SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.48O pensamento conceitual de fração: o modo de organização do ensino davydovianoContextos socioeconómicos territoriais, educação e insucesso escolar na Comunidade Intermunicipal da Região de Coimbra índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 19-Ago-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248240693 

ARTIGOS

Imaginação, racionalidade e educação: bases da criação e do conhecimento

Imagination, rationality, and education: basis of creation and knowledge

1- Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO, Brasil. Contato: simone.corbiniano@ufg.br


Resumo

Refletir acerca da imaginação significa pensar o próprio problema da vida criadora. Sob a perspectiva contemporânea significa ainda discutir a permanente elaboração de um novo psiquismo no qual o espírito se dispõe à abertura, ao conhecimento, que ao final é sempre um autoconhecimento. Resultante de pesquisa na área da Educação – tendo como referencial teórico-metodológico a Filosofia – este artigo propõe-se a estudar as bases conceituais da imaginação na modernidade e sua importância para a educação. Diferente do pensamento da ciência clássica, que compreende a imaginação como representação de um objeto percebido, o filósofo francês Bachelard a compreende no sentido oposto à formalização lógico-empírica da imagem, haja vista que para ele a imaginação se apresenta como instância das imagens que ultrapassam a realidade. A imaginação tem grande relevância na formação humana e na educação escolar, sendo um fator ativo de transformações que participa tanto da esfera da liberdade e da criação quanto do plano epistemológico do conhecimento e da ciência, planos esses que, embora de modos diferentes, se relacionam em seu ponto de partida com a imaginação e a fertilidade das imagens primordiais. Pode-se dizer que na educação, como em toda atividade humana, a realidade imaginária é evocada antes de ser descrita, pondo em questão o vigor da criação, o reencontro com a juventude da imaginação ativa. A natureza livre e dinâmica da imaginação é indispensável para a formação comprometida com o alargamento do espírito, cujo princípio é a livre invenção do espírito humano.

Palavras-Chave: Imaginação; Formação humana; Criação; Conhecimento

Abstract

Reflecting on imagination implies thinking about the problem of the creative life itself. From a contemporary perspective, it also means discussing the permanent elaboration of a new psyche in which the spirit is willing to openness and knowledge that, in the end, is always self-knowledge. Resulting from research in the field of Education, having Philosophy as a theoretical-methodological reference, this article aims to study the conceptual bases of imagination in modernity and its importance for education. Unlike classical science, which understands imagination as a representation of a perceived object, the French philosopher Bachelard understands it in the opposite direction to the logical-empirical formalization of the image. For him, imagination presents itself as an instance of images that go beyond reality. Imagination has great relevance in human formation and school education. It is an active factor of transformations that participates both in the sphere of freedom and creation and in the epistemological plan of knowledge and science, which, although in different ways, are related in their point of departure to the imagination and fertility of primordial images. It can be said that in education, as in all human activity, the imaginary reality is evoked before being described, calling into question the strength of creation, the re-encounter with the youth of active imagination. The free and dynamic nature of the imagination is necessary for training engaged in the expansion of the spirit, whose principle is the free invention of the human spirit.

Key words: Imagination; Human formation; Creation; Knowledge

Origem da discussão

Como desdobramento de estudos e pesquisas na área da educação, o artigo busca apresentar reflexões acerca da imaginação na racionalidade moderna com base na filosofia e na psicologia analítica, tendo como objetivo situar a educação no plano da imaginação e do conhecimento, explorando a importância desses diferentes planos na esfera da formação humana e também no universo da cultura escolar.

A educação é um princípio ativo de transformações, visto que ela participa tanto da esfera da liberdade e da criação quanto do plano epistemológico do conhecimento e da ciência. Embora de modos diversos, todos esses planos se originam e têm alguma relação, em seu ponto de partida, com a imaginação e a fertilidade das imagens primordiais. A disposição para criação própria da imaginação invoca uma compreensão da educação que integra a sensibilidade, a imaginação e a inteligência.

No desenvolvimento do estudo proposto a problemática que se destacou acerca da formação humana e da cultura escolar revelou que quanto mais a cultura escolar se dedica a uma vocação pragmática, ligada às necessidades transitórias da sociedade, mais ainda ela se reconhece fora dos interesses primordiais do psiquismo humano. Nesse sentido, quanto maior a adesão da escola e sua formação ao princípio de utilidade, mais ela aniquila no sujeito a vontade de intelectualidade, assim como sua capacidade de criação.

Não raro, o desdém pelo potencial imaginativo na escola, interdita a curiosidade do indivíduo e determina sua zona de ação. Considerando que “[…] a questão fundamental que cabe à Filosofia da Educação responder é aquela do sentido e da finalidade da educação” (SEVERINO, 2006, p. 623), o estudo da imaginação caminha no sentido de compreendê-la como participante da própria natureza da educação, inclusive levando em consideração que o conhecimento racional e objetivo não é suficiente para explorar todas as problemáticas da formação humana e da escola.

Gaston Bachelard (1884-1962) é um dos pensadores de maior importância histórica para os fundamentos contemporâneos da filosofia da imaginação. Ele explicita que a razão se constitui segundo dois eixos: o da objetividade epistemológica e o da fenomenologia da imaginação (BACHELARD, 1996, 2008a). Embora tais eixos se constituam como experiências opostas, quanto aos fundamentos da racionalidade, essas duas dimensões não são tão estranhas entre si no que concerne ao rompimento com a rigidez dos hábitos instituídos. Essa questão é de fundamental importância para se conceber uma ideia de formação que se realize para além do espírito instruído.

Espírito imagético ou poético e espírito científico são faces diferentes de um mesmo espírito racional, ainda que do ponto de vista do conhecimento, seja indispensável “[…] opor ao espírito poético expansivo o espírito científico taciturno, para o qual a antipatia prévia é uma saudável preocupação” (BACHELARD, 2008a, p. 2). O que a educação como um tipo de racionalidade livre pode fazer é “tornar a poesia e a ciência complementares, uni-las como dois contrários bem-feitos” (p. 2). Essas diferentes atividades do espírito têm fronteiras, mas, ao mesmo tempo, não as têm. Assim, a imaginação se dá num plano simbólico, por meio do qual os valores objetivos e subjetivos não são tão facilmente distintos como se poderia imaginar.

A imaginação e seus fundamentos moderno-contemporâneos

Distinguir a imaginação e o entendimento, situando-os em seus princípios diferentes, talvez seja o passo inicial necessário para investigar a natureza da imaginação e suas implicações na educação moderna. Para Bachelard, assim como para a tradição filosófica que faz a distinção entre o pensamento científico clássico e o pensamento moderno2, a imaginação não está no plano percebido, visto que, na realidade, encontramo-la na contramão de toda formalização lógico-empírica da imagem, como se pode compreender em Kant ou Descartes. Kant (1991), em sua obra Crítica da razão pura, delineia os princípios que possibilitam compreender a imaginação como a faculdade que liga a intuição sensível ao entendimento, erigindo-se como uma instância esquematizadora que constrói as imagens a partir das formas tempo e espaço. A imaginação é, portanto, prenunciadora da percepção objetiva do sujeito.

Pode-se dizer que, para Kant (1991), a razão na ciência passa, a priori, pelo conhecimento. As categorias lógicas ou faculdades exprimem os modos de conhecer desde quando o sujeito é afetado em sua intuição sensível, que é espaço-temporal, até o momento em que apreende o objeto em sua imediaticidade, constituindo um primeiro passo do conhecimento, que nessa dimensão é intuitivo e nada tem de conceitual. Portanto, a “capacidade de obter representações mediante o modo como somos afetados por objetos denomina-se sensibilidade” (KANT, 1991, p. 39, grifo do autor).

Mas a intuição nem sempre é sensível, ela pode ser pura ou, a priori, ligada à forma e à experiência não empírica da razão. A intuição das coisas é a base da relação entre a representação do sujeito e o objeto de conhecimento. De todo modo, com vistas ao entendimento, o passo seguinte à intuição sensível é a imaginação, pois ela é a instância de mediação entre o múltiplo da intuição sensível e o entendimento: “[…] a capacidade da imaginação é a faculdade de representar um objeto sem a sua presença na intuição. […] a capacidade da imaginação pertence à sensibilidade” (KANT, 1991, p. 89).

Num ponto mais avançado, o entendimento se apresenta, desse modo, como a faculdade de conhecer objetos por meio de categorias ou conceitos, realizar o conhecimento enquanto unidade sintética que ordena e unifica a multiplicidade intuitiva em uma unidade lógica. “A faculdade de pensar o objeto da intuição sensível é o entendimento” (KANT, 1991, p. 55-56, grifo do autor). Em razão de sua causalidade natural, o entendimento se limita à esfera das categorias pelas quais os objetos da experiência podem ser estruturados para se tornarem inteligíveis ao próprio sujeito.

As fronteiras do entendimento se estendem até onde os móbiles de seus conceitos e sínteses do conhecimento lhe permitem. Isso ocorre de tal modo que as coisas reais são ocasionalmente as causas da sua ação, que se desdobra como uma “estrutura que lhe permite não só chegar à objetividade do conhecimento a priori, mas também a elaborar uma consciência de si mesmo, símbolo do que é revelado pelo sujeito e para o sujeito” (CORBINIANO, 2013, p. 401). O entendimento desempenha o papel de uma faculdade lógica, em sentido stricto sensu, e por não conhecer, como faculdade do raciocínio, as coisas em si mesmas, precisa elaborar o mundo segundo o fenômeno, isto é, segundo a representação que se pode fazer da realidade.

Kant tem o mérito de apresentar uma primeira abertura da imaginação ao afastar a compreensão das imagens como lembranças, revigorando o sentido da imaginação ao entendê-la como uma faculdade ativa que integra o potencial de criação e de conhecimento do entendimento. Kant (1991) delimita, assim, o que se pode denominar capacidade produtiva da imaginação. Na sua perspectiva, a imaginação é espontaneidade, é uma orientação simbólica dos objetos do pensamento, ela participa da organização racional ligada às necessidades do conhecimento. Desse modo, a imaginação é concebida como uma faculdade mediadora com vistas ao conhecimento, bem como faculdade esquematizadora que integra a problemática da representação, que constitui a base da compreensão clássica da imaginação.

Tendo uma outra compreensão da imaginação, Bachelard (2013b) a situa no contexto em que a realidade da imaginação se desdobra das forças naturais, dos desejos e dos impulsos próprios das imagens, que são totalmente ativas no psiquismo humano. Trata-se das primeiras experiências na gênese da imaginação, em que podem se situar as imagens antes das ideias, posto que a imaginação não é uma faculdade educada, ou seja, não é uma faculdade determinada em seus princípios pelos complexos de cultura que constituem o imaginário sabedor e seus símbolos definitivos.

Na sua gênese essa imaginação material também não se confunde com uma simples regressão aos impulsos vitais da vida orgânica, dado que as imagens são tardias na sua criatividade própria. Antes, “reclamam metáforas, são imagens da vida” (BACHELARD, 2013b, p. 43), são forças e ligações projetivas com os elementos da natureza.

Essa compreensão da imaginação está presente nos desdobramentos de um tempo da história do pensamento científico que Bachelard (1996) chamou de novo espírito científico, trata-se de uma época que coincide com a Teoria da Relatividade, e é nesse contexto que se situa a era propriamente moderna da história do pensamento científico. Eleger divisas para o estudo da imaginação nesse novo contexto não se constitui como “[…] uma simples correção procedimental. Muda o modo de ser da filosofia. Não mais o mundo como imagem, em que as relações se esgotam na dualidade representante-representado, mas, sim, como realização, invenção do homem” (TERNES, 2001, p. 52). A concepção da imaginação clássica dos séculos XVII e XVIII apresentava uma ênfase sensório-intelectual ligada às etapas do conhecimento, como queria Kant. Como José Ternes (2001, p. 52) bem elucida, essas foram as implicações de “[…] uma época em que a linguagem, a verdade, se retira do mundo e adquire o estatuto estranho de imagem. Nossa relação cognoscente não se daria mais, então, com o mundo, mas com o seu representante, a ideia, o signo”.

Bachelard (2013a), por sua vez, não concebe a imaginação como um prolongamento natural da faculdade de formar imagens da realidade, tendo em vista que ela é mais precisamente a instância das “imagens que ultrapassam a realidade […] é a faculdade de sobre-humanidade” (BACHELARD, 2013a, p. 18). Certamente, não se deve considerar a imaginação como uma substituta psíquica da realidade sensível, pois não sendo uma mera faculdade tributária da visão, não é também um simples mecanismo de consciência da imagem percebida. Instância criadora por excelência, a imaginação se realiza em plano próprio, independente da emergência do lógos – como domínio lógico em sentido lato. Pois, ela se exprime a seu modo como uma estrutura livre, imanente, e expressiva do psiquismo humano.

Em convergência com os valores da física quântica, Bachelard se atém mais aos aspectos numênicos que aos fenômenos. Assim, ele compreende o plano da imaginação sob um olhar de descontinuidade em relação à metafísica tradicional, pois a insere em um plano no qual a imaginação não se restringe a certas fronteiras temporárias que são dadas à atividade científica e sua discursividade própria. Aliás, para o filósofo, “[…] falar das fronteiras da Química é tão inútil quanto falar das fronteiras da Poesia” (BACHELARD, 2008b, p. 74). Nesse sentido, no caso epistemológico, todas as fronteiras são impostas pelas intuições primeiras, pelos erros e pelas ilusões, dados como categóricos e irrevogáveis, e o autor demonstra, sobretudo, que “[…] os a priori do pensamento não são definitivos” (p. 76). A imaginação, por sua vez, não está dada sob fronteiras; ela não tem coerência, mas tem certo modus operandi. Pertence ao mundo da ação como força psíquica, mas sua expressão e linguagem não advém da esfera lógica.

Como dimensão autônoma, a imaginação, assim estudada, constitui-se em um projeto diferente de psiquismo, uma vez que ela é dinamizada pelo simbolismo dos elementos materiais e dela emerge um projeto ambivalente de razão que, por caminhos diferentes, sustenta “[…] o homem das vinte e quatro horas” (BACHELARD, 1972, p. 47), aquele que se expande, de um lado, como homem desperto, centrado no que pode conquistar pelo conhecimento objetivo próprio do espírito racional; e, de outro, como homem noturno, imagético, portanto, livre e afetivo, sem que sua linguagem esteja submetida necessariamente à lei do pensamento significante. Vencendo também as barreiras da gratuidade do existente, a imaginação se realiza na pluralidade dos atos que não são ainda meditados.

Se, junto ao contexto histórico da Grécia Antiga, pode-se afirmar que a paulatina conquista da racionalidade foi um dos maiores feitos da humanidade, foi justamente essa racionalidade – conflitante desde a sua base – que permitiu o ser humano compreender, segundo o estudioso helenista Jean-Pierre Vernant (2002), que não há um tipo único de espírito e não há objetividade e subjetividade imutáveis e com funções permanentes. Em seus estudos acerca da cultura e do pensamento grego, o autor ressalta que aquilo que melhor caracteriza o homem em qualquer tempo é o pensamento simbólico. A imaginação, por sua vez, está na base de todo o psiquismo do racional. Na modernidade, especialmente com as contribuições das ciências humanas e da psicanálise, aprofundou-se o discernimento de que “[…] a plenitude da vida tem normas e não as tem, é racional e irracional. Por isso, a razão e a vontade fundada na razão só têm validade em pequenos espaços da vida” (JUNG, 2014, p. 61).

Isso porque, no entendimento de Jung (2014), a intenção racional eventualmente só consegue dominar uma parte da ventura humana: a consciente, mas não sem reverberações da outra parte, inconsciente. Por sua vez, a “[…] civilização é sublimação racional e utilitária de energias livres, produzida voluntária e intencionalmente” (JUNG, 2014, p. 62, grifo do autor). A imaginação como instância criadora se aproxima daquelas que podem ser chamadas de energias psíquicas, acessíveis, de algum modo, pelo psiquismo do indivíduo, mas “[…] não disponíveis ao seu bel-prazer” (p. 62).

A jornada racional, desse modo, não se inicia em planos totalmente desvencilhados da imaginação. Esta, por sua vez, reverbera junto às bases mais profundas que a da subjetividade e dos complexos. Nesse sentido, Bachelard (2013a) apresenta a imaginação material ao constituir uma filosofia da imanência em que se esboçam as bases da atividade psíquica humana, ligada a dois extremos: as energias originárias arquetípicas de um lado e, de outro, os instintos que movem a matéria. Daí “[…] o homem aparece, então, como uma soma de possibilidades vitais” (BACHELARD, 2013b, p. 20). Delas nascem figurações como retratos dos acontecimentos psíquicos, metáforas constantemente retomadas em sua base vital que apresentam características que se destacam pela sua reincidência num certo conjunto de experiências semelhantes. De fato, “[…] essas primeiras imagens materiais são dinâmicas, ativas, estão ligadas a vontades simples” (BACHELARD, 2013a, p. 9). Como uma icnografia do projeto humano, a imaginação está submetida a forças que a impelem à criação, ao mesmo tempo que há nela uma verdadeira autonomia do simbolismo.

De acordo com Jung (2014, p. 78), “[…] as imagens primordiais são as formas mais antigas e universais da imaginação humana. São simultaneamente sentimento e pensamento. Têm como que vida própria”. Essa é, de certo modo, a base para compreender aquilo que Bachelard considera como materialismo. Numa zona de limitado acesso à consciência e ao pensamento lógico, a imaginação subsiste carregando consigo tendências que se revelam em verdadeira materialidade psíquica. Tal condição é fruto de experiências e impressões que a priori, não são simplesmente subjetivas, contemplativas ou pessoais, mas antes coletivas, independentes e objetivas.

O vigor de toda ação criadora na sua gênese se desdobra do psiquismo por meio de imagens, os interesses mais originários do ser humano são marcados de maneira profunda pelas imagens primordiais, que se constituem antes mesmo do átomo e ressoam em direção ao instinto. A criação passa, assim, por afetos irrefletidos ou projeções de forças que encontram raízes na profundidade dos registros pulsionais. De acordo com Einstein (2017, p. 25-26), em seus escritos da maturidade,

[…] a imaginação e a inteligência participam de nossa existência no papel de servas dos instintos primários. Sua intervenção, contudo, faz com que nossos atos atendam cada vez menos às meras exigências imediatas de nossos instintos. Através delas, o instinto primário liga-se a fins que se tornam cada vez mais distantes. Os instintos põem o pensamento em ação e o pensamento provoca ações intermediárias, inspiradas por emoções igualmente relacionadas com a meta final. […] De fato, não há dúvida de que é a esse processo – que podemos descrever como uma espiritualização das emoções e do pensamento – que o homem deve os mais sutis e refinados prazeres de que é capaz: o prazer diante da beleza da criação artística e dos encadeamentos lógicos do pensamento.

Quanto à natureza da relação da inteligência com a imaginação, cabe observar que o materialismo especificado por Bachelard (2013a) não se confunde com a esfera do ser material em si, isto é, a esfera da vida orgânica expressa no bios, uma vez que o autor reivindica, antes, o reconhecimento da materialidade expressa no próprio psiquismo do imaginário. Esse caminho deixa de lado “[…] toda a educação sensorial, obtida pela colaboração da mão, do tato, da mobilidade geral do corpo humano” (BACHELARD, 2008b, p. 33). A imaginação, nesses termos, nada tem a ver com princípios que encontram sua “[…] solidez numa racionalidade natural, imediata, elementar” (BACHELARD, 2013a, p. 7). A fim de pensar sua história psicológica, a imaginação não deve ser inserida em um processo crescente de objetivação, mas sim numa “[…] linha de força que representa o esforço estético da vida” (BACHELARD, 2013b, p. 109), constituindo um rico sistema de reflexos e projeções ativas.

Nessa perspectiva, “[…] o imaginário não encontra suas raízes profundas e nutritivas nas imagens” (BACHELARD, 2013a, p. 126) em si. O que o imaginário conserva é a energia, a força motriz da imagem como o fluido que atravessa a matéria e se expressa na psique e nas ações humanas. Nisto reside o vigor da criação e o reencontro com a juventude da imaginação ativa, pois trata-se do rompimento com a causalidade formal e estática “[…] que visa uma forma por ela mesma, bem diferente do projeto que visa uma forma como signo de uma realidade desejada, uma realidade condensada em uma matéria. As formas não são signos, mas verdadeiras realidades” (BACHELARD, 2013b, p. 116, grifo do autor).

A imaginação material se distancia do espírito formal e propedêutico das categorias do entendimento kantianas à medida que é possível compreendê-la na sua independência originária e na sua permanente capacidade de mudança, que afasta os “[…] estados fósseis do recalque intelectual” (BACHELARD, 2013b, p. 118). Por meio desse psiquismo fundante da imaginação e do seu dinamismo simbólico, poder-se-á ver “[…] se tiver visões. Terá visões se se educar com devaneios antes de educar-se com experiências, se as experiências vierem depois como provas de seus devaneios” (BACHELARD, 2013a, p. 18, grifo do autor). O devaneio, como sonho desperto, possibilita a experiência psíquica que se realiza como verdadeira materialidade simbólica; é expressão da atividade do espírito criativo.

Isso leva à reflexão de que toda criação inclui a necessidade de lutar contra os hábitos instituídos, implica uma abertura do espírito que põe em conflito as convicções recrudescidas e suas certezas supostas. A noção de formação é extensiva à “[…] criação e a invenção, mostrando que o ato de conhecer não se reduz à repetição monótona e constante de verdades absolutas e imitáveis que, uma vez alcançadas, se solidificam, ancorando-se no porto seguro da memória” (BARBOSA; BULCÃO, 2004, p. 51). Em sua obra mais conhecida pelo grande público, A formação do espírito científico, Bachelard (1996) salienta que, por vezes, não é na figura do espírito instruído, mas sim na inocente expressão das imagens que se pode encontrar a presença e o tom de uma personalidade.

Imaginação, conhecimento e a pedagogia do primordial

Seja criança, seja aprendiz, o homem é cercado de valores simbólicos que integram o modo como são desenvolvidas suas disposições humanas. É reconhecida a perspectiva kantiana em Sobre a pedagogia (2002) acerca da natureza da educação: por um lado, ela ensina e conduz os homens; por outro, ela apenas desenvolve certas disposições que o homem já traz em germe. Uma vez que suas raízes são sociais e psicológicas, a educação se manifesta quanto à racionalidade e à irracionalidade e segundo as apostas civilizatórias que lhes são perpetradas. Mesmo nos casos em que parece se aproximar da ciência, a educação – como um saber e uma atividade humana – não parece se fundar tão somente no ponto de vista da racionalidade, ainda que esta seja importante para suprir “[…] as irrupções e até as penetrações avassaladoras do irracional” (VERNANT, 2002, p. 217).

Levando em consideração as disposições racionais e irracionais do ser humano, seja qual for o aspecto considerado, a educação sempre compartilha o espírito da época e da racionalidade em que ela é participante. Assim, a racionalidade da formação nunca é imparcial em relação aos princípios que integra, não tem valor neutro, não é destituída de efeitos mais ou menos elevados quando se trata de concepções, métodos e formas de realizar a educação e não se desvencilha das necessidades antropológicas e arquetípicas a que ela corresponde.

Na cultura escolar moderna, a racionalidade que primeiramente foi elaborada em conjunto com toda a cultura científica foi a das ciências positivas. A ascensão da escola moderna e seus princípios têm fortes bases pedagógicas calcadas na lógica do observável e mensurável, que torna periférica toda a atividade de imaginação do espírito. O conhecimento das realidades por meio de uma perspectiva pedagógica positivista põe a imaginação em certo plano de esterilidade ao lhe atribuir, geralmente, o papel de faculdade a posteriori, sintetiza os dados fornecidos pelas experiências sensíveis, servindo assim, à elaboração de imagens de realidades existentes e observáveis. Esse modo tradicional de conceber as realidades cria uma cultura do embotamento, sedimenta a interdição da liberdade de direção do espírito, tornando-se a cultura escolar verdadeiro obstáculo à criação, pois faz cessar a vontade de intelectualidade ao reter a imaginação “[…] sob a dependência absoluta do princípio de utilidade” (BACHELARD, 2008a, p. 18).

Na cultura escolar que tem ênfase nas experiências propedêuticas e habituais, a repetição e a memória se tornam atributos indispensáveis ao conhecimento, contribuindo para a conformação do sujeito em relação ao instituído. Parece haver, na compreensão tradicional e positivista da escola, uma polarização causada pelo distanciamento supostamente necessário entre sujeito e objeto do conhecimento. Tal separação, na verdade, distancia o sujeito de si mesmo, posto que se torna esvaziado, formal, perde sua materialidade simbólica na experiência de formar imagens. Se pudermos considerar que “[…] é a pessoa que experimenta o mundo, e toda experiência é determinada tanto pelo sujeito quanto pelo objeto” (JUNG, 2012, p. 200), então, o sujeito é efetivamente tão importante quanto o objeto, cabendo a ele o conhecimento, a mudança, e o alargamento da consciência ao se realizar junto aos objetos.

Nesse sentido, a imaginação, assim como a relação entre sujeito e objeto, é instituinte na própria atividade racional, sendo, ao mesmo tempo, anterior e posterior às experiências estabelecidas nas relações pedagógicas. “Cada vez que um arquétipo aparece em sonho, na fantasia e na vida, ele traz consigo uma influência específica ou uma força que lhe confere um efeito numinoso e fascinante ou que impele à ação” (JUNG, 2014, p. 81, grifo do autor). Será preciso encontrar na educação escolar uma forma de abdicar das atividades pedagógicas inteiramente propositivas, abrindo caminhos para aquilo que, em grande parte, ainda não se encontra na realidade vivida.

Não sendo o homem um psiquismo monovalente como os outros animais, constitui-se ele de condição arquetípica privilegiada, realizando seus “[…] instintos a contratempo, colocando, por exemplo, certa agressividade na ternura, certa piedade no holocausto” (BACHELARD, 2008b, p. 104). Realiza-se por meio dessa relação de oposição e agregação, uma tensão que faz fluir o psiquismo humano movente e criativo.

Esse psiquismo complexo – cujo fundamento numênico3 não nos é compreensível por meio do mundo dos fenômenos e da experiência – não está circunscrito ao mundo dos valores sociais imediatos, posto que estes, muitas vezes, não abrangem os interesses da razão, do conhecimento objetivo e da imaginação, estando mais voltados ao universo da experiência e dos interesses econômicos. Por isso mesmo, em vez de elevar a condição do sujeito em desenvolvimento, os valores sociais instituídos muitas vezes ocasionam o distanciamento do sujeito em relação ao objeto do conhecimento. Nesse sentido, impulsionado por interesses que lhe são externos, o psiquismo humano se desvia da imaginação ativa, não alcança a criação; este é o caminho mais comum da formação pragmática que não consegue fazer interagir o conhecimento com a cultura geral.

Seja em relação à ciência ou conhecimento objetivo, seja ligado ao espírito poético livre, o enredo educativo de todo modo passa por certa polarização afetiva que os recursos da linguagem nem sempre conseguem mobilizar, esse é o campo de fertilidade que liga o interesse da vida ao interesse do pensamento. É nesse lugar afetivo-primitivo vigoroso que o sujeito, unido ao objeto, põe-se em movimento, dinamizando-se naquilo que é da ordem da vontade de espírito, verdadeiro princípio de uma cultura racional elevada no conhecimento e na criatividade. Serão esses os motivos de Bachelard (1996, p. 309-310) para ponderar que “[…] uma cultura presa ao momento escolar é a negação da cultura científica” e que a escola elevada e efetiva quanto ao conhecimento e à criação será aquela que conseguir inverter os interesses, de modo que “[…] a Sociedade será feita para a Escola e não a Escola para a Sociedade” (p. 310).

Cabe ponderar, ainda, que o psiquismo movente, caro à escola e à formação, não se realiza com base numa racionalidade “[…] absolutamente solidária com o imperialismo do sujeito, posto que ele não pode [se] constituir numa consciência isolada” (BACHELARD, 1977, p. 15). Toda educação nasce socializada, no sentido de que é dinamizada pelos arquétipos e pelo imaginário. Pensadores modernos, como Goethe (2003), deixam transparecer os aspectos que modulam o ser humano na sua relação com o imaginário. Em sua obra Werther, Goethe (2003, p. 279) afirma que nossa imaginação, “[…] levada pela sua própria natureza a exaltar-se, e, ainda, excitada pelas figuras quiméricas que lhe oferece a poesia, dá corpo a uma escala de seres onde ocupamos um lugar ínfimo”.

No universo pedagógico e epistemológico entra em questão a superação dos obstáculos que impedem o espírito racional de se aproximar do conhecimento. Uma das primeiras dificuldades é, justamente, a formação prescritiva e sabedora. Outro obstáculo, em coro com o primeiro, é a dificuldade de provocar – rigorosa e discursivamente – o pensamento, buscando integrá-lo à consciência e seus conceitos. A imaginação faz corpo com o conhecimento objetivo à medida que o dinamiza e que integra a ele um certo racionalismo que se afasta tanto do caminho do ensino positivista e seu materialismo ingênuo quanto de uma pedagogia formalista que tende a ser convencionalista, desprezando os significados vivos e pulsantes da realidade do aprendiz. Concordando com Ildeu Coêlho (2012, p. 61), pode-se dizer que a atividade de ensino vigorosa primeiramente busca perscrutar sua própria natureza e finalidade, bem como procura “[...] transcender o empírico e o senso-comum”.

Fora do universo das ideias e imagens pré-fabricadas e estáticas é que pode emergir, quiçá, “[…] um trabalho ativo no que diz respeito ao objeto, como também no que diz respeito ao sujeito. Diante do objeto, o sujeito elimina as impressões espontâneas, advindas desse primeiro contato e que impedem a construção objetiva” (BARBOSA; BULCÃO, 2004, p. 55). Naquilo que diz respeito à formação na dimensão do conhecimento objetivo, trata-se de um caminho de busca por objetivação que passa, antes, pelas vicissitudes e possibilidades do trabalho com a própria imaginação.

A imaginação se desdobra da polarização de forças vitais ligadas a registros de criação visceral (BACHELARD, 2013b) e não demonstra, originariamente, provas de objetivação nem se revela na experiência, apenas compõe a seu modo e a seu tempo as asas da inteligência. Desdobra-se dessa possível e proveitosa relação entre imaginação, conhecimento objetivo e escola, a importância dos conceitos, a desconfiança com as primeiras intuições, a má vontade com as imagens pré-fabricadas da realidade, criando, assim, um terreno laborioso para a escola engajada com a criação e o pensamento.

Além da dimensão imagética e da dimensão do conhecimento objetivo, a formação escolar certamente abrange um universo maior que toca as realidades éticas, estéticas, afetivas e outras ligadas à vida simbólica. Considerando as situações de ensino, pode-se pensar – corretamente – que não se adentra o estudo de literatura ou poesia e suas necessidades sensíveis e estéticas seguindo as mesmas necessidades epistemológicas da matemática ou da física. No entanto, o ponto de partida parece ser o mesmo quanto às possibilidades de dinamizar a imaginação pela vontade e de reconhecer a complexidade dos modos de conhecer. Não há roteiros que possam definir os caminhos dessa complexa pedagogia que precisa ser inventada a cada instante e da qual pode se esperar resultados imprevisíveis.

Assim, o conhecimento na atividade pedagógica precisa se constituir de recomeços. A retificação lhe dá vida nova, mas tão logo ele se afasta dessa zona fugidia e vigorosa há uma retração, um empobrecimento da vitalidade do espírito. “Também o homem morre do mal de ser um homem, do mal de realizar cedo demais e demasiado sumariamente sua imaginação, e de esquecer, enfim, que poderia ser um espírito” (BACHELARD, 2013b, p. 19). Se a natureza ativa da imaginação quebra a monotonia reguladora das formas subsistentes e instituídas, pode-se pensar junto a ela, que uma educação criativa encaminha sua atividade pedagógica na soma de possibilidades autônomas, trata-se da pedagogia liberta de métodos reguladores, e seu valor fundamental é dar ocasião a uma realização, à criação do objeto. Este é um caminho de possibilidades mais que de verdades inabaláveis quando se olha com as lentes do novo espírito científico em sua luta contra o real imediato, e sua descrença com as verdades instituídas.

Não é preciso insistir acerca dos obstáculos e dilemas que se desdobram sobre as possibilidades da formação escolar ampla e elevada, acessível em alguma medida ao vigor da imaginação em seu estado de nascedouro. Manoel de Barros (2015b, p. 16) está sempre a lembrar da importância da vida em campos livres, fora de toda utilidade, fazendo ver que muitas vezes o comentário instituído pode empobrecer a imagem: “A gente não gostava de explicar as imagens porque explicar afasta as falas da imaginação. [...] Agente gostava bem das vadiações com as palavras do que das prisões gramaticais”.

Os paradoxos aumentam quando se compreende que o tempo do conhecimento não é o mesmo que o tempo dos relógios que controlam a atividade de ensino. Na situação de ensino, é preciso muito estudo e disponibilidade emocional para compreender que “[…] estes instantes não são [apenas] meditados, não são saboreados em seu isolamento, eles são vividos em sua sucessão solavancada e rápida. Não há o gosto da metamorfose sem o gosto pela pluralidade dos atos” (BACHELARD, 2013b, p. 20). Esse encaminhamento da atividade educativa é quase todo essencialmente discursivo, revelando a temporalidade própria do modo como todo o conhecimento caminha.

No âmbito da escola de cultura geral, parece haver um processo de subjetivação que se realiza numa zona psíquica em que os elementos complexos, mantenedores das instâncias imaginativas mais primitivas, já estão cambiados com os elementos da cultura interessada. Neste contexto a atividade formativa perde corpo, abrindo espaços às experiências em que a originalidade das imagens se afasta, dando lugar à atividade psíquica em campos já domesticados em que prevalecem o conhecimento comum, o artefato, e os interesses do mercado. Diante do avanço da normalização sobre a criação na formação escolar é preciso dar ensejo ao reconhecimento da imaginação em seu ponto de partida, dispor-se a encontrar meios pedagógicos que favoreçam a dinâmica própria das ideias, no sentido de abrir canais em direção não a uma subjetividade a ser preenchida, mas a uma subjetividade a ser criada, individuada, liberada em sua relação com o objeto. Afinal, “[…] encontrar o objeto é de fato encontrar o sujeito: é reencontrar-se no momento de um renascimento material” (BACHELARD, 1996, p. 65).

No universo da linguagem como um todo, bem como na dimensão dos princípios intelectuais rotineiros, compreende-se com Bachelard (2013b, p. 52), que “[…] os valores ensinados são rapidamente opressivos”. Em certas condições, a criação poética e demais realizações do espírito humano podem aflorar à revelia da cultura instruída, aliás, não raro, é esta a cultura que se torna um obstáculo à criação e ao conhecimento. De maneira um tanto desestabilizadora, esse contexto sinaliza que em certas circunstâncias é preciso se desprender um pouco dos livros, dos métodos, e dos mestres, para encontrar a capacidade criadora. O poeta Manoel de Barros (2015a, p. 98) apresenta uma inspiradora ilustração daquilo que gostaríamos de chamar de uma pedagogia do primordial:

Carrego meus primórdios num andor.

Minha voz tem um vício de fontes.

Eu queria avançar para o começo.

Chegar ao criançamento das palavras.

Lá onde elas ainda urinam na perna.

Antes mesmo que sejam modeladas pelas mãos.

Quando a criança garatuja o verbo para falar o que

Não tem.

Pegar no estame do som.

Ser a voz de um lagarto escurecido.

Abrir um desconhecido para o arcano.

Pensar a atmosfera da educação e do conhecimento na escola atual sob uma ordem de cuidados ligados ao imaginário e a uma racionalidade móvel enfrenta o embaraço central de que é preciso, em alguma medida, liberar a formação humana das problemáticas transitórias da sociedade. Esta, em grande parte, funda-se nos interesses pragmáticos e econômicos dos certames do poder. A formação do ser humano como caminho a ser criado é, sobretudo, uma promessa de outra ética do saber: sem hábitos e saberes pretensiosos e arraigados, a formação abre espaços largos para as experiências que a imaginação e o conhecimento podem oferecer.

Este desafio contraditório nos leva à seguinte questão, elaborada por Gallo e Monteiro (2020, p. 8): “[…] como fazer do ato de aprender uma aventura, cuja viagem, apesar das garantias do percurso e do lugar da chegada, se deixe levar pelos ventos, pelas marés, pelas tempestades?”. A construção real de outra cultura escolar, como mencionado anteriormente, passa pelo não instituído. Quer se postule o ser matemático, quer se apresente o objeto poético, o esforço de aproximar a atividade pedagógica da atividade de criação é igualmente o mesmo: a formação que possa implicar o sujeito e a realidade num destino comum. Na relação do homem com o significante, à proporção que ele modela os signos à imagem dos impulsos primordiais do espírito, é que há o ensejo para a criação do objeto de afeto, de arte ou de conhecimento.

À guisa de conclusão

São raras as circunstâncias em que é possível fazer dos problemas do conhecimento na escola uma oportunidade mais abrangente para a experiência humana criadora. Se pudéssemos levar para as experiências escolares pelo menos uma parte da fertilidade própria da imaginação, aquela parte que não chega a aflorar em função das ilusões pragmáticas e prescritivas da formação instituída, talvez a educação e a escola emergissem como as mais elevadas metas do indivíduo e da sociedade. Para trilhar esse caminho, seria preciso que o indivíduo se distanciasse da conformidade e recusasse a aparência do conhecimento homogêneo que limita e ajusta as crianças e jovens às necessidades de medir, pesar, contar e seguir irrefletidamente a regra e que, ao final, dirige suas mentes ao que parece concreto.

Em que pese às várias divisas filosóficas do que se pode chamar de concreto, em termos de conhecimento objetivo, certamente não se pode atribuir concretude alguma aos valores pedagógicos que desconsideram o sentido da abstração como um importante valor do pensamento moderno. A formação do indivíduo dinamizada pela capacidade de abstração “[…] resulta do importante papel desempenhado no homem por um poder de imaginação relativamente intenso e pela capacidade de pensar, auxiliada como é pela linguagem e outros instrumentos simbólicos” (EINSTEIN, 2017, p. 25).

Se as características essenciais da imaginação são a mobilidade, a vivacidade e a inspiração para o novo, esse percurso é todo conhecimento, que, ao final, é também autoconhecimento. As possibilidades de abertura da imaginação e do pensamento na formação das pessoas abrange inclusive o erro, assim como, a aprendizagem que dele se desdobra, posto que erro é parte integrante do conhecimento, constituindo-se como método crítico. Nesse sentido, o erro é fundamental pois deixa de ser “[…] algo negativo, deixa de ser acidente” (BARBOSA; BULCÃO, 2004, p. 54) para se constituir parte da atividade do próprio conhecimento.

Seja no plano da imaginação, seja no plano do espírito científico, o que se busca não é uma “[…] reforma do conhecimento vulgar, mas […] uma conversão dos interesses. Reside nisso justamente o princípio do engajamento” (BACHELARD, 1977, p. 32, grifo do autor) numa racionalidade aberta. Trata-se da conversão a uma racionalidade que se mantém alerta diante dos conhecimentos habituais, sistemáticos e positivos. A disposição do indivíduo de conhecer se degenera à medida que ele se aproxima da perspectiva de conservação do saber instituído. Para alçar voo em novos rumos, a escola e os sujeitos que a movem precisam superar a tentação de formar com vistas a confirmar seu saber. É necessário criar as condições necessárias para que o espírito possa ser restituído às suas próprias disposições criadoras, ultrapassando as burocracias pedagógicas estabelecidas.

Na atividade educativa, a imaginação é sempre matéria artesanal, fértil para transgressão e um tanto indefinível no sentido de que muitos dos seus aspectos não se podem desvelar. Se estamos distantes de atingir a capacidade metafórica possível à atividade educativa, é porque, de modo geral, as dificuldades se apresentam desde a base da cultura – na formação dos professores e dos alunos e na dificuldade de romper com as opiniões absolutas. Mas também será temerário afirmar que na formação escolar desenvolvida cotidianamente não se apresentam quaisquer subsídios imaginativos na formação das pessoas. Por princípio, a imaginação e os valores simbólicos estão sempre presentes em alguma medida. Nesse sentido, o que está em questão neste trabalho, que carece de maior investigação, é compreender a interveniência da atividade racional que se estabelece junto à imaginação com vistas a elevar a formação humana.

Posto que a imaginação e suas fontes primordiais integram não somente o que pode existir de mais belo e grandioso no conhecimento e nos afetos humanos, mas também as piores elaborações de que a humanidade é capaz de cometer (JUNG, 2014), por isso mesmo, a imaginação é matéria de toda sugestão arquetípica. Em seu processo nascente, não se trata, ainda, de uma região racional no sentido ético, estético ou do conhecimento. Constitui-se, antes, como força, uma energia psíquica que termina por encontrar um campo de expressão, seja ele adequado ou não. Nesse aspecto, talvez se possa mesmo dizer que não há processo cultural ou formativo desprovido de implicações da imaginação e dos valores simbólicos.

Por isso, na cultura do consumo e da superficialidade, muitas vezes, o imaginário está predominantemente voltado para um código de validade externo que leva as pessoas normalizadas a renunciarem à sua singularidade e à sua criação sob o encantamento dos interesses utilitários e produtivos. Nessa direção, “[…] uma cabeça bem feita é infelizmente uma cabeça fechada. É um produto de escola”, diz Bachelard (1996, p. 20, grifo do autor). A adesão apaixonada da formação às conveniências sociais imediatas tem como consequência a destruição do desejo de criação do espírito. Se o homem exerce sua criação pelo desejo e não somente pela necessidade (BACHELARD, 2008a), o projeto coletivo para uma educação elevada não se restringe a um imaginário domesticado, pronto à simplesmente instruir.

Nas experiências atuais da educação escolar, as problemáticas institucionais e burocráticas tendem a mobilizar a maior parte da energia disponível, chegando, muitas vezes, a se tornarem a própria síntese da escola e dos seus interesses. Cabe aqui chamar a atenção para os riscos que residem nesse fato. Assumindo o perigo de cair no reducionismo, pode-se dizer que se trata de uma cultura escolar que, via de regra, investe grande parte da sua atenção nas preocupações gerencialistas, no controle sobre os alunos e professores, nos cronogramas, nos conteúdos a efetivar, nas tecnologias a implementar, dentre outras questões que, apesar de importantes, não tocam na natureza própria da escola, tornando-se barreiras para a reflexão e para a realização das disposições afetivas, criativas, éticas e intelectuais das pessoas. Na esfera dos valores da formação, “[…] enquanto a educação define o homem pelos caracteres que o constituem, Bachelard considera que se deve defini-lo pelos caracteres que o fazem evoluir, pelos caracteres que o fazem ultrapassar a condição humana” (BULCÃO, 1995, p. 71).

Para cultivar os interesses próprios da formação escolar na sua dimensão epistemológica, ética e criativa, dentre todas as atividades que ela já realiza, também “[…] é necessário devolver à razão humana sua função de turbulência e agressividade” (BACHELARD, 1972, p. 7). Este é um modo de confrontar, desafiar e multiplicar as ocasiões para criar novos conhecimentos, abrindo-se à formação que poderá restituir razão e sensibilidade uma à outra na relação de ensino.

A natureza criadora adentra a formação à medida que ela reconhece cada vez mais que a razão é inventiva mediante potencialidades outrora inativas e ociosas, passando, então, a ter “[…] menos necessidade de descobrir coisas que ideias” (BACHELARD, 1972, p. 16). Participante da modernidade, em franca oposição ao conhecimento comum e panfletário, a escola do conhecimento primordial e retificador alcança o plano em que pode se realizar como lócus de formação pela livre invenção do espírito humano. Cabe lembrar ainda que o primordial, não é sinônimo de primeiro - aquilo que já está desde sempre posto - mas, como se pode observar na história da geometria, primordial significa projetivo, que é da ordem da promessa. Da mesma forma, a primitividade da imagem não diz respeito ao que primeiro existiu, trata-se, antes, da imagem mais perfeita, ou ideal. O tema é bem trabalhado por Bachelard em Lautréamont (2013b). A questão pedagógica que emana desse olhar toca especialmente na possibilidade de inventar as condições para que o espírito se adiante do ponto de vista da imaginação, da criação e do pensamento.

Referências

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. 2. ed. Tradução Antonio de Pádua Danesi. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2013a. [ Links ]

BACHELARD, Gaston. A filosofia do não. In: BACHELARD, Gaston. A filosofia do não; O novo espírito científico; A poética do espaço. Tradução Joaquim José Moura Ramos et al. São Paulo: Abril Cultural, 1978. p. 3-87. (Os pensadores). [ Links ]

BACHELARD, Gaston. A formação do espírito científico: contribuição para uma psicanálise do conhecimento. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. [ Links ]

BACHELARD, Gaston. A psicanálise do fogo. 3. ed. Tradução Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2008a. [ Links ]

BACHELARD, Gaston. Crítica preliminar ao conceito de fronteira epistemológica. In: BACHELARD, Gaston. Estudos. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008b. p. 69-76. [ Links ]

BACHELARD, Gaston. Lautréamont. Tradução Fábio Ferreira de Almeida. Goiânia: Ricochete, 2013b. [ Links ]

BACHELARD, Gaston. L’engagement rationaliste: préface de Georges Canguilhem. Paris: Presses Universitaires de France, 1972. (Bibliothèque de philosophie contemporaine). [ Links ]

BACHELARD, Gaston. Númeno e microfísica. In: BACHELARD, Gaston. Estudos. Tradução Estela dos Santos Abreu. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008c. p. 11-22. [ Links ]

BACHELARD, Gaston. O racionalismo aplicado. Tradução Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1977. [ Links ]

BARBOSA, Elyana; BULCÃO, Marly. Bachelard: pedagogia da razão, pedagogia da imaginação. Petrópolis: Vozes, 2004. [ Links ]

BARROS, Manoel de. Meu quintal é maior do que o mundo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015a. [ Links ]

BARROS, Manoel de. Menino do mato. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015b. [ Links ]

BULCÃO, Marly. Bachelard e os caminhos do super-homem. Reflexão, Campinas, v. 20, n. 62, p. 69-80, 1995. [ Links ]

COÊLHO, Ildeu Moreira. Qual o sentido da escola? In: COÊLHO, Ildeu Moreira (org.). Escritos sobre o sentido da escola. Campinas: Mercado de Letras, 2012. p. 59-85. [ Links ]

CORBINIANO, Simone. A experiência ético-formativa da psicanálise e a interlocução com Kant. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 38, n. 2, p. 399-412, 2013. https://doi.org/10.1590/S2175-62362013000200003Links ]

EINSTEIN, Albert. Meus últimos anos: os escritos da maturidade de um dos maiores gênios de todos os tempos. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2017. [ Links ]

GALLO, Silvio; MONTEIRO, Alexandrina. Educação menor como dispositivo potencializador de uma escola outra. Rematec, Belém, v. 15, n. 33, p. 185-200, 2020. http://dx.doi.org/10.37084/REMATEC.1980-3141.2020.n33.p185-200.id228Links ]

GOETHE, Johann Wolfgang Von. Werther. Tradução Alberto Maximiliano. São Paulo: Nova Cultural, 2003. [ Links ]

JUNG, Carl Gustav. A vida simbólica. Tradução Araceli Elman, Edgar Orth. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. (Obra completa de Carl Gustav Jung; v. 18/1). [ Links ]

JUNG, Carl Gustav. Psicologia do inconsciente. Tradução Maria Luiza Appy. 24. ed. Petrópolis: Vozes, 2014. (Obra completa de Carl Gustav Jung; v. 7/1). [ Links ]

KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução Valério Rohden, Udo B. Moosburger. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1991. (Os pensadores). [ Links ]

KANT, Immanuel. Sobre a pedagogia. Tradução Francisco Cock Fontanella. 3. ed. Piracibaba: Unimep, 2002. [ Links ]

SEVERINO, Antônio Joaquim. A busca do sentido da formação humana: tarefa da filosofia da educação. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 32, n. 3, p. 619-634, 2006. https://doi.org/10.1590/S1517-97022006000300013Links ]

TERNES, José. Expérience première et valeurs rationnelles. Cahiers Gaston Bachelard – Bachelard au Brésil, Dijon, n. 4, p. 51-59, 2001. [ Links ]

VERNANT, Jean-Pierre. Entre mito e política. Tradução Cristina Murachco. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2002. [ Links ]

2- A terminologia adotada por Bachelard (1978, 1996) identifica a ciência clássica como a ciência do final do século XVIII que se estende até o início do século XX, época do pensamento científico marcada especialmente pela mecânica newtoniana. Essa compreensão se baseia menos em períodos cronológicos, e mais no fato de reconhecer estágios e distinções epistemológicas substantivas entre os diferentes contextos do pensamento das ciências. Não tendo como referência a historiografia social clássica com suas fases continuamente interligadas, os princípios pelos quais Bachelard (1996) se orienta têm motivações epistemológicas ligadas à história dos conceitos e ao movimento inerente ao conhecimento nas ciências. Resulta disso a compreensão de três períodos distintos na formação do espírito científico: o primeiro é o período do pensamento pré-científico, que se estende da Antiguidade grega, incluindo o Renascimento, até o século XVIII. Depois, inicia-se a época na qual se reconhece o pensamento do estado científico propriamente dito, que abrange todo o século XIX e o início do século XX, constituindo o período da ciência clássica e suas importantes contribuições, sobretudo, com o pensamento de Newton e Kant. O terceiro e mais recente período histórico do pensamento é o do novo espírito científico, que consiste no contexto da história do pensamento científico pós-Teoria da Relatividade Geral de 1915 e que é compreendido por Bachelard como, propriamente, moderno.

3- Contrário à compreensão da racionalidade clássica que, tanto na vertente empirista quanto na idealista, tradicionalmente trata da verificação do fenômeno de modo equivocado, reduzindo-o a uma experiencia uniforme e sem abertura à razão. Bachelard, por sua vez, em sua obra Númeno e microfísica (2008c), trata a questão da racionalidade contemporânea para a qual a primazia do pensamento está além do fenômeno imediato, bem como, da sua formalização matemática. Sob os valores do Novo Espírito Cientifico (Cf. nota 2) as propriedades numênicas são mais presentes na experiencia do conhecimento, que os fenômenos em si. Nesse contexto o ‘estudo do real’ tem um sentido matemático, mais que um significado fenomenal. Por isso, a microfísica [o infinitamente pequeno], bem como as propriedades numênicas são a base racional do real desconhecido. Assim, o “númeno não é um simples postulado metafísico nem um convencional sinal de junção. Pela reflexão, nele encontramos uma estrutura complexa; é a essa complexidade harmônica que ele deve sua objetividade discursiva, objetividade essa que pode expor-se, sujeitar-se à prova, confirmar sua universalidade. [...] O númeno é um centro de convergência das noções. Temos de construí-lo por um esforço matemático” (BACHELARD, 2008c, p. 17-22).

Recebido: 08 de Julho de 2020; Revisado: 17 de Agosto de 2020; Aceito: 14 de Setembro de 2020

Simone Corbiniano é professora adjunta da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Creative Commons License  This is an Open Access article distributed under the terms of the Creative Commons Attribution Non-Commercial License, which permits unrestricted non-commercial use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original work is properly cited.