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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 14-Jun-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248243360por 

Artigos

Ideologia e mudança de discurso de graduandos camponeses: contribuições bakhtinianas para a educação do campo

The ideological and discursive change of peasant undergraduate students: Bakhtinian contributions to peasantry education

Brenda Santos de Sousa1 
http://orcid.org/0000-0002-3965-2626

Frederik Moreira-dos-Santos2 
http://orcid.org/0000-0001-8038-147X

1- Universidade Federal da Bahia/Universidade Estadual de Feira de Santana, Salvador/Feira de Santana, BA, Brasil. Contato: brendasantos.bs978@gmail.com

2- Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Cruz das Almas, BA, Brasil. Contato: fredsantos@gmail.com


Resumo

Este artigo aborda os resultados de uma investigação que objetivou analisar as mudanças discursivas ocorridas em estudantes de uma turma do curso de Licenciatura em Educação do Campo. O ponto de partida do estudo foram reflexões acerca das desigualdades sociais no campo e o modelo de educação vigente, que descaracteriza e inferioriza esse lugar. A partir daí, problematiza-se a função social da escola e as reproduções das ideologias hegemônicas. Considerando a polifonia do discurso, foram investigadas as mudanças socioideológicas vividas por estes sujeitos a partir do contato com um novo projeto de educação para o campo que se propõe a ser contra-hegemônico. O campo de pesquisa foi o Centro de Ciência e Tecnologia em Energia e Sustentabilidade da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Os sujeitos da pesquisa foram cinco alunos de uma turma formanda selecionados mediante sorteio. Em seguida, realizamos entrevistas semiestruturadas para coleta dos dados e, posteriormente, uma análise do discurso à luz do pensamento bakhtiniano. Para este texto, que traz apenas uma parte do material coletado e analisado, buscamos demonstrar as percepções dos estudantes antes e depois das vivências no curso. Encontramos uma forte ênfase na importância do contato com diferentes discursos, tradições e mediação crítica, que influenciaram as mudanças de discurso majoritárias, no que se refere a uma maior abertura e melhor aceitação e convivência com a diversidade, implicando mudanças tanto no âmbito social quanto no pessoal.

Palavras-Chave: Polifonia; Educação do campo; Bakhtin; Ideologia

Abstract

This paper approaches the results of our investigation that aim to analyze the discursive change that happened in undergraduate students of a Peasantry Education course. The starting point of this research was reflections on social inequalities for peasant people and the educational model applied to them, which mischaracterizes and undermines them. Thereby, we criticize the reproduction of hegemonic ideologies as one of the social purposes of rural schools. In considering the polyphony of discourse, we investigated the subject’s socio-ideological changes experienced through contact with a new counter-hegemonic educational project for peasant people. The Science and Technology Center for Energy and Sustainability at the Federal University of Reconcavo of Bahia was the research field of this investigation. The subjects of this research were five students in their final year selected by raffle. Then, we conducted semi-structured interviews to collect data and subsequently analyze them through Bakhtinian discourse analysis. In this paper, we analyzed part of the material assembled to demonstrate the student’s perceptions before and after their experience in the undergraduate course. We found a strong emphasis on the importance of contact with several discourses, traditions, and critical mediation. These experiences influenced the students to change their majority discourses regarding a broader open-minded stance and improved their acceptance of diversity, implying social and personal changes.

Key words: Polyphony; Peasantry education; Bakhtin; Ideology

Introdução

Este artigo aborda mudanças discursivas e transformações socioideológicas ocorridas em estudantes do curso de Licenciatura em Educação do Campo com habilitação em Ciências da Natureza da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. O objetivo é contribuir para a sustentação da tese, com base na pesquisa3 realizada, de que é importante construir uma sociedade cada vez mais aberta e verdadeiramente democrática. Utilizamos como base para o nosso caminhar metodológico o contato com os diversos discursos e vivências ofertados pelas tradições que representem a diversidade cultural e os grupos marginalizados que analisamos. Por fim, objetivamos, também, demonstrar a importância da mediação crítica a partir desse contato.

Estudos apontam que historicamente o Brasil passou por vastos momentos de autoritarismo (SCHWARCZ, 2019). Pensando na concepção dialógica da linguagem através do pensamento de Bakhtin (2004), compreendemos que a palavra autoritária se mantém inerte ante as transformações ao longo do tempo, colaborando para a manutenção das estruturas de poder e, consequentemente, das desigualdades sociais. Dessa maneira, tradições são silenciadas, pois a palavra autoritária tende a se manter soberana e hegemônica. Tal mecanismo tem favorecido o apagamento em massa das culturas dos povos tradicionais originários, por meio de seu silenciamento sistemático.

Dentro desse escopo de comunidades epistêmicas desautorizadas estão os povos do campo com suas matrizes essencialmente pluriculturais, que não só lidam com a invisibilidade do Estado em todos os âmbitos, mas também não possuem a garantia do acesso a uma educação crítica e de qualidade. Não obstante, apesar da falta de preocupação do Estado com a educação, sempre se viu neste espaço um grande potencial econômico de geração de riqueza e lucro. É neste sentido que teve início o processo de modernização do campo brasileiro, que, por sua vez, precisou de uma educação instrumentalizadora para qualificar a mão de obra, movimento que ficou conhecido como Educação Rural (SANTOS; PALUDO; OLIVEIRA, 2010).

Buscando se contrapor a este modelo, nasce o projeto da Educação do Campo, fruto de muita luta dos movimentos sociais, que foi adquirindo princípios completamente opostos. Assim, percebe-se a existência de dois movimentos educacionais, no qual de um lado temos a Educação Rural, planejada e estabelecida através de estratégias autoritárias, e, de outro, a Educação do Campo, que se propõe a ser contra-hegemônica, demandada e construída pelos próprios camponeses. Diante disso, muitos sujeitos que vêm a cursar a Licenciatura em Educação do Campo podem passar por uma transição socioideológica, pois por muito tempo estiveram expostos aos discursos empregados na Educação Rural e/ou nos aparelhos reprodutores das ideologias hegemônicas. Essas transformações podem partir tanto das experiências com outros sujeitos quanto dos signos, ou seja, da palavra e do quanto delas podem ser interiorizadas. Dessa forma, para o desenvolvimento da pesquisa foram realizadas entrevistas semiestruturadas com cinco estudantes formandos do curso supracitado. Para o tratamento dos dados, recorremos à análise dialógica do discurso à luz do pensamento do Círculo bakhtiniano. Buscamos demonstrar as percepções dos estudantes antes e depois das vivências no curso, assim como perceber a ocorrência das palavras autoritárias e interiormente persuasivas, que serviram de instrumento basilar para apontar as mudanças de discurso e definir um recorte para a investigação.

No que tange à organização do artigo, primeiramente apresentamos uma breve caracterização do projeto da Educação do Campo, seguida pelos eixos teóricos que nortearam a análise do discurso empregada e os aspectos metodológicos da pesquisa. As seções subsequentes são dedicadas à análise do discurso feita com base nos enunciados coletados durante as entrevistas e, por fim, as considerações finais.

A Educação do Campo

De antemão, é necessário lembrar que os povos do campo inicialmente não tinham direito à educação e, após o processo de industrialização do país, apenas lhes foi oferecida uma educação instrumentalizadora, conhecida como Educação Rural (SANTOS; PALUDO; OLIVEIRA, 2010).

Segundo Vendramini (2015), tal educação se reduzia ao propósito de capacitar a mão de obra. A partir dessa realidade de demasiadas exclusões em vários aspectos, a Educação do Campo vem construindo, através de suas práticas e lutas, uma nova concepção de escola e de vida para o campo. Segundo Molina e Freitas (2011), esse movimento demarcado pela coletividade campesina tem questionado a forma como as escolas no campo têm lidado com o processo de obtenção do conhecimento e a recusa de vínculo com as comunidades ao redor.

Diversos legados, principalmente marcos legais, foram conquistados até aqui através de muita luta dos movimentos sociais ligados ao campesinato. Entretanto, é importante destacar que o processo de desmonte no cenário político educacional atingiu a Educação do Campo de várias maneiras. Santana, Medeiros e Gonçalves (2020) apontam, por exemplo, a extinção do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (Pronera) em 20 de fevereiro de 20204, dentre outros organismos de desenvolvimento da Educação do Campo.

Destarte, o foco desta pesquisa se refere especificamente ao curso de Licenciatura em Educação do Campo com habilitação em Ciências da Natureza. De maneira geral, os cursos de Licenciatura em Educação do Campo (LEdoC) pelo Brasil fazem parte do bojo do Movimento da Educação do Campo, realizando a formação de professores. Segundo Molina (2015), o movimento deve promover o ingresso dos sujeitos camponeses na educação superior, mantendo matrizes-curriculares que deem conta das dimensões políticas, sociais e pedagógicas e das especificidades da habilitação.

As primeiras LEdoCs se iniciaram por meio de projetos pilotos em universidades federais no ano de 2007. Com processos formativos pautados na Pedagogia da Alternância, têm atendido as especificidades da vida no campo e promovido a articulação, o vínculo e a troca de experiências com as comunidades de origem dos estudantes.

O estudo da ideologia em Marxismo e filosofia da linguagem: algumas considerações

No primeiro capítulo do livro Marxismo e filosofia da linguagem, Bakhtin começa e termina fazendo uma ressalva à importância da filosofia da linguagem e dos estudos dos signos para uma concepção de ideologia com base marxista. Segundo ele “tudo que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia” (BAKHTIN, 2004, p. 31).

Para afinar um pouco a discussão, relembramos que o conceito de ideologia para Marx e Engels faz referência à produção de ideias deslocadas do contexto social dos indivíduos. Estas são produzidas pela classe dominante como ferramenta de dominação, ou seja, para os autores a função da ideologia seria a de apagar as contradições existentes e de mascarar a realidade, colocando em sobreposição uma visão totalmente enviesada para manter os interesses de um determinado grupo. Reforçando essa compreensão, Brandão (2004) reitera que, segundo Marx, o que as ideologias fazem é inverter as relações de cabeça para baixo, como a refração da imagem na câmera, que demonstra o desvio de percurso a partir das ideias para chegar à realidade. Dessa forma, a ideologia proposta pela classe dominante visa inverter os princípios de causalidade das relações de trabalho e das injustiças sociais sofridas pelo povo.

Dito isso, agora voltando à concepção de ideologia em Bakhtin, podemos destacar que, em relação ao que Marx e Engels (1998) trouxeram em A ideologia alemã, percebe-se a existência de uma ampliação destes conceitos, sem a percepção de contradições necessariamente. De outra maneira, os filósofos alemães trazem uma perspectiva ideológica no contexto da superestrutura, enquanto Bakhtin apresenta como acontecem as interações entre infraestrutura e superestrutura, isto é, estabelece como a infraestrutura determina a ideologia nas relações de troca com a superestrutura.

Para Marx e Engels (1998), a infraestrutura e a superestrutura estão relacionadas às divisões sociais do trabalho e, consequentemente, ao lugar social que cada sujeito ocupa. A primeira é determinada pela base da estrutura política e econômica que delineia as relações sociais da classe trabalhadora. O segundo compreende duas instâncias, que são: a jurídico-política e as fontes de propagação ideológica da classe dominante. Dessa forma, essas duas estruturas configuram a sociedade de classes.

É através disso que o filósofo russo Bakhtin apresenta dois conceitos de ideologia, denominadas oficial e cotidiana. A primeira ocorre na superestrutura materializada nos aparelhos de domínio da classe dominante, como as instituições de regulamentação e formação midiáticas, artísticas, educacionais, religiosas e econômicas; e a segunda na infraestrutura materializada nas conversas de corredor de tais instituições, nos bastidores do debate político-partidário e das redações de jornais, nas rodas criativas das agências de propaganda e marketing, nos grupos familiares, nas rodas de amigos etc.

Contudo, o que gostaríamos de destacar nas questões supracitadas é a relação dialógica existente entre as estruturas. Neste ponto, para que a ideologia oficial, que Bakhtin também chama de constituída ou cristalizada, tenha efetividade e consiga se perpetuar ao longo da história, é necessário que ela se retroalimente da ideologia do cotidiano. É por meio dos signos que ocorrem estes cruzamentos, ou seja, é através da palavra que a ideologia toma corpo. Por conseguinte, os cruzamentos destas teias ideológicas ocorrem não somente em grupos de classes sociais distintas, mas também em comunidades que representam um mesmo grupo social.

Portanto, a ideologia criada pela classe dominante só pode se corporificar a partir de um meio material social, ou seja, ela não representa apenas ideias ludibriosas deslocadas do contexto real que passam impávidas ao movimento dialético da história, mas, ao se impregnar na teia social, ela deixa um pouco de si e se ressignifica de forma que as contradições se tornem aparentes. Tal fato nos revela que às vezes a classe dominante assimila de forma reacionária o discurso da classe trabalhadora, renovando as distorções da realidade nos discursos presentes na infra e na superestrutura. Distorções estas necessárias para a manutenção do status quo.

Um exemplo bem marcante dessa prática pode ser observado nos diversos fragmentos discursivos, transmitidos pelo canal de maior audiência nacional, sobre as dimensões e produções do agronegócio no Brasil e seus derivados utilizados nas indústrias. Estamos nos referindo à campanha publicitária “Agro é tech, agro é pop, agro é tudo”5, que apresenta uma imagem positiva da ideologia do latifúndio. Porém, há décadas a classe trabalhadora, em sua luta no campo a partir da infraestrutura, tem ressignificado o signo “agro” para aquilo que os movimentos sociais cunharam como agroecologia, que se fundamenta em outras bases contra-hegemônicas, invertendo a lógica do capitalismo neoliberal. A despeito desse movimento de liberação e de ataque à superestrutura, observa-se que este canal de televisão concatena o discurso que emerge da infraestrutura – ao dedicar um episódio à agroecologia – com o discurso ideológico da superestrutura, como se esta sobreposição fosse possível e natural sem a existência de profundas contradições internas.

Em consonância ao que foi dito, podemos afirmar que tanto as concepções de campo quanto sua função social podem partir de diferentes teias ideológicas que se referem, por exemplo, ao modelo do agronegócio a partir da ótica dos movimentos sociais.

De acordo com Assunção (2020), compreendemos que o campesinato tem convivido em meio a conflitos no que tange principalmente ao antagonismo referente a modelos de desenvolvimento para o campo. Estas diferentes perspectivas, envoltas em signos ideológicos, se materializam na própria língua e, por sua vez, podem ser assimiladas por grupos sociais, a depender do seu grau de infiltração e permeabilidade numa comunidade.

Questões de literatura e estética: as palavras autoritárias e interiormente persuasivas

No livro Questões de literatura e de estética (BAKHTIN, 2002), nos interessa o texto “A pessoa que fala no discurso”. Nele, o autor revela a compreensão de que todo discurso é carregado de múltiplas vozes e que, na linguagem cotidiana, essa pluralidade não é tão referenciada quando o citante fala a palavra. Dessa forma, o filósofo russo constata que pelo menos a metade das palavras transmitidas no cotidiano são de outrem. Assim sendo, o processo de escolha e de assimilação da palavra de outrem interfere diretamente na formação ideológica do sujeito.

É neste sentido que o Círculo bakhtiniano revela que os signos que perfazem a consciência individual do sujeito se manifestam como palavras autoritárias e interiormente persuasivas. As palavras autoritárias remetem ao passado histórico e não necessitam de verificação ou de persuasão, pois trata-se de algo dado e hierático.

De acordo com Clark e Holquist (2008), uma sociedade pode se dizer mais aberta ou mais fechada a depender do grau de palavras autoritárias que a perfaz. Assim, as palavras autoritárias tendem a se manter inertes ante todas as transformações históricas, pois elas não admitem modificações em suas estruturas.

Já as palavras interiormente persuasivas relacionam-se ao fluxo de palavras de outrem que fazem parte de um meio social, em que o sujeito as seleciona e as modifica a partir de sua assimilação individual. Nessa situação, a palavra interiormente persuasiva consiste em uma parte de outrem e uma parte do sujeito, que se inter-relacionam e conflitam entre si a todo momento.

A diferença, então, entre a palavra autoritária e a palavra interiormente persuasiva está na palavra do sujeito. No primeiro caso o sujeito, ao apreender determinado discurso autoritário, não coloca nada de si, pois essa assimilação não permite a ressignificação. Já no segundo caso, o falante pode realizar a ressignificação através de seu próprio entendimento. É neste conflito interno pela supremacia de discursos, muitas vezes opostos, que ocorrem as transformações ideológicas.

Diante disso, podemos considerar que, no que se refere ao caráter dialógico da linguagem, tanto a palavra autoritária quanto a persuasiva têm em suas bases o conflito. Enquanto a palavra autoritária tende a silenciar os conflitos com outras vozes, mantendo-se hegemônica e dogmática, a palavra persuasiva estima e valida o potencial dinâmico desses conflitos.

Metodologia

A despeito da polifonia do discurso e da formação da consciência individual em razão do meio em que somos inseridos, para a construção de uma sociedade mais aberta e respeitosa é preciso que haja uma verdadeira democracia em relação aos enunciados sobre a infraestrutura que são colocados em circulação. Entretanto, o que ocorre é a sobreposição de uma corrente ideológica formada na superestrutura e o silenciamento de certas vozes que estão à margem no contexto sociopolítico e econômico.

Desse modo, com o que os estudantes da Educação do Campo, no âmbito de suas vivências, podem contribuir para este debate? Quais mudanças discursivas ocorreram depois das experiências no curso? Essas mudanças vão confirmar nossa hipótese referente à importância do contato e mediação crítica com as vozes silenciadas? Assim, na pesquisa realizada com uma turma formanda do curso de Licenciatura em Educação do Campo, localizado no Centro de Ciência e Tecnologia em Energia e Sustentabilidade da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, foram convidadas cinco pessoas, selecionadas por meio de sorteio, para a realização de entrevistas semiestruturadas. As perguntas foram validadas mediante a contribuição dos membros do grupo de pesquisa Entendimento, Linguagens e Tradições6.

Para a organização do material, as falas foram gravadas, transcritas e categorizadas em: a) fala discursiva; e b) fala descritiva. Nas falas discursivas foram enquadradas as enunciações em que o falante fazia um discurso sobre um tema ou fato. Por sua vez, nas falas descritivas foram abrangidas as enunciações com um caráter mais fenomênico, em que o entrevistado tenha feito a descrição de algo ou de algum fenômeno.

Feito isso, separamos as narrativas em antes e depois do curso e demarcamos a ocorrência de palavras autoritárias e palavras interiormente persuasivas nos trechos categorizados. Isso foi importante para delimitar o material e também pelo fato de o próprio teor discursivo das respostas já poder trazer dados para alcançarmos o nosso objetivo, uma vez que foram feitas perguntas abertas aos entrevistados. No entanto, por inúmeros fatores, não existiria a garantia da completude das respostas; por isso, notificando a ocorrência dessas palavras supracitadas por meio da análise dialógica do discurso, à luz do pensamento de Bakhtin (2002, 2004), teremos subsídios teóricos para fundamentar mais precisamente nossa investigação. Dessa forma, os trechos apresentados na seção seguinte representam apenas uma parte do material total coletado, que foi selecionado de acordo com a ocorrência de palavras autoritárias ou interiormente persuasivas facilmente identificadas pelo teor discursivo.

Uma breve caracterização dos estudantes mostra que a turma a qual eles pertencem conta com aproximadamente 38 estudantes, entre eles 26 mulheres e 12 homens, em sua maioria negros, oriundos de diversos municípios da Bahia: Feira de Santana, Antonio Cardoso, Iraquara, Itaguaçu da Bahia, Santanópolis, Serrinha e Ourolândia. Dos sorteados, quatro são mulheres e um homem. Com exceção de um dos selecionados, todos os outros residem na zona rural, mais precisamente em municípios localizados no interior da Bahia e distantes do campus da universidade, e se autoidentificam como pretos e pardos. Além disso, todos apontaram dificuldades financeiras para a permanência no curso.

Análise do discurso nas entrevistas com estudantes do curso de Licenciatura em Educação do Campo

Margarida Maria7

No Quadro 1 podemos visualizar os trechos descritivos das falas de Margarida Maria antes e depois do curso. Em R1 há uma referência a uma autoridade, a voz paterna, que implicava diretamente como era o funcionamento de sua rotina antes do curso. Em Questões de literatura e estética, Bakhtin (2002) explica que a palavra autoritária se relaciona com um passado hierárquico ou com o nome do que não se pode tomar em vão.

Quadro 1 corpus elaborado contendo as falas descritivas da primeira entrevista 

Fala descritiva antes do curso Fala descritiva depois do curso
  • Pergunta: Como era a tua rotina antes de entrar no curso?

  • R1: […] eu nunca tive muita liberdade assim de sair, porque meu pai foi sempre muito rígido e aí ele não deixava sair, às vezes eu saia assim quando tinha festa da igreja, aí eu ia. Aí o pastor ia buscar o pessoal do assentamento, ia todo mundo né pras festas da igreja […].

  • Pergunta: Quais as principais dificuldades que você teve de adaptação no curso?

  • R2: […] por exemplo, quando tinha assim alguma palestra, alguma coisa assim que tinha alguma conversa, algo que remetesse à religião e que eu não concordasse, aí eu não gostava muito, assim, eu respeitava e tudo, mas eu não concordava. Já teve uma palestra que eu saí porque eu não concordei com a forma que tava sendo abordado e tinha tocado no assunto da religião e aí eu não tinha concordado […].

Fonte: Elaborado pelos autores.

R2 demonstra que Margarida se percebia bastante fechada para o diálogo que tivesse um ponto de vista divergente do seu, sendo a questão religiosa uma das principais causas para esse fechamento. Nesse episódio, nota-se o movimento de negação e não aceitação da interiorização de vozes alheias que confrontem suas posturas. Assim, percebe-se a palavra religiosa como autoritária, impedindo que outras palavras exteriores contrárias a ela dialoguem com os demais discursos que já compõem a consciência do sujeito em questão.

Na citação R1 das falas discursivas do Quadro 2, Margarida profere um discurso sobre fé. Neste trecho, a entrevistada utiliza “a gente”, trazendo a percepção de que, para a existência desse enunciado, foi necessário que Margarida trouxesse a presença indireta de outras vozes que compartilham desta mesma percepção, como a comunidade religiosa.

Quadro 2 corpus elaborado contendo as falas discursivas da primeira entrevista 

Fala discursiva antes do curso Fala discursiva depois do curso
  • Pergunta: Quais estratégias você utilizava para lidar com situações de tristeza ou momentos difíceis na família, envolvendo pessoas próximas ou no mundo?

  • R1: Assim… primeiro acho que sempre quando a gente passa por dificuldades, sempre a tendência da gente é se apegar mais a Deus é, buscar mais e pedir a Deus para interceder […].

  • Pergunta: Quais as principais mudanças que você nota pensando em como você era antes e quem você se tornou depois do curso?

  • R2: Todo mundo tem a sua verdade e eu não preciso que a minha verdade seja absoluta para todo mundo, então eu tenho que respeitar a verdade do outro.

  • Pergunta: Quais estratégias você utilizava para lidar com as situações de tristeza ou momentos difíceis na família, envolvendo pessoas próximas ou no mundo?

  • R3: […] às vezes eu questionava também porque, a depender do momento difícil que a pessoa esteja passando, quando ao mesmo tempo dá força assim na fé né, pra gente buscar mais e tudo mais, ao mesmo tempo a pessoa acaba questionando: por que é que isso tá acontecendo? Por que Deus tá deixando estas coisas acontecerem?

  • Pergunta: Quais as principais mudanças que você nota pensando em como você era antes e quem você se tornou depois do curso? R4: […] eu sei que isso é um direito meu de estar dentro da universidade, então isso é fazer política, é você lutar pelos seus direitos, então a política está muito além de um governo, está muito além para todos nós.

  • Pergunta: Quais estratégias você utilizava para lidar com as situações de tristeza ou momentos difíceis na família, envolvendo pessoas próximas ou no mundo?

  • R5: […] eu mesmo falava para mim, falava para Deus não deixar eu mudar porque eu achava que era coisa ruim e conhecer outras coisas era coisa ruim, aí eu dizia que não queria mudar, meu pensamento era aquele e acabou.

  • Pergunta: O que você acha que mais influenciou estas mudanças?

  • R6: O espaço de reconhecimento, de identidade, como eu já tinha falado né… O espaço onde as pessoas têm muita gente negra e que assume sua identidade, e isso é um motivo muito forte para a gente, e aí eu acho que foi de forma mesmo que uma construção, aos poucos assim. […] Mesmo a gente morando em comunidade, a gente vê que a maioria das pessoas sempre alisa o cabelo e sempre fala que o bonito é o cabelo liso de chapinha e tal, e aí não acham legal cabelo cacheado e aí, talvez por isso eu nunca tenha tido essa vontade.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Ainda na mesma pergunta, ao mesmo tempo em que a falante traz outras vozes para reforçar que nos momentos difíceis a fé deve se tornar ainda mais forte, na passagem R3, ao se fazer um questionamento, vem à tona a existência de um conflito interno e, na passagem R5, a palavra autoritária religiosa surge apaziguando e buscando calar as vozes conflitantes, ecoando uma verdade absoluta e mantendo-se soberana.

Nos trechos R2 e R4, notificamos a ocorrência de palavras interiormente persuasivas. Nessas passagens, Margarida está reconhecendo a complexidade, os conflitos e a historicidade da multiplicidade de valores sociais. Segundo Bakhtin (2002), a palavra interiormente persuasiva é determinante para o processo de transformação ideológica da consciência individual.

Na passagem R6, pela forma como Margarida fala sobre seu cabelo, podemos considerar que esta mudança representou mais do que questões puramente imagéticas, ao observarmos explicitamente as vozes da comunidade negra organizada e proativa quanto à retomada de sua ancestralidade. Nesse sentindo, de acordo com Farias e Faleiro (2017), apontamos a importância da Educação do Campo para a construção não somente da identidade campesina, mas também da identidade negra.

É importante destacar que a Bahia é o estado com maior percentual de pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas do país, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010). No entanto, mesmo Margarida estando imersa num contexto majoritariamente negro antes do curso, na citação R6 observamos a ocorrência do discurso que se desenvolve na superestrutura e que se infiltra na infraestrutura, estabelecendo o padrão de beleza branco e definindo o apagamento das características físicas de corpos negros.

Maria da Penha

No Quadro 3, observamos trechos das falas descritivas de Maria da Penha. Nos trechos R1, R3 e R5, percebemos a ocorrência da voz autoritária da escola. Pela menção às palavras “Escola Família Agrícola”, podemos perceber que esta era a questão principal que definia a rotina de Maria da Penha antes do curso e que, ao mesmo tempo, representava uma angústia para ela.

Quadro 3 corpus elaborado contendo as falas descritivas da segunda entrevista 

Fala descritiva antes do curso Fala descritiva depois do curso
  • Pergunta: Como era a tua rotina antes de entrar no curso?

  • R1: Sempre dediquei mais aos meus estudos porque, assim, quando eu estudava na Escola Família Agrícola, as quinzenas, que são chamadas lá, a gente estudava e não tinha muito tempo livre em casa, então não havia tanto tempo livre para ser sincera.

  • Pergunta: Quais as principais mudanças que você nota pensando em como você era antes e quem você se tornou depois do curso?

  • R2: Então assim foi uma experiência muito grande para mim, estar aqui e temos assim mais liberdade, porque na universidade você é livre para vestir o que você quiser, para você assistir à aula sim ou não, para você pegar no celular esse tipo de coisa.

  • Pergunta: Quais estratégias você utilizava para lidar com as situações de tristeza ou momentos difíceis na família, envolvendo pessoas próximas ou no mundo?

  • R3: […] eu sempre fui muito pé no chão. Eu sempre tive um bom acompanhamento familiar, um diálogo com os meus pais, não vivi muito a minha adolescência porque eu acabei [me] dedicando muito aos estudos técnicos na época.

  • Pergunta: Quais as principais mudanças que você nota pensando em como você era antes e quem você se tornou depois do curso?

  • R4: Tem outra coisa também, assim, na realidade, porque assim, querendo ou não as culturas aqui na universidade, você tem um encontro de culturas e uma diversidade de gêneros, de gostos, então assim… você convive com várias pessoas ao mesmo tempo e realidades diferentes, então você aprende muitas coisas e você também encontra a sua própria identidade, entendeu? Então é um espaço assim, para você se sentir livre e eu me senti livre para me sentir ser o que eu quisesse ser, não sob pressão sobre pessoas.

  • Pergunta: Como era a tua rotina antes de entrar no curso?

  • R5: a Escola Família Agrícola, ela tem se distanciado bastante da minha família, da minha realidade familiar e amigos, por estar fora sempre muitos dias então, assim, mesmo próximo de casa eu era obrigada a estar fora, e sobre regras, muitas regras, isso foi um tempo de sete anos.

 

Fonte: Elaborado pelos autores.

É importante apontar que, segundo Althusser (1974), o sistema educacional funciona como um aparelho reprodutor da ideologia do Estado e, consequentemente, da classe dominante. No entanto, percebe-se que as Escolas Família Agrícola, que surgiram no Brasil no final do século XX, têm como objetivo a construção de uma educação que valorize o modelo de vida no campo e a busca por autonomia, liberdade e emancipação desses povos (RIBEIRO, 2010), contrapondo, então, o modelo do Estado que empreendia uma educação urbanizada e eurocêntrica. Sobretudo por meio da citação que aparece em nossa análise, é interessante refletir até que ponto as Escolas Família Agrícola têm conseguido fugir do modelo da educação tradicional oferecida pelo Estado, sem cair em um autoritarismo exacerbado que pode minar as subjetividades dos sujeitos.

Nas descrições R2 e R4, visualizamos a ocorrência das palavras interiormente persuasivas materializadas no reconhecimento da diversidade cultural e de uma maior liberdade de expressão entre os estudantes. Dessa forma, percebe-se que o contato com a multiplicidade de discursos trazidos por várias tradições pode modificar a forma como o sujeito se enxerga e age no mundo.

Na passagem R1 do Quadro 4, percebemos a voz autoritária do pai. Na passagem R2, Maria da Penha inicia com um discurso sobre a importância de conviver com a diversidade, de forma a tomar um caráter enunciativo mais amplo, e não necessariamente se restringindo à sua realidade específica quando fala na passagem R2: “Acho que talvez nosso mundo seria diferente se…”. No entanto, ao se referir a “aquele ambiente monótono”, Maria da Penha deixa transparecer ligeiramente que está destinando sua fala a um interlocutor implícito, que pode simbolizar sua antiga rotina na Escola Família Agrícola.

Quadro 4 corpus elaborado contendo as falas discursivas da segunda entrevista 

Fala discursiva antes do curso Fala discursiva depois do curso
  • Pergunta: Como era a tua rotina antes de entrar no curso?

  • R1: […] os meus pais eram muito conservadores, então por esse motivo também eu acabei me relacionando muito cedo e hoje vejo que muitas coisas não consegui aprender e aproveitar a minha infância.

  • Pergunta: Quais as principais mudanças que você nota pensando em como você era antes e quem você se tornou depois do curso?

  • R2: Acho que talvez nosso mundo seria diferente se várias pessoas tivessem oportunidade de conviver na universidade, nesse fato de estar em diversidade, em um ambiente diversificado de culturas e identidades, não aquele ambiente monótono.

 
  • Pergunta: Quais as principais mudanças que você nota pensando em como você era antes e quem você se tornou depois do curso?

  • R3: Acho que a universidade me fez gostar de quem eu sou e do que eu gosto de fazer e do meu comportamento, eu acho que foi isso as principais mudanças que eu vejo.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Em decorrência disso, parafraseando Bakhtin (2004), destacamos que a palavra está sempre carregada de um sentido ideológico ou vivencial e que somente reagimos àquelas que dizem respeito às consonâncias de nossa própria existência.

Dorothy Stang

No Quadro 5 temos os trechos das falas descritivas de Dorothy Stang. Na passagem R1, quando a falante se refere à sua condição religiosa, ela não faz um voto de pertencimento. Entretanto, no trecho R3, demonstra certa reserva quanto a diferentes profissões de fé. Na passagem R2, porém, remetendo ao período depois do curso, Dorothy Stang menciona o reconhecimento da diversidade cultural e o impacto desse reconhecimento na sua rotina.

Quadro 5 corpus elaborado contendo as falas descritivas da terceira entrevista 

Fala descritiva antes do curso Fala descritiva depois do curso
  • Pergunta: Como era a tua rotina antes de entrar no curso?

  • R1: Antes eu era católica, mas não era católica praticante, então não considero que eu era católica.

  • Pergunta: O que você faz nas horas vagas agora, depois do curso?

  • R2: Nas horas vagas eu faço a mesma coisa que fazia antes, só que agora, depois que eu entrei aqui, abriu a mente para outras coisas, aí já me permitir fazer, tipo: visitar vários tipos de igreja, não só a católica, visitar terreiro, várias religiões; e a questão cultural também influencia um pouco, tipo tipos de música, livros que lia antes era só romance.

  • Pergunta: Quais as principais mudanças que você nota pensando em como você era antes e quem você se tornou depois do curso?

  • R3: Eu tinha preconceito tipo com evangélicos, questão do candomblé também […].

 

Fonte: Elaborado pelos autores.

Quando tal reconhecimento é notificado, por sua vez, dá-se lugar ao processo de transformação ideológica da consciência individual. Segundo Bakhtin (2002), as palavras interiormente persuasivas permanecem sempre num conflito intenso e num inter-relacionamento com outras palavras interiormente persuasivas. A transformação ideológica acontece justamente quando, através dos conflitos e inter-relacionamentos de diferentes pontos de vista, uma nova voz se destaca. Esta nova voz tende a sempre permanecer aberta para ser enquadrada em novos contextos e novas ressignificações, diferentemente da voz autoritária que não permite ser ressignificada.

Nos enunciados discursivos R1 sobre identificação no Quadro 6, destacamos as interações sociais que têm construído a nova comunidade semiótica que Dorothy Stang passou a integrar depois do curso. Nestas inter-relações dialógicas entre as múltiplas vozes nesse cenário, percebemos a apropriação das palavras exteriores, que não se relaciona somente com a apreensão e transmissão na íntegra a partir das vivências, mas também com reelaborações feitas pelo próprio falante.

Quadro 6 corpus elaborado contendo as falas discursivas da terceira entrevista8 

Fala discursiva depois do curso
  • Pergunta: Quais as principais mudanças que você nota pensando em como você era antes e quem você se tornou depois do curso?

  • R1: Hoje eu não falo que eu tenho religião, eu frequento vários espaços, nunca deixei de acreditar, mas me deu outros olhos. Cada uma [religião] tem uma particularidade que eu acho positiva e outra negativa, igual, no centro espírita eu achei massa porque eles não têm o altar nem nada, eles cultuam mais a questão mais dos alimentos naturais e aí no altar tem os alimentos, eu achei interessante [que] a ciência é bem recebida. Uma coisa que eu não gostei foi, durante o culto, eles fazer coisa muito apelativa, tipo igual alguns da igreja evangélica, algumas igrejas apelam, faz coisas apelativas demais para convencer que a igreja é boa e que se você ficar lhe contribuem financeiramente, você vai crescer financeiramente, que eu não gostei foi isso. A questão da umbanda eu acho muito legal uma coisa que eu não… que eu acho negativa é, tipo assim, não ter o autorreconhecimento, ter preconceito.

  • Eu falo que é umbanda, mas o pai de santo em si não se vê como umbanda, como candomblé, se vê como rezador.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Sentimos, então, o movimento das vozes alheias exteriores indo de encontro às vozes interiores. Já compreendemos que a palavra vai à palavra (BAKHTIN, 2004). Neste segmento, reflete-se o caráter dinâmico e complexo das construções enunciativo-discursivas do sujeito. Isso nos possibilita afirmar que o indivíduo em interação traz referências de contatos anteriores com diferentes comunidades semióticas, permitindo a alteração de sentidos e significados das palavras que já faziam parte de sua consciência. Esse processo só acontece devido à flexibilidade e permeabilidade das palavras interiormente persuasivas às transformações históricas e aos diferentes contextos.

Maria Felipa

Não ocorreram alterações em grande escala na rotina de Maria Felipa. Um fato em destaque pode ser visto na passagem R3, em que a entrevistada revela que alguns professores e algumas disciplinas foram responsáveis pelas mudanças que enxerga nela mesma, conforme o Quadro 7.

Quadro 7 corpus elaborado contendo as falas descritivas da quarta entrevista 

Fala descritiva antes do curso Fala descritiva depois do curso
  • Pergunta: O que você fazia nas horas vagas antes de iniciar o curso?

  • R1: [No] pouco tempo livre que eu tinha, quando tinha eu ia pra roça. Eu trabalhava praticamente doze horas por dia, eu era cozinheira de restaurante, batia massa, cozinhava de manhã pra tarde e à tarde batia massa pra noite, pegava das 7h às 19h. Aí, uma folga na semana e quando tinha essa folga, e emendava com o feriado, aí eu ia na roça.

  • Pergunta: Como era a rotina antes de entrar no curso?

  • R2: Sempre foi: trabalho, casa, igreja. E agora ficou: trabalho, casa, igreja, mais estudos. Tempo livre é pouco, e quando tem assim uma folguinha, é isso, fica um dia na roça como estou indo hoje, fica hoje, amanhã, e sábado já retorno.

 
  • Pergunta: O que você acha que mais influenciou estas mudanças?

  • R3: […] eu digo que foi algumas disciplinas que me fez ver outro modo de pensar, outro modo de ver as coisas, as coisas novas que aprendi não vou esquecer nunca; então acho que algumas disciplinas, alguns professores, não vou citar nome de nenhum, mas tem professor aqui que eu admiro muito.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Em relação ao papel dos professores nas mudanças apontadas por Maria Felipa, acreditamos que é um ponto difícil de analisar, pelas poucas referências trazidas na entrevista. Mas, segundo Bakhtin (2002), a voz do professor também pode ser uma voz autoritária devido ao poder simbólico que a posição lhe confere. Entretanto, a depender da estratégia de abordagem, ela também pode soar persuasiva ao trazer argumentos que o sujeito é livre para ressignificar e/ou alterar para o seu contexto.

No Quadro 8, estão os trechos discursivos de Maria Felipa. Na passagem R1, podemos ouvir as vozes de uma linhagem ideológica trazida pela superestrutura e incorporada na infraestrutura. Para Chauí (1980), uma das funções da ideologia é estender os valores da classe dominante para a classe dominada. Nesse segmento, compreendemos que as concepções que criminalizam os movimentos sociais são criadas pela classe dominante com o objetivo de confundir e minar as potencialidades de organização da classe trabalhadora, pois, quando organizada, possui maiores possibilidades de sair da posição de subalternidade.

Quadro 8 corpus elaborado contendo as falas discursivas da quarta entrevista 

Fala discursiva antes e depois do curso*
  • Pergunta: Quais as principais mudanças que você nota pensando em como você era antes e quem você se tornou depois do curso?

  • R1: Eu digo que a universidade me cresceu muito como pessoa e, assim, a minha forma de pensar assim… eu tinha outro pensamento do que era os movimentos sociais, eu tinha outra forma assim de pensar. Porque, assim, a minha educação que é a tradicional foi a urbana, do qual o meu pensamento sobre esse movimento dos sem terras era daqueles que invadiam e pegavam a terra que era do outro […].

  • R2: […] hoje não, eu vejo que ele não se apropria do que é dos outros, eles tinham conhecimento daquelas terras em uma coisa assim, sabe, que ela tá devendo, sabe!? Que tem dívida, sabe!? Que a terra está ali parada, que é improdutiva, conheci um pouco sobre a lei da terra porque é que eles fazem ocupação dessas terras brasileiras, e hoje assim meu conhecimento mudou muito, eu cresci muito como pessoa, como ser humano, e hoje eu tenho outro jeito de pensar […]*.

Fonte: Elaborado pelos autores.

* Não foi possível delimitar em colunas separadas as falas discursivas da entrevistada em antes e depois do curso sem o risco de que os trechos ficassem incompreensíveis. No entanto, acredita-se que é possível que o leitor consiga fazer essa diferenciação sem prejuízos.

Em relação ao trecho R2 do Quadro 8, é possível observar a presença das vozes dos movimentos sociais. Para argumentar sobre este ponto de vista, a falante traz uma voz autoritária materializada na voz da Constituição ao mencionar a Lei de Terras. Isso tem relação com o que afirma Bakhtin (2002) sobre como, muitas vezes, as vozes persuasivas carecem de autoridade.

Percebe-se que houve diferentes visões interpretativas dos movimentos sociais de luta pela terra no trecho em análise, sobre isso acreditamos que “o conceito de território carrega no seu interior noções como o poder, a ideologia, a disputa e o conflito” (CAMACHO, 2019, p. 68).

Assim, compreende-se que o contato com sujeitos de movimentos sociais oportunizou a ressignificação de posturas e discursos pela entrevistada, que até então estava passiva quanto à apreensão de discursos oriundos dos aparelhos de reprodução ideológica da classe dominante em relação à atuação dos movimentos sociais.

Raoni Metuktire

Sobre os enunciados de Raoni, destacamos alguns trechos evidenciados no Quadro 9. Na descrição R1, o falante, apesar de citar a forma como lidava com as situações difíceis antes do curso, ao mesmo tempo aponta as mudanças que enxerga em si mesmo. Dessa forma, a descrição não se refere integralmente ao período antes do curso, sendo selecionada por revelar que a aproximação com o mundo universitário pode ter ressignificado alguns posicionamentos de Raoni.

Quadro 9 corpus elaborado contendo as falas descritivas da quinta entrevista 

Fala descritiva antes do curso Fala descritiva durante o curso
  • Pergunta: Quais estratégias você utilizava para lidar com as situações de tristeza ou momentos difíceis na família, envolvendo pessoas próximas ou no mundo?

  • R1: […] questão divina era muito forte, falo muito forte, hoje não tem mais tanta força quanto antes, acho que a universidade quebrou um pouco isso de contabilizar os problemas profissionais e pessoais amorosos, de afetividade, de amizade. Com a questão divina a gente procurava um culpado para situação em vez de encarar de fato a realidade [e] poder tratar o problema.

  • Pergunta: Quais as principais dificuldades que você teve de adaptação no curso?

  • R2: No início foi bem sofrido por tá num ambiente diferente, num espaço diferente, culturas diferentes, sujeitos diferentes e por vir de um espaço totalmente diferente da metrópole que a gente encontra na universidade. Tomamos um choque cultural, como a gente encontra no curso pessoas de diversos gêneros e culturas e religiões e personalidades, principalmente… a gente sofreu esse processo de adaptação, mas que, com tempo, a gente compreendeu que faz parte dos processos de relações da vida.

Fonte: Elaborado pelos autores.

Em relação ao período de adaptação no curso, mais uma vez aparece a diversidade cultural presente neste espaço. Então, novamente aparecem as vozes, de um lado, religiosa e, de outro, relacionadas às múltiplas culturas e modos de vida.

No trecho dos enunciados discursivos apresentados no Quadro 10, durante vários momentos na entrevista, além de descrever seu período de adaptação, Raoni também traz uma reflexão sobre qual o impacto desse período de adaptação em sua vida e, consequentemente, nas mudanças. Novamente, a presença da diversidade cultural se revela muito forte na fala do entrevistado tanto no primeiro quanto no segundo trecho.

Quadro 10 corpus elaborado contendo as falas discursivas da quinta entrevista 

Fala discursiva depois do curso
  • Pergunta: Quais as principais dificuldades que você teve de adaptação no curso?

  • R1: […] o processo de adaptação, os choques culturais, me tornou uma pessoa madura pessoalmente e profissionalmente, me estimulou a sair da zona de conforto […].

  • Pergunta: Quais as principais mudanças que você nota pensando em como você era antes e quem você se tornou depois do curso?

  • R2: […] respeitar as diversidades que existe, assim… a universidade não deu conta de nos mostrar todas as diversidades que a gente tem na nossa sociedade e que acontecem nas relações sociais, mas muitas ela conseguiu nos apresentar e que a gente compreendesse. Eu compreender de maneira, assim, respeitosa e, principalmente, de uma visão muito aberta desses comportamentos, não sei se é o termo, dessas relações que acontecem na sociedade e dos gêneros que existem, dos gostos, das opções, das orientações pessoais e sexuais, dos comportamentos de identidade dos LGBT, dos que são de comunidade, dos que são quilombola, dos que são negros, dos que não são, e desse universo que acontece dentro da universidade, eu acho que isso me possibilitou e me ajudou a construir uma visão abrangente mais respeitosa das relações e como elas acontecem […].*

Fonte: Elaborado pelos autores.

* Não foi possível identificar no corpus máximo falas discursivas antes do curso que sejam interessantes para a análise.

Considerações finais

O caráter discursivo da pesquisa propiciou suporte para investigar quais possíveis mudanças discursivas puderam ser notadas nos estudantes do curso, uma vez que se depararam com um novo projeto de educação. Percebemos que, em relação à vida dos entrevistados antes do curso, era possível ouvir uma maior presença das vozes autoritárias, como a dos pais, da religião e da escola, e que, em contrapartida, depois do curso apareceram vozes que fazem referência à diversidade cultural, podendo, por sua vez, ser enquadradas como persuasivas. Dessa forma, as informações trazidas pelas respostas recortadas e sistematizadas mostram que o aspecto da diversidade cultural no espaço universitário foi a temática mais citada. Conectando-se com o primeiro princípio da Educação do Campo, que estabelece “I – respeito à diversidade do campo em seus aspectos sociais, culturais, ambientais, políticos, econômicos, de gênero, geracional e de raça e etnia” (BRASIL, 2010), esses enunciados discursivos nos trazem pressupostos para avaliar que as comunidades acadêmicas que perfazem o curso, de fato, têm buscado estar proativas e materializar esse primeiro princípio nas suas ações cotidianas.

Assim sendo, as mudanças discursivas majoritárias dizem respeito a uma maior abertura, melhor aceitação e convivência com a diversidade. Tais fatos implicam mudanças tanto no âmbito social quanto no pessoal, que se reflete em engajamento sociopolítico em alguns casos. Compreende-se que elas ocorrem devido à oportunidade de que estas múltiplas vozes fossem ouvidas no ambiente universitário, assim como à forma que a matriz curricular do curso é compreendida. Isso tem possibilitado uma maior circulação de vozes que podem ser apreendidas e uma ressignificação de muitas outras palavras e enunciados, tornando, por sua vez, as vozes autoritárias menos vigentes, como também demonstrando a importância da mediação crítica a partir do contato com a diversidade cultural.

Referências

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3- Disponibilidade de dados: o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo não está disponível publicamente por opção dos autores. O acesso aos dados pode ser solicitado diretamente à autora, pelo e-mail: brendasantos.bs978@gmail.com

4- Ver Decreto nº 10.252/2020.

5- O fragmento “agro é tudo” denuncia explicitamente a tentativa da ideologia da superestrutura de se colocar como discurso e signo ideológico totalizante, implicando que o agro está em tudo, está em todos; mas qual “agro”? De qual domínio semântico estamos falando? Aqui temos a ação direta de um aparelho autoritário em sua busca por normatizar os signos e seus significados, assim como negar as contradições ideológicas nas estruturas político-sociais ligadas ao campesinato.

6- O questionário foi aplicado previamente com alguns membros do grupo de pesquisa a fim de verificar como as perguntas eram compreendidas.

7- Os nomes foram alterados para preservar as fontes. Para cada participante da pesquisa, apresentam-se dois quadros, falas discursivas e descritivas (antes e depois do curso), conforme explicitado na metodologia.

8- Não foram encontradas falas discursivas no corpus máximo da entrevista com Dorothy Stang que remetessem a períodos antes do curso.

Recebido: 08 de Setembro de 2020; Revisado: 22 de Outubro de 2020; Aceito: 11 de Novembro de 2020

Brenda Santos de Sousa é licenciada em educação do campo com habilitação em ciências da natureza pela Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) e mestranda em ensino, filosofia e história das ciências pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS).

Frederik Moreira dos Santos é professor do Centro de Ciência e Tecnologia em Energia e Sustentabilidade da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (CETENS/UFRB), mestre em filosofia contemporânea pela UFBA e doutor em ensino, filosofia e história das ciências pela UFBA/UEFS.

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