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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 21-Set-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248243770por 

Artigos

Sentidos de educação na publicidade da EaD: do paradigma do processo ao paradigma do produto

Eduardo Alves Rodrigues1 
http://orcid.org/0000-0001-6818-6647

Cármen L. H. Agustini2 
http://orcid.org/0000-0001-5504-3911

1- Universidade Virtual do Estado de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil. Contato: eduardoar76@gmail.com

2- Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, MG, Brasil. Contato: carmen.agustini@gmail.com


Resumo

Neste artigo, com base no quadro teórico-metodológico da Análise de Discurso, analisamos peças publicitárias que colocam em oferta, no mercado, a educação a distância (EaD). Essas peças circulam socialmente – embora não exclusivamente – na modalidade online. Nosso objetivo consistiu em restituir, por meio de um dispositivo de leitura discursivo e materialista, condições de (re)leitura ao processo de produção de efeitos de sentidos evocáveis nas e pelas referidas peças publicitárias, focalizando como os sentidos de educação em jogo na publicidade da EaD deslocam a inscrição da educação (a distância), afastando-a do paradigma do processo e aproximando-a do paradigma do produto. Esse processo de significação produz como efeito a projeção da educação (a distância) ao estatuto de mercadoria. Com as análises, mostramos que, como mercadoria, a publicidade da EaD instaura discursividades que acirram a luta de classes na sociedade capitalista neoliberal pela articulação e transversalidade discursiva, que (re)atualizam a redução discursiva da EaD à profissionalização, ao menor esforço, à instantaneidade, ao digital, ao trabalho, configurando a EaD como o “novo normal” da/na educação. Como consequência dessa prática discursiva e seu impacto sobre a sociedade, as discursividades que funcionam na publicidade da EaD produzem risco à emancipação do sujeito na e pela educação (a distância).

Palavras-Chave: Educação a distância; Publicidade; Neoliberalismo; Discurso

Abstract

In this article, based on the theoretical-methodological framework of Discourse Analysis, we analyze advertising pieces that put distance learning (DL) on sale in the market. Such advertisements circulate socially – although not exclusively – in the online form. Our objective was to restore, by means of a discursive and materialist interpretative device, (re)interpretation conditions to the process of producing effects of meanings evocable in and through the referred advertising pieces. This restoration was carried out by focusing on how the meanings of education at stake in DL advertising shift the inscription of (distance) learning, moving it away from the process paradigm and leading it toward the product paradigm. This rendering process produces, as an effect, the projection of (distance) learning to the status of merchandise. By means of our analyses, we show that, as merchandise, DL advertising establishes discourses that aggravate the class struggle in neoliberal capitalist society by means of articulation and discursive transversality that (re)direct DL’s discursive reduction to professionalization, to effortlessness, to instantaneousness, to the digital form and to jobs, configuring DL as the “new normal” of/in education. Because of this discursive practice and its impact on society, the discursive devices operating in DL advertising produce a risk to the emancipation of the subject in and through (distance) learning.

Key words: Distance learning; Advertising; Neoliberalism; Discourse

Palavras iniciais

Neste artigo, discutimos e analisamos, do ponto de vista da estrutura e do funcionamento da linguagem, o que tem se mostrado com regularidade (evidência de sentido) em processos de discursivização do sentido de educação na educação a distância (EaD), que ganham formulação e circulação em peças publicitárias destinadas à promoção de instituições e cursos EaD de nível superior. Embora a EaD seja ofertada tanto por instituições públicas quanto privadas, ao estabelecermos o arquivo de leitura a partir do interesse em compreendermos como o discurso capitalista neoliberal incide na publicidade da EaD, constatamos que há uma inscrição discursiva diferente das peças publicitárias a que tivemos acesso, quer se trate de instituição pública, quer se trate de instituição privada.

Tal inscrição discursiva marca uma filiação a uma região com dominância de sentidos (formação discursiva) que se materializa na formulação, no ponto em que se estabelece o jogo entre intradiscurso e interdiscurso3. É sobre o modo como essa formulação se constitui e circula que direcionamos a análise, procurando restituir à superfície linguageira a espessura semântica que lhe é específica, ou seja, abrir essa superfície ao processo discursivo que a significa, expondo as articulações e as latitudes discursivas (PÊCHEUX, 2011) que o constituem.

As peças relativas às instituições públicas fornecem, majoritariamente, informações logísticas (prazos de inscrição, cursos oferecidos, endereço de acesso aos editais etc.), embora traços do discurso capitalista neoliberal já se façam visíveis em algumas de suas publicidades, como aparece marcado nas seguintes formulações: “A universidade do seu tempo – Vestibular Univesp 2018”4, “Universidade pública ao seu alcance – Vestibular Univesp 2019”5 e “Vestibular 2º semestre Univesp – Ensino Superior Gratuito”6. Nessas formulações, sentidos de educação como bem consumível são acionáveis nos gestos de leitura possíveis, significando o ensino público como um bem moderno, atual, acessível e alcançável no tempo do leitor/consumidor. Assim, o sintagma preposicional “do seu tempo” joga com sentidos de tempo como tempo moderno e atual, e de tempo como tempo disponível do leitor, como potencial aluno. “Ao seu alcance” e “ensino superior gratuito” (re)produzem, por sua vez, sentidos de acessível, tanto por ser possível e realizável, quanto por ser gratuito.

Já as peças relativas às instituições privadas se constituem como propaganda, gênero assumido como próprio na e pela discursividade publicitária e que é reconhecível por apresentar, com regularidade, marcas como: presença de celebridades, slogans e assunção de interlocutor/público-alvo. Imaginariamente, as instituições públicas não seriam instituições mercantilistas, pois não visariam ao lucro. Portanto, não precisariam anunciar a educação comercialmente. Por isso, nosso recorte analítico, para este artigo, restringiu-se à análise de peças publicitárias de instituições privadas.

Assim, as peças analisadas se fundam sobre um processo discursivo que coloca em funcionamento uma relação metafórica a qual produz a equivalência entre educação e bem de consumo e, em decorrência, uma relação de implicação entre educação e profissão/emprego, propiciando certa estabilização ao sentido de educar. Nessa perspectiva, educar significaria, por exemplo, “dar condições de empregabilidade”, embora não haja uma relação de implicação necessária e suficiente entre “profissionalizar-se” e “empregar-se”, como sustentam certos discursos em circulação na sociedade. Dito de outro modo, formar-se em um curso superior não implica garantia de emprego.

Como veremos em análise, esse efeito metafórico expõe a significação das/nas peças publicitárias a outras articulações discursivas possíveis (PÊCHEUX, 1999), ocasionando o deslizamento do sentido de educação, sobretudo pela determinação da formação discursiva que sustenta discursos sobre as novas tecnologias de informação e comunicação (DIAS, 2009, 2018), doravante NTICs, no âmbito dos quais o efeito de sinonímia entre conhecimento e informação já se encontra cristalizado, podendo (re)aparecer, por isso, nas formulações (nas peças publicitárias) como um saber constituído. Seguindo o raciocínio de Dias (2009), esse efeito é histórica e ideologicamente costurado pelo modo como o sentido de velocidade é regulado pela formação discursiva que sustenta discursos sobre as NTICs.

Nessa formação discursiva, o sentido de velocidade corresponderia, imaginariamente, à supervelocidade binária, à velocidade instantânea que circunscreve o aqui-agora do “em tempo real”, à velocidade que inscreve já no presente uma futuridade exata devido, como mostraremos, a determinadas relações de implicação. Dessa maneira, esse efeito de sentido de velocidade suprime o sentido de processo (processo de produção de conhecimento, processo de formação profissional, processo de subjetivação, processo histórico), consequentemente permitindo, por um lado, o encapsulamento do conhecimento, isto é, o conhecimento passa a ser lido como mera informação (instantânea); e, por outro, o encapsulamento da própria formação do aluno, reduzindo-a à capacitação, à qualificação ou ao mero treinamento, isto é, um saber-fazer que não se sustenta em compreensão e que não produz compreensão daquilo que fundamenta esse saber-fazer, de modo que o aluno permaneça como objeto na relação conhecimento-emprego-sociedade (ORLANDI, 2014).

Tomar a perspectiva da linguagem para analisar e compreender essa produção histórica de sentidos sobre a EaD significa expor o olhar leitor à espessura semântica das peças publicitárias que a divulgam, explicitando que a linguagem ali mobilizada, assim como os efeitos ali (re)atualizados, funciona na e pela opacidade, produzindo a naturalização dos sentidos por elas postos em circulação. Esse modo de (re)ler a significação das peças publicitárias inscreve este trabalho na prática teórico-metodológica da Análise de Discurso.

Educação (não) implica profissionalização?

A análise do conjunto das peças publicitárias constantes do arquivo de leitura mostra que elas articulam implicações lógicas decisivas para a compreensão do seu funcionamento semântico. Na Figura 1, ganha visibilidade, como efeito de sentido, a seguinte implicação lógica, assim interpretada: é necessário educar-se e, em se educando, está se profissionalizando, ou seja, ao educar-se, profissionaliza-se.

Fonte: Google7.

Figura 1 Peças publicitárias da Cruzeiro do Sul Virtual que circularam em 2018 

Ambas as peças que compõem a Figura 1 formulam o chamamento – inscreva-se (em um curso de nível superior a distância). Enunciado de ordem que interpela o leitor (público-alvo) a inscrever-se na lógica do funcionamento discursivo em dominância na formação discursiva capitalista neoliberal, e que fornece a esse leitor a articulação de determinados discursos transversos e pré-construídos8, (re)produzindo coerência para a seguinte evidência: somente a educação pode transformar sua condição de trabalho. Na atual conjuntura, a EaD concederia a qualquer um condições de filiar-se a essa evidência, tornando-se, assim, um consumidor de educação e, em decorrência disso, tornando-se apto ao exercício profissional ao ser absorvido pelo mercado (de trabalho).

Esse efeito metafórico pode ser lido a partir do jogo parafrástico que se movimenta nas seguintes formulações:

a) Inscreva-se (no curso a distância em nível superior)/invista em sua carreira.

Essa relação parafrástica entre “inscrever-se” e “investir” permite expor ao olhar leitor o funcionamento equívoco do verbo “investir”, pelo qual outra rede de memória é colocada em cena: aquela que estabiliza sua leitura-interpretação regulada pela discursividade financeira, fazendo com que o enunciado “inscreva-se” entre na ordem do consumo, ligando-se por coesão ao discurso capitalista neoliberal. “Inscrever-se”, nesse jogo, desliza para “investir”, o que (i)mobiliza o leitor no campo do investimento em educação/profissão, de tal modo que os sentidos de profissão se sobrepõem aos sentidos de educação, afrouxando a ligação do leitor, potencial aluno, com sentidos de educação como processo de formação para a vida. O direcionamento é dado à formação para o emprego, determinando o deslizamento de formação para capacitação, qualificação, treinamento.

b) Desloque-se de uma condição a outra (de sem emprego para empregado)/se empregado, então mais bem remunerado/carreira alavancada etc.

A formação discursiva capitalista neoliberal em dominância instaura uma relação de implicação entre “educação (superior a distância)” e “alcançar um emprego (melhor)”, de modo que essa relação ganha efeito de naturalização por pregnância discursiva9: estuda-se para ter uma profissão e, assim, poder entrar no mercado (de trabalho). Essa relação de implicação (re)produz um efeito de dedução lógica – aquele que estuda (mais) consegue um emprego (melhor) – entre os argumentos, de modo que as relações de classes se acirram. Nas palavras de Laval (2019, p. 13-14),

[o] neoliberalismo escolar resultou, na verdade, numa verdadeira guerra entre classes para entrar nas “boas escolas” de um sistema escolar e universitário cada vez mais hierarquizado e desigualitário. É por esse motivo que a análise não pode se restringir ao fenômeno econômico de mercantilização da escola, mas estender-se à lógica social de “mercadorização” da escola pública, que está ligada à luta generalizada das classes sociais dentro do mercado escolar e universitário.

Esse funcionamento implicativo (ao modo de uma dedução lógica) entre “educação (superior a distância)” e “alcançar um emprego (melhor)”, ao restringir a finalidade da educação à profissionalização e à satisfação de uma demanda de mercado, se estabelece como evidência. Esse funcionamento sustenta formulações corriqueiras, comumente ouvidas no convívio social, quando, por exemplo, os pais dizem aos filhos que eles precisam estudar para se tornarem alguém na vida, para terem um bom emprego, um bom futuro. Ou ainda em sala de aula, quando os alunos se surpreendem ao ouvir do professor que a educação não serve apenas para o exercício de uma profissão.

c) Se “educação (superior a distância)”, então “obtenção de emprego (melhor)”. Conclusão: educar-se é necessário.

O efeito de dedução lógica que a relação de implicação entre “educação (superior a distância)” e “obtenção de emprego (melhor)” (re)produz como conclusão inferivelmente incontornável “educar-se é necessário”, sendo a EaD, imaginariamente, o mecanismo para (fornecer condições de o leitor/consumidor) suprir essa necessidade. Assim, a conclusão logicamente estabelecida sustenta o chamamento “inscreva-se”, e a publicidade funciona ideologicamente na evidência dos sentidos em relação de dominância na formação discursiva capitalista neoliberal, (re)produzindo-os e os colocando em circulação na sociedade.

Educação (não) é mercadoria?

A discursividade capitalista neoliberal, ao alçar a educação à condição de mercadoria10 para que ela seja atrativa enquanto tal, impõe-lhe uma função social específica restritiva e determinada pela lógica do mercado: a formação profissional, que deve abrir as portas do mercado (de trabalho) ao seu consumidor. Na EaD, essa função social se acirra, pois não se pode perder tempo.

Expliquemos: a lógica do mercado hoje, ou seja, na conjuntura da dominância das NTICs e do paradigma da sociedade (digital) em rede, é a lógica da supervelocidade do tempo (DIAS, 2009), a qual pressupõe construir o barco já na água. Noutras palavras, ao mesmo tempo que o aluno (EaD) estuda, ele trabalha. Nessa conjuntura, nem o aluno (EaD) nem o mercado podem dispor do tempo necessário à formação. Daí a capacitação – ou a qualificação, ou o treinamento – ser ofertada como solução que fornece rapidamente o profissional para o trabalho e o trabalho para o profissional, de tal modo que tanto o mercado quanto o profissional sejam supostamente atendidos. Essa metaforização discursiva – na qual capacitação é colocada no lugar de formação – promove um efeito de encaixe entre EaD e mercado, forçando uma relação de implicação inquestionável entre estudar e empregar-se, pois (con)figura-se como evidente.

O aluno da EaD, na condição de consumidor diante da oferta desse tipo de educação, “escolhe” a instituição não só em função da condição financeira necessária para ser um consumidor naquela/daquela instituição por algum tempo, mas também em função da qualidade do produto/da mercadoria que lhe é oferecido, baseando-se, para tanto, na articulação discursiva que (re)produz a dedução lógica entre educação (como produto/mercadoria) e profissionalização/empregabilidade, atualizando a seguinte discursividade transversa: quanto melhor o produto, melhor o emprego que poderá conquistar. Justifica-se, assim, a circulação de peças publicitárias sustentadas em supostas certificações de qualidade. A enunciação de tal certificação, nas peças publicitárias da Figura 2, evocam pré-construídos que dispõem de um já suposto saber decorrente da articulação discursiva supramencionada: tal instituição de educação a distância é certificada pela qualidade que oferece, e o aluno é mais bem capacitado para o mercado em tal instituição de EaD.

A) Fonte: Google (https://painel.posestacio.com.br/assets/uploads/81/5dd03-estacio.jpg) .B) Fonte: Google (https://unipguarulhos.com.br/macedo/wp-content/uploads/sites/3/2018/11/top.jpg). C) Fonte: Google (https://ddd.uab.cat/pub/niusleter/etc_a2012m10n49/1.jpg).

Figura 2 Peças publicitárias das instituições Estácio e Unip 

Ainda com base na Figura 2, podemos dizer que esse funcionamento discursivo se mostra materializado em algumas marcas identificadas na superfície linguageira das peças. Os adjetivos “preferida” e “máxima” funcionam predicando “Unip” e “nota” respectivamente, construindo a evidência de que as instituições ali referidas – Universidade Paulista (Unip) e Estácio, que oferecem a EaD como produto no mercado – seriam aquelas que ofertam o melhor produto, isto é, a melhor EaD e, por dedução lógica, o melhor requisito para o ingresso no mercado (de trabalho). Assim, esse funcionamento significa que a educação (a distância)11 deve atender a um propósito profissional, fornecendo trabalhadores para suprir as necessidades da economia.

Podemos dizer que essas marcas discursivas constituem “a evocação lateral daquilo que se sabe a partir de outro lugar” (PÊCHEUX, 1995, p. 111) e que servem para pensar o objeto discursivo “EaD como mercadoria”, que simula uma proposição designativa autônoma, com sua “transparência” e “obviedade”. Essa fórmula sintagmática “EaD” funciona como uma evocação simulada de um saber já lá, isto é, um sentido já dado em sua “obviedade”, exterior tanto à fórmula quanto ao(s) sujeito(s) que a enuncia(m). Dessa maneira, explicitamos um dos mecanismos de funcionamento do interdiscurso (este já lá, em algum lugar, independentemente) no intradiscurso: “a preferida do mercado profissional” e “Estácio é nota máxima no conceito institucional EaD do MEC”. Este mecanismo Pêcheux (1995) denomina de “pré-construído”, por presentificar o interdiscurso como efeito de memória – “já sabemos (d)isso”.

Esse exterior constitutivo dos sentidos legíveis nas e pelas peças publicitárias da Figura 2 tornam-se legíveis na e pela dissimilação-presentificação de um enunciador que é supostamente “origem” de tal saber. Esse enunciador é qualificado como porta-voz do mercado profissional, no sistema capitalista neoliberal, isto é, “os que ‘contratam’, “os empregadores”, ou seja, aqueles que definem as capacidades/qualificações profissionais em demanda.

O funcionamento descrito coloca em evidência outro efeito de memória, outro mecanismo de presentificação do interdiscurso no intradiscurso: o discurso-transverso, que, conforme Pêcheux (1995, p. 167),

[…] atravessa e põe em conexão entre si os elementos discursivos constituídos pelo interdiscurso enquanto pré-construído, [e] que fornece, por assim dizer, a matéria-prima na qual o sujeito se constitui como “sujeito falante”, com a formação discursiva que o assujeita. Nesse sentido, pode-se bem dizer que o intradiscurso, enquanto “fio do discurso” do sujeito, é, a rigor, um efeito do interdiscurso sobre si mesmo, uma “interioridade” inteiramente determinada como tal “do exterior”.

Essa matéria-prima que atravessa o sujeito constitui, por consequência, o seu dizer. No caso das formulações que constituem as peças publicitárias e como elas significam a EaD, expõe-se sua inscrição na formação discursiva capitalista neoliberal, a qual Orlandi (2014) descreve como sendo a mesma que sobredetermina os sentidos de “formação” pelos sentidos de “capacitação”, de “qualificação”. A autora discursiviza o funcionamento dessa formação discursiva narrando a seguinte conjuntura:

[…] houve um momento, em nossa história, em que se dizia: “quando você se ‘forma?’”. Mas, atualmente, a pergunta é: “Quando você ‘termina?’”. Questão de tempo [de super-velocidade], de oportunidade, de emprego, de mercado de trabalho qualificado. Questão de “capacitação” para ser empresário. Não de “formação”. A gente não se forma, a gente termina. E termina o quê?

Esta equação não é fácil. Ela passa pela relação educação, trabalho, conhecimento. E nossa pergunta desliza para o que significa aí “conhecimento”.

[…] lembremos como a questão de “capacitação” tem tido presença constante na mídia, na fala de empresários e governantes. É um coringa que se tira do bolso para silenciar a força da reivindicação social.

Tomemos o exemplo do tão propalado “plano antimiséria”. Este plano é seguido da proposta de um cartão que vai promover o acesso social de milhões de pessoas, e o governo garante que, desta vez, o assistencialismo é só uma parte do programa pois haverá “cursos de capacitação” para os que vivem em condições de extrema pobreza. O que evitaria práticas de populismo e coronelismo. O que o logo país rico é país sem pobreza não garante. Apesar de falar em pobres, no programa de antimiséria, a presidente continua a falar em capacitação e, quando fala em educação, fala de cursos no exterior para pessoas de formação mais avançada (é preciso, pois, chegar lá). Para os mais pobres, ficam os treinamentos e a capacitação. No discurso dos especialistas também esta questão se faz presente. Cursos de capacitação, como disse um economista em entrevista, não resolve, porque não garante permanência, sustentação. De minha parte, retomo o que venho afirmando: é preciso educação básica, penso, “formação” mesmo, para que esses sujeitos ingressem no trabalho e saibam objetivar-se nas relações sociais em que estão concernidos. Porque o que não está dito é que se somos uma sociedade do conhecimento e da informação estas são as formas de atender a uma sociedade do trabalho (e do mercado). (ORLANDI, 2014, p. 146-148).

Para avançarmos na compreensão da produção dos efeitos a partir do funcionamento dessa transversalidade discursiva, tomemos a Figura 3. Essa figura traz uma das latitudes da formação discursiva capitalista neoliberal que determina a publicidade da EaD: o seu valor, imputando um jogo, inversamente proporcional, entre qualidade (internacional) e preço (baixo), uma vez que a educação, ao ser significada como mercadoria, torna-se precificável. Assim, articulam-se as qualidades do produto (a educação) oferecido a certo valor/preço: “qualidade internacional que cabe no seu bolso”, “realize seu sonho de estudar com uma mensalidade que cabe no bolso”, “oferta casadinha: no mês dos namorados, traga para a Estácio alguém que você ama, do crush ao amigo do peito e garanta 50% de bolsa, no curso todo, para cada um”.

A) Fonte: Google (https://cutt.ly/SiH3kpQ; https://cutt.ly/HiH8Tcq). B) Fonte: Google (https://www.portalr10.com/images/noticias/50984/1549374067.jpg).

Figura 3 Peças publicitárias da Wyden Educacional e da Estácio 

As formulações que estampam as peças da Figura 3 não remetem ao conhecimento que é considerado o objetivo da educação. Ao contrário, todas as formulações reportam o leitor/consumidor ao sentido de educação como mercadoria, autorizando sua redução a um valor, a um preço. Daí a EaD ser liquidada, anunciada em promoções: “leve 2 pelo preço de 1”, anuncia a propaganda da Estácio: “2 graduações pelo preço de 1”. Esse tipo de formulação é uma regularidade do discurso comercial e significa o produto “educação” como aquele que deveria ser consumido em grande quantidade, fazendo restar certa dúvida sobre sua qualidade, que é poucas vezes referida nas peças. O consumo tem que ser vantajoso, mas não necessariamente pela qualidade do produto (a educação). O que as peças privilegiam é o consumo de quantidade, o que o baixo preço favorece. Trata-se, portanto, de uma convocação do leitor/consumidor (potencial aluno) a fazer parte de uma operação comercial que visa tão somente ao consumo, e não à formação (nem para a profissão, nem para a vida).

Tal latitude discursiva coloca em evidência que a EaD, como produto vendável, é ofertada a classes menos favorecidas da sociedade, uma vez que “caber no bolso” significa fácil acessibilidade por baixo custo. Essa latitude discursiva, assim constituída, discursiviza a luta de classes em funcionamento na sociedade. A distinção de classe materializa-se, inclusive, em imagens que compõem certas peças publicitárias. Por exemplo, a opacidade da peça publicitária da Wyden Educacional, exposta na Figura 3, coloca em relação a fotografia de uma moça negra, trajada ao estilo do mundo empresarial, e os dizeres “realize seu sonho de estudar” e “com uma mensalidade que cabe no bolso”. Essa relação autoriza (re)ler ali sentidos relativos à luta dos negros por melhores (condições de) trabalho(s)/vida e por igualdade nas condições de existência.

Se a peça publicitária da Wyden Educacional constituída pela fotografia da moça negra for cotejada com as demais peças da campanha, como aquela em que aparece a fotografia de um jovem rapaz (Figura 3), encontra-se indício da produção de certo silenciamento que dissimula a diferença entre os jovens ali representados, sugerindo uma relação de suposição, como se essas peças falassem a todos os jovens, supondo que todos eles compartilham as mesmas condições socioeconômicas, que todos têm exatamente as mesmas necessidades a serem supridas por aquela oferta de EaD, e que todos podem trilhar exatamente os mesmos caminhos para alcançar seus objetivos, sonhos, profissões, empregos, enfim, melhores condições de vida/existência. Dessa maneira, dissimula-se também que os recursos da EaD poderiam ser usufruídos da mesma maneira, independentemente de quem seja seu leitor/consumidor.

A articulação discursiva que essa latitude promove faz significar e circular em nossa sociedade a configuração da EaD como uma mercadoria especialmente produzida para certas classes sociais menos favorecidas, tomadas como seu público-alvo primário, o que produz uma certa contradição imaginária. Daí as peças publicitárias comportarem formulações como “Educação a Distância: qualidade e conteúdo iguais ao curso presencial” e “o mesmo diploma do curso presencial”.

A necessidade discursiva que impele a peça publicitária a afirmar que a EaD teria a mesma qualidade e conteúdo da educação presencial materializa a diferença entre as duas modalidades, que permanece funcionando ao modo do implícito, significando a existência de discursividades que afirmam exatamente o contrário, ou seja, a qualidade e o conteúdo atribuídos à educação presencial jamais poderiam ser ofertados de forma equivalente pela EaD.

Educação (não) implica esforço?

Em outras formulações de peças constantes da Figura 4 e do arquivo de leitura estabelecido – como “Pós-graduação a Distância: para quem não pode perder tempo e quer dar um salto na carreira sem sair de casa”, “estudar a distância é assim: com flexibilidade e conforto”, “conquiste seu diploma estudando onde e quando você quiser/conhecimento no [seu] ritmo (de Paulo)”, “você decide quando e como estudar” e “estude de onde estiver e na hora que puder”– são reforçadas as evidências de que a EaD ofereceria flexibilidade, facilidade, comodidade, otimização e celeridade, de forma que, ao leitor/consumidor, ficaria garantido realizar/obter tudo o que ele quiser sem perder tempo, sem sair de casa e com o menor custo. Nas condições de (re)leitura das peças, “tudo” pode reescrever “educação”, “diploma”, “emprego”, “qualidade”, “sonho”, “carreira”, “desconto” etc.

A) Fonte: Google (https://leonardoconcon.com.br/wp-content/uploads/2016/06/unip-processo-seletivo-1.jpg). B) Fonte: Google (https://www.pe.senac.br/wp-content/uploads/2018/02/EAD-1200x565-1200x565.jpg). C) Fonte: Google (https://cdn.abcdoabc.com.br/Cursos-EAD-Anhanguera-2015_3cbe4c9a.jpg). D) Fonte: Google (https://cutt.ly/WiH0TvE).E) Fonte: Google (https://muzambinho.com.br/wp-content/uploads/2019/01/UNIPObj02.jpg).

Figura 4 Peças publicitárias da Unip, do Senac e da Anhanguera 

Os atributos dispostos como próprios à EaD – flexibilidade, facilidade, comodidade, otimização, celeridade etc. – (d)enunciam o fato de que o público-alvo primário dessas peças comportaria aqueles leitores/consumidores que se encontram “sem condições” de estudar ou de frequentar instituições de educação presencial, seja por falta de tempo, seja por falta de recursos. Dessa maneira, as peças expõem a condição socioeconômica desses leitores/consumidores, tornando visível, ao mesmo tempo, as divisões que acirram a luta de classes em nossa sociedade. Isso faz com que aqueles “sem condições” de optar pela modalidade presencial sejam captados pela EaD, significada, nas peças, como única alternativa de ascensão social, especialmente pelo acesso a um emprego (melhor).

Esse modo de significar a EaD a inscreve numa rede de memória a partir da qual seria possível conceber a desarticulação entre a educação e o esforço que ela demanda. Nessa direção, educar-se acontece no modo da automatização e da instantaneidade, silenciando a necessidade de esforçar-se para formar-se e/ou para empregar-se. Essa lógica semântica produz a relação de implicação – se você está na EaD, você está pronto – e aparece marcada em formulações como “Você faz. A transformação acontece” e “Emprego novo ano que vem? Aqui você pode”.

Com base nessas formulações, compreendemos que o leitor/consumidor estaria pronto para a “transformação” e para o “emprego novo” de modo instantâneo, automático, o que aconteceria sem esforço algum. Com efeito, essas formulações demonstram estar sustentadas no paradigma do produto em detrimento do paradigma do processo.

O paradigma do processo é a base da educação, se tomada como processo de construção de conhecimento no qual o aluno/estudante deve/pode se inscrever como sujeito; enquanto o paradigma do produto é a base do capitalismo neoliberal, no qual o sujeito é individuado como consumidor. Essa sobreposição de um paradigma (do produto) sobre o outro (do processo) atualiza uma contradição constitutiva, ao produzir o deslocamento da educação como processo do/para o sujeito, para a educação como objeto consumível para o/pelo sujeito. Daí a possibilidade de (re)produção da não necessidade do esforço como “evidência natural” (PÊCHEUX, 1995, p. 148). Isso impacta o modo como acontece a luta de classes, porque mexe no percurso dos sujeitos no interior da formação social que os circunscreve, acirrando a divisão entre sujeito capacitado/qualificado/treinado e sujeito formado, sujeito do trabalho e sujeito do conhecimento, e estabilizando a naturalização da divisão entre trabalho e conhecimento. Essas decorrências analíticas dialogam, de modo significativo, com as considerações de Orlandi (2014) na citação suprarreferida.

Ainda com relação às formulações “Você faz. A transformação acontece” e “Emprego novo ano que vem? Aqui você pode”, pode-se depreender um funcionamento discursivo que produz como efeito a antecipação de um estado de futuro já agora. Ou seja, sobrepõe-se ao presente das formulações em qualquer instante em que sejam tomadas à leitura, efeitos da transformação instantânea anunciada. O leitor/consumidor projetado na posição de “você” é impelido a identificar-se com esse futuro prometido como já possível/certo, no qual as portas do mercado (de trabalho) encontram-se abertas a ele, sob a condição de que ele faça um curso EaD. É assim que se torna possível a oferta de emprego ao modo como se oferece uma mercadoria. Seguindo esse raciocínio, a EaD deixaria a vocação de oferecer educação e assumiria a vocação de comercializar vagas de emprego. Não é à toa que há peças publicitárias que trazem formulações como “Unip é top no mercado de trabalho/Quem afirma são os que contratam” (Figura 2).

Esse funcionamento decorre do modo como a sobredeterminação da formação discursiva capitalista neoliberal incide sobre a EaD, administrando as latitudes dos discursos sobre a EaD, produzindo como efeito o deslocamento supramencionado sobre sua vocação: rivalizam com os sentidos de educação e ganham dominância sentidos historicizados, que a metaforizam a partir da inscrição a outra rede de memória, aquela que dá vazão a sentidos de comércio e de emprego.

Se considerarmos, ainda, as fotografias dos jovens que estampam as peças reunidas nas figuras 3 e 4, é possível (entre)ver a evidência do sentido de transformação – que a EaD poderia favorecer aquele que a consome – operando a identificação com aqueles que compõem o público-alvo primário das peças, de modo que seu leitor/consumidor seja metaforizado – espelhado – ao ser colocado no lugar dos jovens ali retratados. Por esse funcionamento, o leitor/consumidor reconheceria nesse jogo metafórico – jogo de espelhos, de sobreposição de imagens – aquilo que lhe é sugerido como seu próprio futuro, ou seja, um jovem já empregado, por já ser ou ao se tornar aluno da EaD.

A (re)leitura das peças publicitárias da EaD restitui visibilidade, no nível das relações de força, à dominância de outro polo da luta de classes, o polo daqueles que contratam, os empregadores, os detentores da força econômica e, por isso, apresentados como se fossem os definidores da oferta e da nova vocação da EaD, sugerindo que ela seria uma demanda inquestionável do mercado de trabalho. Daí a eficácia ideológica do funcionamento implicativo “Você faz, a transformação acontece”, paráfrase de “aluno da EaD, aluno empregado”.

A força dessa relação de implicação transforma, por sua vez, o pré-construído de que a educação é um processo de formação do sujeito como sujeito do conhecimento, no pré-construído de que a educação é um produto adquirível/consumível, o que articula outra referência semântica para a educação: a educação como mercadoria; a educação alcançada sem esforços; a educação como capacitação/qualificação/treinamento para o trabalho; a educação sem formação (para a vida); a educação sem sujeito e sem história.

Educação (não) implica tempo?

Outra latitude discursiva em funcionamento em peças do arquivo de leitura e que incide sobre e (re)direciona os sentidos da EaD, (re)atualizando a formação discursiva capitalista neoliberal, pode ser depreendida a partir da análise da Figura 5. Nesse recorte, discursiviza-se uma relação de implicação entre tempo e educação: se há um novo formato ao vivo, então há uma nova forma de qualificação; se as aulas têm interação em tempo real, então trata-se de educação (executiva) live. A leitura dessa relação de implicação expõe o encapsulamento, o envelopamento (RODRIGUES, 2012), da educação pela evidência, isto é, pela coerência significativa naturalizada do sentido de “em tempo real”, configurando-se em uma imagem aparentemente cristalizada que atravessa, sob a forma de um discurso transverso, a formação discursiva capitalista neoliberal. Nessa formação discursiva, “em tempo real”, como discurso transverso, articulam-se encadeamentos possíveis que ficam disponíveis aos processos de significação e, como tal, (re)atualiza-se em montagens discursivas como as da Figura 5.

Fonte: Arquivo do e-mail pessoal.

Figura 5 Peças publicitárias da Fundação Getúlio Vargas (FGV) 

Dessa maneira, o sentido de “em tempo real” fornece a condição necessária para a construção imaginária da EaD como algo que se consome, supostamente, de modo interativo, em tempo curto e pré-definido. Sobre essa evidência de sentido, articulam-se outras evidências fornecidas pela formação discursiva das NTICs, as quais sustentam as tendências tecnológicas que sobredeterminam os modos de produção da EaD, fazendo parecer concreto e viável uma educação que se realizaria, privilegiadamente, em um novo formato e um novo tempo, o das lives.

Com isso, o processo educacional é encapsulado/envelopado no paradigma da curta duração (da supervelocidade), pois teria de ocorrer sob a restrição desse suposto novo formato, que é típico tanto das performances (de diversos formatos e propósitos) do mundo do entretenimento quanto da divulgação no espaço digital. Isso faz supor, inclusive, que fora desse curto tempo de duração não haveria necessidade de o aluno (esforçar-se para) educar-se, ou seja, não haveria demanda por tempo de dedicação para além da duração das lives, o que produz um efeito de imediaticidade e simplicidade para a EaD, reforçando, como consequência, a ruptura semântica com o sentido de formação como implicação da educação.

É nessa conjuntura semântica das peças da Figura 5 que é atribuída à EaD a face corporativa, apresentando um subproduto dessa mercadoria: a educação executiva (a distância), cujo compromisso imaginário seria o de oferecer “nova qualificação em tempo real” capaz de colocar à disposição do mercado empresários/profissionais prontos a suprirem suas demandas. O sentido de formação nas peças do recorte desloca-se, assim, para “qualificação”.

O que não se diz ali é que “qualificação” e “formação” não significam a mesma coisa, porque, em matéria de educação, não funcionam sinonimicamente. Como vimos, “qualificação” decorre do paradigma do produto, metaforizando “capacitação” e “treinamento”, enquanto “formação” decorre do paradigma do processo, metaforizando as condições de constituição de formas de subjetivação que poderiam restituir ao sujeito uma relação de identificação com os saberes e com o conhecimento, abrindo essa relação a outras articulações que escapariam à evidência de sua posição como “consumidor”.

O modelo da educação executiva (a distância), que promete “uma nova forma de qualificação” por meio de cursos de curta duração, abre lugar para que a pergunta “quando você se forma?” perca sentido e seja substituída pela pergunta “quando você termina?”, como apontado por Orlandi (2014). Essa pergunta evidencia o deslocamento do sentido de educação determinado na e pela relação com o sujeito para o sentido de educação determinado na e pela relação com o tempo. Isso marca para o sujeito uma outra forma de identificação com a educação, na qual se (re)produz uma ligação escorregadia, fugaz, esvaziada e excessivamente técnica. Esse deslocamento e seus efeitos são acirrados pela evidência do “em tempo real” como interface da evidência da supervelocidade imposta como paradigma da sociedade atual, organizada pela metáfora da rede (DIAS, 2009) e do digital (DIAS, 2018).

O novo normal da/na educação

As peças publicitárias que compõem o arquivo de leitura, a partir do qual a temática da EaD ganhou contorno teórico-analítico neste artigo, movimentam efeitos de sentido que não são exclusivos às peças. Esses efeitos são possíveis ali porque estão em circulação na sociedade em relação de dominância, especialmente, podemos dizer com base em Dias (2009), a partir da transposição da sociedade fundada sobre o paradigma circular da produção (fronteiriça, cartografável) do conhecimento para a sociedade atual fundada sobre o paradigma reticular da produção (fluida, contínua, indelineável) do conhecimento. Isso, do nosso ponto de vista, torna-se possível pela filiação determinante às formações discursivas das NTICs e do mundo semântico organizado sob o efeito de evidência do digital, sob a dominância da formação discursiva capitalista neoliberal.

É dessa maneira que as peças publicitárias que ofertam a EaD como produto/mercadoria têm sua significância administrada a partir do modo como essas formações discursivas se atravessam, se implicam, se sobredeterminam. Elas se fazem presentes pelo modo como ganha sustentação a conformação ideológica dos espaços escolares, das políticas públicas, dos documentos oficiais orientadores/reguladores das práticas educacionais, dos processos de formação de professores, dos livros didáticos e dos próprios sujeitos que aí podem se encontrar identificados. Ressaltamos que a evidência construída de educação como produto/mercadoria funciona tanto para sua comercialização nas vitrines de oferta quanto para sua negociação nas bolsas de valores como commodities12, reforçando a eficácia ideológica que reduz a educação à capacitação, ao treinamento, à qualificação, à profissionalização, ao emprego, enfim, a um produto destinado a suprir apenas as demandas do mundo do trabalho.

Podemos dizer, com efeito, que essa eficácia ideológica é uma prática que funciona no terreno estabelecido pelo jogo de forças disputado na e pela luta de classes, cujo resultado é “a redução do ensino [da educação, da EaD] a fonte de lucro” (AVELAR, 2020). A educação é assim inscrita no mundo dos negócios altamente lucrativos. E com a EaD isso não é diferente; muito pelo contrário, acirra-se.

Como negócio que deve ser necessariamente lucrativo, a educação passa a ser objeto de interesse de empresas, investidores e magnatas, como reafirmado pela pesquisadora Marina Avelar da Graduate Institute of International and Development Studies, da Suíça, em entrevista a Cátia Guimarães. Nesta entrevista, ao versar sobre a atuação das instituições financeiras – entidades empresariais da educação – quanto à conformação da relação entre os interesses públicos e privados na e sobre a educação, a pesquisadora alerta para o fato de que

[…] quem está ditando os conteúdos [educacionais] não são mais as entidades de educadores, associações e fóruns, e sim os educadores que a gente chamava de externos, mas que não são mais externos. Tem muita disputa de projetos. Professores geralmente querem um projeto criativo, focalizado, que responda às necessidades de cada aluno, que vá trazer emancipação e pensamento crítico. E o projeto que essas fundações trazem geralmente não é esse, é uma coisa mais pragmática, de desenvolvimento econômico, de formação de habilidades para coisas que o mercado precisa. […] Essas fundações geralmente têm uma visão de educação voltada para habilidades práticas e trabalhos, do mercado de trabalho, pensando em desenvolvimento econômico, pensando em um tipo de pessoa que depois vai ser útil para o mercado de trabalho. (AVELAR, 2020).

As análises aqui realizadas das peças mostram também o que (d)enuncia a pesquisadora, demonstrando, inclusive, como os interesses dos grupos empresariais significam a EaD como produto/negócio a partir de relações semânticas de implicação, como “você faz, a transformação acontece” ou “se aluno EaD, então aluno empregado, aluno com futuro garantido”.

No momento em que finalizávamos a escrita deste artigo, não paravam de chegar em nossas caixas de e-mails ofertas aos mais diversos produtos da EaD. Dentre elas, destaca-se a oferta da “graduação digital” acessível via EaD, conforme a Figura 6.

Fonte: Arquivo do e-mail pessoal.

Figura 6 Peça publicitária da Estácio (julho de 2020) 

Pela peça da Figura 6, o sentido de “graduação” desliza a partir de sua predicação como “digital”. Nessa medida, este seria o “novo” predicativo, isto é, o “novo” produto em oferta, que, neste caso, não seria mais tão somente a graduação, mas, também, o digital. Por meio de peças como essa, o mercado, cuja prática conhecida é a da aparente diversificação de seus produtos, procura estabilizar ao leitor esta evidência como novidade necessária ao consumo. Dessa maneira, o mercado promove seus produtos à condição/necessidade do que ficou conhecido como o “novo normal”.

Vale destacar, ainda, que, em função da conjuntura pandêmica vivenciada ao longo de 2020 e 2021, associada à contaminação pelo vírus SARS-CoV-2, houve a recomendação de que o contato físico e as reuniões presenciais fossem restringidos severamente, o que estabeleceu a condição de produção do “novo normal” como evidência e, em decorrência, a EaD como o “novo normal” no/do campo da educação. O discurso que sustenta o “novo normal” na/da educação é atravessado pelo discurso transverso que (re)produz o paradigma do digital como a memória de inscrição de uma (nova) realidade já dada e incontornável, apresentada ao leitor/consumidor sendo global e universal, acessível e experienciável igualmente por todos. Esses efeitos dissimulam as diferenças que constituem a realidade social, assim como a luta de classes. Portanto, nesse paradigma do “novo normal”, as ofertas do mercado não levam em consideração os diferentes graus de decalagens decorrentes da existência e da convivência de diferentes gerações e classes sociais marcadas por diferentes condições relativas ao digital.

Da nossa perspectiva, a partir do que as análises nos permitiram compreender sobre o jogo de sentidos em funcionamento na publicidade da EaD, na luta de classes não se pode abrir mão do paradigma do processo e da formação para educação, não se pode reduzir a educação apenas à capacitação (ou treinamento, qualificação, profissionalização), sobretudo na EaD, já que, nessa modalidade, amplia-se em larga escala a possibilidade de identificar um número cada vez maior de sujeitos a (determinados) sentidos de educação.

Essa redução pode produzir como consequência uma fissura histórica na produção de condições que sustentam o processo de emancipação do sujeito na e pela educação, e, logo, na produção de condições que permitam ao sujeito significar e significar-se não apenas para o trabalho, mas também para a vida em sociedade. Isso nos leva a advertir o leitor da necessidade imperiosa de buscarmos meios de restituir ao sujeito o seu lugar central nos processos – tanto presenciais quanto a distância – que visam sua educação, de modo que o paradigma da produção não destrua, de forma irreversível, o paradigma da formação.

Referências

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3- O intradiscurso refere-se ao modo como o dizer se apresenta na e pela superficialidade da linguagem; enquanto o interdiscurso refere-se ao modo como a significação, ou seja, a produção dos efeitos de sentido se torna presente, materialmente, no dizer.

5- Disponível em: http://folhadeipero.com.br/wp-content/uploads/2019/05/Univesp.jpeg. Acesso em: jul. 2020.

7- As peças publicitárias reproduzidas, de forma adaptada e para fins analíticos neste artigo, circularam entre 2018 e 2020. Foram capturadas na internet e acessadas em julho de 2020. Os prints decorrentes de captura de tela têm como fonte endereços disponibilizados no Google Imagens. As peças da Figura 1 estão disponíveis, respectivamente, nos seguintes endereços: https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn%3AANd9GcT79epRmmuvm7U-pXxsT3xGNZtN1F_7G1Uykw&usqp=CAU; e https://encrypted-tbn0.gstatic.com/images?q=tbn%3AANd9GcRz32_nc4ab5Et6CqHHUrqSgaxeifE9Vvp3Og&usqp=CAU.

8- Discursos transversos e pré-construídos são, segundo Pêcheux (1995), mecanismos de funcionamento do interdiscurso no intradiscurso, presentificando-o como efeito de memória (discursiva).

9- Compreendemos pregnância discursiva como vestígio material do discurso (AGUSTINI; ARAÚJO, 2009) capitalista neoliberal que mantém em funcionamento esse efeito de dedução lógica presente/impregnado nos diferentes dizeres sobre educação e profissionalização.

10- Carvalho (2013) restitui condições de leitura a esse processo de transformação da educação em mercadoria. A autora mostra o aparato legal que, estabelecido no Brasil pela articulação entre a Constituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, e o Decreto nº 2.306/1997 (substituto do Decreto nº 2.027/1997), produziu as condições para a dissimulação de um processo de mercantilização da educação superior, já diagnosticado, segundo ela, por Silva Júnior e Sguissardi (2000) e reafirmado por Sguissardi (2008) e Oliveira (2009). É nesse processo que se situa “a transformação da educação em mercadoria, cujo preço é determinado pelo mercado com o intuito central de obter lucro em benefício de seus proprietários e acionistas [...]” (CARVALHO, 2013, p, p. 763). A autora adverte, ainda, que “a tendência à mercantilização da educação superior não se restringe ao caso brasileiro. A transformação do setor educacional em objeto de interesse do grande capital é uma das consequências da globalização, especialmente nos países asiáticos e nos países desenvolvidos de origem anglo-saxônica, sobretudo nos Estados Unidos” (p. 764).

11- Essa significação circula por outros caminhos além das peças publicitárias, ramificando-se e impregnando-se em outras possíveis formulações em que está em jogo o sentido de educação.

12- Altbach (2002) já advertia sobre uma “revolução” que tomava lugar na educação e que a transformava em uma commodity negociável internacionalmente. Como commodity, segundo o autor, a educação pode ser tanto adquirida por um consumidor com o objetivo de construir um conjunto de habilidades e capacidades de interesse do mercado quanto comercializada por instituições acadêmicas que passam a funcionar e atuar como corporações multinacionais. Nessa direção, a educação em todos os seus níveis ultrapassaria o estatuto de commodity para funcionar como um sistema provedor das habilidades e capacidades necessárias para sustentar o sucesso econômico e, assim, estabelecer os fundamentos de conformação da sociedade civil e da participação nacional.

Recebido: 19 de Setembro de 2020; Aceito: 10 de Fevereiro de 2021

Eduardo Alves Rodrigues é doutor em linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), especialista em análise de discurso, história das ideias linguísticas, ensino de língua portuguesa e língua inglesa, e membro do Grupo de Pesquisa e Estudos em Linguagem e Subjetividade (GELS-UFU-CNPq).

Cármen L. H. Agustini é doutora em linguística pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), especialista em análise de discurso, história das ideias linguísticas, semântica e ensino de língua portuguesa, e líder do Grupo de Pesquisa e Estudos em Linguagem e Subjetividade (GELS-UFU-CNPq).

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