esforço analítico passa a ser também o de compreender dimensões até então consideradas monopólio do campo psicológico, como os aspectos sociais dos espaços privados (MONTANDON, 2001; SARMENTO, 2009).

Na composição deste novo cenário teórico, estas disciplinas assumem princípios confluentes em seu programa de trabalho, tais como: i) a infância como construção social; ii) a criança como ator social e produtora de cultura; iii) as categorias “infância” e “criança” consideradas em sua cidadania epistemológica ou com autonomia conceitual; e iv) a etnografia indicada como um método particularmente útil para pesquisas que visam se aproximar do “mundo das crianças” (JAMES; JENKS; PROUT, 1998; SARMENTO, 2009).

A sociologia da infância (SI), disciplina da qual vamos particularmente tratar neste artigo, propõe, portanto, abordagens teóricas e metodológicas que se afastam das concepções tradicionais relativas à infância e à criança. Esse afastamento acontece centralmente em torno de críticas ao conceito tradicional de socialização, isto é, das concepções individualizantes ou de cunho psicológico que buscam categorias universais para a compreensão do conceito, e que percebem esse processo como vertical e unidirecional (apenas do adulto sobre a criança), o que deu origem à visão tradicional da criança como um ser passivo em seu processo de socialização e sempre em devir (em relação ao que se tornará no futuro).

Com o advento da SI, portanto, o processo de socialização e educação das crianças passa a ser pensado levando em conta também a participação ativa das crianças, que ora aceitam, ora resistem, ora reinventam os termos da cultura adulta (ABRAMOWICZ; OLIVEIRA, 2010; MONTANDON, 2001; SARMENTO, 2009; SIROTA, 2001). É em torno da empreitada crítica a esses conceitos (socialização/educação), que os mencionados novos princípios teóricos e epistemológicos da SI serão articulados e colocados em movimento, fazendo surgir o conceito de “reprodução interpretativa” (RI)4. É na esfera interpretativa5 da SI – que concebe a infância como uma categoria social e a criança como um ator que constrói seus processos de subjetivação a partir dos elementos simbólicos dos seus mundos de vida – que este conceito vai se tornar central em estudos etnográficos sobre temas voltados para as atividades coletivas das crianças e as formas como elas (re)produzem, negociam e compartilham cultura entre elas e com os adultos (CORSARO, 2011).

A ideia de reprodução interpretativa foi proposta pelo sociólogo da infância William Corsaro na tentativa de desconstruir a maneira linear e individualizada pela qual o conceito de socialização era tradicionalmente abordado. O referido autor teceu críticas em relação às teorias da psicologia do desenvolvimento, especialmente as elaboradas por Jean Piaget e Lev Vygotsky. Em contrapartida, propôs um “modelo redondo” de socialização e desenvolvimento infantil.

Este artigo tem como objetivo apresentar e discutir alguns aspectos do desenvolvimento do conceito de reprodução interpretativa, as influências que recebeu e as críticas que estabeleceu. Para alcançar deste objetivo, este texto foi dividido em três tópicos: “O conceito clássico de socialização e a psicologia do desenvolvimento”, em que se trata da construção e do uso do conceito clássico de socialização na psicologia do desenvolvimento e as críticas que recebeu devido às suas implicações deterministas e pedagógico-normativas, tanto internamente quanto externamente a esta disciplina; em “Da socialização à reprodução interpretativa”, apresenta-se um panorama geral do conceito de RI proposto por William Corsaro como substitutivo ao de socialização; e em “Reflexões adicionais (e finais) sobre reprodução interpretativa e sua interface com o conceito de ator social”, apresentam-se algumas considerações, em termos teóricos e de pesquisa, sobre a utilização do princípio da criança como ator social e o conceito de RI.

O conceito clássico de socialização e a psicologia do desenvolvimento

O termo socialização, essencial para compreendermos as rupturas que a SI realiza na elaboração de um novo paradigma para os estudos sociais da criança e da infância, tem sua origem na sociologia, mas sua difusão, em termos da aplicabilidade do termo, foi realizada pela psicologia do desenvolvimento. Ambas as disciplinas surgiram no século XIX, sob a égide dos métodos e descobertas das ciências naturais e, portanto, tinham como modelo o conhecimento produzido de modo objetivo, observável, controlável.

Em seu estágio inicial, a sociologia teve Émile Durkheim (1858-1917) como um dos primeiros e principais teóricos, responsável por estabelecer o rigor científico na disciplina, definindo seu método e objeto. A concepção tradicional de criança (a de ser em devir) deriva do conceito clássico de socialização presente na definição durkheimiana de educação, que influenciou não somente a construção de teorias e práticas voltadas para a educação das crianças, mas também, de forma mais ampla, concepções de desenvolvimento humano (GOMES, 1985). Para Durkheim (1987, p. 42),

A educação é a ação exercida pelas gerações adultas sobre as gerações que não se encontram ainda preparadas para a vida social; tem por objeto suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política no seu conjunto e pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destine.

O conceito de socialização presente nessa definição terá sua dimensão psicológica e individualizada evidenciada, mais tarde, nas teorias da psicologia do desenvolvimento – particularmente as desenvolvidas por Jean Piaget –, nas quais o conceito ganha e perde algumas dimensões inicialmente elaboradas por Durkheim. Dubar (2005) evidencia as aproximações e divergências entre esses dois autores, considerando seus objetivos teóricos e bases epistemológicas diferentes.

Assim, se, por um lado, o conceito de socialização é essencial na construção da psicologia genética de Piaget, por outro, o autor realiza rupturas em relação ao caráter funcionalista do termo. Há uma tentativa de aplicação do conceito, em termos individuais e práticos, que perpassa o conceito de educação moral de Durkheim, mas que se afasta da ênfase dada à coerção na sociologia durkheimiana. Deste modo, o conceito de socialização funciona como um ponto de partida para as construções teóricas da psicologia e, nesse movimento, ocorrem alterações de como pensar, teorizar e/ou aplicar o termo (DUBAR, 2005).

Para Piaget, o desenvolvimento infantil se processa na interdependência entre os níveis social, mental e físico. Assim, a criança se adapta às transformações do ambiente e constrói elementos característicos dos estágios do seu desenvolvimento (um estágio servindo de preparação para o próximo, em termos evolutivos), o que só é possível, em termos relacionais, com a evolução gradativa da criança de um egoísmo inicial para a participação plena no mundo social e profissional (DUBAR, 2005).

De modo resumido, o ponto de encontro entre as duas teorias (a sociológica e a psicológica) está no fato de ambas compreenderem a socialização como uma ação metódica e unilateral, isto é, como ação educativa das gerações mais velhas sobre as mais novas. Para ambos os autores, esse processo é finalizado em sincronia com o término da infância, em que o indivíduo já teria adquirido as habilidades e capacidades necessárias para a vida social, de modo geral, e para o mercado de trabalho, de modo particular. No entanto, se para Durkheim, a socialização, como educação moral, está ancorada na transmissão, coerção e disciplina, para Piaget, ela é desenvolvida a partir da construção e interação, numa lógica mais colaborativa do que coercitiva (DUBAR, 2005).

Assim, a teoria do desenvolvimento infantil de Piaget apresenta já duas rupturas em relação ao modelo tradicional durkheimiano: a primeira diz respeito à concepção de formação, na medida em que nega a socialização como mera inculcação, ressaltando o caráter ativo e participativo da criança no seu processo de desenvolvimento. A segunda se relaciona ao caráter linear e unificado de progressão contínua, em que a socialização era concebida. De acordo com Dubar (2005), para Piaget – no último período de seu trabalho –, os estágios de desenvolvimento passam a ser relativizados e vistos como complexos e permanentes, não mais tendo seu fim na infância, pois, no contexto das sociedades modernas, a necessidade de aprendizagem não se encerra com o término dessa fase da vida. Nesse sentido, pode-se refletir que, ao mesmo tempo em que a SI surgia no cenário científico (final dos anos 1980), tomando a psicologia do desenvolvimento como alvo central de críticas, a própria psicologia genética começava a propor revisões em sua teoria.

No entanto, apesar de seu caráter relacional, se comparada à teoria de Durkheim, a teoria de Piaget ainda é considerada restrita por focar exclusivamente no indivíduo e por desconsiderar outras possibilidades presentes no processo de socialização (DUBAR, 2005). Assim, as fragilidades teóricas (linearidade e teleologia) desta teoria são postas em evidência a partir da leitura crítica das concepções naturais, universais e endógenas que apresenta (CORDERO ARCE, 2015), pois, com a assunção de tais determinismos, as experiências das crianças são enquadradas e limitadas a uma linha cujo ponto de chegada é o mesmo para todos.

Ao considerar o projeto da modernidade, com ênfase na racionalidade, autonomia e progresso, de acordo com Jobim e Souza (1996), a psicologia do desenvolvimento, com seus conceitos estanques e estáveis, prontos para serem aplicados em larga escala, contribuiu para a abertura de vias relacionadas aos aspectos biológicos e evolucionistas difundidos e sustentados pelas teorias freudianas e piagetianas, principalmente. Tais abordagens classificam e definem o que é maturidade e quando ela é atingida; por isto, indubitavelmente, é lançada uma escala com concepções carregadas de juízos de valor e que, de forma hierárquica, estabelece noções de superioridade/inferioridade entre adultos e crianças. Nesse sentido, ou seja, com a criação de teorias de cunho evolutivo que classificam o desenvolvimento em níveis hierárquicos, a psicologia do desenvolvimento contribuiu para que normas fossem transformadas em fatos e fossem consideradas naturais, partindo de ou apoiando-se em valores morais socialmente estabelecidos. Nesta perspectiva, o processo de desenvolvimento tem fim quando o indivíduo atinge o pódio de chegada evolutiva (tornar-se adulto). Portanto, a percepção da criança como um ser não socializado e que, portanto, precisa apenas de proteção e controle, tende a limitar suas experiências e possibilidades de existência e impedir uma relação dialógica com os adultos, na qual estes a percebam em sua totalidade, sem necessariamente atrelar cada experiência infantil a momentos de preparação e desenvolvimento de novas capacidades rumo à vida adulta. Observa-se que essa crítica desconstrutiva é realizada pela autora de dentro da própria Psicologia do Desenvolvimento (MARCHI, 2009).

Assim, estando atrelada à ideia de progresso e sendo pedagógico-normativa, esta disciplina prioriza a socialização e a organização do tempo de acordo com as instituições sociais vigentes. No caso do mundo ocidental, a escola – como uma instituição que disciplina e organiza os tempos e os espaços das crianças segundo a lógica industrial – utiliza material e conhecimento produzido pela psicologia e, dessa maneira, organiza suas intervenções pedagógicas tendo aval científico legitimado. A teoria de Piaget, com suas categorias e separações por estágios, teve aplicabilidade na organização dos currículos escolares como forma de avaliação das capacidades e habilidades das crianças em nível físico e mental, o que também pode ser utilizado para direcionar o processo de desenvolvimento, a fim de que sua chegada à maturidade seja acelerada, caso seja possível ou necessário (JOBIM E SOUZA, 1996).

Contudo, o fato de a psicologia piagetiana ser utilizada nos currículos escolares evidencia mais sua aplicabilidade no contexto da sociedade industrial do que advoga pela veracidade da universalidade de seus conceitos. De acordo com Cordero Arce (2015, p. 54, tradução nossa), “em especial, a Piaget interessa entender como o adulto adquire as categorias de tempo, espaço e causalidade” a partir da lógica ocidental de racionalidade, inteligência e autonomia. Nesse sentido, a teoria piagetiana cai como uma luva para as sociedades industriais, pois contribui para seu funcionamento e estrutura.

Por este ângulo, conceitos como competência ou habilidade funcionam como forma de expectativa e exigência, provenientes da racionalidade ocidental, sem considerar o componente histórico e contextual de que se fala, uma vez que cada criança se desenvolve num tempo e sociedade com uma história específica, o que a torna suscetível às questões sociais e culturais do lugar e tempo que habita (JOBIM E SOUZA, 1996). Para Cordero Arce (2015), nas sociedades não industriais são outras as “exigências” e “competências” esperadas dos indivíduos, em geral, e das crianças, em particular. A psicologia do desenvolvimento considera apenas um modelo de desenvolvimento para todas as crianças, que serve de suporte para a efetividade da educação formal, e que se torna responsável pelo processo de transformar a criança em um “empregado flexível no interior de uma sociedade mutável” (CORDERO ARCE, 2015, p. 56, tradução nossa) em detrimento de outras possibilidades.

Ao propor o termo “reprodução interpretativa” para caracterizar o processo de desenvolvimento infantil – com ênfase no social – e ao tentar se distanciar dos conceitos e significados clássicos de socialização, Corsaro (1992, 2002, 2011) lança críticas direcionadas às teorias de cunho funcionalista, determinista, reprodutivista e, em especial, à psicologia do desenvolvimento construtivista, de forma que o debate com esta disciplina se torna, por vezes, o âmago da questão. Para esse autor, o ímpeto para seus estudos em relação à infância está relacionado tanto à negligência teórica da sociologia no que se refere à criança, quanto à rigidez da psicologia com seu foco especialmente comportamental para o desenvolvimento infantil.

O construtivismo é, assim, geralmente representado pela teoria do desenvolvimento de Piaget, em que se salientam as atividades das crianças, ressaltando que estas interpretam, organizam e usam informações do ambiente para novas aquisições e habilidades no seu processo de desenvolvimento. Outro importante teórico do desenvolvimento infantil, com foco socioconstrutivista, é o psicólogo bielo-russo Lev Vygotsky (1896-1934), que enfatiza a interação das crianças como parte da produção e manutenção dos sistemas culturais (CORSARO, 1992).

Nesse sentido, para Corsaro (2011), embora a psicologia do desenvolvimento construtivista tenha se movido na direção certa, sua fragilidade consiste no fato de que a ênfase continua sendo colocada no desenvolvimento em sua forma individual e solitária, com “pouca ou nenhuma consideração sobre como as relações interpessoais são refletidas em sistemas culturais” (p. 29). Não obstante, ainda de acordo com o autor, para a visão sociocultural de Vygotsky, tanto o desenvolvimento social da criança quanto as estratégias para lidar com as mudanças sociais envolvem a interação com outras pessoas, sendo a partir disso que a criança desenvolve a linguagem e codifica a cultura da qual participa.

Sobre esta crítica, a pesquisadora e estudiosa da infância na perspectiva histórico-cultural Zoia Prestes (2013), em seu artigo “A sociologia da infância e a teoria histórico-cultural: algumas considerações”, realiza questionamentos às críticas de Corsaro à teoria de Vygotsky. Uma das questões diz respeito ao fato de Corsaro (2011) utilizar apenas uma obra do psicólogo bielo-russo para tecer críticas às suas teorias. Além disso, a obra utilizada apresenta uma tradução editada e, por ter conteúdos omitidos ou acrescentados que não eram de autoria do psicólogo, não é considerada uma obra relevante de Vygostsky. Assim sendo, a interpretação de William Corsaro dos conceitos da teoria histórico-cultural estaria sujeita a perspectivas estereotipadas, equivocadas e descuidadas (PRESTES, 2013).

Outro questionamento da autora diz respeito ao fato de a teoria de Vygotsky não apresentar linearidade nem estágios fixos de desenvolvimento, não considerar o desenvolvimento da criança a partir da idade cronológica e não estipular ponto de partida nem de chegada, uma vez que considera o desenvolvimento como possibilidade e não como meta. Ainda, a teoria de Vygotsky valorizaria a interação da criança em seu contexto e cultura, de forma que os níveis de criatividade dependem da qualidade das experiências, que são adquiridas, reinterpretadas e revividas a partir de brincadeiras de faz de conta, sem estarem atreladas, necessariamente, às etapas etárias da criança (PRESTES, 2013).

Em uma crítica mais ampla, que nasce no interior da própria SI e que se dirige à base de sua constituição, Prout (2010) aponta a necessidade de uma maior – ou mais intensa – interdisciplinaridade nos estudos da infância, de forma que, para a SI constituir-se como o oposto da psicologia, não deveria significar o apego a estereótipos baseados em dicotomias como “crianças como indivíduos versus crianças como seres sociais” (p. 739). Neste sentido, para esse autor, a SI, no afã de abrir espaço para a infância na sociologia, rendeu-se às antinomias sociológicas clássicas que já estavam em discussão. Isto é, quando a sociologia contemporânea já teorizava sobre mobilidade, flexibilização, complexidade e descentramento do sujeito, a SI surgia apoiada na ideia de subjetividade: na agência social da criança em contraposição à determinação das estruturas. Estas são, portanto, problemáticas e contradições que a disciplina precisa encarar em relação a esta e a outras dicotomias oriundas da teoria social moderna, como as de natureza versus cultura e ser versus devir. A dicotomia natureza versus cultura, por exemplo, impede a compreensão da infância como um conceito híbrido, que tem origem tanto na cultura quanto na natureza e que pertence, simultaneamente, a esses dois universos.

Assim, para Prout (2010), de nada adianta rebater o reducionismo biológico (supostamente presente na psicologia) para substituí-lo pelo reducionismo sociológico, sendo mais proveitoso buscar interligar os pontos de conexão entre as áreas. Faz-se necessário, também, considerar os fenômenos sociais – e, neste caso particular, a infância – não como entidades puras, determinadas, estáveis e em oposição, e sim como fenômenos heterogêneos e híbridos, ou seja, como entidades complexas:

Redes cada vez mais extensas de elementos heterogêneos [que] seguem o curso de vida em combinações que são empiricamente variadas, mas que, em princípio, não requerem tipos diferentes de análise. Assim, não é necessário separar arbitrariamente as crianças dos adultos, como se fossem espécies de seres diferentes. Em vez disso, a tarefa consiste em saber quantas versões distintas de criança ou adulto emergem da complexa interação, rede e orquestração entre diferentes materiais naturais, discursivos, coletivos e híbridos. (PROUT, 2010, p. 740).

A construção da criança como ser imaturo ou vulnerável é histórica e culturalmente sedimentada e, portanto, não se trata de processo natural nem universal (CORDERO ARCE, 2015; SARMENTO, 2004). O imaginário infantil como parte do processo de desenvolvimento, de acordo com Sarmento (2004), é tido, predominantemente, como um déficit, no qual reinaria o princípio da negatividade oriundo de um “pressuposto epistémico na construção social da infância na modernidade” (p. 2) – criança não anda, não fala, não é madura. Tanto os adultos quanto as crianças passam por processos imaginativos em que transpõem o real; então, nesse sentido, a SI refere-se aos processos infantis de desenvolvimento a partir da ordem da diferença, e não do déficit (SARMENTO, 2004).

Diversos autores, entre eles, Sirota (2001), Montandon (2001), Marchi (2009) e Sarmento (2009), afirmam que a inserção da criança na sociedade era considerada, pela sociologia geral e pela sociologia da educação, a partir do conceito durkheimiano de socialização, concebida como um processo unilateral da ação adulta sobre as crianças, vistas como passivas, compreendidas como “placas de cera sobre as quais os adultos imprimem a cultura” (MONTANDON, 2001, p. 52). Desse modo, as crianças eram pensadas, nas pesquisas científicas, sempre a partir das instituições responsáveis por sua socialização (família e escola) e não tinham, assim, um estatuto social pleno, o que contribuiu para sua ocultação ou apagamento como objeto de estudo sociológico.

Prout (2010), na crítica já esboçada anteriormente, também destaca esse aspecto da negatividade da infância na mentalidade moderna, que compreende a criança como um ser sempre em devir, ou seja, que ainda “não está pronta” para a vida social. Assim, a criança pertence à natureza – selvagem, incivilizada – até ser “socializada”, e por isso a necessidade do processo de socialização/educação. A SI, ao advogar a infância como uma construção social, faz o caminho inverso, assumindo o social/cultural como seu a priori. Entretanto, o autor destaca que o caráter inacabado da vida moderna, na verdade, atinge tanto os adultos quanto as crianças, pois ambos são seres com multiplicidade de devires, incompletos, interdependentes e sempre em transformação.

Neste viés, a crítica se dirige à hegemonia da psicologia do desenvolvimento, que compreende a socialização do(s) indivíduo(s) em termos de categorias sistêmicas e não de concepções múltiplas, negligenciando o caráter histórico-cultural e reduzindo a criança a categorias ideais e abstratas. Dessa maneira, ocorre a produção de modelos, programas e políticas educacionais, decididas pelos adultos, sobre a melhor forma de educar/socializar uma criança para que esta atinja o ideal de referência que a sociedade adotou (DELGADO; MÜLLER, 2005b).

Como já mencionado, é somente com o advento das teorias interpretativas e construtivistas, na década de 1980, que surgem novas formas de conceber a criança (como ativa e criativa) nos espaços que frequenta e nas relações que estabelece com seu entorno (MARCHI, 2009). Nesta lógica, a SI, a partir desta década, surge com abordagens que pensam e que se relacionam com a infância e as crianças de outra forma – que não a tradicional –, com referenciais teóricos e critérios de análise que fogem do viés funcionalista e desenvolvimentista presente no modelo tradicional de socialização (embora se rendam, como visto previamente, às antinomias clássicas).

Vale ressaltar, como argumenta Marchi (2009), que retirar teoricamente as crianças da invisibilidade a que estavam relegadas e declará-las atores sociais competentes, levando-as ao primeiro plano da análise científica, não lhes garante, automaticamente, autonomia na vida social. Pelo contrário, trata-se de uma autonomia relativa, na qual as produções e interpretações das crianças têm por base suas interações com adultos e com outras crianças, nos diversos espaços em que convivem (DELGADO; MÜLLER, 2005b).

Da socialização à reprodução interpretativa

O sociólogo William Corsaro, em seu livro Sociologia da infância, cuja primeira edição data de 1999, apresenta de forma didática o conceito de “reprodução interpretativa”, que rompe com as abordagens clássicas de socialização apresentadas anteriormente e que está ancorado na perspectiva interpretativa dos novos estudos sociais da criança e da infância6.

Na tentativa de distanciar a SI do caráter “progressista e individualista” do termo “socialização”, Corsaro (2002, 2011) propõe uma compreensão desta experiência como reprodução interpretativa. Para o autor, o que é fundamental nesta concepção é o reconhecimento da importância da atividade coletiva e conjunta, ou seja, de como as crianças negociam, compartilham e criam cultura com adultos e entre si. É a partir do olhar para a interação infantil em microprocessos que Corsaro (2011) percebe o desenvolvimento social da criança como um complexo produtivo-reprodutivo.

Para Corsaro (2011), o conceito busca captar tanto a característica de reprodução cultural/social da qual a criança participa quanto o caráter de (re)interpretação presente nas leituras das crianças sobre seu próprio cotidiano. O termo “reprodução interpretativa” se distancia, portanto, das concepções de estágios desenvolvimentistas ou categorias universalizantes para pensar a socialização das crianças. Assim, ele pode ser visto como uma releitura do conceito de socialização, estando menos voltado para as noções lineares de estágios evolutivos e mais relacionado a um processo de densidade crescente e de reorganização do conhecimento que muda com o desenvolvimento cognitivo e de competências linguísticas das crianças em seus mundos sociais (CORSARO, 2002).

De acordo com Corsaro (1992), o ímpeto para seus estudos sobre a infância relaciona-se com a negligência teórica da sociologia em relação à criança e a rigidez da psicologia com foco especialmente comportamental para o desenvolvimento infantil. Além disto, as descobertas na área da linguística criaram uma onda de excitação entre aqueles que queriam uma alternativa fora do behaviorismo, abrindo, assim, um caminho para o construtivismo.

Nessa perspectiva, as crianças constroem seus mundos sociais em interação com os pares e com o mundo adulto através do desenvolvimento de rotinas culturais e da linguagem. O lugar comum e óbvio das rotinas culturais fornece às crianças e a todos os atores sociais a segurança e a compreensão de pertencerem a um grupo social no qual uma ampla variedade de conhecimentos socioculturais pode ser produzida, exibida e interpretada, havendo o aumento da participação da criança a partir do desenvolvimento da linguagem e sua participação em casa e em outras esferas sociais.

Para uma maior compreensão do conceito de reprodução interpretativa, Corsaro (2011) propõe uma analogia com uma teia de aranha, que ele denomina de “teia global”, um modelo de desenvolvimento infantil em espiral em que as crianças produzem cultura, participam do social e são afetadas em suas ações a partir de diferentes esferas (Figura 1). No centro da teia está a família de origem, que serve como elo entre todas as instituições das quais a criança venha a participar. A teia se expande quando a criança começa a interagir fora do círculo familiar, com outras crianças e adultos, passando a participar, assim, de uma série de culturas de pares. O desenho da teia global, portanto, evidencia que as culturas de pares infantis são coletivamente tecidas a partir de conhecimentos culturais e instituições que as crianças integram, não se constituindo como “fases” que a criança vive, ou pelas quais “passa”, pois suas experiências são incorporadas na teia tecida também por elas em contato com outras pessoas, e não cessa com o término da infância, permanecendo como parte da trajetória do indivíduo. Nesse entrelaçamento das instituições, da rede social ou “teia” em que a criança está inserida, é que se estabelece a reprodução interpretativa no interior do “modelo redondo” – em oposição ao modelo linear – de desenvolvimento infantil. Este, no entanto, carrega um sentido abstrato que não deve ser cristalizado, e sim diferenciado dos modelos de desenvolvimento e socialização tradicionais. A analogia demonstra que a criança sempre participa e integra duas culturas ao mesmo tempo, a dos adultos e a das crianças.

Fonte: Corsaro (2011, p. 38).

Figura 1 Modelo da “teia global” 

No mais, é a estrutura geral do modelo que importa, considerando que o número de raios e a natureza das espirais da “teia” variam entre culturas e entre grupos, de forma que, obviamente, não se trata de um modelo pronto, mas de uma ideia de como se constroem e como se ramificam as culturas de pares infantis. Esse modelo e essa metáfora vão ao encontro da analogia feita por Max Weber sobre o homem estar preso em uma teia de significados que ele mesmo teceu – metáfora na qual também se apoiou Clifford Geertz para formular o atual conceito de cultura, em uma perspectiva semiótica.

Assim, na perspectiva interpretativa da SI, o conceito de socialização estaria menos voltado para as noções lineares de estágios evolutivos e mais relacionado a um processo de “[…] densidade crescente e reorganização do conhecimento que muda com o desenvolvimento cognitivo e competências linguísticas das crianças e com seus mundos sociais” (CORSARO, 2002, p. 114). A reprodução interpretativa é, então, considerada um “modelo redondo”, alternativo ao modelo linear difundido e vulgarizado, principalmente, pela psicologia do desenvolvimento.

Somos convidados a conviver, como discorrem Delgado e Müller (2005a, p. 3), “com as incertezas nos estudos da criança” na medida em que qualquer teoria social que busque generalizações está fadada, cada vez mais, a soar vazia. É também com essa preocupação – ou com essa vigilância epistemológica – que a SI pensa as crianças e as infâncias em termos mais contextualizados, distanciando-se de concepções de estágios desenvolvimentistas ou de categorias universalizantes, como indica o termo “reprodução interpretativa”.

Assim, este conceito concebe o desenvolvimento infantil como um processo que não se caracteriza pela passividade ou linearidade, pela simples imitação do mundo adulto pela criança, mas contempla ações coletivas nas quais as crianças se apropriam criativamente de informações e conhecimentos desse mundo, produzindo e participando das culturas de pares e contribuindo, assim, tanto para a reprodução quanto para a extensão da cultura adulta. Para o autor:

O termo reprodução inclui a ideia de que as crianças não se limitam a internalizar a sociedade e a cultura, mas contribuem ativamente para a produção e mudança culturais. O termo também sugere que crianças estão, por sua própria participação na sociedade, restritas pela estrutura social existente e pela reprodução social. (CORSARO 2011, p. 31-32, grifo do autor).

Nessa perspectiva, a participação das crianças nas rotinas culturais vividas junto aos adultos, desde o início da vida, se transforma de “limitada” em uma “plena participação” (CORSARO, 2011, p. 32). É por meio de micro processos sociais que o desenvolvimento social infantil é visto por Corsaro (2011) como um “complexo produtivo-reprodutivo”, não cabendo aqui a linearidade, porque o conhecimento é sempre reorganizado a partir de mudanças que ocorrem nos mundos sociais e nas rotinas culturais das crianças, por exemplo, quando passam a frequentar as instituições de educação infantil ou a escola.

Reflexões adicionais (e finais) sobre reprodução interpretativa e sua interface com o conceito de ator social

Como parte das reflexões adicionais sobre o conceito objeto deste artigo, podemos perguntar: qual é, afinal, sua importância no contexto das pesquisas na área da educação? Levando em conta que essa área assimilou muito rapidamente os princípios e conceitos da SI, desde a sua introdução em nosso país no final dos anos 1990, e que é crescente no Brasil o número de pesquisas educacionais que utilizam essa disciplina como base teórica (NASCIMENTO, 2013), sua importância é muito grande, pois tais estudos passaram a adotar o conceito de reprodução interpretativa.

Assim, a configuração do cenário que indica a ascensão da sociologia da infância nas pesquisas desenvolvidas com crianças em instituições escolares, o uso não reflexivo de alguns de seus conceitos, como indicam Marchi (2009) e Lancy (2012), e a crítica realizada por Prout (2010) à reprodução, pela SI, de dicotomias sociológicas clássicas, delineiam a relevância da discussão do conceito de reprodução interpretativa, que é central no novo paradigma para a realização de estudos sociais sobre a infância e com as crianças.

Os sociólogos da infância, sabemos, partem do pressuposto de que as crianças são atores sociais, que elas também pensam sobre o mundo e que agem sobre ele. Mas, como elas fazem isso? Quais são as evidências dessa ação, já que elas são também, ao mesmo tempo, o grupo geracional mais controlado e submetido a forças alheias? Em outras palavras, elas constituem o grupo social mais heterônomo, por serem submetidas à força de muitas instituições: da família, da escola, das leis etc.

Então, como as crianças agem sobre e na sociedade se, ao mesmo tempo, estão submetidas às diversas estruturas sociais? Essa questão é, em sua forma genérica, na verdade, a grande discussão da sociologia clássica, que se dedicou, em todas as suas vertentes, a investigar como funciona a máquina de fazer sociedade(s) ou a de produzir adultos socializados. Particularmente, esta é também a questão central para toda e qualquer forma de educação. Portanto, não será um breve texto como este que responderá tal pergunta, já que esta é a questão fundadora da sociologia no século XIX, em suas três vertentes ou paradigmas clássicos: qual é, afinal, a relação entre o indivíduo e a sociedade, ou qual a relação entre a objetividade das estruturas sociais e a (inter)subjetividade dos atores?

O que podemos afirmar neste texto, ou o que nos interessa aqui discutir, é o fato de que, com o estatuto de ator social, as crianças, mesmo limitadas por forças sociais que quase sempre não controlam, ou nem mesmo compreendem, pensam e agem no mundo que as cerca e fazem isso no âmbito do seu processo de socialização que, no entender da SI, não é um processo linear, unidirecional nem individual, e sim, como vimos neste artigo, um processo “redondo” ou com a forma de uma “teia” global.

Considerando que o conceito de reprodução interpretativa tem por base o conceito clássico (weberiano) de ação social e, assim, também o de intersubjetividade, isso significa, como vimos com Prout (2010), que a SI encampou antinomias que já estavam sendo reavaliadas no âmbito da sociologia geral, mas não significa que o conceito de ator social não serve mais para analisar fenômenos sociais contemporâneos. Pelo contrário, embora a reprodução interpretativa seja um conceito ligado à reflexão sociológica clássica, ela atualiza ou estende o conceito de ator social também às crianças, não deixando de destacar que as ações infantis não devem ser consideradas em um “vazio social” (PINTO, 1997)7.

Antes, na verdade, a análise de situações que envolvem grupos de pares infantis, a partir do conceito de reprodução interpretativa, pode extrapolar os limites intraindividuais de interpretações para considerar também as características de cunho social impressas nas ações das crianças. Deste modo, aspectos históricos, ideológicos e políticos que constituem as relações individuais ganham expressões pelas crianças, que interpretam e ressignificam o universo em que vivem, com os artifícios que lhes são possíveis ou que lhes estão disponíveis (ROSSETI-FERREIRA; OLIVEIRA, 2009).

Se o reconhecimento da criança como um ator social, portanto, como simplesmente um ser humano (MARCHI, 2017) e sujeito de direitos, não significa nada mais que reconhecer o óbvio, esta obviedade, no entanto, ainda sofre resistências no cotidiano social e mesmo no meio científico (MOLLO-BOUVIER, 2006; MARCHI, 2017), tendo que esperar até o final do século XX para poder ser enunciada. Pois não podemos esquecer que, para Durkheim, a ação social não era uma categoria chave, já que ele discutia o fato social, compreendido como força disciplinadora e coercitiva exercida “sobre” os indivíduos, fossem eles adultos ou crianças. Embora Weber tenha sido o autor que propôs a ação social como categoria chave para a compreensão da vida em sociedade, não há registro de se nesse conceito ele incluía também as crianças. Tudo indica que não. Para outro autor pioneiro da sociologia clássica, Karl Marx, o ator social era a classe, e não o indivíduo; e embora argumentasse que os homens fazem sua própria história, deixou claro que essa ação nunca é exercida dentro de circunstâncias de escolha dos indivíduos.

Assim, como afirma Giddens (2002), se, durante tanto tempo – o tempo em que durou o chamado consenso ortodoxo na sociologia –, o reconhecimento do estatuto de ator social e sujeito de direitos foi negado mesmo aos indivíduos adultos, como esperar que esta prerrogativa (a de agir socialmente) fosse concedida às crianças?

Foi somente a partir da Convenção sobre os Direitos das Crianças, de 1989, no cenário internacional e, no Brasil, da volta à democracia, em 1986, com a promulgação da nova Constituição e, posteriormente, a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1991 (alimentado em seus princípios pela Convenção de 1989), que a participação das crianças na vida em sociedade passa a ser admitida e reconhecida como um direito. Lembrando que esses movimentos no plano político internacional e nacional são simultâneos aos movimentos que ocorrem no plano teórico, na década de 1980, com o chamado “retorno do ator” e o crescente incremento da microssociologia, com o recuo das macroanálises realizadas pela sociologia funcionalista e também pela marxista. É esta “crise de paradigmas” (MARCHI, 2010) portanto, ocorrida nos estudos sociológicos da educação, com a volta das teorias interpretativas e das perspectivas interacionistas e etnometodológicas ao palco teórico (GIDDENS, 2002), que se abre caminho para o surgimento da sociologia da infância e de outras disciplinas que tomam uma categoria geracional (as crianças) como objeto (MARCHI, 2010).

Assim, a importância de um entendimento cada vez mais sofisticado sobre a agência e a voz das crianças tem se tornado central na SI, pois disto depende tanto aprofundar a compreensão da vida das crianças em sociedade, em sua diversidade, quanto dar respostas às críticas que o princípio da criança como ator social – e, por consequência, também o de reprodução interpretativa – tem recebido em diversas frentes. Essas críticas, como visto neste texto, dizem respeito ao fato de pesquisadores (notadamente na área da educação) tenderem a tratar apenas superficialmente da ação das crianças, que é vista como uma característica essencial, quase não mediada, e que não requer muitas explicações. Ou seja, quase não se discute o conceito a partir de análises contextuais ou nos quadros sociais dos quais crianças particulares fazem parte, deixando de considerar as estruturas econômicas, políticas e sociais, notadamente as que dizem respeito à classe social, que frequentemente balizam, limitam e possibilitam ou não a ação dos indivíduos na sociedade (BÜHLER-NIEDERBERGER; VAN KRIEKEN, 2008; LANCY, 2012; PROUT, 2010). A crítica se endereça, então, à forma como os conceitos (de ator social e reprodução interpretativa) têm sido utilizados nas pesquisas. Para Lancy (2012), é como se muitos investigadores que declaram assumir – à partida do estudo – a criança como ator social não conseguissem ou não se preocupassem em, efetivamente, demonstrar (por meio dos dados de campo), onde e como a ação das crianças se manifesta no contexto social observado.

O que se propõe discutir, portanto, é o fato de que a SI possa gerar, por conta do uso não reflexivo dos seus princípios e principais conceitos, críticas tanto no interior do próprio campo quanto fora dele, já que essa utilização indevida pode acabar por prescrever novas formas de entender a(s) criança(s) e a(s) infância(s) (EVANGELISTA, 2019).

Ao trabalhar com teorias e conceitos que propõem rupturas com antigos paradigmas, o pesquisador deve considerar que é sempre renovado e constante o caráter de sua (re)construção, como alerta Giddens (2002, p. 26), pois a reflexividade “solapa a certeza do conhecimento” ao aplicar, como princípio metodológico, os filtros da dúvida radical, em que se revisam, questionam e (re)examinam conceitos, paradigmas e doutrinas científicas. Neste movimento, o conhecimento e as práticas sociais sofrem uma constante retroalimentação: os conhecimentos produzidos são sempre revisados à luz de novas práticas que surgem a partir de novos conhecimentos.

Assim, este exercício, que faz parte do jogo científico e acadêmico, de (re)pensar novas possibilidades teóricas e/ou metodológicas deve, de forma reflexiva, servir para que não se comprometa a base teórica de disciplinas que deram origem a determinados conceitos, evitando que sigam caminhos opostos aos que inicialmente propuseram.

Para melhor compreensão e aplicação do conceito de reprodução interpretativa, portanto, além da necessidade de revisitar e compreender suas bases teóricas e epistemológicas, é preciso ampliar as análises realizadas pelos pesquisadores sobre a ação das crianças na sociedade, de forma que as linhas do debate sobre essas ações sejam distendidas e ampliadas, como forma de evidenciar como e onde as crianças agem.

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3 - São Elas: Sociologia da Infância, Antropologia da Criança, Filosofia da Infância e Geografia da Infância.

4- Este conceito está intrinsicamente ligado ao de “culturas infantis”, mas, para fins desta análise, será tratado de forma separada, ficando o conceito de culturas infantis para ser discutido em outra ocasião.

5- De acordo com as diferentes correntes que constituem a sociologia da infância, conforme Sarmento (2009): “estudos estruturais”, “estudos de intervenção” e “estudos interpretativos”. Em termos de análise e da temática investigada, este artigo está localizado nesta última corrente.

6- Sociologia da infância é a denominação que os novos estudos sociais sobre a infância recebem no campo de língua portuguesa, decorrente da denominação em língua francesa, sociologie de l’efance. No campo anglófono, esses estudos são conhecidos como social studies of childhood.

7- Para uma discussão crítica sobre o conceito de ator social atribuído às crianças na sociologia da infância, ver Marchi (2017).

Recebido: 05 de Outubro de 2020; Aceito: 12 de Novembro de 2020

Nislândia Santos Evangelista é mestre em educação pela Universidade Regional de Blumenau (FURB), graduada em psicologia pela Universidade Federal de Roraima (UFRR) e supervisora de disciplina nos cursos de psicopedagogia e psicologia do Centro Universitário Leonardo da Vinci (UNIASSELVI).

Rita de Cássia Marchi tem pós-doutorado em estudos da criança, é doutora em sociologia política e professora do curso de ciências sociais e filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Educação (mestrado e doutorado) da FURB.

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