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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 06-Out-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248246918por 

Artigos

Escolas, territórios e afirmação cultural em periferias urbanas no Sul do Brasil

Rodrigo Manoel Dias da Silva1 
http://orcid.org/0000-0001-8501-5903

1- Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil. Contato: rodrigods@unisinos.br


Resumo

O presente artigo analisa as relações contemporâneas estabelecidas entre escolas e territórios a partir de experiências de atores escolares atuantes em periferias urbanas no Sul do Brasil. Fundamentada na categoria conceitual “experiências urbano-educativas”, inspirada na Sociologia da Experiência, o estudo examina e problematiza referências políticas e lógicas socioculturais presentes na ação pedagógica de professores e professoras que lecionam no Ensino Fundamental em escolas situadas no Rio Grande do Sul. Do ponto de vista metodológico, os dados foram construídos a partir da realização de entrevistas com 66 atores escolares selecionados e complementados pela análise de documentos institucionais. Enquanto resultados, identificam-se três perspectivas analíticas: (a) escolas enquanto territórios de afirmação cultural mediante ações pedagógicas desenvolvidas por docentes atuantes nos anos iniciais da escolarização, os quais mobilizam aprendizagens sobre a história e a geografia dos territórios municipais diante de cenários urbanos marcados por desigualdades, migrações e encontros interculturais; (b) escolas enquanto agentes ativos em processos de patrimonialização cultural, principalmente em contextos urbanos em que não há processo oficial de tombamento, registro ou expediente estatal similar; e (c) a permeabilidade da escola às práticas culturais desenvolvidas nos territórios, destacando-se suas relações com coletivos culturais independentes e associações comunitárias direcionadas à formação político-cultural de estudantes nas periferias urbanas.

Palavras-Chave: Escolas; Territórios; Periferias urbanas; Educação patrimonial

Abstract

This article analyzes the contemporary relationship established between schools and territories based on the experiences of school actors working in urban peripheries in the south of Brazil. Founded on the conceptual category of “urban-educational experiences” inspired by the sociology of experience, the study examines and problematizes the political views and sociocultural logics that are present in the pedagogical action of teachers who teach in primary education in schools located in the state of Rio Grande do Sul. From the methodological viewpoint, data were built from interviews with 66 selected school actors and were complemented with the analysis of institutional documents. As for results, three analytical perspectives were identified: (a) schools as territories of cultural affirmation through pedagogical actions developed by teachers teaching in the early grades of primary education, who mobilize learning about the history and geography of municipal territories, considering urban contexts marked by inequalities, migration and intercultural encounters; (b) schools as active agents in processes of recognition of cultural heritage, particularly in urban contexts where there is no official heritage listing, registration or other similar governmental procedure; and (c) the school’s permeability to cultural practices developed by independent collectives and community associations dedicated to the political-cultural education of students in urban peripheries.

Key words: Schools; Territories; Urban peripheries; Heritage education

Introdução

Este artigo é o desdobramento de um conjunto de estudos e pesquisas que temos desenvolvido sobre políticas e práticas de educação patrimonial nos últimos dez anos. Em diversos projetos e ações investigativas, conhecemos, interpretamos e analisamos ações educativas articuladas a políticas culturais ou a programas de patrimonialização cultural cuja centralidade pedagógica mostrava-se ambivalente, contraditória e plural2. Nem sempre nos parecia possível definir suas agendas formativas a partir de seus projetos, tendo em vista sua baixa institucionalidade no âmbito das políticas públicas do Brasil, o incerto apoio financeiro oriundo da iniciativa privada, ou mesmo pela limitação das ferramentas intelectuais que empregávamos.

Em estudos realizados no estado do Rio Grande do Sul, encontramos forte presença de processos culturais vinculados aos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) e a consagração da imigração europeia enquanto narrativa identitária privilegiada, mas também verificamos diversos processos de identificação social em circulação no âmbito regional, bem como formas plurais de afirmação de si e de seus engajamentos nos espaços urbanos, pela educação e por ações socioculturais. Tal como temos interpretado, muitas dessas experiências nos permitem interrogar sobre pertenças territoriais e as configurações pedagógicas e socioespaciais da cidade.

O presente artigo pretende analisar as relações contemporâneas estabelecidas entre escolas e territórios a partir de experiências de atores escolares atuantes em periferias urbanas no Sul do Brasil. A discussão proposta fundamenta-se na categoria conceitual “experiências urbano-educativas”, inspirada na Sociologia da Experiência elaborada por François Dubet e outros desdobramentos teóricos em Sociologia da Educação (DUBET, 1994, 2011, 2017, 2019; DUBET; MARTUCCELLI, 1996; SORJ; MARTUCCELLI, 2008; MARTUCELLI, 2010, 2016, 2017) com o interesse de examinar e problematizar referências políticas e lógicas socioculturais presentes na ação pedagógica de professores e professoras que lecionam no Ensino Fundamental em escolas situadas no Rio Grande do Sul. Ao mesmo tempo, prolongamos as discussões sobre a escola enquanto categoria sociológica, interpretando-a em face de seu entorno social (ALMEIDA, 2017), suas potencialidades dialéticas para alicerçar a construção de escolas e cidades justas (DUBET, 2008, 2017; YÚDICE, 2016) e o reconhecimento político das expressões culturais presentes na sociedade brasileira (ABREU, 2015).

Do ponto de vista metodológico, os dados foram construídos a partir da realização de entrevistas com atores escolares selecionados atuantes no estado e complementados pela análise de documentos institucionais, como descrito nas seções seguintes.

Em face do “fim da cidade”: a propósito de uma contextualização

Para examinarmos as relações contemporâneas entre escolas e territórios, fez-se necessário partirmos de um diagnóstico sociológico mais amplo sobre as transformações vigentes nas formas urbanas e suas principais interpretações teóricas na atualidade. Segundo Carlos Fortuna (2009), a última década nos trouxe um paradoxo analítico inescapável. Por um lado, a humanidade se tornou, pela primeira vez, majoritariamente urbana, considerando-se que, em 2007, cerca de 72,2 por cento dos europeus e 78,3 por cento dos latino-americanos estavam concentrados nas cidades (em 2005, cerca de 84 por cento dos brasileiros viviam em áreas definidas como urbanas); por outro, o mesmo tempo histórico foi marcado por inúmeras perspectivas e matrizes conceituais que anunciaram o esgotamento da condição urbana e o “fim da cidade” (FORTUNA, 2009), tendo em vista um amplo conjunto de “crises” – ambiental, sanitária, política e econômica. Como gerar políticas que garantam qualidade de vida para todos agora que somos todos urbanos? Como consolidar processos de enfrentamento de desigualdades e injustiças quando as teorizações reiteram a incompatibilidade entre a realidade e as cidades ideais ou utópicas? Como analisar as cidades como contexto de produção da vida humana e de qualidade de vida?

Nas últimas décadas, diante destes questionamentos, os conceitos de cidade, urbanismo, urbano, territorialidade, territórios e territórios urbanos adquiriram centralidade na pesquisa em Ciências Sociais e Humanas (BRENNER, 2010; BRENNER; SCHMID, 2016; FORTUNA, 2009; HAESBAERT, 2014, 2019; LIPMAN, 2013; TELLES, 2015). Ainda que apresentem origens teóricas plurais e em certos aspectos divergentes, o conjunto dessas discussões explicita um amplo conjunto de reflexões a respeito das formas urbanas e dimensiona os cenários contrastantes, heterogêneos, expansivos e múltiplos que denominamos genericamente como “cidade” (TELLES, 2015).

O argumento da professora Vera Telles evidencia as dimensões multifacetadas dos territórios urbanos e nos desafia à definição de outras categorias teóricas, tendo em vista que as oposições binárias utilizadas em nossas abordagens diagnósticas – centro/periferia, rural/urbano, exclusão/inclusão, dentro/fora – declinam em seu potencial heurístico. Além disso, destaca-se a impossibilidade de assumirmos uma noção substantivada de Cidade (em maiúsculo e singular) na clássica oposição ao rural, tradicional ou comunitário. Por essa razão, importa problematizarmos o que temos conceituado por territórios urbanos e seus projetos culturais, sociais, políticos e econômicos, uma vez que pensar, hoje, essas questões requer a seleção de outros e novos planos de referência. Esta seção reflexiva visa delinear alguns traços sociológicos que configuram as formas urbanas na atualidade, principalmente com a finalidade de evidenciar os cenários nos quais as relações entre escolas e territórios têm ocorrido.

Telles (2015, p. 20) reitera, de modo complementar, que “[...] a cidade não é apenas um contexto, mas uma arena em que conflitos acontecem”, pois os espaços, as estruturas, as relações sociais e os processos vividos são produzidos por agenciamentos sociais e políticos. Enquanto desdobramentos epistemológicos que orientam e fundamentam o debate sobre a produção social dos espaços urbanos, Brenner e Schmid (2016) afirmam que urbano e urbanização devem ser interpretados enquanto categorias teóricas, pois “urbano” não corresponde a uma forma universal, mas a um processo histórico e sociológico. Afirmam que as dimensões socioespaciais da urbanização são polimórficas, variáveis e dinâmicas e devem ser estudadas a partir de seus efeitos de concentração e extensão, pois a urbanização se converteu em um fenômeno planetário produtor de constantes diferenciações.

Da discussão acima, parece-nos relevante reter o sentido de produção social atribuído aos fenômenos urbanos e à urbanização e a pertinência da elaboração de um novo vocabulário para o estudo dessas temáticas. Esse debate excede os fazeres intelectuais e técnicos de arquitetos, urbanistas, engenheiros, sociólogos, antropólogos, economistas ou agentes políticos e evidencia a necessidade de “[...] um novo léxico dos processos de urbanização e formas de diferenciação territorial com a finalidade de captar as geografias instáveis e as constantes mudanças do capitalismo no início do século XXI” (BRENNER; SCHIMD, 2016, p. 334).

Um exame criterioso das formas urbanas contemporâneas também demanda cotejar as contraditórias interfaces entre políticas urbanas, cidadania e cultura. No século XXI, predomina nas políticas e projetos urbanos uma ideia de “crise das cidades” (JACQUES, 2004; JEUDY, 2006; VAZ, 2004) e, por consequência, a emergência de intervenções cujos objetivos podem ser sintetizados em verbos como “revitalizar”, “reparar”, “corrigir”, “intervir”, “reformar” ou “pacificar”. Segundo Jacques (2004), em nosso país, há a predominância de projetos de “espetacularização urbana”, nos quais as cidades se tornam grandes cenários para empreendimentos econômicos, mas também produtoras de novas geografias de centralidade, de expulsão e de marginalidade (SASSEN, 2006). Especificamente no caso brasileiro, esse movimento urbanístico acentuou processos de gentrificação e expulsão das populações negras empobrecidas das regiões onde habitam, acentuando a persistência de cortes de classe e raça na implementação de políticas públicas para as cidades e, por conseguinte, acelerando dinâmicas de periferização e exclusão social. Ermínio Maricato (2009) define tais dinâmicas estruturais típicas da sociedade brasileira como “exclusão territorial”.

Retomando a contribuição analítica de Carlos Fortuna, não se trata apenas de mudanças nas formas urbanas, inclusive daquelas que permitem a hipótese de “fim da cidade”, mas principalmente transformações em todas as expressões culturais que a cidade comporta. Para pensarmos o encontro entre escolas e territórios, faz-se imprescindível buscarmos a “não-cidade” (FORTUNA, 2009, p. 94), “[...] espaços urbanos em retração ou subalternizados, como são paisagens histórico-monumentais, os espaços decadentes e em ruína, os bairros, as zonas marginais e os vazios urbanos e as generalidades das paisagens (sub)urbanas”. Em sentido similar, Michel Agier (2015) sugere pensar a condição dos “fora do lugar” e a política dos espaços precários, em que sintetiza sua experiência etnográfica em campos de refugiados e acampamentos de migrantes autoestabelecidos. Por isso, as cidades e as formas urbanas precisam ser cotejadas não apenas por elementos de fixidez e estabilidade, mas por suas heterogeneidades, instabilidades, deslocamentos, mobilidades e periferias3.

Por último, importa refletirmos sobre os modos pelos quais o território afirma-se como referente analítico em estudos sobre educação, políticas e cidadania em escala global. De acordo com Barroso (2013), o espaço local tem assumido um lugar “mítico” no contexto de ações políticas para a educação nas últimas duas décadas.

O local é visto simultaneamente como lugar de aplicação, de participação, de interdependência e de concorrência, no confronto de lógicas tão distintas, como as que tentam preservar o papel e a ação do Estado, através da contextualização territorial das políticas e do incentivo à sua modernização, às que visam a sua diminuição, numa perspectiva neoliberal. (BARROSO, 2013, p. 14).

Barroso (2013) ainda enfatiza a importância de discriminarmos os diversos sentidos, lógicas e intencionalidades presentes na territorialização, mas também examinarmos se essa retórica (envolvimento democrático de comunidades, reconhecimento de recursos territoriais e maior poder de decisão à escala local) é compatível com a ação política dos governos. No caso brasileiro, Pedro e Stecanela (2019) informam que, desde a Constituição de 1988, há uma presença ambivalente da ideia de território educativo4 em nosso marco jurídico-normativo. Reiteram que essa ideia opera como articuladora de propostas de reorganização escolar e de novos formatos de aprendizagem, associada à intersetorialidade e à educação integral, ainda que de modo descontínuo. O Programa Mais Educação (2007-2016), ao configurar-se como política indutora de educação integral, explicitou uma lógica de afirmação pedagógica dos territórios, aproximando-se da ideia de cidade educadora. No entanto, a maior parte das políticas e práticas de educação integral que realizaram tal tendência encontra-se em âmbito municipal, destacando-se aquelas que assumiram a ocupação pedagógica de áreas da cidade, associadas a intervenções artísticas e afirmações culturais nas periferias.

Esse sucinto diagnóstico sociológico nos oferece importantes subsídios para cotejarmos o caráter social e pedagógico do binômio escolas-territórios no Brasil. Em que pesem as distinções realizadas acima, na sequência deste artigo, assumimos uma perspectiva sobre território ancorada na experiência cultural e identitária dos atores sociais e nas relações sociais e políticas (dimensão de poder) que conformam suas múltiplas relações (HAESBAERT, 2014).

Experiências urbano-educativas: fundamentos teóricos e caminhos metodológicos

Verificamos uma crescente tendência nos estudos produzidos em Sociologia da Educação à realização de inflexões ao plano individual da vida em sociedade. Os processos de singularização dos indivíduos (MARTUCCELLI, 2010, 2016, 2017), suas experiências sociais e escolares (DUBET, 1994; DUBET; MARTUCCELLI, 1996), os modelos biográficos e os processos padronizados de individualização (BECK, 2011), a reflexividade e a construção de sociedades pós-tradicionais (GIDDENS, 1991) ou as relações entre socialização e individuação (SETTON, 2016) são discussões conceituais que ilustram esse direcionamento intelectual. Ainda que atribuam centralidade ao indivíduo, não é possível dizer que esses autores e suas teorizações sejam convergentes ou possuam muitas interpretações em comum. No entanto, observa-se um gesto de escuta sensível às singularidades dos atores sociais e uma atenção cognitiva às escalas geográficas mais próximas das experiências e práticas individuais.

A noção de experiências urbano-educativas que desenvolvemos é uma derivação analítica do conceito de experiência (DUBET, 1994), recriando-a com a finalidade de pensar o território e os patrimônios culturais. Conforme Dubet, trata-se de um conceito que recusa as concepções clássicas de ação, as quais identificavam totalmente os atores sociais e o sistema por meio de processos “fortes” de socialização. Nos últimos anos, parece predominar um relativo distanciamento entre atores e sistema, tendo em vista a crise de diversas instituições que confluíam para a formação e a socialização humana (Estado e escola, por exemplo), bem como o declínio de abordagens conceituais que definiam os “seres sociais” a partir de sua integração em uma sociedade estável e predefinida5. O conceito de experiência elucida que os atores assumem múltiplas lógicas de ação na construção de sua vida social, não assumindo programas únicos de ação, tampouco suas ações identificáveis de modo unilateral a papeis sociais.

A Sociologia da Experiência busca compreender as ações dotadas de significação e como esses significados são construídos. Dubet (1994) reitera a heterogeneidade dos princípios sociais e culturais que orientam as condutas humanas, dimensionando que as identificações sociais (identidades) são oriundas de um trabalho permanente, de um “empenhamento de si”. A partir da constatação da incompletude de nossos processos socializadores, a experiência social é marcada por dois fenômenos contraditórios: a perspectiva da subjetividade pessoal (evidente pelo entendimento de experiência como “maneira de sentir”) e a perspectiva construtivista das realidades vividas (derivada do entendimento de que a experiência é uma “atividade cognitiva”).

[...] os atores não vivem na adesão imediata e no testemunho puro, pois que reconstroem sempre uma distância em relação a eles próprios. O trabalho reflexivo é tanto mais intenso quanto os indivíduos se acham em situações que não são inteiramente codificadas e previsíveis. (DUBET, 1994, p. 106).

Tal como compreendemos, as experiências urbano-educativas podem ser interpretadas por meio dos processos socioculturais pelos quais os atores sociais produzem suas identificações e pertencimentos (modos de sentir) e constroem as realidades urbanas onde habitam (atividades cognitivas). Os modos pelos quais os atores sociais engajam-se em ações pedagógicas pode evidenciar importantes dimensões dessas experiências, pois, ao problematizarem seus territórios (urbanos) e dimensioná-los pedagogicamente a partir de uma intervenção, indagam sobre si (experiência) e as configurações socioespaciais da cidade. Tal direcionamento conceitual evidencia as diversas contradições e dilemas que constituem a condição urbana contemporânea e as políticas que conformam a vida coletiva nas cidades – interpretadas como polimórficas, variáveis e dinâmicas (BRENNER; SCHMID, 2016).

Trata-se de uma construção metodológica qualitativa (WELLER; PFAFF, 2013) que reconhece a produção de conhecimento pela interlocução do pesquisador com os entrevistados, pressupondo-se a entrevista como uma experiência reflexiva para ambos. A partir da construção de dados narrativos, o pesquisador pode compreender as lógicas de produção dos sentidos atribuídos pelos atores a seus processos vividos (KAUFFMAN, 2013) e às próprias condições para sua ação social (DUBET, 1994). Ao produzir a análise, entendeu-se que “[...] a investigação do material deve ser ativa e produtiva” (KAUFFMAN, 2013, p. 120), uma vez que o objeto é permanentemente reconstruído e resultante do movimento contraditório e contínuo de formulação de hipóteses visando à compreensão da realidade investigada. Do ponto de vista operacional, realizamos o acompanhamento de experiências de atores escolares atuantes em periferias urbanas no Rio Grande do Sul. Por atores escolares, entendemos todos os indivíduos que mantêm relação profissional ou pessoal com uma instituição de ensino: professores, professoras, gestores escolares, gestores municipais, estudantes, familiares de estudantes, voluntários ou lideranças comunitárias engajadas em algum projeto escolar. No contexto amplo do projeto, as experiências escolares são selecionadas a partir dos seguintes critérios: (a) tempo de existência da atividade, instituição ou projeto; (b) vínculo com projeto comunitário; (c) consistência nas proposições educacionais; (d) atividades formativas e interlocução com experiências educativas escolares e não-escolares; (e) localização socioespacial da escola.

Nesta análise, cotejaremos dados oriundos de um instrumento de entrevista realizado com 66 professores e professoras atuantes na escolarização municipal, destacando-se aqueles que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental. Priorizamos relatos e depoimentos desses docentes porque assumem a responsabilidade curricular de ensinar acerca dos territórios municipais. Todas as entrevistas foram gravadas e seu conteúdo transcrito.

De modo complementar, foram realizadas as seguintes atividades: (a) leitura e análise de documentos institucionais orientadores da ação pedagógica escolar (Referenciais curriculares municipais, documentos orientadores de territórios municipais, projetos pedagógicos); (b) realização de imagens (fotografia) das atividades investigadas mediante visitação aos cotidianos escolares; (c) busca de informações sobre os processos investigados em jornais locais, revistas ou páginas oficiais na internet; e (d) coleta de material institucional de divulgação de projetos ou instituições engajadas em alguma medida nos fenômenos estudados.

Escolas e territórios: análise de experiências

Eu acho bem importante... é uma coisa que envolve bastante aqui na nossa realidade, os que têm os avós de origem italiana, só que eu me pergunto: por que que as outras não? Por que não trabalhar as outras culturas, outras imigrações? Por que não se aborda tanto? É mais a italiana, mas agora que a escola está abrindo, a gente tá falando também dos suecos que temos um museu, estamos falando também dos africanos, vieram negros pra cá, pra nossa cidade, como eles foram recebidos e tal... também têm os descendentes de alemães, bem menos esses outros grupos, mas alguma coisa a gente ainda fala. Farroupilha não é só o resultado dos italianos! (Isaltina, professora nos anos iniciais em Farroupilha, RS).

Eu penso que para o futuro o que precisamos é de pessoas qualificadas para entender e atender as culturas diferenciadas. Como sempre falo, nós somos discriminados até com um olhar, até mesmo uma palavra é capaz de machucar uma pessoa. Por isso sempre digo que nós, como professores, educadores, precisamos conhecer as culturas para saber trabalhar com elas. (Konhko, professor Kainkang em São Leopoldo, RS).

As transformações culturais, sociais e econômicas vistas no início do século XXI exigiram um conjunto de transformações no plano das políticas culturais e das ações pedagógicas com semelhante direcionamento. Tais mudanças acompanharam metamorfoses sociais em diversas escalas, destacando-se a intensificação das disputas por reinvindicação identitária de atores, coletivos e movimentos organizados; a massificação cultural e a forte presença da mídia internacional, em boa medida associada à digitalização das formas comunicacionais (YÚDICE, 2015); as transformações na semântica cultural de organismos e agências internacionais; a emergência pública de novas coletividades figuradas enquanto novos sujeitos de direitos (ABREU, 2015); e o recrudescimento de novas significações aos sentidos atribuídos ao patrimônio e à patrimonialização cultural. No caso brasileiro, o marco dessas transformações foi o Programa Cultura Viva, sob a direção política de Gilberto Gil, que oportunizou uma pluralização da agenda das políticas educacionais e culturais (SILVA, 2013, 2014, 2015).

Diante dessa constatação política e intelectual, nos últimos quatro anos, realizamos uma intensa imersão no acompanhamento de políticas de educação patrimonial na microrregião de Caxias do Sul, no Rio Grande do Sul, com interessantes dinâmicas de patrimonialização cultural. Constatamos que educação patrimonial é muito mais uma prática pedagógica agenciada por docentes e comunidades escolares do que uma categoria capaz de mobilizar projetos, programas ou outra forma política de agenciamento estatal, mesmo em cidades com tombamento ou outro processo oficial. Definimos educação patrimonial como uma ferramenta sociopolítica de intervenção na vida coletiva, em detrimento de suas consagradas definições associadas à conscientização ou à alfabetização patrimonial e cultural (SILVA, 2017). Inspirados pela leitura do antropólogo Arjun Appadurai (2001), afirmamos que:

[...] a educação patrimonial não opera apenas no âmbito da conservação dos ditos patrimônios de uma determinada formação social, mas produz, reproduz e autorreproduz processos sociais e pedagógicos que formam a própria sociedade e, por esta, seus patrimônios. Nesse sentido, muito mais que salvaguardar, a educação patrimonial produz o local. (SILVA, 2017, p. 29).

Tal constatação redirecionou nosso esforço investigativo e nos mobilizou a conhecer e analisar o engajamento de atores sociais em projetos e políticas direcionadas à formação cultural e à educação patrimonial em contextos urbanos. As experiências que acompanhamos revelaram características próprias desses espaços-tempos: são predominantemente instituídas por agenciamentos individuais de atores escolares, raras vezes ocasionando em projetos de escola ou rede de ensino; ocorrem em escolas públicas e principalmente são mobilizadas por docentes atuantes nos anos iniciais do Ensino Fundamental, em 3º e 4º anos, quando a cidade ou o território municipal se converte em conteúdo escolar; mostram-se capazes de dialogar com temáticas da diversidade, mas são tensionadas por dinâmicas escolares conservadoras e por realidades sociais desiguais, injustas e discriminatórias; e mesmo que reconheçam a necessidade de superação do enquadramento oficial das memórias (POLLAK, 1989), relatam os limites para a efetivação de uma comunicação intercultural em nossas experiências escolares.

Os relatos da professora Isaltina, docente nos anos iniciais em Farroupilha, e do professor Konhko, docente em escola Kainkang em São Leopoldo, que constam como epígrafe desta seção são marcadores dessa perspectiva sociocultural. No caso da professora, Farroupilha é um dos berços da imigração italiana no Estado e a orientação curricular do município apresenta a cidade em uma perspectiva unidimensional, fenômeno comum em toda a região (SILVA, 2020). Por meio da celebração das tradições italianas, há uma territorialização das ações educativas e uma valorização dos patrimônios culturais municipais, mas essa discussão obscurece a presença física e simbólica de outras coletividades, outras origens e outras raízes. Isaltina é docente do 4º ano e suas indagações precisam ser contextualizas em uma classe multicultural, inclusive pela presença de imigrantes, migrantes e refugiados em sua sala de aula, caso de nordestinos, amazônicos, senegaleses e haitianos. Como discutir a história e a geografia do município sem produzir uma narrativa monocultural? Como ensinar ciências humanas nos anos iniciais considerando múltiplas contextualizações, pertencimentos e identidades? Como ensinar sobre “a cidade”?

O segundo depoimento é ainda mais emblemático. Josme Konhko Fortes foi uma liderança e um importante educador Kaingang em São Leopoldo. Konhko foi o primeiro estudante indígena a concluir o ensino superior na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, mas, infelizmente, faleceu em maio de 2020, meses após colar grau em Pedagogia. Seu relato revela os desafios da comunicação intercultural na escola contemporânea, não apenas problematizando a figuração precária atribuída às identidades indígenas na sociedade brasileira, mas destacando que a escola precisa, além de valorizar identidades, territórios e patrimônios, intensificar processos interculturais ao dissolver monoidentidades, nos termos de Néstor García Canclini (2006).

Os dois depoimentos nos mobilizam a um prolongamento reflexivo acerca das relações entre escolas e territórios, articulado a, principalmente, três perspectivas analíticas.

Escolas como territórios de afirmação cultural, identificações e aprendizagens culturais

Então, a primeira atividade que eu fiz foi pensar com eles se todas as escolas eram iguais no mundo inteiro. Aí eu separei imagens de diversos lugares para trabalhar com crianças e abrir espaço para que o Lucas falasse como era lá no Haiti, no que tinha diferente na escola deles e o que tinha igual, e as crianças também poderiam dizer como era a experiência delas nas escolas daqui, e tinha alunos que vieram das escolas estaduais. Então, poderiam falar o que era igual e diferente. E, ao mesmo tempo, as imagens que levei ajudaram eles [sic] a ampliar o pensamento e repertório sobre como poderiam ser escolas. Nesse dia, eu também trabalhei com vocabulário da escola em haitiano, como falava “professor”, “aluno” e “materiais”. (Ana, professora em Porto Alegre).

Na escola tem mais de 50 crianças estrangeiras entre haitianos, senegaleses e venezuelanos. Quando eles chegaram ao Brasil, a ONU ajudou por um tempo, até que eles se adaptassem. A saída de seu país não está sendo fácil para eles, muitos passam muitas dificuldades. (Maria, professora em Porto Alegre).

Os excertos acima apresentam ricas evidências de que a relação entre escolas e territórios se encontra em deslocamento. Imaginar uma escola que formava para a cidadania estava correlacionada a um sentido único de território e identidade nacional, o que permitia que a escola assumisse funções reprodutivistas da ordem simbólica estatal. A escola foi um importante marcador simbólico de padronização cultural, tanto em suas dimensões políticas quanto curriculares e de seleção de conhecimentos (DUBET, 2011), acentuando pressupostos monoidentitários e monoculturais (CANCLINI, 2006; SILVA, 2015).

Quando uma escola atende 50 estudantes oriundos de diferentes países, por motivos variados, como vem ocorrendo na região metropolitana de Porto Alegre, suas práticas pedagógicas passam a ancorar-se em novas territorialidades. Segundo dados do Censo escolar de 2019, 23,7 por cento dos municípios gaúchos possuem estudantes em condição de refúgio internacional, perfazendo 2.302 – sendo que 444 destes encontram-se em Porto Alegre (OLIVEIRA, 2020). A atuação de docentes nos anos iniciais (em que se concentram a maior parte das matrículas) é tensionada por essas novas realidades e, com efeito, o ensino de Ciências Humanas passa a estar sujeito a diversas problematizações. Qual História ensinar? Qual Geografia ensinar? Como discutir o território municipal como um “território” único, principalmente nos 3º e 4º anos do Ensino Fundamental quando a cidade se converte em objeto de conhecimento?

Na última década, os estudos sobre o ensino de Ciências Humanas no ensino fundamental vêm demonstrando expressivas transformações em seu caráter identitário, cultural e territorial (GORZIZA, 2017). Pereira e Gomes (2019), ao pesquisarem sobre a produção e circulação da cultura pelas fronteiras da escola indígena Xakriabá, em Minas Gerais, identificaram a existência de professores de cultura – professores indígenas responsáveis pela reinvenção do lugar da escola, lugar de circulação de sua cultura e da “cultura”. Sua experiência oferece novas referências e novas representações culturais presentes no encontro entre escolas e territórios, em alguma medida rediscutindo o papel da escola enquanto território ativo de afirmações culturais e identitárias. Permite que discutamos os sentidos universais presentes na lógica reprodutivista que consubstancia interpretações tradicionais da escola, pois “[...] cada escola Xakriabá, como uma construção social que mesmo imersa em um movimento histórico de amplo alcance é sempre uma versão local e particular desse movimento” (PEREIRA; GOMES, 2019, p. 5).

Nessa perspectiva, cada escola recria (ou cocria) relações identitárias e territoriais que oferecem condições possíveis para a ação pedagógica, ora reforçando uma semântica que ressignifica memórias e tradições culturais, ora intensificando processos de marginalização e desigualdade social. A sala de aula torna-se um ambiente aberto a sentidos mais ou menos democráticos, e um dos fatores que mais influenciam a efetividade de uma ação pedagógica são as experiências pregressas dos professores ou seus engajamentos no plano comunitário.

“A menina da República Dominicana chegou no meio do ano na minha turma, e eu não tive nenhum preparo para receber essa menina, simplesmente me informaram que eu teria uma aluna e colocaram ela na minha sala no mesmo dia”. Assim a professora Júlia inicia seu depoimento sobre como a escola encontra os novos delineamentos territoriais em sua sala de aula. Como realizar a transmissão cultural em territórios instáveis? Como considerar pedagogicamente as experiências urbano-educativas produzidas em vivências nas comunidades periféricas? Como iniciar uma aula diante de uma estudante dominicana nos anos iniciais do Ensino Fundamental?

Ainda que apresentasse formação apropriada e uma expressiva trajetória em projetos sociais, vários dilemas pedagógicos prenunciavam as práticas escolares da professora Júlia em Porto Alegre. Transformações territoriais e geopolíticas globais inscreviam-se em seu ambiente de trabalho. Quais referências culturais utilizar para subsidiar suas iniciativas? Como relacionar suas atividades profissionais e as (novas) referências culturais efervescendo nos territórios?

Konhko, Isaltina, Ana, Maria e Júlia são docentes que atuam nos anos iniciais no Rio Grande do Sul, cujas experiências e trajetórias revelam lógicas e princípios pedagógicos plurais e contraditórios. Contextualizar e problematizar suas ações pedagógicas, suas pautas, suas afirmações, seus pertencimentos e suas territorializações são desafios aos Estudos Pedagógicos no século XXI.

Escolas enquanto agentes ativos de patrimonialização cultural

Ana é professora na área de Ciências Humanas em uma escola estadual localizada na Vila Cruzeiro, zona sul de Porto Alegre. Ministra aulas de História, Sociologia e Filosofia há vinte anos na periferia da capital gaúcha e já desenvolveu diversos projetos pedagógicos orientados pela compreensão do papel da população negra no Brasil e no Rio Grande do Sul.

As noções mais convencionais de patrimônio cultural evidenciam pouca sensibilidade aos patrimônios afro-brasileiros e indígenas. Apenas na transição para o século XXI essas populações passaram a demandar ao Estado a patrimonialização de suas expressões culturais (ABREU, 2015). Não obstante, a professora iniciou uma série de ações visando a uma apresentação pedagógica da história e da cultura dessas coletividades, partindo da premissa de que “a África é viável como processo de conhecimento”, como destaca em seu depoimento. Em 2010, iniciou o projeto “Tomando consciência”, que visava redirecionar o currículo de sua escola (“de modo afrocentrado”), afirmar a diversidade cultural presente no entorno da escola e no município e produzir ambientes reflexivos em sala de aula. Essa ação pedagógica começou no início do segundo semestre letivo discutindo várias possibilidades de resposta à questão “Negro, qual a tua cara?” e culminou com a Semana da Consciência Negra em novembro. Realizaram pesquisas, mostras, feiras de trabalho e exposições sobre a existência de jovens, mulheres e negros em perspectiva periférica, conformando experiências reflexivas acerca da juventude negra nas regiões mais empobrecidas da capital do estado.

Segundo a professora, “o aluno sabe que é excluído”, mas é necessário produzir novas pertenças territoriais, e a escola pode viabilizar experiências pedagógicas capazes de afirmar e reconhecer identidades, territórios e patrimônios ancorados na diversidade. Na Vila Cruzeiro, residem muitos negros e negras, homens e mulheres indígenas, contudo, até 2005, o currículo e as práticas pedagógicas da escola pouco dialogavam com essas existências, e o destino dessas populações costumava ser o abandono escolar. A partir de então, vários processos ocorreram na instituição, destacando-se uma reorganização curricular apoiada nas Leis no. 10.639/2003 e nº. 11.645/2008, que proporcionou a inscrição da “África” nos planos de ensino das Ciências Humanas. Ana destaca que o ensino de História que desenvolve elabora um eixo afrocentrado, porque acredita na afirmação de uma educação e de patrimônios culturais afrocentrados. Para qualificar sua discussão e a formação escolar de seus estudantes, estabelece diversas parcerias com intelectuais e universitários engajados, com o Levante Popular da Juventude, o Coletivo Negra-Ação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e outros coletivos político-culturais da cidade.

Em elaboração anterior (SILVA, 2018), constatamos a afirmação do papel ativo das escolas em processos de patrimonialização cultural, uma vez que atores escolares convertem-se em agentes de patrimonialização em municípios brasileiros, com efeito naqueles que não possuem tombamento ou registro de órgão oficial de patrimônio, a fim de evitar a “morte social” de muitos patrimônios (VALECILLO, 2016). Há um potente entrelaçamento entre patrimônios, identidades e pertencimentos que contextualizam relações de cidadania e valorização de manifestações e expressões culturais. Se, por um lado, as implicações entre território, interesses comunitários e identidades não podem ser garantidas, por outro, alicerçam projetos pedagógicos contextualizados e dinâmicas de desenvolvimento local mobilizadores de atores e comunidades (FERNANDES, 2015).

A permeabilidade da escola às práticas culturais desenvolvidas nos territórios

A margem produz, mas não se reconhece isso como um patrimônio em si, mas ainda que o que se produza seja imaterial, o Slam é algo muito presente em Caxias. [...] O movimento hip-hop é protagonizado por uma galera de periferia e ele está introduzido muito dentro de escola, realizando muito trabalho de base. [...] A periferia de Caxias é onde se percebe verter muita coisa em termos de cultura, tem grafite, Slam, a galera que canta tem crescido muito ultimamente. (Cláudia, Caxias do Sul).

Em nossas atividades de campo na região de Caxias do Sul, identificamos outra perspectiva que precisa ser considerada quando da análise das relações entre escolas e territórios. Destaca-se suas relações com coletivos culturais independentes e organizações sociais direcionadas à formação cultural de estudantes nas periferias urbanas, com vínculo mais ou menos sistemático com a agenda escolar. Tais relações, no plano investigativo, nos permitem compreender a “não-cidade” (FORTUNA, 2009), aqueles indivíduos, grupos ou expressões culturais marginalizados e que explicitam as lógicas injustas e desiguais das cidades contemporâneas, além de referenciar lógicas socioculturais presentes na ação pedagógica escolar.

Oriundo do rap e de outros elementos da cultura global, Slam é uma expressão cultural que representa a voz das coletividades residentes nas periferias urbanas, configurando-se em “batalhas” de rimas e poéticas orais. Chegou ao Brasil nos anos 2000 por meio do trabalho de Roberta Estrela D’Alva no ZAP! Slam (Zona Autônoma da Palavra) na cidade de São Paulo (NASCIMENTO; MOREIRA, 2020).

No Slam existem algumas regras simples para participar das batalhas faladas: é necessário que as poesias sejam autorais, decoradas ou lidas na hora; de até três minutos de duração; é proibido a utilização de figurino, cenário ou instrumento musical; são escolhidos(as) aleatoriamente cinco jurados(as) da plateia, os(as) quais serão responsáveis por dar notas de zero a dez; ganha a competição aquele ou aquela que tiver a maior nota. (NASCIMENTO; MOREIRA, 2020, p. 120).

Segundo as autoras, estima-se que existam cerca de 150 comunidades de Slam no Brasil. Com uma linguagem de igualdade e empoderamento, o Slam também pode ser interpretado como uma ferramenta de formação política, já que suas pautas impulsionam temáticas feministas, de negritude, LGBTQIAP+, de comunidades tradicionais, anticapitalistas etc. Em Porto Alegre, foi criado em 2016 o Slam das Minas, seguido pelo Slam Peleia e do Slam RS.

Interessa-nos, neste momento, a capacidade que essa forma expressiva possui para que suas participantes narrem as suas próprias experiências. Em Caxias do Sul, conhecemos o Slam das Manas, no Parque Getúlio Vargas, um grupo de mulheres com formação acadêmica, moradoras de periferia e engajadas em projetos culturais. Com elas, compreendemos que a periferia, tal como a noção de território, precisa ser cotejada enquanto construção identitária e cultural, cujos sentidos articulam-se a expressões pedagógica e condições políticas e socioeconômicas. Suas narrativas evidenciam a ideia de cidade como arena, discutida por Vera Telles (2015).

[...] o que se luta muito é para que se compreenda que o Slam não pode ser levado para a escola apenas como atração. Ele precisa ser adotado como projeto continuado. Já existe uma abertura de alguns espaços para esse tipo de linguagem, a gurizada já propõe esse tipo de didática com professoras de história e elas notam que a gurizada entende o que está vivendo, consegue questionar, consegue escrever sobre aquilo. Quantas disciplinas a gente consegue identificar no Slam?! Se tu for ver na prática, existem tantas histórias... No Slam tu está pensando em geografia, em língua portuguesa, é possível trabalhar uma série de questões! (Cláudia, Caxias do Sul).

[...] trata-se de uma forma de educação bem mais ancestral, com suas raízes vindas da África. O hip-hop possui uma influência muito forte sobre o Slam e não há como negar que existe algo que nos faz acreditar na oralidade como uma forma também de educação, de ensino, mas em uma educação que se embasa no posicionamento de quem geralmente não é ouvido e que está acreditando que pode falar. Essa base que sustenta o Slam se mostra como uma outra possibilidade de estar educando as pessoas, pois elas passam a acreditar que têm algo para trocar. Nós acreditamos na educação como uma troca e não uma vertente de uma via só, ela acontece do educando, de quem vai aprender e de quem está ensinando. É através dessa oralidade que acontece essa educação [...]. (Polliana, Caxias do Sul).

A escola pode se tornar um espaço permeável às narrativas culturais dos territórios, problematizando e ampliando concepções de patrimônio cultural, bem como ancorando-se em aprendizagens criadas e mobilizadas pelos atores escolares em seu entorno. Nossas cidades são constituídas por experiências plurais, heterogêneas e contraditórias, que não podem ser reduzidas a uma coleção a ser exposta em um acervo predeterminado, tal como Néstor Canclini (2015) nos interpela ao “descolecionamento” das manifestações culturais. Descolecionar implica uma atitude de abertura epistemológica, política e sentimental a outras expressões de cultura, sem necessariamente procurar por autenticidade ou essencialismos, mas reconhecer a tessitura plural da vida, da cultura e da escola. Descolecionar é reconhecer outras temporalidades e espacialidades e visar pedagogicamente outras e novas pertenças territoriais.

Considerações finais

Centramos a argumentação apresentada neste artigo no conceito de experiências urbano-educativas. Tal escolha metodológica exigiu-nos compor um mosaico de atores, situações e experiências educativas nas quais verificamos a produção de relações contemporâneas estabelecidas entre escolas e territórios. As experiências de atores escolares atuantes em periferias urbanas no Sul do Brasil evidenciam lógicas, interesses e perspectivas de ação no campo pedagógico.

Identificamos que, em contextos periféricos, a escola pode ser um ambiente de afirmações culturais, capaz de tensionar sentidos únicos de cultura, memória, patrimônio e nação. A escola, em face de seu entorno, é interpretada como um espaço aberto de narrativas plurais e um campo afirmativo para demandas democráticas heterogêneas (DUBET, 2011, 2017, 2019).

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2- Em específico, nos referimos aos seguintes projetos de pesquisa: Políticas de educação patrimonial no Sul do Brasil: mudanças político-institucionais e agenciamentos culturais (FAPERGS, 2012-2014), Educação patrimonial nas políticas brasileiras de escolarização (CNPq, 2013-2015), Educação patrimonial: atores, políticas e identidades (CNPq, 2017-2020) e Políticas de educação patrimonial e experiências urbano-educativas no Rio Grande do Sul (FAPERGS, 2018-2021).

3 - Segundo o Inventário de Migração Internacional da Organização das Nações Unidas (ONU) de 2019, o número de migrantes internacionais alcançou 272 milhões de pessoas em 2018, um aumento expressivo de 51 milhões em contraste com dados de 2010. Em dados relativos, equivale a 3,5 por cento da população global.

4- Importa destacar que a noção de território educativo apresenta diversas perspectivas analíticas e variantes de interpretação política. Oliveira e Saraiva (2015) esclarecem a respeito de sua emergência enquanto locus para políticas educacionais voltadas a populações em situação de pobreza e vulnerabilidade social no Brasil.

5- Para uma discussão mais ampla desse processo, ver Tiramonti (2005), Setton (2005) e Dubet (2006).

Recebido: 22 de Dezembro de 2020; Aceito: 24 de Fevereiro de 2021

Rodrigo Manoel Dias da Silva é doutor em ciências sociais, professor na Escola de Humanidades e no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), líder do Grupo de Estudos e Pesquisas em Sociologia da Educação (GEPSE) da Unisinos e bolsista de produtividade em Pesquisa do CNPq.

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