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Educação e Pesquisa

versión impresa ISSN 1517-9702versión On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 24-Jun-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-46342022482241466por 

Artigos

Letramento e autoria: uma proposta de sequência didática para o ensino de literatura

Literacy and authorship: a proposal for a didactic sequence for the teaching of literature

Penha Élida Ghiotto Tuão Ramos1 
http://orcid.org/0000-0003-4824-8446

Analice de Oliveira Martins1 
http://orcid.org/0000-0003-1136-9527

1- Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil. Contatos: elidatuao@hotmail.com; analice.martins@terra.com.br


Resumo

Há práticas pedagógicas em que o ensino de literatura se restringe a aspectos teóricos, anacrônicos, biográficos e fragmentários, sem proporcionar momentos de diálogo entre os participantes do processo de ensino-aprendizagem, e sem promover a experimentação da linguagem. Tendo em vista esse contexto, este artigo tem por objetivos analisar e aproximar os conceitos de autoria e letramento literário e, a partir disso, propor uma sequência didática que vise ao ensino significativo de literatura. A perspectiva adotada é de que, ao romper o paradigma da teorização e assumir um caráter reflexivo e dialógico, os estudos literários que compõem as ementas da educação básica podem se expandir para o âmbito da criação, passando a constituir um espaço potencial de (re)significação e produção de discursos. Metodologicamente, a pesquisa pautou-se na revisão de literatura, seguindo um caráter qualitativo, e adotou como referência o ensino de Língua Portuguesa dirigido ao ensino médio. As análises demonstraram que as concepções de leitura e de autoria podem ser associadas em benefício da construção de estratégias de ensino, entre as quais está a constituição de um sistema literário em que o estudante tenha a atuação de leitor e de autor. Além disso, as discussões realizadas despertaram reflexões a respeito de dois aspectos: a posição que o estudante ocupa no contexto escolar e a potencialidade dos papéis que podem ser ocupados por ele.

Palavras-Chave: Literatura; Autoria; Letramento literário

Abstract

There are pedagogical practices in which the teaching of literature is restricted to theoretical, anachronistic, biographical and fragmentary aspects, without providing moments of dialogue between the participants in the teaching-learning process, and without promoting the experimentation of language. In view of this context, this article aims to analyze and approximate the concepts of authorship and Literacy in Literature and, based on that, to propose a didactic sequence aimed at the meaningful teaching of literature. The perspective adopted is that, by breaking the paradigm of theorization and assuming a reflexive and dialogic character, the literary studies that make up the basic education menus can expand to the scope of creation, becoming a potential space for (re) meaning and production of discourses. Methodologically, the research was based on the literature review, following a qualitative character, and adopted as a reference the teaching of Portuguese language directed to High School. The analyses showed that the concepts of reading and authorship can be associated for the benefit of the construction of teaching strategies, among which is the constitution of a literary system in which the student has the role of reader and author. In addition, the discussions that took place arose reflections on two aspects: the position that the student occupies in the school context and the potential of the roles that can be occupied by him.

Key words: Literature; Authorship; Literacy in Literature

Introdução

O pragmatismo da sociedade moderna trouxe significativas alterações para o ensino, repercutindo em uma busca por funções utilitárias para as escolas. Para o campo literário, não foi diferente: se, de um lado, ocorreu a defesa do ensino de literatura, de outro, indagou-se sobre a sua função na grade curricular da educação básica. É o que ressalta Perrone-Moisés (2016), quando afirma que, nos países ocidentais em geral, a disciplina de literatura passou por uma perda de importância progressiva que acarretou seu desaparecimento dos currículos escolares, como ocorreu na França, país para o qual a literatura constituía uma manifestação de identidade e garantia de prestígio internacional, mas, ainda assim, foi alijada “progressivamente dos currículos oficiais, o que provocou protestos e debates públicos na virada do século XX para o XXI” (PERRONE-MOISÉS, 2016, p. 75).

No Brasil, a literatura não constitui um componente curricular e está entre os conteúdos que integram a ementa de Língua Portuguesa, de forma mais explícita na etapa final da educação básica, o ensino médio. Antes, no infantil, costuma compor as contações de história; e, no fundamental, muitas práticas a adotam como estratégia para estudos linguísticos, de gêneros textuais ou para a realização de interpretação de textos. Assim, é comum que, em vez de leitura, debates e estudos de obras literárias, sejam realizadas atividades a partir de fragmentos literários: lê-se uma (parte da) poesia ou parágrafos de uma prosa para responder a perguntas de interpretação; lê-se um conto ou crônica para a identificação dos elementos que os constituem enquanto gênero textual.

Os Parâmetros Curriculares do Ensino Médio referem-se à literatura como área integrada à leitura (BRASIL, 2000, p. 18) e que, tendo em vista a aprendizagem do aluno, deve estar “além da memorização mecânica […] das características de determinado movimento literário” (BRASIL, 2002, p. 55). A oferta de momentos espontâneos para que os alunos “leiam coletivamente uma obra literária” e “leiam poemas de sua autoria” (BRASIL, 2002, p. 67) também fica sugerida em documentos oficiais. Na Base Nacional Comum Curricular, é recomendado que o texto literário não assuma um papel secundário nas práticas didáticas: “é importante não só (re) colocá-lo [o texto literário] como ponto de partida para o trabalho com a literatura, como intensificar seu convívio com os estudantes” (BRASIL, 2017, p. 499). Apesar de trazer um lugar aos estudos literários, os textos oficiais, entretanto, não dispõem de diretrizes para a formação do estudante enquanto leitor e autor, nem apresentam, para tal fim, uma proposta consolidada.

O trabalho com uma obra e todo o contexto que essa prática envolve não é, contudo, realizado em número expressivo. Existem, sim, práticas exemplares de vivência da literatura dentro da escola, mas que não acontecem para a maioria dos estudantes. E o motivo tem origem nas muitas faltas de que se constitui o contexto da leitura no Brasil: falta de formação adequada nas universidades para o trabalho com a literatura, falta de hábitos de leitura por parte dos professores, falta de biblioteca nas escolas, falta de livros, falta de motivação, entre outras tantas ausências. A inserção da literatura no cotidiano escolar merece defesa não só pelo prestígio histórico e cultural que detém mas também pela função que, enquanto leitura, desempenha na construção da subjetividade e da alteridade: “com efeito, cada um projeta um pouco de si na sua leitura, por isso a relação com a obra não significa somente sair de si, mas também retornar a si” (JOUVE, 2013, p. 53).

Atravessada por funções variadas, a literatura é a “expressão verbal artística de uma experiência humana criadora” (COELHO, 1976, p. 31), cujo ensino está muito além do cunho puramente didático-teórico ao qual, muitas vezes, está subordinada. Um ensino fundamentado na teorização, na exposição de fatos históricos, na leitura de biografias e de fragmentos literários não proporciona ao estudante a experiência leitora – a “entrada” na obra –, não provoca a fricção à qual a matéria literária se propõe nem oferece o essencial à dinâmica da leitura, o diálogo com e sobre o texto. Falar, ouvir, rebater, concordar e contestar faz com que, nas atividades de leitura, o aluno ocupe a posição de leitor, estabeleça vínculos com o texto e entre na realidade que se desponta pelas palavras. Por isso, entre outros aspectos, é possível falar, por exemplo, sobre identidade literária, uma identidade revelada e construída pela literatura, tendo em vista que “as obras colhidas são revestidas de valor na história pessoal do leitor: elas são providas, julgadas dignas de representá-lo” (ROUXEL, 2013, p. 69). Além disso, pode-se associar a prática da leitura literária à apreensão da literatura enquanto linguagem e refletir sobre seu ensino e aprendizagem como ações relativas ao letramento literário (COSSON, 2016).

Tendo em vista a importância da inclusão da obra literária – canônica ou não – nas práticas de ensino e a relevância da oferta de situações significativas de vivência e apreensão da linguagem literária, esta pesquisa tem por objetivos realizar uma análise do conceito de autoria e investigar sua aplicabilidade no meio educacional, junto ao de letramento literário, por meio de uma sequência didática que proporcione ao estudante a dupla perspectiva de leitor e de autor. Acredita-se que, ao atuar na função de leitor e de autor, o estudante poderá revisitar as instâncias que lhe servem de referência enquanto indivíduo e as que gravitam em seu plano social enquanto parte de um grupo. Para tanto, serão propostas e explanadas atividades que possam proporcionar ao estudante a experiência da intenção artística – pela função autor – e da atenção estética – pela função leitor –, vislumbrando a formação de um sistema literário na escola.

Metodologicamente, a pesquisa seguiu um cunho exploratório e tomou uma configuração qualitativa, à qual importou a singularidade das informações e suas correlações, no intento de cumprir os objetivos traçados. Para fundamentar a noção de autor e autoria, recorreu-se a contribuições teóricas que vinculam tal concepção à figura do outro – o texto, o discurso e/ou o leitor –, enquanto condição para sua existência. Passou-se, assim, por linhas distintas, referenciando-se por Barthes (2012), Maingueneau (2010, 2016), Foucault (2015), Possenti (2002) e Sautchuk (2003). Em seguida, a discussão foi encaminhada para o contexto escolar e recorreu-se a Assolini (2010), Sautchuk (2003), Bazerman (2015) e Tauveron (2014). Por fim, a teoria de Candido (2000) assistiu a definição de sistema literário; e Cosson (2016), Dolz, Noverraz e Schneuwly (2011) embasaram a proposição de estratégias de ensino por meio de sequências didáticas.

Desse modo, a pesquisa ficou organizada da seguinte forma: apresentação da abordagem teórica respectiva à autoria, letramento literário e sequência didática; delimitação de uma proposta para o ensino de literatura por meio da formação de um sistema literário; e considerações finais.

O que é um autor e a representação construída pelo leitor

Estabelecer uma definição para autor e/ou autoria é uma busca que foge à noção que se atribui à pessoa e transpõe-se para a instância de fenômeno – complexo –, compreendido de diferentes formas e por diferentes linhas teóricas. Tendo em vista esse aspecto, busca-se, nesta seção, relacionar algumas definições, noções ou funções dadas para autor/autoria, adotando como eixo a ideia de que a constituição desse elemento ou instância está vinculada, em alguma medida, ao discurso, ao texto e ao leitor.

Barthes, em 1967, declara que a escritura foge ao sujeito, como um desligamento, no qual, “fora de qualquer função que não seja o exercício do símbolo, […] a voz perde a sua origem, o autor entra em sua própria morte, a escritura começa” (BARTHES, 2012, p. 58). Paga-se, assim, a morte do autor com o nascimento do leitor, “espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita uma escritura”, defende Barthes (2012, p. 64). A constituição da noção de autor é chancelada pela atuação do leitor.

Expandindo essa noção, tem-se, na visão de Maingueneau (2010, 2016), três acepções, que, mesmo estreitamente ligadas, distinguem-se: duas são de valor relacional, e uma, de valor referencial. Na primeira, de valor relacional, autor é o responsável pelo texto, aquele que o assina: “é a do ‘garante’, da instância que assume a responsabilidade por um texto […] não é o enunciador do texto nem um indivíduo de carne e osso, mas uma instância híbrida que frustra essa distinção” (MAINGUENEAU, 2010, p. 141). Na segunda acepção, ainda relacional, autor equivale a um ator da cena literária, o produtor de livros, “refere-se a um estatuto socialmente identificado ao qual são atribuídas certas representações estereotipadas, historicamente variáveis” (MAINGUENEAU, 2016, p. 104-105). Já na terceira acepção, de valor referencial, a função autor “não consiste em responder por um texto singular, mas por um agrupamento de textos referidos a uma entidade que é identificável, que até pertence ao Thesaurus literário, quando alcança notoriedade” (MAINGUENEAU, 2010, p. 142). Nesta última acepção, autor é correlato à obra e distingue-se de outras zonas de produção discursiva, enquanto actor em ato, e, para tanto, “é preciso que terceiros o instituam como tal, produzindo enunciados sobre ele e sobre sua obra, em suma, conferindo-lhe uma ‘imagem de autor’” (MAINGUENEAU, 2016, p. 105). O cerne da construção da “imagem de autor” referida por Maingueneau (2010, 2016) está, novamente, na figura do outro, o leitor, e, por isso, essa terceira acepção sobressai entre as outras e interessa à pesquisa que se consolida neste artigo.

A aproximação entre autoria e obra encontra-se também em Foucault (2015, p. 274), para quem a existência de um autor está recoberta de traços históricos que o correlacionam a um conjunto de textos, de modo que “o nome do autor não é, pois, um nome próprio como os outros”, mas um nome que permite reagrupar e delimitar certo número de textos em um discurso e em seu modo singular: “a função autor é, portanto, característica do modo de existência, de circulação e de funcionamento de certos discursos no interior de uma sociedade” (p. 276).

A concepção de obra, dessa forma, ultrapassa a ideia de textualização e aproxima-se da noção de discurso, como um conjunto de outros discursos pertencentes a um grupo dentro de um contexto histórico, de modo “que entidades e ações que apareçam num texto tenham exatamente historicidade” (POSSENTI, 2002, p. 112). Para Possenti (2002), um autor é entendido como tal se assume duas atitudes: dar voz a outros e manter distância em relação ao próprio texto. Isso significa que o discurso presente em determinado texto não pertence ao autor, mas a uma comunidade cultural à qual ele pertence e sobre a qual age pela tomada de posição: “há indícios de autoria quando diversos recursos da língua são agenciados mais ou menos pessoalmente – o que poderia dar a entender que se trata de um saber pessoal posto a funcionar segundo um critério de gosto” (p. 121). Na abordagem de Possenti (2002), a autoria não se desvincula do discurso e, portanto, pertence a dada historicidade e comunidade.

O processo que marca o ofício do indivíduo que escreve é compreendido por Sautchuk (2003) a partir do princípio comunicativo da emissão e da recepção de um ato verbal, ou seja, na relação entre quem produz o texto e quem o lê. Essa relação, que envolve dois indivíduos convencionalmente distintos, particulariza-se na teoria de Sautchuk (2003, p. 4), por fazê-los convergir para um mesmo sujeito, de modo que o ato verbal de elaboração do texto escrito passa a concentrar tanto estratégias de produção quanto de recepção, “unindo e efetivando uma relação muito próxima entre leitura e escritura num processo simultâneo”. Assim, a escrita seria composta por ações de um enunciador e de um coenunciador que, respectivamente, correspondem ao escritor ativo (E. At.) e ao leitor interno (L. Int.): o primeiro executa a tarefa de escrita automaticamente (inconscientemente), e o segundo regula o processo, confirmando ou (re)elaborando o texto (conscientemente) pelos modelos ou componentes linguísticos e textuais que formam seu repertório. E, paralelo ao escritor ativo e ao leitor interno, estaria o leitor externo (L. Ext.): aquele a quem o texto se destina. Ainda que não traga um conceito para o termo autor nem faça uma distinção entre a noção deste e a de escritor, Sautchuk (2003) propõe a ideia de “escritor-leitor-do-próprio-texto”, o que se torna interessante por abordar e associar aspectos cognitivos da escrita e da leitura, essenciais no processo de autoria:

[…] o indivíduo-escritor, no momento da escritura, aciona as mesmas estratégias [cognitivas e metacognitivas] e os mesmos tipos de memória [de curto e de longo prazo] a favor de uma elaboração textual de melhor qualidade, contando com o auxílio do seu L. Int., que como leitor-do-próprio-texto, estaria elaborando também a estrutura semântica do texto e policiando a elaboração da sua superfície, por meio de um reconhecimento imediato (ou não) de modelos linguísticos apreendidos. (SAUTCHUK, 2003, p. 29-30).

Na elaboração textual, são resgatadas estruturas linguísticas acomodadas na memória do sujeito escrevente e são acionados mecanismos de leitura e de escrita a fim de alcançar qualidade na produção.

A noção de autoria está vinculada à representação que é construída por meio do texto e do leitor, por ser o autor um escrevente e portador de um discurso que, dupla e heterogeneamente, está marcado pela singularidade e pela coletividade discursivas. Falar sobre autoria é referir-se ao tripé que constitui um sistema literário: autor-obra-público. Refletir sobre a noção de autoria é refletir também sobre obra e leitura: estas enquanto legitimadoras daquela. É nesse sentido que se pretende a escrita escolar.

A autoria no contexto escolar: uma questão de escrita e de leitura

Ações dirigidas à leitura e à escrita na escola são essenciais para o desenvolvimento de diferentes competências necessárias aos indivíduos, não só em termos pedagógicos, mas também enquanto formação humana e cultural. Propiciar um ensino contextualizado, fomentado pela reflexão e pelo diálogo, traz ao estudante a posição de produtor de discursos, assim como o insere em redes discursivas, criando um espaço para a autoria.

Assolini (2010) equivale o espaço da oralidade ao discursivo, seguindo os preceitos de Pêcheux (1997), e entende que “dependendo da forma como a interpretação é tratada, o processo de instauração da autoria pode ser afetado negativamente, assim como a criatividade” (ASSOLINI, 2010, p. 143). Quando roteiros são fixados aos estudantes sem permitir que estes esbocem suas próprias interpretações e posicionamentos, o discurso pedagógico escolar:

[…] impede os estudantes de formarem para si uma rede de formações discursivas, a partir das quais existiriam espaços para a construção de gestos interpretativos, que permitissem a recuperação da historicidade do texto, dentre outras possibilidades. Esses gestos, quando castrados, intervêm negativamente no processo de instauração da autoria. (ASSOLINI, 2010, p. 147).

Por estarem intimamente ligados, a memória de longo prazo e o conhecimento prévio têm um caráter “acumulativo, expandível e modificável” que recai sobre o conhecimento linguístico, destaca Sautchuk (2003, p. 127), que, por isso, recomenda uma pedagogia da textualização direcionada ao ensino da leitura e da escrita para a formação do indivíduo-escritor – ou aluno-escritor –consciente:

O ensino/aprendizagem da produção escrita é um processo que prevê a passagem de uma atividade automática e improdutiva, porque só inconsciente, realizada apenas por um E. At., para uma fase intermediária em que se realiza o “despertar” do L. Int. e o seu treinamento consciente. Só então pode-se chegar a um indivíduo-escritor integralmente constituído e hábil para exercer o ato de escrever como uma atividade de eficácia comunicativa. […] Cabe à pedagogia da textualização educar esse L. Int., pois é ele quem, na verdade, “escreve” o texto. Enquanto o E. At. realiza uma espécie de projeção cognitiva (inconsciente) e predominantemente macroestrutural do texto, o L. Int. propicia uma retroprojeção metacognitiva (consciente) e predominantemente microestrutural, assegurando ambas as atuações a qualidade comunicativa final do texto. (SAUTCHUK, 2003, p. 127, grifos do autor).

A essa busca por modelos linguísticos é possível associar aspectos relativos aos gêneros textuais, os quais trazem à situação de escrita uma forma específica, relativa à intenção comunicativa e à função social do texto, em que “ter consciência dos gêneros e dos sistemas associados nos ajuda a identificar os pontos em que podemos refutar, intervindo para defender nossos próprios interesses e posições” (BAZERMAN, 2015, p. 34). Os estudantes se portam como escritores quando compreendem a escrita para além da forma e ultrapassam a tarefa de codificação. Isso, contudo, se torna uma tarefa complexa à medida que surgem dificuldades para textualizar o que é projetado internamente:

Um dos desafios regulares que os estudantes encaram como escritores, se de fato estiverem trabalhando a partir de seu próprio pensamento interior profundo, em vez de pensar na escrita sendo simplesmente um conjunto de formas e de exigências a seguir, é que eles se perdem em seus pensamentos e sua escrita elíptica, como o pensamento interior muitas vezes é (tal como descreveu Vygotsky, 1986). […] Certas palavras pessoalmente importantes podem ser usadas de modo idiossincrático ou com uma força entendida apenas pelo autor. Portanto, nessas situações, parcela importante da aprendizagem da escrita pelos estudantes consiste em expor e elaborar suficientemente seu pensamento e experiência, a fim de que suas ideias sejam inteligíveis para o leitor. (BAZERMAN, 2015, p. 129-130).

Catherine Tauveron (2014, p. 89) aborda a questão da escrita na produção literária e, para isso, institui o conceito aluno-autor, que designa aquele que produz um texto com intenção artística, com postura de autor. A autoria na escola se torna, assim, uma prática de escrita que vislumbra leitores:

Para um aluno, adotar uma postura de autor é se sentir autorizado a se colocar no espaço da classe: “Eu estou segura que aquele que aprende tem ainda um longo caminho a percorrer para alcançar o domínio da língua e do discurso, mas aprendendo quem eu sou, eu já me posiciono como um autor, investido de um projeto de efeito sobre o leitor com uma intenção artística, independentemente de minhas escolhas enunciativas, narrativas e linguísticas, singulares em minha escrita e em minha sensibilidade, e eu espero que me reconheçam e que me leiam como tal”. (TAUVERON, 2014, p. 89).

Na escola, é possível estabelecer uma relação estética entre o aluno que escreve e seus leitores em classe, caso o primeiro tenha permissão para adotar uma postura de autor e sua comunidade o autorize a desenvolver uma singularidade artística, afirma Tauveron (2014). Além da legitimação da postura de autor, outras condições são essenciais, conforme a pesquisadora francesa, e, entre elas, está “encorajar o aluno que escreve a extrair de sua experiência de leitor de literatura uma tática de escrita” (TAUVERON, 2014, p. 89), promovendo o diálogo da escrita com a leitura, de modo que o aluno tenha o desejo, enquanto autor, de escrever de forma singular. Outro requisito trazido por Tauveron (2014, p. 90) é “assegurar-se que a intenção artística do aluno-autor” responda “a uma atenção estética da parte dos leitores reais (professores e pares)”, pois “o autor se endereça à liberdade dos leitores para dar existência a sua obra”, de tal forma que “o aluno não é possivelmente autor de fato, somente se ele souber que a sua intenção artística vai promover na classe uma atenção estética”. Se, por um lado, a autoria depende de um jogo estético entre quem escreve e quem lê, por outro, estaria estritamente relacionada à postura de autor, o que Tauveron (2014, p. 87) trata pela expressão ethos discursivo. A respeito da autoria na escola, a pesquisadora ainda esclarece:

O jovem aprendiz somente é autor quando forma com seus pares uma comunidade de autores, convidados a exprimir e a confrontar seus projetos de escrita singulares: suas escolhas narrativas (“Eu escrevi Moi Georges para não escrever em terceira pessoa, para mudar um pouco”), o que os motiva afetivamente (“Eu coloquei Georges porque eu gosto muito do nome e não é o meu, a história não é verdadeira”), os efeitos esperados (“Eu não dei as razões da troca, é um mistério, é necessário guardar o mistério para o leitor”), as dificuldades encontradas, as hesitações, os remorsos, o que eles consideram como um sucesso e o que satisfaz o seu ego de autor (“Eu gosto muito da última frase: “eu a vejo arrepiar seus pelos e suas garras de um pouco mais de um centímetro”...). (TAUVERON, 2014, p. 91, grifos do autor).

A construção de uma proposta de escrita autoral para o contexto escolar deve, portanto, levar em conta a figura do aluno na posição autor e na posição leitor, em uma constante troca de papéis, no vai-e-vem de quem lê, escreve e, novamente, lê. Em relação ao desenvolvimento do estudante enquanto leitor tem-se a teoria difundida por Cosson (2016), o letramento literário.

Letramento literário e seus princípios

Em seu sentido primeiro, letramento “é o conjunto de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita em que os indivíduos se envolvem em seu contexto social” (SOARES, 2009, p. 72). Cosson (2016), por sua vez, traz esse conceito para o campo da literatura, enquanto letramento literário, para designar o processo de apropriação ou internalização da literatura como linguagem e destaca a singularidade da interação do leitor com o texto pela sua materialidade estética e discursiva. O teórico adota o princípio de que a leitura é uma prática social e está, por isso, vinculada a uma comunidade. Essa é uma perspectiva importante para esta pesquisa, pois norteará parte expressiva dos princípios que fundamentarão, mais à frente, a sequência didática de formação de um sistema literário em contexto escolar.

Para sistematizar as atividades de ensino de literatura, Cosson (2016, p. 40-41) apoia-se nas três etapas do processo de leitura: as intervenções que o leitor realiza antes de ler, como o contato com os elementos extratextuais do livro (capa e orelha, por exemplo), constituindo a antecipação; a leitura em ato, quando o texto é decodificado no encadeamento das letras e palavras, realizando o processamento; as inferências do leitor em termos de conhecimento de mundo que detém, fazendo a interpretação.

O caminho indicado por Cosson (2016) está embasado na formação de uma comunidade de leitores e, consequentemente, na oferta de um repertório cultural, em um movimento contínuo e gradual de inserção do aluno, pela prática, nos conhecimentos sobre literatura. Na comunidade, o diálogo torna-se uma dimensão fundamental para o letramento e deve ser praticado enquanto troca de opiniões e informações, em um exercício oposto ao criticado por Chaguri e Jung (2013, p. 931), os quais relatam práticas em que, desde o maternal, professores “desconsideram – ou consideram de forma equivocada – a oralidade e sua importância para a constituição do letramento do sujeito”.

Duas possibilidades de sistematização para as aulas de literatura são apresentadas por Cosson (2016): uma é a sequência básica, outra é a sequência expandida. Tanto a primeira quanto a segunda se fundamentam em três bases: o formato de oficina, cujo princípio é aprender pelo fazer, numa alternância entre atividades de leitura e escrita associadas à criatividade verbal; a técnica do andaime, segundo a qual a edificação do conhecimento está entre as atribuições do estudante, por meio da pesquisa e do desenvolvimento de projetos; e o uso de portfólio, enquanto registro do trajeto percorrido.

A sequência básica é constituída por quatro etapas – motivação, introdução, leitura e interpretação – que são descritas por Cosson (2016) sob um caráter orientador, como é verificável na síntese que compõe o Quadro 1.

Quadro 1 Etapas da sequência básica 

Etapa Descrição
Motivação Leitura das informações externas do livro, de forma lúdica, a partir, por exemplo, de um levantamento de hipóteses sobre o título; a explanação, reflexão, debate ou discussão sobre um aspecto temático do texto; o diálogo com outros textos, de tempos e gêneros distintos da obra lida; entrevista ou levantamento de depoimentos sobre o tema central. Deve ser oferecida ao leitor uma moldura que lhe permita “interagir de modo criativo com as palavras” (COSSON, 2016, p. 53), preparando-o para a leitura: “as mais bem-sucedidas práticas de motivação são aquelas que estabelecem laços estreitos com o texto que se vai ler a seguir” (p. 54). Recomenda-se que as interações envolvam leitura, escrita e oralidade.
Introdução
  • Apresentação da obra e de seu autor. A leitura é justificada e a obra é apresentada fisicamente (capa, orelha, prefácio...).

  • É preciso ter cautela para que esta etapa não se torne uma aula longa e expositiva sobre a vida do autor: “é importante que o professor tenha sempre em mente que a introdução não pode se estender muito, uma vez que sua função é apenas permitir que o aluno receba a obra de uma maneira positiva” (p. 61).

Leitura
  • Acompanhamento do processo de leitura, no papel de enriquecer ou auxiliar eventuais dificuldades – e não de policiamento

  • . É essencial que seja negociado um prazo com os alunos e que intervalos sejam estipulados. Os intervalos são momentos em que os alunos são convidados a apresentar resultados, o que pode ser feito em uma conversa sobre o andamento da leitura: “esse intervalo funciona, assim, prioritariamente, como um diagnóstico da etapa de decifração no processo de leitura. Por meio dele, o professor resolverá problemas ligados ao vocabulário e à estrutura composicional do texto” (p. 64).

Interpretação Dois momentos, um interior e outro exterior: o primeiro correspondente à leitura individual e o segundo, ao compartilhamento da interpretação em uma comunidade, a fim de ampliar os sentidos respectivos ao momento interno. É quando o professor propõe aos alunos a construção de uma resposta à obra, seja pela intertextualidade com uma música, seja pela dramatização de cenas, entre outras possibilidades.

Fonte: Adaptado de Cosson (2016, p. 51-69).

Pela ampliação das estratégias de sistematização, Cosson (2016), apresenta a sequência expandida, à qual, em relação à sequência básica, duas etapas são acrescidas, a contextualização e a expansão. Os intervalos para a etapa da leitura são aumentados e sofrem variação de acordo com a complexidade da obra escolhida, podendo ser elaborados em diálogo com outros textos que, de alguma forma, tragam contribuições para a interpretação.

A interpretação, na sequência expandida, acontece em duas etapas. A primeira é a apresentação global da obra e tem por objetivo oportunizar ao aluno a tradução de sua impressão geral do título; já a segunda equivale à leitura aprofundada de um dos aspectos da obra, como personagem, traço estilístico, correspondência com questões contemporâneas ou históricas, entre outras possibilidades que dependerão da contextualização que será desenvolvida.

Conforme orienta Cosson (2016), a primeira interpretação pode ser feita pela produção de um ensaio ou registro de um depoimento ou de uma entrevista e deve acontecer – ou, ao menos, ser iniciada – em sala de aula. Esse é um momento individual e de busca de uma apreensão global da obra. Pretende-se que o aluno, na função de leitor, desperte para “a necessidade de dizer algo a respeito do que leu, de expressar o que sentiu em relação às personagens e àquele mundo feito de papel” e que o professor tenha a incumbência apenas de “estabelecer as balizas para a produção do texto e não de participar da elaboração dele” (COSSON, 2016, p. 84).

Em seguida, a sequência expandida se encaminha para a contextualização e para a segunda interpretação, etapas indissociáveis que podem acontecer de maneira direta ou indireta: esta, se o professor realizar a contextualização separadamente da segunda interpretação, como duas atividades distintas; aquela, se ocorrer integração das duas etapas, como se constituíssem apenas uma. A contextualização é aberta a vários aspectos, com o objetivo de aprofundamento da leitura de modos diferentes, conforme o Quadro 2.

Quadro 2 Tipos de contextualização 

Tipo de contextualização Característica
Teórica Busca explicitar as ideias que sustentam ou estão encenadas na obra, verificando a importância para certos conceitos.
Histórica Relaciona a obra à época encenada por ela ou ao período de sua publicação, relacionando o texto à sociedade da qual ele se originou ou com a qual estabelece uma abordagem interna.
Estilística Traz os estilos de época ou períodos literários, em um diálogo entre obra e período literário.
Poética Observa a organização da obra, qual a sua estrutura e composição.
Crítica Aborda a recepção do texto literário e constitui uma análise de outras leituras.
Presentificadora Estabelece uma correspondência da obra com o presente da leitura, na função de atualização.
Temática Está relacionada à repercussão do tema dentro da obra.

Fonte: adaptado de Cosson (2016, p. 86-90).

A expansão corresponde ao momento de investir nas relações textuais possíveis para a obra lida, sendo, por isso, uma etapa a ser desenvolvida após a segunda interpretação. Trata-se de um trabalho de interpretação e de comparação, em que são articuladas com o texto base – texto lido – outras obras que servirão para a busca por relações possíveis, em uma conexão intertextual.

Além das contribuições de Cosson (2016), no que diz respeito à estruturação de atividades interligadas coesamente em uma proposta de ensino, Dolz, Noverraz e Schneuwly (2011) também trazem encaminhamentos importantes, específicos para o trabalho com gêneros textuais e, portanto, para o desenvolvimento de atividades a partir dos gêneros literários, como as que se intenta com esta pesquisa.

Estruturação de uma sequência didática no campo do gênero textual

Dolz, Noverraz e Schneuwly (2011) trazem um conjunto de atividades ordenadas, estruturadas e articuladas, chamado de sequência didática, que serve de princípio para o estudo e a produção de gêneros textuais. Nessa esquematização, como se observa na Figura 1, há etapas bem definidas.

Fonte: Dolz, Noverraz e Schneuwly (2011, p. 83).

Figura 1 Esquema da sequência didática 

A etapa inicial dessa sistematização é a apresentação da situação e tem por finalidade fornecer as informações necessárias para que os alunos “conheçam o projeto comunicativo visado e a aprendizagem de linguagem a que está relacionado” (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2011, p. 85). É o momento em que se apresenta o gênero que será abordado, seu destinatário, a mídia em que circulará e como será sua produção, se individual ou em grupos. Também são esboçados os conhecimentos necessários para a produção textual e o tema.

A produção inicial consiste na tentativa de elaboração de um primeiro texto – oral ou escrito –, em que os alunos “revelam para si mesmos e para o professor as representações que têm dessa atividade” (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2011, p. 86). Essa fase tem papel regulador, pois, por ela, serão definidos os módulos de ensino que a sucederão e, nos quais, serão trabalhados os problemas identificados na primeira produção. Na produção final, o estudante retomará a produção inicial e a revisará a partir dos conhecimentos elaborados nos módulos; é o momento em que o professor poderá realizar uma avaliação somativa dos resultados alcançados pelos alunos, o que lhe permitirá investir na aprendizagem e acompanhar os progressos no decorrer do trabalho.

Compreendida a estrutura alcunhada por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2011), segue-se para a articulação das teorias relacionadas até então, convergindo-as para uma proposta direcionada à formação de um sistema literário na escola, no qual autor, obra e leitor se constituem como tal pelo trabalho com a leitura e a escrita de texto literário.

Formação de um sistema literário na escola: parâmetros e proposta

Cosson (2016) esclarece que as sequências básica e expandida foram planejadas para oferecer ao professor estratégias de instrumentalização para as aulas de literatura, com vistas à promoção do letramento literário e por meio de ações flexíveis, variáveis conforme a série em que sejam desenvolvidas: “desejamos que o professor perceba que, entre as duas, outras tantas sequências podem ser criadas, havendo mesmo a possibilidade de se extrapolar a sequência expandida” (COSSON, 2016, p. 103). Tal princípio norteará esta seção na projeção de ações relativas à leitura e à escrita a partir da conciliação dos conceitos de letramento literário e de autoria, com a finalidade de trazer contribuições para o ensino de literatura.

Considerar-se-á, para isso, que as aulas de literatura formam um espaço no qual o letramento literário pode ser desenvolvido não só pelas orientações dirigidas à leitura, mas também por aquelas direcionadas à escrita autoral, na formação da “postura de autor” para o estudante (TAUVERON, 2014). A instauração da cena literária no ambiente escolar será adotada como meio de o estudante inserir sua escrita em um projeto de efeito sobre possíveis leitores, em uma atuação dialógica com o texto, pela leitura e pela escrita, conforme teorizam Tauveron (2014) e Sautchuk (2003). Nesses termos, a ação verbal da qual o estudante faz parte não lhe impõe uma condição passiva ou isolada, mas imbricada e intensamente alimentada por vozes várias, visto que a interação verbal constitui “a realidade fundamental da língua”: o diálogo é um espaço de embate social, em sentido amplo, isto é, “não apenas como a comunicação em voz alta, de pessoas colocadas face a face, mas toda comunicação verbal, de qualquer tipo que seja” (BAKHTIN, 2012, p. 117).

A partir desse caráter dialógico, pensou-se em uma sequência didática direcionada para a formação de um sistema literário dentro da escola, enquanto proposta de ensino de literatura. Para tanto, buscou-se respaldo em Candido (2000), na relação que o teórico propõe entre autor, texto e leitor. Articula-se, deste modo, o triângulo autor-obra-público, no que diz respeito às características internas (línguas, temas, imagens) de um sistema de obras literárias e aos elementos de natureza social e psíquica, entre os quais se distinguem “a existência de um conjunto de produtores literários mais ou menos conscientes do seu papel; um conjunto de receptores, formando os diferentes tipos de público, sem os quais a obra não vive; um mecanismo transmissor (de modo geral, uma linguagem, traduzida em estilos), que liga uns a outros” (CANDIDO, 2000, p. 23).

Assim como as sequências de Cosson (2016) e a de Dolz, Noverraz e Schneuwly (2011), a que se desenhará a seguir está estruturada em etapas de leitura e escrita. Em tal sugestão, entretanto, cogita-se que a culminância aconteça na organização e lançamento de um livro compilador de textos autorais produzidos paulatinamente nas etapas de tal sequência. Cabe ressaltar que a sequência a ser apresentada não está sendo pensada para um nível escolar específico e, por isso, poderá ser flexibilizada, de acordo com o público ao qual venha a se destinar. Contudo, a fim de didatizar a proposta, o ensino médio serviu de referência para sua idealização, por ser um nível que traz na grade curricular conteúdos específicos de estudos literários, de forma aprofundada, com contexto histórico, periodização, biografias e obras clássicas.

A orientação inicial consiste na escolha de um livro literário, conforme a série escolar à qual a sequência venha a se destinar. Para isso, o critério é que a obra selecionada seja literária e dialogue com o projeto pedagógico da disciplina de Língua Portuguesa, a fim de que as atividades projetadas sirvam de instrumento para o professor – mediador do processo de letramento. Feito isso, a sequência se estruturará de acordo com a Figura 2.

Fonte: Elaborado pelas autoras.

Figura 2 Esquema da sequência didática de letramento literário e autoria 

O momento inicial é o da motivação, semelhante ao que Cosson (2016) propõe nas sequências básica e expandida, das quais, inclusive, algumas orientações estarão incorporadas nessa etapa. Entre as possibilidades para sua realização, recomenda-se uma abordagem intertextual, que leve os alunos a refletir a respeito da obra indicada para a leitura, o que poderá acontecer, por exemplo, a partir de uma questão-problema. O trabalho poderá ser desenvolvido pela exploração de gêneros textuais diversos: identificada a temática da obra que ancorará a sequência, outros textos, de diferentes gêneros, serão encaminhados aos estudantes, trazendo ênfase ao tema que os compõe e embalando reflexões. É essencial que essa abordagem seja dinâmica e lúdica, com o intuito de estimular o estudante a responder a alguma pergunta, a qual pode configurar, entre outros, aspectos do contexto social ou histórico da obra, características das personagens ou do cenário em que se passa a história – em casos de narrativas. Para essa etapa, é importante levar em conta que, por se tratar de um livro indicado pela escola, ele provavelmente não despertará um desejo imediato nos estudantes e representará uma vontade externa, advinda de uma dinâmica institucional. A escolha por uma leitura dificilmente acontece por casualidade. Há entre a obra e o pretenso leitor algum vínculo construído subjetivamente: ou a indicação empolgada de outro leitor, ou um anúncio publicitário persuasivo, ou uma sedutora resenha divulgada nas redes sociais digitais, entre outros ous. Afinal, segundo afirma Rouxel (2013, p. 72), “o desejo de ler nasce de mediações cuja natureza às vezes é imponderável”, o que ratifica o papel indiscutível da motivação nas atividades de leitura do contexto escolar. Na motivação, quem estabelecerá essa aproximação será o professor.

Em apresentação da proposta ou introdução, objetiva-se delinear o panorama geral da sequência para os estudantes, divulgar a obra e apresentar os passos da produção textual que será realizada, bem como a situação comunicativa da qual fará parte. Para tanto, deverão ser suscitadas informações e observações sobre o livro contemplado, sua estrutura e valor cultural. Essa introdução deverá ser vinculada ao conteúdo temático abordado na fase de motivação, e o gênero textual que pautará a produção precisa ser informado. Será necessário lembrar que as atividades desenvolvidas resultarão em textos para a publicação de uma coletânea, a ser disponibilizada em formato impresso e digital para leitores tanto do ambiente escolar quanto da comunidade: a primeira mídia comporá o acervo da biblioteca escolar; a segunda circulará por redes sociais digitais, das quais a escola faça parte. Para alcançar tal produto final, sugere-se a formação de grupos de trabalho, pautados nas habilidades necessárias para a confecção do livro: ilustração, revisão, edição, promoção/divulgação e supervisão do livro e de seu lançamento. O estabelecimento de prazos de leitura será fundamental para a organização das atividades e para a formação do interstício destinado a outras ações. Devem ser combinados com os alunos o período e as páginas que serão dedicados à primeira interpretação, assim como o prazo para sua conclusão, tendo em vista a segunda interpretação.

No intervalo aberto para a leitura do livro – leitura extraclasse –, ocorrerão a produção textual, a primeira interpretação, o estudo de gênero textual e a segunda interpretação, consolidando estudos sobre a obra e para a escrita.

O objetivo da produção textual é, por meio da entrada temática estabelecida na motivação e, portanto, pela referência ao livro norteador do trabalho, convidar os alunos à produção textual. Para isso, delimita-se o gênero do texto literário a ser produzido e expõem suas principais características, assim como, tendo em vista que o texto comporá um livro, estabelece-se sua extensão. O gênero da produção será, preferencialmente, o mesmo do livro indicado aos estudantes, a fim de realizar, dessa forma, uma articulação entre o escrito e o lido. Caso o gênero textual determinado para a produção seja diferente daquele ao qual pertence o livro em leitura, orienta-se que os demais textos utilizados – na motivação e nas etapas posteriores – sejam do gênero escolhido para a atividade escrita. A ideia é que, entre as várias influências que movem o diálogo entre o estudante-autor e seu leitor-interno, esteja também a obra escolhida para ser o eixo dessa sequência.

A finalidade da primeira interpretação é estimular os estudantes a manifestarem suas percepções e impressões em relação à obra lida – antes da conclusão da leitura. Não se busca uma unanimidade nas opiniões, mas um olhar crítico e, como tal, fundamentado no texto em questão. Ao professor, caberá o papel de constituir uma situação de troca de experiências e impressões, valendo-se de exposições orais e dialógicas, o que poderá ser feito no formato de roda de conversa.

O intuito da etapa do estudo de gênero textual é fornecer conhecimento detalhado sobre o gênero textual em produção. Isso pode ser feito por meio de exercícios que tratam da estrutura, da linguagem e dos recursos que caracterizam o gênero textual. Uma alternativa é comparar bons textos do mesmo gênero e analisá-los conjuntamente com os alunos, em abordagens que foquem os recursos predominantes e as particularidades estilísticas. Outra possibilidade é trazer exercícios de escrita que priorizem aspectos pontuais e definidores do gênero em estudo, pela realização de oficinas de escrita, cujos tópicos de trabalho venham a contribuir para a resolução de problemas identificados na produção textual.

O propósito da segunda interpretação é dialogar com os alunos sobre sua interpretação global da obra. O professor acolhe e estimula as falas, bem como lança provocações, e, a partir destas, contextualiza a leitura. Da mesma forma que propõe Cosson (2016), uma ou mais contextualizações, a depender da obra, poderão ser feitas.

A penúltima etapa, preparos para publicação, consistirá na retomada do texto produzido, a fim de realizar a revisão final, cogitando sobre os estudos realizados no intervalo de leitura e as instruções dadas no momento da produção textual, o que poderá ser feito por rubricas de avaliação. Em seguida, com os grupos de trabalho já definidos desde a apresentação da proposta, os estudantes finalizarão os passos de elaboração do livro, com as ilustrações, as revisões, a edição e a produção de materiais de divulgação; do mesmo modo, a supervisão organizará o evento de lançamento do livro. Essa etapa demandará a coordenação atenta do professor e a negociação de prazo para a execução ou conclusão das ações mencionadas, sem perder de vista que algumas delas já se iniciaram desde a primeira etapa da sequência.

Na estrutura proposta, a sequência culminará no lançamento de um livro produzido pelos estudantes. Será o momento de sua apresentação à comunidade escolar e, mesmo, a convidados externos – familiares dos estudantes, por exemplo. Nessa etapa, o texto autoral passará, enfim, por um convite à leitura, quando os estudantes atuarão como autores, para um público de pretensos leitores – do qual é esperada a produção de enunciados sobre eles e sobre sua obra, como no proposto por Maingueneau (2010, 2016). O formato desse momento dependerá do contexto da escola e do grupo com o qual o trabalho for realizado, por isso, poderá configurar um sarau, um bate-papo com autores ou uma dramatização, por exemplo. Importante: mesmo com uma versão digital do livro, ao menos um exemplar deverá estar na versão impressa, com a finalidade de compor o acervo da biblioteca escolar.

A sequência didática descrita ainda não foi aplicada, mas consolida-se como uma proposta. Por fundamentar-se em teorias do letramento literário e da autoria, constitui uma orientação para o desenvolvimento encadeado de atividades de leitura e escrita, enquanto processos complementares que devem ser sempre (re)significados no e pelo contexto escolar. A autoria, nessa abordagem, funcionaria como uma ferramenta a mais para o letramento literário, e este, por sua vez, alimentaria o repertório discursivo e estético do estudante, preparando-o para a escrita, em um exercício constante de retroalimentação.

O percurso do letramento literário se dá por um processo longo, diretamente relacionado às experiências leitoras oriundas da literatura e da sua apreensão, de modo que as intervenções realizadas pela escola se fazem necessárias e propensas a efeitos potencialmente benéficos, quando há ações sistematizadas e empenhadas na formação de comunidades de leitores. Por isso, mais que a indicação de um livro ou a exigência de sua leitura – ou a teorização dos conteúdos literários –, as aulas de literatura precisam provocar a interação entre estudante e obra, repercutindo na apropriação da linguagem literária. Essa é uma relação que, para ser estabelecida, deve trazer à atividade de leitura a sua dimensão social, o que se dá quando os leitores têm seu momento de fala e de debate.

Considerações finais

Pela abordagem teórica, esta pesquisa cumpriu seu objetivo inicial, aproximar dois conceitos: o de autoria e o de letramento literário. Além disso, trouxe a esquematização, em uma sequência didática, de ações que visam ao letramento literário e vislumbram para o estudante a posição de autor. Dessa forma, foi possível perceber o contexto escolar como espaço propício para a participação ativa do estudante, seja na função de leitor, seja na de produtor de textos.

Pode-se afirmar que a definição de letramento literário dada, por Cosson (2016), e as de autoria, obtidas a partir de diferentes linhas teóricas, sustentam a tese de que, ao posicionar-se como autor, o sujeito intensifica sua relação com a linguagem e, dessa forma, potencializa-a. A proposta de trazer a cena literária para dentro da escola e formar um sistema literário no qual o estudante assuma a função de autor, concomitantemente à de leitor, oportuniza a este o trabalho de (re)leitura dos textos de si e de outros, assim como o conduz pela intertextualidade das leituras e das produções discursivas, no caminho da heterogeneidade virtualizada na escrita.

Ao cumprir a interação de conceitos, esta pesquisa pôde delimitar e sugerir os parâmetros de uma sequência didática dirigida à implantação de um sistema literário na escola, trazendo uma proposta de ensino pautada na experiência da publicação pela via da expectativa artística e da atenção estética – uma sistematização viabilizada pelas orientações dadas por Cosson (2016) e Dolz, Noverraz e Schneuwly (2011). Pode-se dizer, por fim, que a contribuição deste estudo está na indicação de diretrizes para uma sequência didática de autoria e letramento, em que o protagonismo estudantil é incentivado. Apesar de sugerir um modelo, a sequência apresentada pode e deve ser adaptada para diferentes séries e contextos de ensino, sem perder de vista a ideia de que pensar o ensino de literatura é pensar jeitos de ler e de escrever, em estado de arte.

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Recebido: 26 de Julho de 2020; : 12 de Novembro de 2020; Aceito: 10 de Fevereiro de 2021

Penha Élida Ghiotto Tuão Ramos é doutoranda e mestre em cognição e linguagem, pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), graduada em letras/literatura, pelo Centro Universitário São Camilo - ES, e professora no Instituto Federal Fluminense (IFF), campus Macaé.

Analice de Oliveira Martins é professora, com pós-doutorado em literatura brasileira contemporânea, pela Università Degli Studi Roma Tre; doutorado em estudos de literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ; mestrado em letras (Literatura Comparada) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); bacharelado e Licenciatura em Letras (Português-Francês) também pela UFRJ.

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