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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 27-Out-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248245421por 

Artigos

O lugar do conceito de mundo da vida de Edmund Husserl na pedagogia libertadora de Paulo Freire

The place of Edmund Husserl’s lifeworld concept in Paulo Freire’s pedagogy for liberation

1 - Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba – PR, Brasil. Contatos: gabriela.campos3@gmail.com; mesquida.peri@gmail.com; frarel320@gmail.com


Resumo

O mundo da vida é um dos conceitos-chave para as reflexões de Husserl a respeito da ciência no contexto do positivismo europeu. Paulo Freire, por sua vez, não usa especificamente o termo mundo da vida, mas sua pedagogia parte da realidade dos(as) educandos(as) e de suas visões de mundo. O objetivo deste artigo é responder à questão: qual é o lugar do conceito de mundo da vida de Husserl na pedagogia de Paulo Freire e porque é um conceito tão importante para a educação libertadora freireana? A interpretação de Freire (1999, 2011, 2014, 2016, 2019a, 2019b), Husserl (2012) e demais autores, por meio da hermenêutica como método, nos permitiu concluir que o mundo da vida é um dos elementos centrais do processo de conscientização defendido por Paulo Freire. Essencial, portanto, para a libertação dos oprimidos e oprimidas, à medida que aprendem a ler o mundo, que passam de uma consciência ingênua para uma consciência crítica e se descobrem sujeitos capazes de transformar a realidade. Diversos estudos abordam a influência da fenomenologia existencialista na pedagogia freireana, mas poucos tratam especificamente sobre o lugar do mundo da vida de Husserl na pedagogia de Paulo Freire. A relevância desse artigo está nos elementos que oferece a leitores e leitoras para que possam compreender melhor a teoria e a prática de um dos maiores educadores brasileiros.

Palavras-Chave: Paulo Freire; Edmund Husserl; Mundo da vida; Leitura do mundo; Conscientização

Abstract

The lifeworld is one of the key concepts for Husserl’s reflections on science in the context of European positivism. Paulo Freire, in turn, does not specifically use the term lifeworld, but his pedagogy starts from the reality of the students and their worldviews.The objective of this article is to answer the question: what is the place of Husserl’s concept of the lifeworld in Paulo Freire’s pedagogy and why is it such an important concept for Freire’s education for liberation? The interpretation of Freire (1999, 2011, 2014, 2016, 2019a, 2019b), Husserl (2012) and other authors, through hermeneutics as a method, allowed us to conclude that the lifeworld is one of the central elements of the awareness process defended by Paulo Freire. Essential, therefore, for the liberation of the oppressed, as they learn to read the world, who pass from a naive conscience to a critical conscience and discover themselves as subjects capable of transforming reality. Several studies address the influence of existentialist phenomenology on Freire’s pedagogy, but few specifically address the place of Husserl’s lifeworld in Paulo Freire’s pedagogy. The relevance of this article lies in the elements it offers to readers in order to better understand the theory and practice of one of the greatest brazilian educators.

Key words: Paulo Freire; Edmund Husserl; Lifeworld; Reading the world; Conscientization

Introdução

O mundo da vida é um conceito fundamental às teorizações de Edmund Husserl acerca da ciência na primeira metade do século XX, em meio a uma crise existencial europeia identificada pelo filósofo. Compreender o mundo da vida em Husserl não é uma tarefa fácil, visto que o autor o conceitua e o demonstra de maneiras diferentes nas diversas obras em que a expressão aparece.

Entretanto, uma coisa está clara: o mundo da vida, assim como a fenomenologia de Husserl, que se inspirou nas ideias de Franz Brentano, é um conceito criado para se polemizar com o positivismo, em particular com o positivismo comteano. O positivismo omite, ou faz “tábula rasa”, do sujeito e da subjetividade. Por isso, Husserl procura acentuar a realidade do sujeito e do subjetivo na sua visão do mundo da vida.

Paulo Freire não usa especificamente o termo mundo da vida, mas é possível identificar esse conceito husserliano, em especial na sua “Pedagogia do Oprimido”. Freire é um educador comprometido com a vida, com uma pedagogia que almeja conscientizar e libertar homens e mulheres para que, assim, transformem o mundo, nele e com ele.

Nesse sentido, reflete sobre o objetivismo e o subjetivismo, entrando na questão da intencionalidade transcendental da consciência, conceitos basilares para sua teoria do conhecimento e sua práxis educativa. Assim como Husserl, refuta a ideia de um objetivismo puro e simples. Para ele, subjetividade e objetividade devem se encontrar em uma relação dialética, na qual a ação de conhecer é solidária com a de atuar e vice e versa.

Diante disso, nos questionamos: qual o lugar do conceito de mundo da vida de Husserl na pedagogia de Paulo Freire e porque é um conceito tão importante para a educação libertadora freireana? Para tanto, buscou-se inicialmente aprofundar os conhecimentos a respeito do conceito de mundo da vida de Husserl e, em um segundo momento, identificar de que forma tal concepção estaria presente na pedagogia freireana.

Um levantamento2 realizado para verificar o estado do conhecimento sobre o tema do artigo mostrou sua originalidade e relevância. As buscas levaram a trabalhos que contribuíram com a pesquisa, mas mostraram que nenhum trabalho encontrado tem como tema central o lugar do mundo da vida de Husserl na pedagogia crítica de Paulo Freire.

A busca por meio da combinação dos termos “mundo da vida” & “Husserl” apresentou 6.085 resultados ao todo. Desses, 6.066 foram excluídos por não conterem os dois termos de pesquisa em seus títulos. Dos 19 restantes, 2 estavam indisponíveis, 3 eram apenas citações e 7 foram desconsiderados após a leitura de seus resumos por não terem Husserl e o mundo da vida como tema central. 7 foram selecionados. A leitura dos resumos dos 10 resultados mais relevantes de cada busca levou à seleção de mais 5 considerados relevantes à pesquisa. Dos 12 trabalhos selecionados, excluindo os repetidos, restaram 6.

A busca por meio da combinação dos termos “mundo da vida” & “Freire”, por sua vez, resultou em 10.291 trabalhos ao todo, nenhum contendo os dois termos da pesquisa em seus títulos. Após a leitura dos resumos dos 10 resultados mais relevantes das buscas que apresentaram essa possibilidade, 4 trabalhos foram considerados relevantes à pesquisa. Desses 4 trabalhos selecionados, excluindo 1 repetido, restaram 3.

Por fim, a busca por meio da combinação dos termos “mundo da vida” & “Husserl” & “Freire” apresentou 917 resultados ao todo. Nenhum deles com títulos que contivessem os três termos da pesquisa. Após a leitura dos resumos dos 10 resultados mais relevantes da única busca que apresentou essa possibilidade, 2 trabalhos foram considerados relevantes à pesquisa.

O método que guiou a investigação foi a hermenêutica, a qual sugere ações como a contextualização, a apreensão, a compreensão, a interpretação e a comunicação. As quatro primeiras foram realizadas ao longo das leituras dos textos de referência. Nesse momento não se procurou um outro e suas intenções psicológicas, mas sim o tipo de ser-no-mundo manifestado diante do texto, isto é, aquilo que Ricoeur (1988) julga ser o problema hermenêutico mais fundamental. A comunicação daquilo que foi apreendido, compreendido e interpretado se concretizou na escrita do artigo.

Além disso, o círculo hermenêutico propõe um movimento em que “a antecipação de sentido, na qual está entendido o todo, chega a uma compreensão explícita através do fato de que as partes que se determinam a partir do todo determinam, por sua vez, a esse todo” (GADAMER, 1997, p. 436). Essa dinâmica entre o todo e as partes, o objetivo e o subjetivo, esteve presente nessa pesquisa, resultando em uma consciência mais ampla sobre o tema por parte do autor e das autoras.

O mundo da vida de Husserl

O conceito de mundo da vida de Husserl e suas reflexões acerca do termo já fazem parte de suas teorias desde escritos anteriores ao livro A crise das ciências europeias e da fenomenologia transcendental (Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale Phänomenologie), de 1936, como em Ideias para uma fenomenologia pura e filosofia fenomenológica (Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomenologischen Philosophie), de 1913, e Meditações Cartesianas (Cartesianische Meditationen), de 1931. Porém, seu tratamento mais sistemático se encontra em Crises, a última obra do autor (ZAHAVI, 2003).

Para Missaggia (2018), o conceito de mundo da vida é uma inovação da noção husserliana de mundo, por meio do qual Husserl organiza e nomeia uma esfera que antes, mesmo presente, não ocupava um lugar central em seu pensamento. Conforme a autora, as estruturas gerais descritas na noção de mundo como unidade também estão presentes no conceito de mundo da vida.

De maneira sucinta, Missaggia (2018, p. 194) explica mundo “como uma estrutura geral de significação ampla e coerente, dada através de sínteses da consciência, que organiza toda a experiência fenomênica a partir de um horizonte intencional”. A novidade que o conceito de mundo da vida traz em relação a isso, segundo ela, é a ênfase na intersubjetividade3.

Carr (1987) enfatiza que a definição de mundo da vida formulada por Husserl no período de Crises é quase oposta àquela contida na obra Meditações cartesianas. Em Crises, Husserl sustenta que, em meio aos diversos conceitos possíveis de mundo, existe apenas um mundo da vida, com uma estrutura geral que engloba características relativas, explica o autor.

Em Meditações, fala de mundos da vida concretos nos quais comunidades relativamente ou absolutamente separadas, vivem suas vidas passiva e ativamente (CARR, 1987). Sendo assim, o termo “mundos da vida” no plural seria impossível em Crises, afirma Carr (1987), justamente porque Husserl passa a defender que existe apenas um mundo da vida, pré-dado.

Segundo o autor, o mundo da vida de Crises é, ao mesmo tempo, mais profundo e mais amplo do que o mundo perceptivo dos escritos precedentes. Mais profundo devido à sua condição de algo já dado, ou seja, devido ao compromisso dos sujeitos com a sua realidade; e mais amplo porque esse comprometimento dos sujeitos com o mundo o torna mais rico do que o das discussões anteriores (CARR, 1987).

Para Carr (1987, p. 236, tradução nossa), portanto, o mundo da vida inclui “não apenas coisas, mas pessoas; e pessoas não apenas como mentes, mas como portadoras de experiências e pensamentos”4. Logo, o mundo da vida abriga o conteúdo e/ou o sentido das experiências das pessoas, assim como os produtos de suas atividades, diz o autor.

O mundo da vida é um dos elementos fundamentais das reflexões de Husserl sobre a ciência no contexto da crise europeia identificada por ele à época da Primeira Guerra Mundial. Uma crise dos fundamentos das ciências devido a uma falta de compreensão das suas bases e do seu significado em meio a contrassensos, ceticismos e irracionalismos. Uma crise existencial da civilização europeia, que abandonou uma matriz filosófica baseada no ideário da cultura, da filosofia e da ciência. Uma crise, por fim, da subjetividade do ser sujeito em geral (FERRER, 2012).

Essa forma de ver a realidade leva Husserl a buscar as causas da crise contemporânea. Para isso, empreende um estudo sistemático sobre o surgimento e a evolução histórica das concepções filosóficas que conduziram ao desaparecimento da ideia de filosofia ligada à compreensão da subjetividade. Para o filósofo, “a crise de uma ciência não diz nada menos que o seguinte: a sua cientificidade genuína, todo o modo como ela definiu a sua tarefa, e, para isso, formou a sua metodologia, se tornou questionável” (HUSSERL, 2012, p. 1).

Nessa direção, submete a cientificidade de todas as ciências a uma crítica que considera “séria e muito necessária” (HUSSERL, 2012, p. 2): a perda do seu significado para a vida. De acordo com Husserl (2012), essa mudança da apreciação geral das ciências começou a se dar na passagem do século XVIII para o XIX, com o surgimento do positivismo. Na segunda metade do século XIX, momento em que essa corrente filosófica ganhou força, as ciências positivas passaram a determinar toda a visão de mundo do homem moderno.

Frente a isso, considera que “a única maneira de superar a atual crise científica e sanar a desastrosa ruptura entre o mundo da ciência e o mundo da vida cotidiana é criticar esse objetivismo reinante”5 (ZAHAVI, 2003, p. 126, tradução nossa). Por isso, começa a analisar o mundo da vida, elemento histórico e sistemático fundante da ciência, mas esquecido e reprimido por ela, conforme Zahavi (2003).

Husserl (2012, p. 38) afirma que é precisamente com Galileu que o “único mundo efetivo”, o “mundo da vida cotidiana”, a “natureza pré-cientificamente intuível”, “experienciada e experienciável”, é substituído por uma “natureza idealizada”, por um “mundo matematicamente substruído das idealidades”. Isto é, as ciências passam a realizar um trabalho artificial com base na natureza idealizada ao invés do mundo que as envolve, no qual está a vida pré-científica e ao qual deveriam servir como seu fim último desde o princípio (HUSSERL, 2012).

Esse trabalho artificial, calcado em uma natureza idealizada, é revestido por ideias e símbolos que substituem e mascaram a natureza propriamente dita. Para o autor, essa aparência faz com que se tome por verdadeiro um método que pretende continuamente “melhorar, por previsões científicas, as rudes previsões que, originariamente, são as únicas possíveis dentro daquilo que é efetivamente experienciado e experienciável no mundo da vida” (HUSSERL, 2012, p. 41). Além disso, ela leva à incompreensão do sentido do próprio método, das fórmulas, das teorias etc., reitera o filósofo.

Para Husserl (2012, p. 3), isso significou “um virar as costas indiferente às questões que são as decisivas para uma humanidade genuína”. As ciências passaram a significar “meras ciências de fatos” feitas por “meros homens de fatos”, uma vez que excluíram questões essenciais como aquelas sobre o sentido ou a ausência de sentido de toda a existência humana. Questões que dizem respeito “ao homem, como alguém que se decide livremente na sua relação com o mundo circundante humano e extra-humano, enquanto livre nas suas possibilidades de se configurar racionalmente, a si e ao seu mundo circundante” (HUSSERL, 2012, p. 3).

Isso leva Husserl (2012, p. 3-4) a se questionar: “não exigem elas [as ciências], na sua universalidade e necessidade para todos os homens, um estudo universal e a sua resposta também a partir de uma intelecção racional?”; “que tem a dizer a ciência sobre a razão e a não razão, que tem ela a dizer sobre nós, homens, enquanto sujeitos desta liberdade?”. E responde: “a mera ciência dos corpos obviamente nada”.

Para as ciências positivistas, “a verdade científica, objetiva, é exclusivamente a verificação daquilo que o mundo, de fato, é, tanto o mundo físico como o espiritual”, explica Husserl (2012, p. 3-4). E isso é válido inclusive para as ciências do espírito que, na lógica do paradigma cientificista positivista, devem excluir “cuidadosamente todas as tomadas de posição valorativas, todas as questões acerca da razão e da não razão da humanidade temática e das suas configurações culturais” (HUSSERL, 2012, p. 3-4, §2).

Husserl pretende mostrar que a distorção contida nas ciências positivistas acontece devido à ingenuidade característica da posição objetivista, a qual “sustenta que o sujeito-relativo pode simplesmente ser excluído de nossas considerações sobre a verdade do mundo, que uma pura articulação de fatos por um sujeito radicalmente modesto esgota as formas possíveis do racional” (DODD, 2004, p. 150).

Diante disso, Husserl (2012) questiona:

Mas pode o mundo, e a existência humana nele, ter na verdade um sentido, se as ciências só admitirem como verdadeiro aquilo que é deste modo objetivamente verificável, se a história não tiver mais nada a ensinar senão que todas as figuras do mundo espiritual, todos os vínculos de vida que a cada passo mantêm o homem, os ideais, as normas, se formam e voltam a se dissolver como ondas fugazes, que sempre assim foi e será, que a razão sempre terá de se tornar o sem-sentido, a benfeitoria, uma praga? Será que podemos nos satisfazer com isso, será que podemos viver neste mundo, cujo acontecer histórico não é outra coisa senão um encadeamento interminável de ímpetos ilusórios e amargas decepções? Se é a razão cognoscente que determina aquilo que é o ente, serão separáveis a razão e o ente? (HUSSERL, 2012, p. 3-4)

O filósofo defende que não, apontando para o grande perigo do ceticismo e da perda do ser de sua verdade própria. Na sua concepção, só é possível “conquistar a autocompreensão e, assim, uma solidez interior mediante o esclarecimento do seu sentido de unidade, que lhe é inato desde a sua origem, com a tarefa reinstituída que, como força propulsora, move as tentativas filosóficas” (HUSSERL, 2012, p. 10).

Nessa perspectiva, diz que os homens e mulheres que vivem nesse mundo só podem dirigir suas questões práticas e teóricas ao mundo da vida, o qual define como o que está “naturalmente pré-dado a todos nós, como pessoas no horizonte da nossa co-humanidade, ou seja, em cada conexão real com o outro, pré-dado como o mundo, o universal-comum” (HUSSERL, 2012, p. 99).

Assim sendo, compreende que a ciência, uma realização espiritual humana na sua visão, historicamente pressupõe a saída do mundo da vida, mas continua a depender continuamente da sua autodoação, uma vez que é “o solo permanente de validade, uma fonte constantemente pronta de obviedades a que recorremos sem mais, como homens práticos ou como cientistas” (HUSSERL, 2012, p. 99).

Na concepção husserliana, as questões levantadas e respondidas pela ciência são sempre sobre o conteúdo do mundo pré-dado, no qual está contida toda a sua “práxis vital”. As intuições apropriadas para intuir modelos matemáticos ou científico-naturais não são intuições do próprio elemento objetivo, mas sim intuições do mundo da vida apropriadas para facilitar a concepção dos ideais objetivos correspondentes, explica o filósofo.

Isso significa que as fontes ocultas que fundamentam as evidências das produções lógico-objetivas, as quais, por sua vez, embasam as teorias objetivas em sua forma e conteúdo, encontram-se em última instância na vida produtiva. É nesse sentido que os dados evidentes do mundo da vida ganham o sentido de serem pré-científicos (HUSSERL, 2012).

Husserl (2012, p. 99) destaca, porém, que à medida que o mundo pré-dado se torna um tema específico e se torna o solo de verificações científicas responsáveis, exige cautela em sua consideração prévia. Segundo ele, “não é fácil alcançar clareza acerca de que tipo de tarefas especificamente científicas, ou seja, universais, se devem definir sob o nome de mundo da vida, e em que medida deve aqui resultar algo de filosoficamente significativo” (HUSSERL, 2012, p. 99).

O fato das ciências se desenvolverem com base nas evidências da natureza pré-dada e se valerem daquilo que é necessário para cada um de seus fins não significa conhecer cientificamente o mundo da vida no seu próprio modo de ser, diz o autor. A “atitude temática” de cada cientista diante da sua “verdade objetiva” carrega, segundo Husserl (2012), o fato de ser uma definição “meramente relativa ao sujeito”. Isto é, cada pessoa experiencia as coisas de acordo com sua maneira de ver o mundo, que se coloca também como o horizonte da experiência possível das coisas.

Husserl aponta então para os dois elementos contrastantes que estão em relação: o mundo da vida e o mundo científico-objetivo. “O saber do mundo científico-objetivo ‘funda-se’ na evidência do mundo da vida. [...] No entanto, embora seja construído sobre este solo, o edifício é novo, é um outro” (HUSSERL, 2012, p. 106). Os cientistas, assim como qualquer outro ser humano, fazem parte do mundo da vida, dessa forma, “a ciência inteira se insere, então, juntamente conosco, no mundo da vida - o meramente ‘relativo ao sujeito’” (HUSSERL, 2012, p. 106).

De acordo com o filósofo, os resultados teóricos alcançados pelas ciências são válidos para o mundo da vida: “acrescentam o seu conteúdo ao mundo da vida e são de antemão a ele pertencentes, a ele como horizonte de realizações possíveis da ciência em surgimento” (HUSSERL, 2012, p. 107). Assim, o mundo da vida é simultaneamente solo fértil para o mundo científico e terreno para a materialização de seus resultados.

Essa oposição entre a subjetividade do mundo da vida e a “objetividade” do mundo “verdadeiro” (utilizou-se essas palavras entre aspas assim como Husserl faz em Crises porque essa objetividade e esse mundo verdadeiro também são, de certa forma, relativos) é o que Husserl (2012) chama de substrução lógico-teórica. Isto é, a substituição daquilo que se acredita inicialmente não perceptível e não experienciável pelo próprio ser, ainda que “o subjetivo do mundo da vida se destaca, em tudo e em qualquer coisa, precisamente pela sua efetiva experienciabilidade” (HUSSERL, 2012, p. 103-104).

Na visão do autor, a vida natural se situa dentro de um horizonte universal não temático, ou seja, de um mundo natural pré-dado. A consciência permanente do existir universal, do horizonte universal de objetos reais, surge a partir do “curso mutável das suas captações, modos de aparição ou modos de validade relativos”, diz Husserl (2012, p. 118).

Apesar de todas as suas relatividades, Husserl (2012) teoriza em Crises que o mundo da vida tem a sua estrutura geral, à qual todo ente (tudo aquilo que existe) relativo está vinculado. As estruturas mais formalmente gerais do mundo da vida são coisa e mundo, em que o mundo é o todo das coisas “que, num duplo sentido (segundo o lugar no espaço e o lugar no tempo), se distribuem ‘localmente’ sob a forma espaço-temporal do mundo [...]” (HUSSERL, 2012, p. 116).

Todavia, Azevedo (2011) sugere que a análise do mundo da vida não deve focar nas suas estruturas e sim na operação por meio da qual o ego transcendental produz o mundo da vida, ou seja, aquilo que Husserl considera própria e verdadeiramente a vida do ego transcendental. Entre os objetos do mundo da vida está o homem, “com todo o seu agir e empreender humanos, as suas ações e paixões humanas, nos seus vínculos sociais particulares, vivendo em comum no horizonte do mundo e sabendo-se nele” (HUSSERL, 2012, p. 119).

Nessa lógica, a vida é viver permanentemente consciente da coisa e do mundo: “viver desperto é ser desperto para o mundo, ser constante e atualmente ‘consciente’ do mundo e de si mesmo como vivendo no mundo, vivenciando efetivamente, realizando efetivamente a certeza do ser do mundo” (HUSSERL, 2012, p. 116).

Sendo assim, Husserl (2012) aponta para uma mudança universal de interesse: a superação do modo permanente de viver simplesmente inserido no mundo. É preciso alterar subjetivamente os modos de doação, de aparição, de validades habituais permanentemente em curso, os quais produzem essa consciência una do ser simples do mundo, afirma ele.

Essa mudança total de atitude deve consistir na transformação da infinidade da experiência efetiva e possível do mundo para a infinidade da “experiência transcendental” efetiva e possível, em que o mundo e a sua experiência natural sejam experienciados como “fenômeno”, diz Husserl (2012). Propõe, então, uma redução transcendental para se chegar à relação transcendental entre o mundo e a consciência do mundo. Seu método de redução fenomenológica é considerado por ele o único meio de alcançar a essencialidade da vida, a realização da autonomia ética do homem.

De maneira geral, os estudiosos do conceito de mundo da vida de Husserl concordam que este se trata de um conceito complexo e ambíguo (AZEVEDO, 2011; CARR, 1987; DODD, 2004; MISSAGGIA, 2018; ZAHAVI, 2003), devido aos vários sentidos que podem ser atribuídos a ele a partir da teoria husserliana. Considerando a colocação de Zahavi (2003) de que o significado preciso do termo depende do contexto, no próximo tópico busca-se compreender o lugar do mundo da vida de Husserl no contexto da pedagogia freireana.

O lugar do mundo da vida de Husserl na pedagogia de Paulo Freire

Em seu primeiro livro, “Educação como prática da liberdade”, Freire (1999) cita alguns fenomenólogos existencialistas como Jaspers e Marcel e fala das relações dos homens e das mulheres no mundo e com o mundo como pressuposto para a conscientização e a liberdade (BORTOLETO; SCHWENGBER, 2018). Essas ideias passam a marcar presença em todas as suas obras e o conceito de mundo se torna uma das chaves da Pedagogia do Oprimido.

Para o educador, todos os seres vivem naquilo que ele chama de suporte, que aproximamos aqui do mundo pré-dado de que nos fala Husserl. Segundo Freire (2019a), os animais se adaptam ao seu suporte, enquanto o ser humano se integra ao seu contexto por nele intervir e o transforma em mundo.

Outro conceito basilar da práxis educativa pensada por Freire é a intencionalidade transcendental da consciência, dentro do qual o educador formula reflexões acerca do objetivismo e do subjetivismo. Assim como Husserl, Freire (2014) refuta a ideia de um objetivismo puro e simples. Para ele, subjetividade e objetividade devem se encontrar em uma relação dialética, na qual o ato de conhecer é solidário com o de atuar e vice e versa.

Nas palavras de Freire (2014, p. 35), “o aspecto subjetivo toma corpo numa unidade dialética com a dimensão objetiva da própria ideia, isto é, com os conteúdos concretos da realidade sobre a qual exerce o ato cognoscente”. A relação dialética entre subjetividade e objetividade implica na permanente integração entre os sujeitos e o mundo, promovendo um pensar e um atuar na e sobre a realidade para transformá-la, afirma o educador.

Nesse sentido, Freire (2014) defende a transformação objetiva da situação opressora existente na sociedade, combatendo um imobilismo subjetivista que transforma o ter consciência da opressão numa espécie de espera paciente de que um dia a opressão vai desaparecer por si mesma. Contudo, deixa claro que isso não significa negar o papel da subjetividade na luta por mudanças estruturais.

Seu ponto de vista é o de que analisar a realidade ou nela agir sem levar em consideração a objetividade é caminhar para um subjetivismo que se estende para posições solipsistas (concepção filosófica de que, além de nós, só existem as nossas experiências). Por outro lado, negar a subjetividade ao realizar essas ações é cair no objetivismo. Reitera, então, que “nem objetivismo, nem subjetivismo ou psicologismo, mas subjetividade e objetividade em permanente dialeticidade” (FREIRE, 2014, p. 51).

Se os sujeitos são produtores da realidade, mas ela os condiciona à opressão, transformá-la é uma tarefa histórica de homens e mulheres, afirma Freire (2014). Pensando nisso, desenvolve uma pedagogia para a liberdade fundada na vida dos(as) educandos(as) - no mundo de que fazem parte - e sustentada pelo diálogo e pela amorosidade.

Uma pedagogia por meio da qual educandos e educandas tenham a possibilidade de refletir criticamente sobre a realidade, superar suas visões ingênuas, descobrir-se e conquistar-se como seres históricos e produtores de cultura, capazes de terem consciência de que estão no mundo e precisam “viver despertos para o mundo”, serem “conscientes do mundo e de si mesmos”, como observa Husserl (2012, p. 126). Isso se faz, para Freire, por meio de um “esforço de consciência da realidade e de autoconsciência que se inscreve como ponto de partida do processo educativo, ou a ação cultural libertadora” (FREIRE, 2014, p. 138).

A consciência surge em Freire, em comum acordo com Bortoleto e Schwengber (2018, p. 69), a partir do conceito de integração: “o homem estabelece uma pluralidade de relações com o mundo em face aos desafios e torna a consciência crítica”. Por isso, Freire considera como elemento indispensável do processo educativo o diálogo, numa relação intersubjetiva de troca de experiências de vida, de palavras comuns aos educandos que tenham significado existencial e possibilitem a “leitura do mundo”, portanto a leitura do mundo vivido pelos educandos e pelas educandas.

Como Freire se refere àqueles e àquelas que ele denomina de “oprimidos” e “oprimidas”, o mundo vivido por eles e elas é de opressão. Faz-se necessário, portanto, que não somente tomem consciência da sua realidade, mas que realizem um processo de conscientização e ação. Sendo assim, o “objetivo da ação dialógica está em proporcionar que os oprimidos, reconhecendo o porquê e o como de sua ‘aderência’ ao opressor, exerçam um ato de adesão à práxis verdadeira de transformação da realidade injusta”. (FREIRE, 2014, p. 237). Ao tomarem consciência que o mundo da vida no qual experienciam o seu viver é opressor, passam à realização de ações que os capacitam à vida no mundo, em um mundo transformado, justo. A teoria da educação freireana se origina da prática vivida e a alimenta na direção da transformação.

O espaço educativo em que ela acontece é o círculo de cultura. Nele, não há professores que ensinam e alunos que aprendem, mas sim animadores culturais que propiciam condições favoráveis à dinâmica do grupo (CAMPOS, 2017). O diálogo e a amorosidade garantem a horizontalidade das relações estabelecidas entre todos os seus participantes. “No círculo de cultura, a rigor, não se ensina, aprende-se em ‘reciprocidade de consciências’” (FIORI, 2014, p. 14), na relação intersubjetiva de educandos e educandas, mediada pelo diálogo. O ponto chave do círculo de cultura, segundo Weffort (1999), é a busca pela crítica, pela tomada de consciência e pela liberdade do ser humano.

Conforme Freire (2016, p. 56), “a realidade não se apresenta aos homens como objeto que a consciência crítica deles pode conhecer”. Ou seja, a posição natural do homem e da mulher oprimidos perante o mundo não é uma posição crítica, mas sim ingênua, diz o educador. Ao se aproximar da realidade de forma espontânea, simplesmente a experimenta por meio da investigação. Entretanto, “essa tomada de consciência ainda não é a conscientização” (FREIRE, 2016, p. 56).

Para Freire (2016, p. 56), “a conscientização implica que se passe da esfera espontânea de apreensão da realidade para uma esfera crítica, na qual a realidade se oferece como objeto cognoscível e na qual o homem assume um posicionamento epistemológico”. Para isso, afirma que é preciso, primeiro, ir às coisas, à realidade, ler o mundo, numa visão claramente fenomenológica. Salienta que o homem é o único ser capaz de se distanciar do mundo e “admirar” os objetos de longe, no sentido filosófico do termo. “Ao objetivar ou admirar [...], os homens são capazes de atuar conscientemente sobre a realidade objetivada” (FREIRE, 2016, p. 56).

De acordo com Pizzi (2010, p. 139), “Freire estabelece um vínculo entre realidade e linguagem, com três momentos fundamentais: a leitura do mundo, a leitura da palavra e a leitura da palavra-mundo”. Nessa direção, a ação educativa proposta por Freire com os oprimidos e oprimidas é a descodificação coletiva de situações codificadas por meio de imagens, que pretendem guiá-los(as) em um caminho de descoberta de si mesmos(as) no mundo e com o mundo e de conscientização. Por meio de diálogos que se originam de temas e palavras geradoras, os educandos e educandas vão se redescobrindo como sujeitos do processo histórico e cultural (FREIRE, 1999; 2016). Vão compreendendo que “o que o homem fala e escreve e como fala e escreve, tudo é expressão objetiva de seu espírito” (FIORI, 2014, p. 16).

Dessa forma, as situações existenciais passam para o mundo dos objetos e os educandos e educandas podem tomar distância de suas experiências para vê-las melhor. Ao “sair” do mundo, começam a descodificá-lo, ou seja, a refletir sobre ele. Passam de uma consciência ingênua para uma consciência crítica, que lhes permite identificar o que precisa ser mudado e, assim, voltam ao mundo dispostos a agir em prol dessas transformações (FREIRE, 1999; 2016). Nessa práxis, ao objetivar o seu mundo, educandos e educandas nele se reencontram com os(as) outros(as) e nos(as) outros(as), companheiros e companheiras. Nos círculos de cultura:

Encontram-se e reencontram-se todos no mesmo mundo comum e, da coincidência das intenções que o objetivam, ex-surge a comunicação, o diálogo que criticiza e promove os participantes do círculo. Assim, juntos, re-criam criticamente o seu mundo: o que artes os absorvia, agora podem ver ao revés. (FIORI, 2014, p. 15).

Os exercícios de descodificação crítica das situações existenciais permitem que os educandos e as educandas atribuam significados às palavras geradoras à medida que passam a inseri-las em seus contextos existenciais. Na concepção de Freire (2011, p. 19), “a leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da leitura daquele”. Sendo assim, a compreensão crítica do ato de ler antecipa e se alonga na inteligência do mundo, afirma o educador.

Por isso, Freire (2019b, p. 94) insiste que o saber de experiência feito dos homens e mulheres dos grupos populares não pode, jamais, ser desconsiderado nas relações político-pedagógicas estabelecidas com eles. Assim como não se pode ignorar a explicação do mundo desses sujeitos, que abriga a compreensão de sua própria presença no mundo. “E isso tudo vem explicitado ou sugerido ou escondido no que chamo ‘leitura do mundo’ que precede sempre a ‘leitura da palavra’” (FREIRE, 2019b, p. 9).

Para Freire (1999, p. 39), “as relações que o homem trava no mundo com o mundo” são relações tanto pessoais quanto impessoais, relações que distinguem o homem e a mulher dos animais. Por isso, diz Freire (1999, p. 39), “entendemos que para o homem, o mundo é uma realidade objetiva, possível de ser conhecida. É fundamental, contudo, partirmos de que o homem, ser de relações e não só de contatos, não apenas está no mundo, mas com o mundo” (FREIRE, 1999, p. 39), podendo, portanto, exercer juízo sobre o mundo, sobre o mundo da vida.

A dialogicidade estabelecida entre objetivação e subjetivação ao longo desse processo propicia a conscientização da palavra como “significação que se constitui em sua intenção significante, coincidente com intenções de outros que significam o mesmo mundo. Este — o fundo — é o lugar do encontro de cada um consigo mesmo e os demais” (FIORI, 2014, p. 15).

Portanto, essa práxis pedagógica confere aos educandos e às educandas não apenas a capacidade de compreender os mecanismos de composição e recomposição das palavras, mas a consciência e a motivação para escreverem seus pensamentos por meio delas e assim estarem no mundo e com o mundo. Conforme Orlando, Mesquida e Borges (2019, p. 20), “aprender a dizer a palavra é sair do mundo do silêncio para o mundo da vida, isso porque a existência humana não pode ser muda [...]”.

Nessa direção, podemos dizer que um método de alfabetização dinamizado pela teoria educativa de Freire assume claramente sua essência humanista6 de que educar/alfabetizar é conscientizar. E a conscientização é, segundo Freire (2016), o teste da realidade: “quanto mais nos conscientizamos, mais ‘desvelamos’ a realidade, e mais aprofundamos a essência fenomênica do objeto diante do qual nos encontramos, com o intuito de analisá-lo” (FREIRE, 2016, p. 56).

Conforme Freire (2016), “a ‘conscientização’ não tem como base uma consciência, de um lado, e um mundo, de outro; aliás, ela não busca tal separação. Pelo contrário, está baseada na relação consciência-mundo”. Nesse sentido, Fiori (2014) diz que:

A objetividade dos objetos é constituída na intencionalidade da consciência, mas, paradoxalmente, esta atinge, no objetivado, o que ainda não se objetivou: o objetimável. Portanto, o objeto não é só objeto, é, ao mesmo tempo, problema: o que está em frente, como obstáculo e interrogação. Na dialética constituinte da consciência, em que esta se perfaz na medida em que faz o mundo, a interrogação nunca é pergunta exclusivamente especulativa: no processo de totalização da consciência é sempre provocação que a incita a totalizar-se. O mundo é espetáculo, mas sobretudo convocação. E, como a consciência se constitui necessariamente como consciência do mundo, ela é, pois, simultânea e implicadamente, apresentação e elaboração do mundo. (FIORI, 2014, p. 19).

Isso significa que é a consciência que leva os sujeitos a identificar as limitações que o mundo lhes impõe e abre a possibilidade para uma projeção intencional além desses limites7. Como teoriza Fiori (2014, p. 18), as coisas “deixam de ser simples estímulos, para se tornarem desafios”. Logo, a consciência é “um comportar-se do homem frente ao meio que o envolve, transformando-o em mundo humano” (FIORI, 2014, p. 18).

A intencionalidade da consciência humana, segundo Fiori (2014, p. 19), “tem dimensão sempre maior do que os horizontes que a circundam. Perpassa além das coisas que alcança e, porque as sobrepassa, pode enfrentá-las como objetos”. E a raiz da objetivação é, conforme o autor, a reflexividade: “se a consciência se distancia do mundo e o objetiva, é porque sua intencionalidade transcendental a faz reflexiva” (FIORI, 2014, p. 19). Aí está novamente a relação dialógica indispensável entre objetividade e subjetividade de que Freire falou. Na interpretação de Fiori (2014):

A intencionalidade transcendental da consciência permite-lhe recuar indefinidamente seus horizontes e, dentro deles, ultrapassar os momentos e as situações, que tentam retê-la e enclausurá-la. Desde o primeiro momento de sua constituição, ao objetivar seu mundo originário, já é virtualmente reflexiva. É presença e distância do mundo: a distância é a condição da presença. Ao distanciar-se do mundo, constituindo-se na objetividade, surpreende-se, ela, em sua subjetividade. Nessa linha de entendimento, reflexão e mundo, subjetividade e objetividade não se separam: opõem-se, implicando-se dialeticamente. A verdadeira reflexão crítica origina-se e dialetiza-se na interioridade da “práxis” constitutiva do mundo humano — é também “práxis”. (FIORI, 2014, p. 19).

Assim como a conscientização acontece na relação dos sujeitos com o mundo, ela também se dá na relação entre os seres no mundo, ou seja, na relação com os outros. De acordo com Fiori (2014, p. 20), “a consciência se constitui como consciência do mundo”, pois “se cada consciência tivesse o seu mundo, as consciências se desencontrariam em mundos diferentes e separados”. Sendo assim, “ninguém se conscientiza separadamente dos demais” (FIORI, 2014, p. 20).

Na visão de Freire (2014), a consciência é sempre, radicalmente, consciência do mundo. Tais consciências não se encontram no vazio de si mesmas, mas em um mundo originariamente comum no qual elas se comunicam, diz Fiori (2014). Cada pessoa acessa esse mundo comum da sua maneira, “mas a convergência das intenções, que o significam, é a condição de possibilidade das divergências dos que, nele, se comunicam” (FIORI, 2014, p. 21).

De acordo com o autor:

Na constituição da consciência, mundo e consciência se põem como consciência do mundo ou mundo consciente e, ao mesmo tempo, se opõem como consciência de si e consciência do mundo. Na intersubjetivação, as consciências também se põem como consciências de um certo mundo comum e, nesse mundo, se opõem como consciência de si e consciência do outro. (FIORI, 2014, p. 21).

Na perspectiva da pedagogia freireana, as relações consciência-mundo são naturalmente dialéticas. Logo, a comunicação e a intercomunicação envolvem a compreensão do mundo (FREIRE, 2016). Os sujeitos admiram um mesmo mundo e são instigados a se afastar dele para com ele coincidir e nele se colocar. Por meio do diálogo amoroso e respeitoso, vão tomando consciência do mundo, de si e dos outros e assumindo uma postura crítica e ativa perante a realidade.

Por isso, Fiori (2014, p. 22) afirma que o diálogo é “o movimento constitutivo da consciência que, abrindo-se para a infinitude, vence intencionalmente as fronteiras da finitude e, incessantemente, busca reencontrar-se além de si mesma”. Logo, é a única maneira que as consciências, constituídas na mundanidade e na intersubjetividade, têm de se encontrarem, o que lhe permite afirmar que “o diálogo fenomeniza e historiciza a essencial intersubjetividade humana” (FIORI, 2014, p. 22). Nessa direção, o autor constata, ainda, que “se o mundo é o mundo das consciências intersubjetivadas, sua elaboração forçosamente há de ser colaboração” (FIORI, 2014, p. 23).

Considerações finais

Identificar o lugar do conceito de mundo da vida de Husserl na pedagogia de Paulo Freire e compreender a importância desse conceito para a educação libertadora freireana, objetivos desse artigo, nos levou a constatar que o mundo da vida é um dos elementos essenciais da pedagogia freireana. Afinal, Freire (2011) afirma que a leitura do mundo começa antes da leitura da palavra e deve acompanhar o ato de ler por toda a vida.

Isso significa que toda a práxis freireana parte do mundo dos educandos e educandas, base para um processo de conscientização coletivo e solidário por meio das palavras e dos temas geradores, guiado pelo diálogo amoroso e respeitoso. Um processo de desvelamento das visões mágicas da realidade, em que a consciência ingênua vai dando espaço à consciência crítica e homens e mulheres vão se descobrindo sujeitos e se libertando da condição de oprimidos e oprimidas.

Tanto Freire quanto Husserl falam de um mundo naturalmente pré-dado e comum a todos nós. Husserl (2012) o chama de mundo da vida, de universal-comum. Freire (2019a) o chama de suporte, mundo ao qual os animais se adaptam e os seres humanos se integram, nele intervindo e, assim, o transformando.

Conforme Husserl (2012), historicamente a ciência pressupõe a saída desse mundo da vida circundante intuível, dado de modo universal-comum. Contudo, defende que a ciência depende inteiramente das evidências da natureza pré-dada. Além disso, enfatiza que cada cientista, diante da “sua verdade objetiva”, a experiencia de maneira subjetiva.

Seguindo a mesma lógica, Freire (2016) entende que a posição natural do ser humano perante o mundo não é crítica e sim ingênua. Para que haja uma transição da consciência ingênua para a crítica – algo semelhante à substrução lógico-teórica de Husserl - é preciso ir às coisas mesmas, diz o educador. Isto é, distanciar-se do mundo da vida e “admirar” os objetos de longe, tomando consciência da realidade objetivada. Trata-se de superar uma visão mágica do mundo e compreender-se sujeito histórico e cultural.

Nesse sentido, Paulo Freire desenvolve uma teoria da educação que fundamenta as ações educativas e as dinamiza na medida em que possibilita aos educandos e às educandas a leitura crítica do mundo e da palavra. Dessa forma, as palavras geradoras são objetificadas e admiradas à distância, deixando de ser meras associações fonêmicas para se tornarem uma forma de expressão do sujeito. O mesmo exercício é feito com as situações existenciais. Objetivação, esta, reflexiva, pois é fruto da intencionalidade transcendental da consciência.

Contudo, esse processo não se dá apenas por meio da objetivação. Freire (2014), assim como Husserl (2012), refuta o objetivismo puro, afirmando que a objetividade deve estar dialeticamente articulada com a subjetividade. Sendo assim, o círculo de cultura abriga múltiplas consciências de mundo que dialogam de forma respeitosa e amorosa, diálogo que promove a consciência do mundo da vida em que todos vivemos, assim como a consciência de si e dos outros. Para Freire (2014):

Expressar-se, expressando o mundo, implica o comunicar-se. A partir da intersubjetividade originária, poderíamos dizer que a palavra, mais que instrumento, é origem da comunicação - a palavra é essencialmente diálogo. A palavra abre a consciência para o mundo comum das consciências, em diálogo, portanto. Nessa linha de entendimento, a expressão do mundo consubstancia-se em elaboração do mundo e a comunicação em colaboração. E o homem só se expressa convenientemente quando colabora com todos na construção do mundo comum – só se humaniza no processo dialógico de humanização do mundo. A palavra, porque lugar de encontro e do reconhecimento das consciências, também o é reencontro e do reconhecimento de si mesmo. (FREIRE, 2014, p. 26).

Por fim, Husserl e Freire apontam para uma mesma direção. Para o primeiro, a vida é viver permanentemente consciente do mundo, de si mesmo como um ser do mundo, vivendo no mundo. Sendo assim, aponta para uma mudança universal de interesse: a superação do modo permanente de viver simplesmente inserido no mundo (HUSSERL, 2012).

Podemos dizer que Freire (2014) busca uma mudança universal de interesse muito próxima à de Husserl. Deseja que todos os seres humanos se tornem criticamente conscientes e superem a condição de simplesmente viver no mundo; se descubram sujeitos históricos e culturais, que agem no mundo e com o mundo para transformá-lo; e que, assim, se libertem das condições desumanas que os oprimem.

Referências

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2- Busca realizada nos bancos de dados Scientific Electronic Library Online (SciELO), Science Direct, Directory of Open Access Journals (DOAJ), Portal de Periódicos CAPES, Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD) e Google Acadêmico em 05/05/2021.

3- Conforme Zahavi (2003), para Husserl, as percepções de uma pessoa a apresentam como um ser intersubjetivamente acessível, ou seja, essas percepções não existem apenas para ela, mas para todos. Isto é, as pessoas experimentam objetos, eventos, ações, como coisas públicas e não privadas. Consequentemente, “uma análise ontológica, na medida em que desvela o sentido de ser do mundo como intersubjetivamente válido, leva a uma revelação da relevância transcendental da subjetividade estrangeira e, portanto, para um exame da intersubjetividade transcendental”, explica Zahavi (2003, p. 110).

4- It includes [the lifeword of the Crisis), as we have seen, not just things but also persons; and persons not just as minds but as bearers of experiences and thoughts [...] (CARR, 1987, p. 236, citação original).

5- According to Husserl, the only way to overcome the present scientific crisis and to heal the disastrous rupture between the world of science and the world of everyday life is by criticizing this reigning objectivism (ZAHAVI, 2003, p. 126, citação original).

6 - De acordo com Mendonça (2006, p. 159), “Paulo Freire é um autor que constrói, desde o início de seu pensamento pedagógico, uma base conceitual sedimentada em princípios filosófico-humanistas e que vai incorporando no decorrer de sua obra novas contribuições de autores e correntes de pensamento progressistas para afirmar uma proposição político-pedagógica libertadora que pudesse ser desenvolvida concretamente por homens e mulheres como uma ação cultural no processo de transformação das estruturas sociais impeditivas da humanização dos seres humanos”.

7- A rigor, Freire (2014) chama os limites como obstáculos de “situações limites” com as quais o oprimido e a oprimida se defrontam e necessitam da consciência crítica, que os leva a superá-las como inéditos viáveis, ou sonhos possíveis.

Recebido: 09 de Novembro de 2020; Revisado: 28 de Abril de 2021; Aceito: 31 de Maio de 2021

Gabriela Ribeiro de Campos é doutora em educação pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR) e pesquisadora na área de filosofia e história da educação.

Peri Mesquida é doutor em educação pela Universidade de Genebra e pós-doutor pelas Universidades de Genebra e de Friburgo. É professor titular do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC/PR e professor convidado das universidades de Genebra e Fribourg.

Luci Frare Kira é mestre em educação pela Universidade Metodista de Piracicaba, doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC/PR e pesquisadora na área de filosofia e história da educação.

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