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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 21-Set-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248244997 

Artigos

Educação matemática e a formação do homo oeconomicus1

Mathematics education and the formation of the homo oeconomicus

Jéssica Ignácio de Souza2 
http://orcid.org/0000-0002-8017-6799

Cláudia Regina Flores2 
http://orcid.org/0000-0003-2351-5712

2- Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina, Brasil. Contatos: jessica.igdesouzaa@gmail.com; claudia.flores@ufsc.br


Resumo

Uma educação financeira é inserida na agenda global educacional, especialmente pela disseminação de documentos propositivos da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), e se inscreve na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) em articulação aos conteúdos da matemática que se ensina na escola. Além disso, há que se notar um interesse no campo da pesquisa em Educação Matemática, que passa a tomar a educação financeira como um importante problema a ser investigado para os processos de ensino e aprendizagem. Neste artigo objetivamos analisar práticas matemáticas historicamente situadas que, em suas conexões, forma o homo oeconomicus, entendido como aquele sujeito requerido ao bom funcionamento da economia, à luz de Michel Foucault. Para isso, analisamos livros didáticos de matemática de outros momentos históricos, coletados no Museu da Escola Catarinense, do Ensino Fundamental, da coleção A conquista da matemática, bem como teses e dissertações que tratam da temática educação financeira. Os procedimentos teórico-metodológicos são inspirados na genealogia, conceito empregado por Michel Foucault. Disso inferimos que permanece na educação matemática uma função econômica que se atualiza: dos conteúdos técnicos, formas de calcular e pensar economicamente a partir do trabalho comerciário e fabril até a primeira metade do século XX, passa-se também a exercitar comportamentos e valores de como consumir, construir orçamentos e poupar no neoliberalismo.

Palavras-Chave: Educação financeira; Cuidado de si; Trabalho; Empresariamento de si; História da educação matemática

Abstract

Financial education is included in the global educational agenda, especially through the dissemination of propositional documents from the Organization for Economic Cooperation and Development (OECD) and is inscribed in the National Common Curriculum Base (BNCC) in conjunction with the contents of mathematics taught at school. In addition, there is an interest in the field of research in mathematics education, which starts to take financial education as an important problem to be investigated in the teaching and learning processes. In this article, we aim to analyze historically situated mathematical practices that, in their connections, form the homo oeconomicus, understood as that subject required for the proper functioning of the economy, in the light of Michel Foucault. For this, we analyzed mathematics textbooks from other historical moments, collected at the Museu da Escola Catarinense, of elementary school, from the collection A conquista da matemática, and theses and dissertations that deal with the theme of financial education. The theoretical-methodological procedures are inspired by genealogy, a concept used by Michel Foucault. From this, we infer that an updated economic function remains in mathematics education: from the technical contents, ways of calculating and thinking economically from commercial and industrial work until the first half of the 20th century, behaviors and values of how to consume, build budgets, and save under neoliberalism also began to be exercized.

Key words: Financial education; Care of the self; Work; Entrepreneurship of the self; History of mathematics education

Introdução

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) insere um “tema”3 a ser trabalhado nas aulas de matemática: a educação financeira. Sugere-se que o “tema” deve estar em sala de aula junto aos diversos conteúdos matemáticos, como razão e proporção, porcentagem, funções, operações básicas, etc., desde os anos iniciais do ensino fundamental até o ensino médio, de modo a educar os alunos para o trabalho, o consumo, o poupar e o investir, extrapolando, portanto, o conteúdo de Matemática Financeira. Campos (2012), por exemplo, defende que, para além dos conteúdos que citamos anteriormente, a educação financeira pode interagir com álgebra, geometria e tratamento da informação. Esse movimento não se restringe ao Brasil, mas está no que podemos chamar de agenda mundial, tendo em vista todos os documentos e projetos elaborados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) como, por exemplo, o Recommendation on principles and good practices for financial education and awareness (OCDE, 2005).

Ora, pode parecer óbvio pensar sobre a importância de que os professores que ensinam matemática tragam o “tema” para suas aulas, devido à sua forte conexão com a realidade e a possibilidade de conscientização dos estudantes frente às situações de consumo4. Entretanto, consideramos que perceber as condições de possibilidade das sugestões de inserção do “tema” em sala de aula a partir da problematização desses enunciados junto à construção de uma história da educação financeira que se entrelaça aos conteúdos da matemática que se ensina na escola, é possibilitar a nós, professores e pesquisadores, a reflexão sobre a própria prática, sobre os modos como inserimos, e como somos inseridos, nesse “tema” em sala de aula.

Neste artigo objetivamos analisar práticas matemáticas historicamente situadas em suas conexões com a formação do que Michel Foucault chama de homo oeconomicus. Para isso, analisamos livros didáticos de matemática de outros momentos históricos, coletados no Museu da Escola Catarinense5, livros didáticos do ensino fundamental da coleção A conquista da matemática6, bem como teses e dissertações selecionadas a partir de busca com os descritores “educação financeira” e “matemática” na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (BDTD-IBICT)7. Os procedimentos teórico-metodológicos são inspirados na genealogia, conceito empregado por Michel Foucault, o que significa estudar a relação saber-poder que envolve o “tema”, apresentar os acontecimentos múltiplos e heterogêneos presentes na constituição do sujeito e de suas identidades, e mostrar os discursos que forjam regras de subjetivação.

O homo oeconomicus da troca

Cada epistéme forma e é formada por práticas e ideias econômicas que se modificam e se reelaboram no decorrer do tempo cronológico. A título de exemplo, observa-se na antiguidade grega, por exemplo, que a economia significava a administração do patrimônio familiar, a oíkia (XENOFONTE, 1999). Enquanto que, na contemporaneidade, a economia está relacionada a uma arte de governar as populações, a uma biopolítica8, e a família passa a ser local de intervenção9 desta ciência.

A troca constituiu o princípio a partir do qual o mercado era definido até o liberalismo do século XVIII, e para essa troca acontecer havia a vigilância exterior por parte do Estado, algo que se modifica com o neoliberalismo a partir do século XX. No século XVIII, o mercado

[...] era definido e descrito a partir da troca, da troca livre entre dois parceiros que, pela sua própria troca, estabelecem uma equivalência entre dois valores. O modelo e o princípio do mercado era a troca, e a liberdade do mercado, a não intervenção de um terceiro, de uma qualquer autoridade, a fatiori da autoridade do Estado, era certamente aplicada para que esse mercado fosse válido e para que a equivalência fosse efetivamente a equivalência. Contudo, pedia-se ao Estado que vigiasse o bom funcionamento do mercado, ou seja, que assegurasse o respeito pela liberdade dos que faziam as trocas. (FOUCAULT, 2018, p. 156).

O homo oeconomicus, definido por Foucault como quem trabalha somente perante uma ameaça de morte, ou seja, “aquele que passa, usa e perde sua vida escapando da iminência da morte” (FOUCAULT, 2000, p. 353), é o sujeito que se requer ao bom funcionamento da economia, de modo histórico e culturalmente determinado. Na concepção clássica, é o homem da troca.

E este homo oeconomicus parceiro da troca implica, evidentemente, uma análise daquilo que ele é, uma decomposição dos seus comportamentos e maneiras de fazer em termos de utilidade, que se referem, por certo, a uma problemática das necessidades, porque é a partir dessas necessidades que se pode caracterizar ou definir, ou pelo menos fundar, uma utilidade que levará ao processo da troca. (FOUCAULT, 2018, p. 286).

Das necessidades a partir das quais é definida uma utilidade que produz o processo de troca, a atividade comerciária se amplia e se complexifica. Portanto, no bojo da ampliação da atividade comerciária e industrial, séculos XIX e XX, é mister questionarmos sobre: quais conhecimentos são determinados para serem aplicados, desenvolvidos, ensinados na escola, ou melhor, nas aulas de matemática, para a formação dos sujeitos? Que modos de subjetivação são forjados pela prática e o exercício de uma educação financeira escolar?

Em sua tese, Gaertner (2004) apresenta uma história da matemática escolar da região de Blumenau, no período de 1889 a 1968. Por meio de registros escritos como um relatório das escolas alemãs, datado de 1910, a autora apresenta os conteúdos escolares de matemática da época. A apresentação desses conteúdos era dividida por quatro classes, sendo que a 1ª Classe continha tópicos de matemática financeira como, por exemplo, juros, lucros e perdas, desconto e cambio. Baseando-se nos programas estudados, a autora afirma que “estudava-se matemática com um objetivo bem definido: preparar os alunos para utilizar os conhecimentos matemáticos em sua vida diária e nas atividades do comércio” (GAERTNER, 2004, p. 67, grifo nosso).

A autora mostra que no programa de 1929 os estudos na Neue Deutsche Schule10 eram divididos em oito anos e na disciplina de aritmética, a partir do 6º ano, era indicada a abordagem de conteúdos relacionados à matemática financeira. Porcentagem, emprego de porcentagem no comércio, desconto, lucro e prejuízo, juros, regra de sociedade e companhia, maneiras de cálculo no relacionamento bancário e comercial eram alguns dos conteúdos. Além disso, em uma prova final de matemática destinada aos alunos do 9º ano, datada de 1935, uma das três questões consistia na simulação de uma oferta de venda de uma casa contendo três propostas de pagamento, sendo uma à vista e duas com parcelas à vista e o restante a prazo, com valores diferentes. O aluno precisava indicar a melhor oferta para o vendedor, considerando determinada taxa de juros. Ao solicitar a indicação da melhor oferta para o vendedor, essa questão nos mostra uma preocupação no pensar pela ótica dos comerciantes, em formar para o trabalho no comércio.

Silva (2020), em seu trabalho de análise de cadernos escolares do ano de 1942 de uma escola teuto-brasileira do município de Antônio Carlos (SC), identifica o tópico de juros simples como o último para o 3º Anno: “Estes aparecem, de certa forma, nos problemas que dizem respeito à matemática financeira, ou seja, nos contextos de poupar, gastar, economizar, etc.” (SILVA, 2020, p. 98). Diríamos mais, que um certo tipo de educar financeiro já se exercitava nessas aulas de matemática. Além disso, as atividades de preenchimento de recibos, identificadas pela autora, mostram que uma das ênfases no ensino da matemática era a formação direcionada ao trabalho comerciário.

Faria (2011) realizou um estudo sobre o ensino de matemática na Academia de Comércio de Santa Catarina ao longo das décadas de 1930 e 1940. Para isso, apresenta uma comparação entre a legislação e o que foi executado pelos professores, bem como descreve e analisa os conteúdos matemáticos envolvidos na época. De acordo com o autor, a Reforma Gustavo Capanema propiciou, além das mudanças na nomenclatura e na duração dos cursos, um aumento no contato com o conhecimento técnico, dentre eles os conhecimentos matemáticos comerciais e financeiros. Além disso, Faria (2011) observou que no curso comercial básico deu-se uma maior importância ao ensino de juros e que no curso de contabilidade enfatizou-se as fórmulas de juros e descontos nos pontos de prova. De modo geral, afirma que “há um eixo condutor no ensino de Matemática da Academia de Comércio: a priorização ao estudo das fórmulas, consequentemente das expressões algébricas” (FARIA, 2011, p. 164). O autor percebe, ao analisar os livros didáticos que eram utilizados, especialmente o Aritmética – curso secundário, que

[...] em consonância com o processo de industrialização vivido pelo Brasil na década de 1930, muitos problemas deste livro são constituídos de sujeitos da configuração capitalista: geralmente operário e negociante, mas também fazendeiros, costureiras, chapeleiros, dentre outros. (FARIA, 2011, p. 167).

Essa ênfase em exemplificar os problemas, a partir de situações envolvendo os sujeitos do processo de troca na abordagem de conteúdos ligados à matemática financeira, pode ser observada também em livro didático de 1940 voltado para o ensino de matemática no “curso ginasial”, neste caso, mais especificamente, do ponto de vista do empresário da fábrica, como mostraremos mais à frente.

Se buscássemos uma origem da matemática financeira e seu ensino, nos depararíamos com os cursos técnicos de comércio e industrial, entretanto, apesar de ser uma questão também importante, não é isso que buscamos. Situamo-nos justamente no ponto de pensar esse conhecimento na sua inserção na Educação Básica, ou seja, na abordagem da matemática financeira que extrapola o ensino técnico, de modo que seja possível entender quais as condições de possibilidade internas e externas da inserção desse “tema” que chega até a escola; um “tema” que está para além dos cálculos e é chamado de educação financeira. Ora, visto que um conhecimento seria necessário para a formação de determinados profissionais, mais especificamente para a formação para o trabalho comerciário ou industrial, que é a matemática financeira, que vai para a escola e se torna parte dos conteúdos a serem ensinados nas aulas de matemática, inferimos que quer-se os sujeitos, de um modo geral, não somente aqueles que buscavam as profissões relacionadas, mas que todos fossem formatados para um determinado tipo de conduta: para o mundo do trabalho.

Ao pesquisarmos livros didáticos de matemática de outras épocas no Museu da Escola Catarinense, percebemos a inscrição de uma matemática financeira, quiçá mais voltada ao ensino de cálculos propriamente. Ali aparecem os conceitos de juros, taxa de juros, montante, etc., e exercícios com ênfase na aplicação de fórmulas a partir dos dados apresentados na questão, sem dar espaço para um pensar além desse procedimento, como se vê, por exemplo, no livro Matemática para a terceira série ginasial, de Osvaldo Sangiorgi, datado de 1954. Entretanto, chamou-nos a atenção um livro do ano de 1940, destinado ao 2º ano do curso ginasial que, para além de cálculos, fórmulas e definições, apresenta textos mais reflexivos sobre as situações da economia. O texto inicial, intitulado “Noções preliminares”, já mostra um direcionamento para o trabalho comercial, empresarial e fabril ao apresentar como exemplo quais elementos seriam necessários para que se iniciasse uma fábrica de tijolos e para que esta produzisse riqueza. O texto continua tendo como foco a atividade do fabricante, conforme pode ser verificado na Figura 1.

Fonte: Roxo; Thiré; Mello e Souza (1940, p. 210).

Figura 1 Texto com conceitos e exemplos relacionados à matemática financeira, 1940 

Ao discutir sobre o que influencia na determinação da taxa de juros, os autores afirmam que uma empresa que oferece pouca segurança obterá empréstimos a taxas elevadas, já as empresas que aplicarão o capital emprestado do banco em negócios de “êxito garantido” conseguirão taxas mais baixas. Ou seja, o foco em todos os textos é apresentar discussões sobre questões financeiras relacionadas à atividade empresarial, do âmbito comercial e fabril.

Santomé (2017), ao discutir sobre a mudança de foco e objetivos que a educação sofre no decorrer dos períodos históricos, afirma que no processo de industrialização o objetivo das escolas passa a ser o disciplinamento dos corpos e a domesticação da mente, junto a uma ênfase na individualização dos problemas que seriam da comunidade e na urbanização das populações. Ele diz,

[...] entre os séculos XIX e XX, à medida que vai avançando a industrialização e se vão construindo novas e enormes fábricas, os governos instrumentalizam também as instituições escolares para educar e disciplinar trabalhadores e trabalhadoras. Se recorre às instituições escolares para capacitá-los para que possam trabalhar em fábricas autoritárias e hierárquicas, para seguir o ritmo das linhas de montagem; no fundo, tratam de transformá-los em autômatos, daí que em numerosas ocasiões os professores recompensavam muito mais o bom comportamento e a obediência dos alunos do que os domínios dos conteúdos acadêmicos (SANTOMÉ, 2017, p. 38, tradução nossa, grifo nosso).

Além dessa capacitação em relação ao modo de ser do trabalhador requerido ao momento histórico em questão, com ênfase no bom comportamento e na obediência, o que emerge no livro didático de matemática de 1940, nos materiais analisados por Gaertner (2004) em sua tese, e no caderno que Silva (2020) apresenta em sua dissertação, é que, para além da referida disciplinarização de comportamentos, a escola também volta o ensino do próprio conteúdo, ao menos no âmbito da educação matemática, para a formação do aluno para o trabalho na empresa, indústria e comércio.

Dando continuidade à análise do livro, percebemos que no capítulo sobre “Moeda e Câmbio” os autores ressaltam a complexidade da atividade comercial da época e apresentam que em tempos anteriores esse processo resumia-se à troca de mercadorias.

Ao comentar sobre a questão da troca de mercadorias, é destacado que ainda havia, em 1940, “barganhas” ou trocas no interior do Brasil. Os autores consideram esse sistema como problemático e a moeda como necessária e indispensável para o comércio, uma “terceira mercadoria”; ideia defendida na época dos mercantilistas e fisiocratas, por volta dos séculos XVI a XVIII. Mas, disso, ressalta-se que a fabricação de um homo oeconomicus da troca no Brasil ocorre por várias vias, e mesmo em períodos diferentes, mas chama a atenção que isso, em 1940, se torna prática por meio de livros didáticos.

Observa-se, nesse livro em questão, uma matemática para formar o homem da “empresa”, que é aquele ligado à fábrica e ao comércio, e não à “empresa de si” como vai se requerer num Estado governamentalizado, entre fim do século XVIII e início do século XIX. Isso pode ser explicado pela chegada “tardia”, a partir de 1980, da biopolítica como arte de governar no Brasil (GALLO, 2017). O que observamos em relação à educação financeira, que para nós emerge como “tema” para as aulas de matemática, atualmente, é uma ênfase consideravelmente maior na questão do consumo e da formação de um tipo de consumidor do que na questão do trabalho. Ora, o que nos aponta indícios de modificação de um processo econômico que era centrado no âmbito comercial e industrial para um centrado no sujeito consumidor.

Fonte: Roxo; Thiré; Mello e Souza (1940, p. 246).

Figura 2 Texto sobre moeda e câmbio em livro de matemática de 1940 

O homo oeconomicus empresário de si

A figura do homo oeconomicus, que era da troca, se atualiza com o neoliberalismo, que passa a ser, então, o homem da empresa de si mesmo, da empresa em termos de comportamento econômico com objetivos e táticas. Isso “corresponde a um tipo de personalidade que coloca o dinheiro e a riqueza como seu motor de vida, como a motivação mais determinante de seus comportamentos” (SANTOMÉ, 2017, p. 88, tradução nossa). Desse modo, empresariar a si mesmo significa ativar a subjetividade pelas técnicas de administração de empresas. É ser flexível, adaptável e autônomo. Porém, essa autonomia, há que se destacar, consiste numa liberdade fabricada, ou seja, dentro dos moldes e limites do jogo econômico11.

A partir do início do século XXI o objetivo das escolas12 passa a ser, de acordo com Santomé (2017), a educação de personalidades neoliberais. O que implica que a formação do homo oeconomicus do neoliberalismo torna-se meta da escola. Para o caso do ensino de matemática, então, percebemos que não há mais a função de ensinar técnicas de cálculo comerciário ou apresentar discussões econômicas sob o ponto de vista do empresário da fábrica ou do comércio, pois para a formação do homo oeconomicus neoliberal, mais do que ensino de técnicas e cálculos, uma “educação” financeira é necessária.

Junto às competências elencadas na BNCC (BRASIL, 2018) destacamos o que chamam de habilidades. Por exemplo, para a unidade temática números e álgebra no ensino médio, lê-se:

Interpretar criticamente situações econômicas; interpretar taxas e índices de natureza econômica (como, por exemplo, taxas de inflação).

Aplicar conceitos matemáticos no planejamento, na execução e na análise de ações envolvendo a utilização de aplicativos e a criação de planilhas (para o controle de orçamento familiar, simuladores de cálculos de juros simples e compostos, entre outros), para tomar decisões. (BRASIL, 2018, p. 543, grifo nosso).

Planejamento, execução e análise de ações, e controle de orçamento consistem, portanto, em habilidades para conduzir bem uma empresa; empresa que, nesse momento, passa a ser o próprio sujeito, no âmbito familiar. O conhecimento que circula essa conduta não se daria, necessariamente, e tão somente, para exercer uma profissão com sua particularidade, mas para formar um sujeito econômico de um modo mais amplo, ou seja, que saiba, além de trabalhar, controlar financeiramente todas as esferas de sua vida. Assim, um conhecimento que está numa ordem do saber implicada pelo controlar e planejar o orçamento. Disso, centraliza-se uma educação para o consumo, para a formação de consumidores conscientes de modo que seja possível resolver o paradoxo de ganhar e gastar o menos possível, ao mesmo tempo em que, como consumidor, gasta o máximo possível para dar vazão à produção (LAZZARATO, 2013).

A Figura 3 exemplifica essa condução, ou seja, a do tema educação financeira em livro didático de matemática.

Fonte: Giovanni Júnior (2018, p. 35).

Figura 3 Exercitando o consumo consciente com o cartão de crédito, 2018 

Tratando de uma conduta de consumo consciente, o exercício, que é destinado ao 9º ano, se refere às compras com cartão de crédito. O texto inicial indica que, ainda que a maioria dos brasileiros prefiram utilizar o cartão na hora de parcelar, apenas uma pequena parcela da população conhece os juros que são cobrados na transação. Alerta, ainda, que apesar das vantagens no que se refere ao poder de compra permitido pelo cartão é preciso ter controle para que o consumidor não gaste mais do que ganha.

O exercício trata de uma situação hipotética de um consumidor que não consegue arcar com o valor total da fatura do cartão por dois meses consecutivos. Pede-se para calcular o quanto ele deve pagar no terceiro mês para quitar a dívida e, em seguida, quanto ele vai pagar no total. Por não ter honrado o compromisso com a primeira e a segunda fatura, o consumidor pagará mais pela compra que realizou por meio do cartão de crédito. Vale destacar, ainda, que a orientação didática inscrita nessa página indica que o professor deve orientar os alunos que, mesmo que os juros sejam considerados por algumas pessoas como abusivos, a responsabilidade é da pessoa que fez a dívida, pois os valores são previamente informados.

No mesmo livro didático podemos ver também a ideia de poupar e investir (Figura 4), ainda que de maneira menos recorrente do que os alertas sobre o consumo.

Fonte: Giovanni Júnior (2018, p. 251).

Figura 4 Exercícios sobre planejar e poupar, 2018 

Solicita-se, no exercício, que o aluno calcule o quanto determinado sujeito terá, se juntar determinada quantia mensalmente durante nove anos e, posteriormente, que compare com os valores que ele obteria se tivesse aplicado seu dinheiro na poupança, a partir do gráfico apresentado. O exercício para a realização de um investimento no 9º ano do ensino fundamental legitima e posiciona o sujeito cada vez mais cedo como investidor e consumidor de produtos financeiros. Além de saber poupar, o aluno precisa também saber investir13.

Das teses e dissertações analisadas, conforme mencionamos anteriormente, que tratam sobre educação financeira e que propõem e aplicam atividades no âmbito da educação matemática, a questão do consumo e do controle orçamentário é central e recorrente. A título de alguns exemplos encontrados, destacamos a seguir:

Campos (2012) aplicou exercícios ao 6º ano do ensino fundamental que envolviam a situação hipotética de dois irmãos que ganham mesada. As situações colocadas para que os estudantes criassem estratégias foram: a mesada não está sendo suficiente, então foi solicitado o ajuste dos gastos conforme o ganho; os irmãos gostariam de comprar algo que não cabe no orçamento, como poderiam economizar para comprar o que almejam?; os irmãos tiveram uma ideia para aumentar a renda, que era a compra de uma rifa de uma cesta, os estudantes deveriam pensar, então, nos riscos envolvidos nesta ideia e também na divisão proporcional do dinheiro caso ganhassem a rifa; por fim, foi solicitado que os estudantes elaborassem o próprio orçamento.

Stahlhöfer (2013) realizou atividades com o 8º ano do ensino fundamental que abordaram: a comparação de preços em folhetos e em supermercados; a comparação dos preços das embalagens de diferentes quantidades (comparação de preço de produtos em pacotes de 1kg e 5kg, por exemplo); o cálculo da variação percentual dos preços utilizando a regra de três simples; os preços a prazo e a vista de roupas, calçados e eletrodomésticos. Numa das aulas, a pesquisadora exibiu uma reportagem do Globo Repórter para os alunos assistirem, na qual mostrou exemplos “de pessoas que através de seu esforço, dedicação e planejamento conseguiram juntar dinheiro para terem uma vida financeira mais tranquila” (STAHLHÖFER, 2013, p. 66, grifo nosso).

Os exercícios que Barbosa (2015) aplicou aos estudantes do 1º ano do ensino médio tratavam sobre: o planejamento para o futuro, sobre sonhos e desejos; e a análise do perfil financeiro de 3 personagens: um que recebe mesada e gasta demais; um que trabalha e poupa com planejamento; e outro que trabalha e ganha muito, mas gasta mais do que ganha.

Gallas (2013) defende que crianças e jovens sejam agentes ativos nas tomadas de decisões financeiras na família e que poupar e investir deve estar sempre atrelado a sonhos, como a casa própria ou um carro novo. As atividades propostas ao 1º ano do dnsino médio envolviam a análise de panfletos de promoção, de empréstimo, fatura de luz, fatura de cartão de crédito, cálculo de um empréstimo com calculadora comum, de simulação de financiamento, e compra no supermercado. O autor afirma, ainda, que “Não basta ser um gastador consciente, mas também um poupador eficiente para que o dinheiro trabalhe a seu favor” (GALLAS, 2013, p. 16, grifos nossos).

Podemos inferir que os exercícios ora apresentados, além de ensinar conteúdos matemáticos, moldam um tipo de subjetividade, notadamente a de um homo oeconomicus, que: empresaria a si mesmo ainda que receba pouco, pois esforça-se ao máximo para poupar; é consciente ao saber avaliar quais os sonhos ou desejos de consumo, e planeja o orçamento para evitar os gastos desnecessários no presente; poupa, investe e pensa em táticas para ganhar mais dinheiro. O controle do que consumir e do seu orçamento parece ser algo central na educação financeira para as aulas de matemática, e pode se configurar como uma importante estratégia biopolítica para a formação de sujeitos que governem a si mesmo. Esse governo deve seguir as regras e condutas de um consumidor dito consciente e que é o único responsável pelo seu sucesso ou fracasso.

No que se refere ao contexto econômico contemporâneo, momento em que emerge esse tipo determinado de educação financeira, as ações e decisões do sujeito neoliberal são orientadas por determinados tipos de moral. Santomé (2017) elenca três delas: moral do esforço, moral da promessa e moral da culpa. A moral do esforço consiste na ideia de que “Qualquer pessoa que se esforce vai ter êxito: é a capacidade de esforçar-se que importa” (SANTOMÉ, 2017, p. 100, tradução nossa). Está relacionada à meritocracia, que resume a questão da pobreza ou fracasso financeiro à mera falta de esforço individual. Já a moral da promessa “tem a ver com ser responsável e atento à palavra dada; à vontade, ao compromisso e à obrigação de cumprir sempre as promessas feitas” (SANTOMÉ, 2017, p. 102, tradução nossa). O autor se refere às dívidas adquiridas pelos governos e que geram crises que acabam por transferir a promessa de dívida aos indivíduos. A moral da culpa implica na “responsabilidade individual de todos os riscos [...]”. A culpa seria “Por não ser suficientemente capaz e produtivo; por estar endividado; por querer viver acima de suas possibilidades” (SANTOMÉ, 2017, p. 103, tradução nossa). Aqui, uma intervenção nossa para destacar que isso, também, pode se relacionar com uma promessa de êxito na vida se o sujeito for, por exemplo, educado financeiramente, sendo a culpa do insucesso colocada exclusivamente no sujeito que não se esforçou suficientemente.

Nesse conjunto de morais, ousamos acrescentar mais uma: a moral do desejo. Nos estudos de Michel Foucault essa moralidade do desejo se refere ao desejo sexual, cujas prescrições remontam aos pensadores socrático-platônicos e da era helenística, e se atualizam e se modificam ao longo da história. Aqui, nos referimos a moral do desejo quando nos deparamos, a partir das análises acima apresentadas, com uma indicação de necessidade do sujeito saber controlar seus desejos relacionados à aquisição de bens materiais, avaliando se realmente é necessário comprar ou consumir algo. Isso, para que suas finanças e, consequentemente, seu futuro não sejam prejudicados por desejos impulsivos de consumo supérfluos. Ou, ainda, para que não consumindo desnecessariamente no presente, possam acumular dinheiro por certo tempo para que seja possível gastar toda a quantia em algum outro desejo material, mais importante, no futuro.

Esses quatro tipos de morais, ora apresentadas, parece-nos apontar para um quadro de práticas de um “tema” educação financeira, no âmbito da educação matemática, e que colocam em exercício determinadas condutas, formas de pensar e de agir, constituindo um sujeito-aluno que passa a ser, doravante, um empresário de si. Isso nos diz da importância de se refletir sobre os modos como esse “tema” vem sendo colocado em sala de aula. Ora, perguntamos: que tipos de subjetividades se moldam com isso? Que sujeitos se formam? Quais valores estão em jogo?

O empresariamento de si constitui uma “cultura de si”, a qual foi problematizada, desde a Antiguidade greco-romana, por Michel Foucault. Nos gregos e romanos antigos, o “cuidado de si”, o ocupar-se consigo mesmo, se referia à prática de exercícios diversos que levariam o sujeito a alcançar a verdade de si pela espiritualidade, ou seja, operavam-se mudanças em si mesmo pela prática. Do “cuidado de si” modifica-se para o “conhece-te a ti mesmo” socrático-platônico e do cristianismo, uma cultura de uma verdade imutável da alma na qual não se busca transformar-se, mas alcançar um conhecimento já pronto, pré-concebido, que se constituirá como a verdade do sujeito ou até mesmo renunciar a si, como no cristianismo.

Há uma mudança radical entre o que seria uma “cultura de si” contemporânea e aquela estudada por Foucault, e que remete aos primeiros séculos antes e depois de Cristo. Na “cultura de si” antiga

[...] o foco era a construção de si mesmo, isto é, o cuidado de si tinha como meta um processo de subjetivação, através do qual um sujeito, em princípio assujeitado pelas relações de poder, é capaz de agir sobre si mesmo, transformando-se e criando-se. Não se concebia uma “essencialidade” do sujeito, um núcleo interior inalienável; ele é sempre construção, mais heterônoma às vezes, mais autônoma outras vezes, mas sempre produzido. Numa suposta “cultura de si” contemporânea, animada pelas técnicas psi, pensa-se numa “verdade intrínseca de si mesmo”, que pode ser acessada e recuperada por essas técnicas. Não se trata, pois, de um processo de criação de si mesmo, mas de uma suposta redescoberta de si. (GALLO, 2019, p. 11, grifos nossos).

Além disso, deve produzir um sujeito que envolva totalmente a esfera pessoal e a profissional, que torne empresa não somente o trabalho, mas seu lazer e consumo, enfim, toda a sua vida. Dentre as técnicas da “cultura de si” contemporânea, podemos citar os coachs e a programação neurolinguística, que visam aperfeiçoar o domínio do sujeito sobre si mesmo diante de situações de estresse e adversidades. Arriscamos dizer que a educação financeira, a partir do que observamos das práticas matemáticas relacionadas ao que se propõe para o “tema” na contemporaneidade, constitui-se como uma das técnicas de “empresariamento de si” a partir da qual o estudante exercita esse domínio de si, de seu orçamento, de seu consumo, a fim de que esteja apto a realizar uma espécie de compensação da impossibilidade de domínio do mundo (DARDOT; LAVAL, 2016) e de sua imprevisibilidade. Trata-se de uma das técnicas que exercitam “uma ética pessoal em tempos de incerteza” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 336).

Vale ressaltar, entretanto, que a percepção da diferença observada por Foucault na formação do sujeito grego “nos possibilita pensar que podemos nos constituir de múltiplas formas e inventar novas estilísticas da existência, não restritas ao julgamento permanente do tribunal do mercado” (RAMMINGER; NARDI, 2008, p. 344). Daí que nos questionamos se seria possível pensar em outras abordagens para um educar financeiro na educação matemática. Ora, com Foucault podemos inferir que, com uma postura crítica e constante de nós mesmos, ou seja, de não aceitar as coisas prontas, de não se acomodar e apenas reconhecer o que está dado, mas assim questionar tudo o que nos chega, de nos perguntarmos quem somos, como somos formados, sobre o que e como nos formam, poderia ser um caminho. Entretanto, essa

[...] ontologia crítica de nós mesmos não deve ser considerada, certamente, como uma teoria, uma doutrina, nem mesmo como um corpo permanente de conhecimento que está se acumulando; deve ser concebido como uma atitude, um ethos, uma vida filosófica em que a crítica do que nós somos é, ao mesmo tempo, a análise histórica dos limites que nos são impostos e um experimento com a possibilidade de ir além deles (FOUCAULT, 1984, p. 50, grifo nosso).

Considerações finais

Algumas práticas matemáticas, das que vimos emergir nos livros didáticos e nas teses e dissertações analisadas, acompanharam a atualização da figura do homo oeconomicus, o sujeito que forma e é formado pelos processos econômicos e que, de parceiro da troca comerciária passa a ser o empresário de si mesmo na contemporaneidade. Permanece na educação matemática uma função econômica que se atualiza: dos conteúdos técnicos, formas de calcular e pensar economicamente a partir do trabalho comerciário e fabril, passa-se também a exercitar comportamentos e valores de como consumir, construir orçamentos e poupar em tempo do neoliberalismo. Esses exercícios vistos nas práticas contemporâneas formam o que chamamos de “técnicas de si” e estão permeados por indicações que forjam um sujeito “empresário de si” que é conduzido por uma moral quádrupla formada pela culpa, pela promessa, pelo esforço e pelo desejo.

Os programas de ensino, estudados ao longo da história da educação matemática, não carregam consigo somente uma lista de conteúdos a serem ensinados e orientações para ensinar, mas são assim efeitos e agentes, submersos em relações que forjam, a cada época, um tipo de sujeito para atender demandas da própria sociedade. A educação matemática, as tendências e conteúdos de ensino que a ela se atrelam, não se constituem em um conjunto simples de conteúdos a ensinar e para ensinar, mas um conjunto amplo de saberes e práticas que formam o que somos em sociedade.

Agradecimentos

1 - Agradecemos à Capes/Fapesc pela concessão de bolsa de doutorado para a primeira autora e ao CNPq pela concessão de bolsa produtividade para a segunda autora, que oportunizaram a produção desta pesquisa.

Referências

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3- Chamamos de “tema”, enquanto assunto, ou algo semelhante ao conceito musical: fragmento melódico ou rítmico que é base para a composição de uma peça e que sempre retorna ao longo dessa, por vezes de maneira diferenciada. Esse termo está sendo utilizado na pesquisa de doutorado da primeira autora, sob a orientação da segunda, no Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica (UFSC), e foi delimitado a partir do estudo da pesquisa citada, quando da instada a responder o que é educação financeira.

4- Estes são dois enunciados que emergem em teses e dissertações que tratam sobre educação financeira nas aulas de matemática da Educação Básica. Analisamos, para a pesquisa de doutorado, teses e dissertações a partir do site de buscas Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (BDTD-IBICT). Inserimos os termos “educação financeira” e “matemática” no mecanismo de busca e, optando pelo campo “assunto”, o resultado foi de 117 trabalhos. Destes, 39 foram selecionados para a análise por tratarem especificamente da educação financeira articulada ao ensino de matemática da Educação Básica. Os trabalhos datam de 2012 a 2019. Ao termo enunciado, apoia-se em Michel Foucault, tratando-o como ferramenta conceitual que, em síntese, significa “uma função de existência que pertence, exclusivamente, aos signos, e a partir da qual se pode decidir, em seguida, pela análise ou pela intuição, se eles ‘fazem sentido’ ou não, segundo que regra se sucedem ou se justapõem, de que são signos, e que espécie de ato se encontra realizado por sua formulação (oral ou escrita)” (FOUCAULT, 2017, p. 105).

5- Da pesquisa feita presencialmente no Museu da Escola Catarinense em 2019, selecionamos para compor o presente artigo o livro da etapa ginasial Curso de matemática ٢º ano de Euclides Roxo, Cecil Thiré e Mello e Souza (ROXO; THIRÉ E SOUZA, 1940). A pesquisa e seleção foram feitas a partir da leitura dos sumários e leitura dos capítulos em busca de indícios de um ensino ou um educar relacionado a questões financeiras.

6- Coleção que faz parte do Programa Nacional do Livro Didático de 2020.

7- Inserindo os termos “educação financeira” e “matemática” no mecanismo de busca e optando pelo campo “assunto”, o resultado foi de 117 trabalhos, sendo 113 dissertações e quatro teses. A segunda filtragem dos trabalhos foi feita a partir da leitura dos títulos e resumos. Para o presente artigo, selecionamos os trabalhos que apresentavam propostas de educação financeira para as aulas de matemática cujas atividades permitem exercitar certos tipos de moral, os quais serão indicados no decorrer deste texto.

8- Biopolítica é um conceito desenvolvido por Michel Foucault e que “designa a maneira pela qual o poder tende a se transformar, entre o fim do século XVIII e o começo do século XIX, a fim de governar não somente os indivíduos por meio de um certo número de procedimentos disciplinares, mas o conjunto dos viventes constituídos em população: a biopolítica – por meio dos biopoderes locais – se ocupará, portanto, da gestão da saúde, da higiene, da alimentação, da sexualidade, da natalidade etc., na medida em que elas se tornaram preocupações políticas” (REVEL, 2005, p. 26). Podemos acrescentar, ainda, a educação financeira da população como uma ocupação da biopolítica no século XXI.

9- O fato é que a família não é mais o modelo de como governar uma nação, como fora no pensamento grego, mas é local de intervenção da economia como ciência (CANDIOTTO, 2010).

10 - Nova Escola Alemã, município de Blumenau, Santa Catarina, Brasil.

11- A economia, concordando com Foucault, é um jogo cujas regras são ditadas pela instituição jurídica: “É um conjunto de regras que determina de que modo cada qual deve jogar um jogo cujo resultado, no limite, ninguém conhece. A economia é um jogo e a instituição jurídica que enquadra a economia deve ser pensada como regra de jogo” (FOUCAULT, 2018, p. 223). E quais são as regras do jogo econômico? “Devem ser tais que o jogo econômico seja o mais ativo possível [...] com simplesmente uma regra, uma regra de certa forma suplementar e incondicional no jogo, a saber, que deve ser impossível que um dos parceiros do jogo econômico perca tudo e, por conseguinte, não possa continuar a jogar. Trata-se, se quiserem, de uma cláusula de salvaguarda do jogador, uma regra limitativa que em nada altera o desenrolar do jogo, mas que impede que alguém perca tudo e saia definitivamente do jogo” (FOUCAULT, 2018, p. 256). Por isso, o subsídio social para aqueles que por algum motivo necessitam desse auxílio deve assegurar sua subsistência, porém deve ser insuficiente para manter certo nível de consumo de modo que esses indivíduos continuem a ter vontade de trabalhar.

12- Entendendo que, apesar desses objetivos chegarem na escola por meio de políticas públicas, documentos normativos e propositivos de currículo, dentre outros mecanismos, há resistências, afinal, entender as relações de poder pela ótica de Michel Foucault é saber que o próprio poder pressupõe a existência de pontos de resistência.

13- No âmbito do ensino da matemática o investimento apresentado é o mais conservador do mercado financeiro: a poupança. O que nos indica um fornecimento de um grau mínimo de conhecimentos: “Ora, são investimentos críticos variáveis senão as formas pelas quais os sujeitos passam por processos educativos constantes visando às suas adequações à variação do crescimento econômico. Não é à toa que Friedman (1955, s/p) considera que o papel da educação, em termos globais, é o de fornecer valores mínimos comuns e um grau mínimo de conhecimento para que os sujeitos compreendam seus devidos papéis na governança: ‘preservar as regras nos jogos de contrato, protegendo da coerção, e manter o livre mercado’” (CARVALHO, 2020, p. 941, grifos nossos).

1- Agradecemos à Capes/Fapesc pela concessão de bolsa de doutorado para a primeira autora e ao CNPq pela concessão de bolsa produtividade para a segunda autora, que oportunizaram a produção desta pesquisa.

Recebido: 26 de Outubro de 2020; Revisado: 01 de Junho de 2021; Aceito: 09 de Junho de 2021

Jéssica Ignácio de Souza é doutora em Educação Científica e Tecnológica (UFSC), mestre em educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), licenciada em matemática pela Universidade do Sul de Santa Catarina (USSC). Atualmente, é professora de matemática em escolas de Ensino Fundamental.

Cláudia Regina Flores é doutora em educação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É professora titular do Departamento de Metodologia de Ensino e do Programa de Pós-Graduação em Educação Científica e Tecnológica da UFSC e pesquisadora produtividade CNPq.

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