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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 27-Out-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248246542por 

Artigos

As práticas pedagógicas e a autonomia de professores no contexto de ensino bilíngue de elite

Luana Francine Mayer1 
http://orcid.org/0000-0002-1642-6132

Rosana Mara Koerner2 
http://orcid.org/0000-0001-6117-7537

1- Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil. Contato: luana.mayer@live.com

2- Universidade da Região de Joinville, Joinville, SC, Brasil. Contato: rosanamarakoerner@hotmail.com


Resumo

Neste artigo, sugerem-se algumas respostas sobre como a autonomia de professores de um contexto bilíngue de elite se faz perceber em suas vozes, através de análises do que dizem a respeito de suas práticas pedagógicas. A problemática que deu origem à pesquisa recaiu sobre as formações superiores variadas dos professores que não eram formados para trabalhar com níveis da educação infantil e séries iniciais; em alguns casos, tampouco eram formados em licenciatura. Esse “espaço” entre formação inicial e práticas pedagógicas lançou luz sobre questões que concernem à autonomia docente. O enfoque metodológico foi preconizado pela pesquisa qualitativa, valendo-se de um questionário escrito e de um grupo de discussão como instrumentos para geração dos dados. As reflexões foram embasadas nos seguintes autores: García (2009), Benson (1997), Benson e Huang (2008), Cunha (2007), Pesce (2012), Tardif (2002) e Megale (2020). Entendemos que, apesar de os professores não reconhecerem a autonomia em suas práticas, nem usarem essa palavra em suas falas, é por meio das escolhas que fazem para mobilizar o processo de ensinar e aprender que exercem o seu protagonismo e se empoderam no exercício da profissão. Conclui-se que o que evidencia sua autonomia parecem ser as decisões que tomam para adequarem suas práticas ao que a gestão espera, ao que os manuais de orientação indicam e ao que o livro do professor prevê, enquanto buscam uma prática que se mostre efetiva, mesmo que à revelia do controle imposto pela instituição.

Palavras-Chave: Práticas pedagógicas; Autonomia docente; Educação bilíngue de elite; Trabalho e formação docente

Abstract

In this article, some answers are suggested about how the autonomy of teachers in an elite bilingual context is perceived in their voices, through analyzes of what they say about their pedagogical practices. The problem that gave rise to the research fell on the varied higher education of teachers who were not trained to work with levels of early childhood education and early grades; in some cases, they did not even have a licentiate degree. This “space” between initial training and pedagogical practices shed light on issues concerning teacher autonomy. The methodological approach was recommended by qualitative research, using a written questionnaire and a discussion group as instruments for data generation. The reflections were based on the following authors: García (2009), Benson (1997),Benson and Huang (2008), Cunha (2007), Pesce (2012), Tardif (2002), Megale (2020) . We understand that, although teachers do not recognize autonomy in their practices, nor use this word in their speeches, it is through the choices they make to mobilize the teaching and learning process that they exercise their protagonism and empower themselves in the exercise of the profession. It is concluded that what evidences their autonomy seems to be the decisions they make to adapt their practices to what the management of school expects, to what the Guidance Manuals indicate, and to what the teacher’s book predicts, while looking for a practice that proves to be effective, even in the absence of the control imposed by the institution.

Key words: Pedagogical practices; Teacher autonomy; Elite bilingual education; Teacher work and training

Introdução

Neste artigo, pretendemos investigar a relação que se estabelece entre as práticas pedagógicas e a autonomia de professores que trabalham no contexto bilíngue de elite. A produção teórica a respeito desse contexto é, ainda, escassa, pois o aumento no número de instituições que oferecem essa modalidade de ensino no Brasil é recente. Todavia, indicamos que o contexto bilíngue de elite é somente o pano de fundo para nossa discussão e, portanto, o percurso teórico que fizemos não o discute especificamente. O balanço de produções realizadas indicou, contudo, que o cenário que trata do trabalho e da formação docente dos professores atuantes em escolas bilíngues carece de mais pesquisas que ajudem a entender as potencialidades desse contexto e, até mesmo, tangenciar discussões sobre a nova profissionalidade docente, considerando que ela acontece nas práticas cotidianas dos professores e se legitimam nelas e por elas.

Nesse sentido, pretendemos contribuir para a melhor compreensão dessa modalidade de ensino, trazendo percepções de professoras3 sobre seu fazer docente no que se refere às estratégias e aos recursos que utilizam, a fim de responder à questão norteadora: como a autonomia dos professores de um contexto de ensino bilíngue se faz perceber em suas vozes quando falam sobre os desafios nas suas práticas pedagógicas?

O artigo está organizado em quatro partes principais: começamos com o percurso teórico, no qual indicamos que as vozes que dão luz às análises sobre o fazer docente são de García (2009) , Benson (1997) , Benson e Huang (2008) , Cunha (2007) , Pesce (2012) , Tardif (2002) e Megale (2020) . Em seguida, situamos o leitor no percurso metodológico que fizemos para a geração de dados. Na terceira seção, apresentamos as análises nas quais as vozes das professoras aparecem. Por fim, as últimas considerações fazem o fechamento da nossa discussão.

Percurso teórico

Neste percurso teórico, faremos uma trajetória que parte de um pequeno panorama do contexto bilíngue de elite no Brasil para, em seguida, adentrarmos nas questões teóricas que tangenciam o foco de nossa análise: as práticas pedagógicas e a autonomia docente no referido contexto.

O número de escolas que oferecem a modalidade de ensino bilíngue tem aumentado conforme avança, no país, a tendência mercadológica que aposta as fichas nessa modalidade para o domínio de outro idioma que não o nativo. Tal tendência está, possivelmente, atrelada ao advento das tecnologias em rede que pulverizam fronteiras físicas e conectam pessoas de diferentes partes do mundo. Há o entendimento de que o Brasil não é um país monolíngue ( CAVALCANTI, 1999 ); todavia, o contexto de prestígio ( MEGALE; LIBERALI, 2016 ) parece mobilizar novas pesquisas que se preocupam com as nuances que permeiam a educação linguística, tendo em mente que vivemos em um contexto de superdiversidade ( VERTOVEC, 2007 ).

Para aprender a falar uma língua adicional, é extremamente comum que se recorra a escolas especializadas no ensino de tal língua. Ao mesmo tempo, escolas privadas passaram a firmar parcerias com institutos de idiomas, abrindo seu espaço para que os alunos estudassem inglês, de forma terceirizada, no contraturno escolar. Hoje, porém, já é possível encontrar instituições privadas que oferecem a opção de educação bilíngue para que não haja o deslocamento dos estudantes a outro lugar, tampouco terceirização. Marcelino (2009) afirma que as escolas que oferecem a educação bilíngue pretendem aliar a oferta da educação formal à oferta do ensino de idiomas. No entanto, ele argumenta que a proposta bilíngue vai além do que um curso especializado oferece, ao passo que:

Na escola bilíngue, a língua inglesa é um veículo, o meio através do qual a criança também se desenvolve, adquire e constrói conhecimento e interage e age sobre o meio. A escola bilíngue deveria ser sempre vista essencialmente como uma escola, com objetivos de uma escola, focada em educação, não como um instituto de idiomas aumentado. ( MARCELINO, 2009 , p. 10).

A educação bilíngue pode ser também um instrumento de empoderamento dos sujeitos em se tratando do uso da língua nas suas práticas sociais. Para Baker (2001 , p. 183), a educação bilíngue como conceito isolado é “um componente em meio a um contexto social, econômico, cultural, político e educacional maior”. Para mais, Rocha (2019) recupera em Garcia e Wei (2014) o conceito de languaging para se distanciar de uma ideia de língua e linguagem como conjuntos estáticos de regras, postulando que é em meio às práticas de linguagem e nas interações sociais que “[…] nos tornamos quem somos ao interagirmos e produzirmos sentidos, de modo tenso e ideologicamente orientado, no mundo de hoje” ( ROCHA, 2019 , p. 19). Entendemos que, de maneira geral, o mais importante é que a educação bilíngue promove acesso a línguas de poder. Isso pode ser transformador, levando em conta que, além de promover acesso a elas, pode legitimar outras práticas bilíngues, incluindo línguas minoritárias, de forma a promover igualdade econômica, política e social. García (2009) , ao pensar a sociedade contemporânea como multilíngue, afirma que é possível que a educação bilíngue seja usada como projeto, na medida em que possibilita a comunicação com a comunidade internacional.

Por esse motivo, o cerne da questão da discussão proposta neste artigo é a Pedagogia da educação bilíngue ( GARCÍA, 2009 ), pois entendemos Pedagogia como um termo abrangente em cujo coração está o trabalho docente. Para García (2009) , muitas vezes os professores que trabalham na educação bilíngue seguem o que está posto. Mas, outras tantas vezes, esses professores criam, contestam, mudam e transformam as políticas e práticas que estão postas conforme promovem sua pedagogia. A autora sugere que as práticas pedagógicas dependem grandemente do contexto sociocultural em que acontecem e do local onde a escola está localizada e assevera que a pedagogia da educação bilíngue é uma arte. Como tal, pode ser bem executada por professores experientes, assim como pode falhar ( GARCÍA, 2009 ).

A esse respeito, entendemos as práticas pedagógicas como “a descrição do cotidiano do professor na construção e execução de seu ensino” ( CUNHA, 2007 , p. 105). Elas envolvem questões que vão além do que acontece quando o professor está na sala de aula, pois são resultado da formação ou ausência de formação, planejamento ou a falta dele, autonomia ou sua carência. Basicamente, as práticas pedagógicas acontecem em meio a fatores que influenciam o trabalho do professor de algum modo, e é por meio dessas ações que percebemos que a autonomia do professor fortemente se manifesta frente às escolhas que ele faz, sobretudo se a consideramos como a capacidade de governar-se pelos próprios meios.

Martins (2002 , p. 208) explica que “o tema da autonomia aparece na literatura acadêmica, em alguns casos, vinculado à ideia de participação social, e, em outros, vinculado à ideia de ampliação da participação política no que tange à descentralização e desconcentração do poder”. Conforme Benson e Huang (2008) , historicamente, a literatura sobre autonomia relaciona o conceito de autonomia do estudante com o conceito de autonomia do professor de língua adicional, porque a discussão sobre autonomia do professor começou com foco na autonomia dos estudantes em ambientes de aprendizagem “não tradicionais”. Os autores retomam análises feitas sobre autonomia nos anos 1970 e 1980, afirmando que o conceito servia para designar não só uma aprendizagem autônoma, mas também a capacidade do aprendiz de se encarregar de seu próprio processo, uma vez que as noções de aquisição de língua se voltavam para a ideia de que aprender uma língua adicional dependia também de um certo grau de autonomia dos alunos fora da sala de aula. Eles ainda afirmam que a autonomia é um atributo individual do professor, desenvolvida ao longo da sua trajetória de profissional em formação para docente atuante, e que sua experiência como aprendiz de língua adicional pode torná-lo mais ou menos favorável ou hábil a desenvolver essa capacidade com seus alunos. Assim, enfatizamos que, apesar de o professor bilíngue não ser um professor de língua adicional, sua trajetória em relação à autonomia pode se desenvolver de maneira similar.

Geraldi (2016 , p. 117) discorre sobre a relação entre o eu e o outro que caracterizaria a discussão sobre autonomia, tornando-a relativa. Para ele:

A autonomia faz referência ao “eu” e ao “outro” apesar do aparente sentido de remessa somente ao próprio sujeito, enquanto sua faculdade ou sua escolha. […] Isto significa que a autonomia, como a liberdade, tem uma existência sempre relativa aos outros que nos circundam, mas que, numa sociedade democrática, não nos cerceiam. Ninguém é autônomo, ponto. Todos somos autônomos na relação com os outros e em determinadas ações que praticamos.

Esse “outro” pode se referir não apenas a outra pessoa, mas a outros conceitos que Geraldi (2016) explica que a influenciam por mediação: a sociedade e como o conhecimento circula dentro dela; e a herança cultural que pode ditar rumos disciplinares. A esses dois conceitos, acrescentamos o controle ideológico na era multissinóptica, em que muitos observam muitos ( PINHEIRO, 2014 ). Benson (1997) ainda argumenta que a maioria dos professores de línguas trabalha sob condições nas quais o controle que exercem é severamente restringido por fatores como políticas educacionais e convenções institucionais. Isso vai ao encontro do que é proposto por Geraldi (2016) sobre ninguém ser “autônomo e ponto”, já que a autonomia se constitui como relativa quando mediada por tantos outros fatores.

Nesse ínterim, Martins (2002) aduz que o movimento da educação que coloca o aluno no centro do processo de ensinar e aprender transforma a relação entre professores e alunos, pois o primeiro passa a ser um orientador. Assim, sugerimos que este é mais um fator a influenciar a autonomia docente. Nessa discussão, Benson e Huang (2008) fazem um contraponto interessante. Para os autores, a tendência que envolve colocar o aluno no centro pode se refletir em indicativos de uma falta de confiança na profissionalidade docente por parte da administração escolar. Desse modo, há que se considerar que o movimento epistêmico-metodológico que coloca o estudante em papel central pode favorecer o aparecimento de um nicho de mercado que ofereça receitas prontas nas quais o professor exerça um papel de executor de etapas ou controlador de qualidade, o que inevitavelmente apagaria parte de sua importância no processo de ensinar e aprender.

Os mesmos nichos podem ser usados para propagar uma ideia de padronização de qualidade na educação por meio da venda e utilização de materiais didáticos e projetos bilíngues prontos. Assim, o livro do professor poderia cumprir um papel de manual de instruções, como os que orientam a aplicação de uma metodologia de ensino em um instituto de idiomas, por exemplo. Ao dizer o que falar, fazer, mostrar etc., ele assegura que os conteúdos sejam abordados efetivamente, e de maneira até mesmo homogeneizada, por professores iniciantes ou experientes. Também pode limitar as possibilidades de desenvolvimento de uma postura investigativa ou de problematização em relação às práticas que desenvolvem, ao passo que não precisam mobilizar reflexões sobre o que fazem. Por tudo isso, reiteramos: a centralidade no aluno não deveria pressupor o apagamento do professor, nem o oposto deveria ser verdadeiro.

Ao contrário dos antigos centros de aprendizagem autônoma que presumiam uma “não presença” do professor, no contexto bilíngue, percebemos que ele é visto, muitas vezes, como facilitador da interação entre os alunos em sala de aula. Para Megale (2020) , o papel do facilitador não seria sinônimo de reduzir o ensino a uma verbalização, mas de produzir aprendizagens intencionalmente através de um conjunto de conhecimentos que não se aprendem espontaneamente. Por um lado, sugerimos que se o “facilitar” fosse reduzido à verbalização, ele se aproximaria de uma autonomia técnica, se pensamos no técnico com um viés de “treinar o aluno com as habilidades […] que ele precisa para manejar sua aprendizagem” ( PESCE, 2012 , p. 117). Nesse caso, o ensino apresentaria uma característica apolítica. Porém, o que acontece no contexto bilíngue é mais que isso.

Dessa forma, parece possível afirmar que a autonomia, nesse contexto, poderia contribuir para uma possibilidade de escolha dos professores em relação aos seus posicionamentos nas instituições em que trabalham, já que, segundo Cunha (2007) , o mero fato de o professor ser responsável, inevitavelmente, por direcionar seu cotidiano em sala de aula reforça o fato de que não há neutralidade nas suas práticas. Para a autora, mesmo que a ação docente seja ingênua, ou pouco reflexiva, ela ainda evidencia os valores do professor e é, em maior ou menor medida, política ( CUNHA, 2007 ).

Importante também ressaltar que, para Martins (2002) , o desejo é o combustível da ação, e ele pode faltar quando a participação autônoma é cerceada por normas. Nessa perspectiva, inferimos que o papel das práticas pedagógicas do professor bilíngue seria o de promover a mediação alunos/conhecimento e aluno/aluno, e não apenas fazer uma transmissão de conhecimento. Nesse caso, a autonomia é fundamental, pois os professores escolhem seus caminhos para promover essas mediações mesmo em meio a forças diversas.

Não obstante, ao mencionar a mediação entre aluno e conhecimento, lembramos que no contexto bilíngue não existe, ainda, um discurso político-educacional único, uma maneira normatizada ou um currículo que indique como trabalhar os conteúdos. A abordagem pode acontecer por meio de disciplinas, ou por meio de projetos, e se faz relevante especular se isso exige das professoras um conhecimento que vai além da metalinguagem da língua adicional, das socializações particulares de cada disciplina ou mesmo do conhecimento sobre aquisição de língua. Afinal, usar a língua adicional como um veículo para conteúdos ( MARCELINO, 2009 ) pode exigir uma postura interdisciplinar por parte do professor.

Esses enfoques nos levam à questão do método, que está relacionada estreitamente à autonomia do professor, uma vez que os caminhos que o professor escolhe para mobilizar o ensinar e aprender passam por ele. Entendemos que a discussão sobre qual seria o método mais eficaz para ensinar uma língua adicional acontece há muito tempo e, de acordo com o que García (2009) postula a respeito do uso de múltiplas abordagens na educação, entendemos que não há uma abordagem perfeita que sirva a todos os propósitos; consequentemente, não há um conjunto certeiro de métodos e técnicas4 .

Outro aspecto importante a considerar é que, entre os fatores que influenciam o fazer docente dos professores, está o momento histórico que vivemos caracterizado pelo pós-método ( KUMARAVADIVELU, 1994 ). Para Kumaravadivelu (1994) , a autonomia do professor está ligada ao reconhecimento do seu potencial de saber não só ensinar, mas também agir dentro das políticas educacionais, convenções e normas. Incentivar o desenvolvimento de uma abordagem reflexiva a respeito de sua própria prática pedagógica, analisá-la, avaliá-la, e monitorar seus efeitos pode empoderar professores de línguas, de modo que se tornem capazes de teorizar suas práticas e praticar o que teorizam.

Entretanto, o movimento que acontece entre as instruções e receitas usadas há alguns anos e a condição do pós-método é bastante dinâmico. O passado pode ser um ponto de onde partir em um sentido antropofágico. Pode ser uma catapulta ou pode ser um lugar de acolhimento para os professores, dependendo do contexto em que estão inseridos. Antes de adentrarmos nas percepções depreendidas das vozes dos professores, situaremos o leitor no percurso metodológico que possibilitou a geração de nossos dados.

Percurso metodológico

A inquietação que deu origem a esta pesquisa partiu de uma conversa informal com uma professora de inglês que começara a dar aulas no contexto bilíngue havia pouco tempo. Os desafios daquela nova realidade, vividos e relatados por ela em uma conversa informal entre amigas, fizeram nossas mentes borbulharem e nos deram insumo para o desenvolvimento da pesquisa. Esta foi, então, realizada em uma escola privada, localizada no norte do estado de Santa Catarina, em uma cidade com características industriais bem definidas e com população de menos de 200.000 habitantes. Para participar das aulas do ensino bilíngue, os pais dos alunos precisavam realizar um investimento diferenciado; ou seja, nem todos os alunos da escola participavam dessas aulas. O programa de educação bilíngue acontecia no contraturno escolar, com duração de duas horas, de segunda a sexta-feira. O corpo docente do programa bilíngue oferecido pela instituição no contraturno escolar era composto por nove professoras, das quais seis aceitaram fazer parte da pesquisa5 .

Entendemos que nossa análise precisaria ser desenvolvida qualitativamente. Gatti e André (2010 , p. 30) afirmam que as pesquisas chamadas qualitativas

[…] vieram a se constituir em uma modalidade investigativa que se consolidou para responder ao desafio da compreensão dos aspectos formadores/formantes do humano, de suas relações e construções culturais, em suas dimensões grupais, comunitárias ou pessoais. Essa modalidade de pesquisa veio com a proposição de ruptura do círculo protetor que separa pesquisado e pesquisador, separação que era garantida por um método rígido e pela clara definição de um objeto, condição em que o pesquisador assume a posição de ‘cientista’, daquele que sabe, e os pesquisados se tornam dados […] numa posição de impessoalidade. Passa-se a advogar, na nova perspectiva, a não neutralidade, a integração contextual e a compreensão de significados nas dinâmicas histórico-relacionais.

Considerando nosso interesse no que as professoras tinham a dizer, suas práticas exitosas e suas angústias, e considerando também nossas perguntas de investigação, uma abordagem quantitativa muito provavelmente não nos ajudaria a chegar aonde gostaríamos. Apesar de, inicialmente, termos delimitado um percurso de geração dos dados, percebemos, ao longo de nossa trajetória, que precisaríamos acolher movimentos dialéticos característicos das abordagens qualitativas. Sobre isso, Lüdke (2009 , p. 34) assevera que, na pesquisa qualitativa, “sempre há acidentes de percurso e a própria evolução dos trabalhos vai oferecendo sugestões e levantando novas questões”. De fato, constatamos a verossimilhança desse pensamento quando passamos a interagir com as participantes. Embora tenhamos idealizado a pesquisa, foi ela que nos mostrou, aos poucos, quais caminhos deveríamos seguir para alcançar nossos objetivos.

A primeira etapa da geração de dados aconteceu em julho de 2019, por meio de um questionário escrito entregue às professoras, na escola, elaborado a fim de delimitar seus perfis. Muito embora os questionários escritos sejam usados largamente em pesquisas quantitativas, para Triviños (1987) , embora neutros, eles podem ser úteis para identificar traços gerais de um grupo, e podem adquirir vida quando olhados sob a luz de alguma teoria. Os resultados desse primeiro momento indicaram a complexidade do contexto com o qual começávamos a lidar: as professoras eram relativamente iniciantes na carreira docente, e suas formações superiores eram diversas: duas eram formadas em Letras (dupla licenciatura); uma em Administração; outra em Comércio Exterior; a quinta participante cursava História; e a última tinha formação em Letras, porém cursada nos Estados Unidos.

Os resultados iniciais gerados pelo questionário indicaram que as professoras participantes tinham entre um e cinco anos de atuação no contexto bilíngue. Três delas haviam iniciado suas carreiras docentes na escola pesquisada havia menos de dois anos; as outras três já haviam dado aula em institutos de idiomas e lecionavam na escola pesquisada havia mais de dois anos. Destas, uma havia trabalhado com língua inglesa para crianças em uma escola multisseriada no estado de Mato Grosso do Sul, e as outras duas tinham experiência com língua inglesa para Ensino Fundamental 1 e 2. Naquele momento, as professoras trabalhavam com turmas de educação infantil (Infantil 4 e 5) e séries iniciais do Ensino Fundamental (1º ao 6º ano). Nenhuma delas tinha formação em Pedagogia. Todas as respostas foram organizadas em uma planilha para facilitar a visualização.

Decidimos, então, conduzir o segundo momento da geração de dados em formato de grupo de discussão com o intuito de mergulharmos mais profundamente naquele contexto. Em setembro de 2019, reunimos as participantes para o encontro. Weller (2006) indica que um grupo como esse pode ser usado como um método de investigação pois permite, através do acesso às posturas dos sujeitos participantes, conhecer um conjunto de orientações coletivas partilhadas por eles. A primeira pergunta que fizemos para iniciar a discussão entre elas foi: “Quais são as maiores dificuldades que vocês percebem no dia a dia do bilíngue?”. A troca de experiências aconteceu de maneira muito tranquila, com as profissionais discorrendo sobre o início de suas vivências nesse contexto, falando sobre como se sentiam e contando sobre suas práticas. Conforme elas falavam, faziam inferências nas falas das colegas; aproveitavam ganchos para exporem suas opiniões e, inclusive, faziam perguntas umas às outras. A experiência possibilitou grandes trocas entre as professoras, de modo que pudemos perceber que, mesmo trabalhando juntas, elas se sentiam inseguras em relação a algumas de suas práticas, e aquele momento de trocas de ideias foi significativo por perceberem que a angústia de uma também era a angústia da outra. O áudio do encontro foi gravado usando dois celulares, e o arquivo gerado foi utilizado para a transcrição, realizada pelas próprias pesquisadoras.

Tanto o movimento de organização na planilha quanto o movimento de transcrição foram essenciais para nos apropriarmos do que elas escreveram e do que disseram, pois, na transcrição, sobretudo das falas do grupo de discussão, tivemos o primeiro encontro com alguns traços das regularidades que, posteriormente, deram corpo à análise. A seleção das regularidades foi feita considerando o que foi mais recorrente em suas falas. Algumas delas, como o uso do livro do professor que veremos a seguir, foi pronunciada inúmeras vezes pelas profissionais. Outras, como os traços de autonomia, foram identificadas pelos silêncios, tons de confissão, e pelo que não estava dito. Foi no movimento das transcrições que pudemos nos distanciar do contexto e entender o que havia ficado claro e o que ainda poderia ser um pouco mais explorado em relação a seus depoimentos. Por isso, em dezembro do mesmo ano, uma das professoras concordou em participar de uma entrevista individual recorrente para elucidar algumas questões. Sobre a entrevista individual recorrente, para Silva e Davis (2016 , p. 41):

É cada vez mais evidente que, para a apreensão dos sentidos, neste caso, os sentidos da atividade docente, a diversidade de instrumentos metodológicos apresenta-se como uma demanda, pois interpretar a palavra com significado em seus mais diferentes prismas, aspectos e conjunturas possibilita que o discurso seja dito a partir de múltiplos lugares e pontos de vista, qualidade que pode enriquecer todo o processo de análise.

Considerando que as professoras estão envolvidas em um contexto no qual trabalham com tantas nuances envolvendo língua, cultura e práticas sociais, estão também constantemente expostas a uma multiplicidade de discursos que compõem essas nuances e, possivelmente, constituem suas práticas. Por tudo isso, uma vez com todos os dados em mãos, escolhemos analisar as falas das professoras como discurso que é socialmente produzido, cuja manifestação nos enunciados das docentes materializava suas crenças, suas valorações e suas construções coletivas.

Em março de 2020, buscamos acesso ao Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola, mas, em vez dele, a coordenação nos forneceu dois Manuais de Orientação (Manual de Orientação 01 e Manual de Orientação 03) que davam algumas diretrizes ao corpo docente sobre como o programa bilíngue deveria acontecer na instituição6 . Não ficou claro se havia, de fato, um PPP. Esses manuais ofereceram grande margem para discussões sobre o papel do professor na instituição e sobre o próprio contexto bilíngue. Portanto, usamos tanto o Manual 01 quanto o Manual 03, cruzando-os com as vozes das professoras, para que as regularidades de análise se iluminassem e fosse possível chegarmos aos nossos resultados.

Na seção seguinte, discutiremos os indícios que sugerem a estreita relação entre autonomia e práticas pedagógicas. Optamos, pois, por dividir a discussão dos resultados em dois subitens de modo a trabalhar uma dualidade entre duas regularidades que se fizeram mais fortemente presentes em nossos dados no que tange à prática pedagógica: os conflitos entre autonomia e os manuais que orientam o bilíngue na instituição; e o modo como os professores mobilizam recursos e estratégias no seu fazer docente. Nas duas seções que seguem, esperamos conseguir explicitar as nuances que percebemos em relação a essa dualidade ao trazermos ao leitor as falas das professoras, obtidas através dos instrumentos utilizados; os documentos que utilizamos; e o referencial teórico mobilizado.

A autonomia docente no contexto de ensino bilíngue

Primeiramente, é relevante mencionar que a palavra autonomia não aparece nas vozes das professoras. Entretanto, notamos que ela se manifesta sem que as professoras percebam. Para Cunha (2007 , p. 59), “o importante é compreender o significado que o sujeito dá às suas palavras […] no dizer e no calar, usando a palavra com significados próprios de seu contexto”.

No Manual de Orientação 01, disponibilizado pela escola, a palavra autonomia aparece quando o texto versa sobre os Parâmetros Curriculares Nacionais de 1998 e quando aborda os Quatro Pilares da Educação:

Aprender a ser : conceito principal que integra os outros três anteriores. Considera-se que a educação deve contribuir para o desenvolvimento total do indivíduo – capacidades físicas, raciocínio, sensibilidade, senso estético, memória, aptidão para comunicar-se, etc. A finalidade é desenvolver, o melhor possível, a personalidade e estar em condições de agir com uma capacidade cada vez maior de autonomia, discernimento e responsabilidade pessoal. ( MANUAL DE ORIENTAÇÃO 01, [201-] , p. 5, grifo do autor).

Nesse caso, a autonomia é do aluno, e não do professor. Isso faz sentido considerando a tendência discutida que propõe colocar o aluno no centro, o que também pode ser percebido no Manual de orientação 03 ([201-] , p. 11, grifo nosso):

A respeito do aprendizado ativo, diz-se que os alunos devem comunicar-se mais que o professor, observando-se as limitações de cada faixa etária, obviamente. Devem também ajudar a configurar os resultados em relação ao conteúdo, à língua e às habilidades de aprendizagem, além de avaliar seu progresso no alcance desses resultados e de favorecer o trabalho conjunto, negociar o significado da linguagem e de conteúdo com os outros alunos, tendo, assim, o professor como facilitador.

Quando o Manual menciona negociar o significado da linguagem e do conteúdo, entendemos que talvez vá ao encontro da segunda versão de autonomia de Benson (1997) , denominada psicológica. Nesse contexto, entendemos que existe um certo protagonismo autônomo, ou empoderamento, quando a professora Lulu escreve como resposta ao questionário escrito que, “dentro do conteúdo programático estabelecido pelo material, defino métodos e objetivos”, assim como outras professoras também se expressam ao encontro disso:

Eu vejo no material do curso o conteúdo da semana, escolho o que é mais pertinente; o planejamento é feito semanalmente, mas durante a semana é necessário mudá-lo.

Talvez as professoras não estejam na alçada do que poderia ser considerado como uma autonomia crítica ( BENSON, 1997 ) historicamente construída, que reflita sobre os interesses de grupos sociais no momento vivido, porque seu trabalho, nesse contexto, não tem a intenção de mostrar ao aluno os conflitos e contradições presentes na ideologia dominante no momento histórico atual de suas vidas. Talvez por se tratar majoritariamente de educação infantil para crianças de uma camada social privilegiada, elas se vejam lidando com conflitos e desafios que em suas percepções diárias são mais urgentes que uma reflexão aprofundada sobre a transformação de suas realidades.

Quando as professoras mencionam o planejamento, é possível inferir que o controle em relação ao que vai ser desenvolvido na semana é importante para elas em seu protagonismo. Mesmo assim, podemos discuti-lo para ilustrar a relação entre as suas práticas pedagógicas e a autonomia. No questionário escrito, solicitamos especificamente: Descreva como você faz o planejamento das suas aulas . Das seis respostas, salientamos quatro que podem ser observadas abaixo:

Lulu: Dentro do conteúdo programático estabelecido pelo material, defino métodos e objetivos e busco atividades extras para facilitar a avaliação da compreensão dos conteúdos pelos alunos.

Angie: Divido entre estrutura, exemplos visuais, atividades com jogos e brincadeiras, vídeos, exercícios escritos… tudo depende do que quero ensinar e de que metas tenho com eles.

Pamela: Eu vejo no material do curso o conteúdo da semana, escolho o que é mais pertinente (pois não é possível passar todo o conteúdo descrito devido ao tempo).

Clara: O planejamento é feito semanalmente, mas durante a semana é necessário mudá-lo.

Das falas acima, entendemos a autonomia presente quando as professoras mencionam que definem seus próprios métodos, metas e objetivos. Está presente outrossim quando Pamela diz que escolhe o que é mais pertinente pela relação entre conteúdo e tempo. Ela traz uma forte marca de seu protagonismo, pois decide selecionar as partes do currículo que pensa serem mais relevantes para seus alunos. No alto de sua seleção de conteúdos em virtude do tempo, Pamela vai, de certo modo, ao encontro do que é proposto por Gimeno Sacristán (2000) quando afirma que tratar o currículo como algo dado é considerá-lo indiscutível. Sem se dar conta, ela transforma o currículo em algo discutível.

A afirmação de Clara de que o planejamento é semanal, porém, necessariamente mutável, serve como indício de que elas devem estar atentas e responder rapidamente aos desafios que surgem no cotidiano, para modificar os rumos de acordo com suas ações e reflexões. No entanto, por suas falas, percebemos que o material estabelece os conteúdos programáticos que devem ser trabalhados e, cada uma à sua maneira, transforma-os em algo envolvente para os alunos.

Se, por um lado, existem escolhas que tentam ir além do material do curso proposto, por outro, destacamos a seguinte resposta retirada do questionário escrito, cujo aparecimento se deu quando a professora deu seu depoimento em relação a pontos que sentia que podiam ser fortalecidos na sua prática:

Lulu: Estar sempre buscando inovar, conseguir fazer coisas diferentes em 2h por dia de aula e que não interfira ou atrase o material base.

Aqui, percebemos que essa professora privilegia o material base em detrimento da inovação e das coisas diferentes, muito embora reconheça a necessidade de inovar em suas aulas. A respeito da inovação e também do aspecto lúdico e diferente das aulas, a forte necessidade de envolver e motivar os alunos nas práticas pedagógicas, usando o lúdico em todos os momentos, pode ser justificada como decorrente da necessidade do engajamento para promover a aprendizagem, em uma perspectiva que iria ao encontro do que é proposto por Vigotski (2003 , p. 298), que preza que “só se pode aprender com as próprias pernas e com as próprias quedas” e que esse princípio “também pode ser aplicado a todos os aspectos da educação”. No entanto, não podemos ignorar o mercado que coloca a escola privada na lógica mercadológica de retenção de alunos com vistas à manutenção dos números e da receita. Ou seja, se as práticas não forem envolventes e não derem “resultado”, os alunos não terão razão para continuar estudando naquela instituição e os pais buscarão outra que os atenda dentro do que esperam. Diante disso, questionamos: se as aulas do contexto bilíngue acontecessem nos anos finais do Ensino Fundamental, a necessidade de inovação em todos os momentos permaneceria? Ademais, qual é o lugar do professor neste cenário? Qual a voz que lhe é conferida?

Com efeito, ao contrário da seleção que Pamela fazia, Lulu escolheu não interferir. Logo, entendemos que ela inova, desde que isso não a atrase. Por tudo isso, afirmamos que elas parecem ter autonomia em relação às práticas pedagógicas. Sugerimos que tal autonomia seja adquirida de modo assíncrono e individual, e se desvele aos poucos, de modo não ordenado, por meio das experiências individuais das professoras. Parece razoável dizer que as adaptações, mudanças e criações corroboram o que García (2009) propõe quando diz que o professor que trabalha no contexto bilíngue deve conhecer múltiplas possibilidades. O que as professoras nos dizem, aparentemente, comprova a afirmação do autor de que são os professores que implementam a educação bilíngue, apesar de os direcionamentos para o contexto quase sempre virem de outro lugar que não da sala de aula ( GARCÍA, 2009 ).

Nesse ínterim, percebemos que suas escolhas em relação ao que devem ensinar podem ser um indício do exercício da autonomia e podem também dar pistas sobre a imbricação de forças que influenciam suas práticas pedagógicas. Perguntamo-nos se, sem a existência do material do curso (mencionado por Pamela) e dos manuais (mesmo os do planejamento), e considerando as formações diversas (sem direcionamento para o trabalho com crianças, tampouco para a docência, em alguns casos), as professoras conseguiriam dar conta da complexidade de seu cotidiano. De todo modo, propomos que as falas das professoras podem indicar o momento histórico em que vivemos, no qual há uma ruptura entre o conteudismo e o pós-método. Cada uma delas busca caminhos que lhes parecem mais pertinentes dentro do modo como leem seus mundos a partir de suas experiências e filiações teóricas.

Com isso, encerramos a seção na qual discutimos as relações entre a autonomia docente e as práticas pedagógicas, depreendidas de um percurso analítico que se deu considerando os manuais de orientação, o modo como as professoras valorizam o planejamento e suas escolhas no cotidiano da profissão. Na seção seguinte, daremos sequência à discussão sobre as práticas pedagógicas que acontecem no contexto de ensino bilíngue, permeadas pela relação entre autonomia docente, alunos e conteúdo, mas com foco especificamente no papel do livro do professor, outro recurso disponível.

Recursos e estratégias para as práticas pedagógicas: livro do professor e conteúdos

No programa bilíngue em questão, as professoras afirmam trabalhar, no contraturno, os mesmos conteúdos que os estudantes estudam no curricular, mas de um modo lúdico. Essa impressão que as professoras têm pode não ser totalmente acertada, pois, ao trabalharem conteúdos, suas expectativas no bilíngue e as expectativas dos professores de outras disciplinas não são as mesmas. Mesmo que os conteúdos abordados sejam parte da matriz curricular, a abordagem que elas dão a eles não é a mesma que um professor de uma área de conhecimento específico daria, sobretudo porque a língua adicional é usada como meio de instrução.

Surpreendentemente, na análise, parece possível dizer que a maneira de contextualizar a aprendizagem e criar significados é definida pelas professoras com o intuito de fazer os alunos aprenderem os conteúdos que estão trabalhando na língua adicional, e não a língua em si. Inclusive, suas falas sugerem que sua preocupação é, de fato, se os alunos têm aproveitamento em relação aos conteúdos, e não necessariamente ao uso normatizado da língua adicional. Por isso, elas tentam variar suas estratégias. Segundo uma fala de Lulu, durante o Grupo de Discussão:

[…] é exatamente por isso que toda aula tem que ser muito diferente, e toda abordagem tem que ser diferente porque um aluno vai pegar com isso, outro aluno vai pegar com uma música, outro aluno vai pegar o mesmo conteúdo explicando sozinho, outro vai conseguir pegar em grupo, outro vai conseguir pegar no jogo, outro, entende.

Logo, percebemos que, nas práticas pedagógicas das professoras, elas exercem sua autonomia na busca por técnicas que tornem suas estratégias eficazes para que os alunos “peguem” os conteúdos.

A necessidade de “dar conta do conteúdo” parece ser outro aspecto que determina o modo como suas práticas pedagógicas acontecem. Na fala de Clara, durante o Grupo de Discussão:

[…] então tu faz uma vez pra ver se é legal, daí tu tenta outra forma, tipo o meu 4º ano por exemplo como, né, a gente tem muito… muita coisa pra fazer [troca o tom de voz, como se estivesse falando algo proibido] tem que dar conta de muito assunto e projeto e enfim é… eu nos últimos tempos, eu não tô conseguindo ser muito lúdica, mas assim né, eles sabem que o momento de prestar atenção, o momento de eu falar ninguém fala comigo porque é o momento de eles entenderem como que as coisas funcionam sabe, e eu consigo ver muita produção então é, eu acho que é realmente isso, é depende da turma, você conhece a turma, você sabe como você pode fazer.

Clara faz uma espécie de síntese do que estamos discutindo. Primeiro, menciona a angústia em relação ao cronograma e como isso influencia a ludicidade e inovação que deveria buscar nas suas aulas. Ela o faz em tom de confissão, indicando que, de certo modo, vê a necessidade de burlar a orientação de ser lúdica para conseguir seguir o livro didático, o que sugere aquilo que considera mais importante (o conteúdo). Sua fala também transparece a relação de poder negociada que existe quando ela assume o controle da aula: “no momento de eu falar ninguém fala comigo porque é o momento de eles entenderem como que as coisas funcionam”. Não está claro o que ela quis dizer com “as coisas”, todavia, entendemos que poderia ser tanto o conteúdo quanto a língua adicional em si. Por fim, ela indica a importância do protagonismo do professor ao dizer que “você conhece a turma, você sabe como pode fazer” numa afirmação de que ela se sente confiante o suficiente para traçar seu próprio caminho em sua ação pedagógica, mesmo que isso signifique seguir de um modo diferente daquilo que foi orientado – neste caso, sem o lúdico preconizado pelos manuais, o que aparentemente causa uma culpabilização. Ainda, quando ela diz que o momento de seriedade é o momento de “eles entenderem como as coisas funcionam”, Clara indica uma dicotomia entre o objetivo da seriedade e o objetivo da ludicidade, como se, com a última, fosse menos possível entender o funcionamento das questões. Seria essa a autonomia do pós-método que esbarra em orientações de caráter mais conteudista?

Dando prosseguimento, é no livro que as professoras encontram os conteúdos com os quais precisam trabalhar. No questionário escrito, Lulu escreve: “O livro do bilíngue já possui passo a passo de cada lição e com base nele é que são criados projetos, atividades e até vídeos que vão tornar as aulas mais dinâmicas e interessantes”. Tal recurso também aparece quando as questionamos sobre seu planejamento. Clara escreve: “[…] Usamos o livro do professor, o qual nos diz o que falar, fazer, mostrar etc.”. Por outro lado, mesmo usando esse recurso, as professoras assumem a responsabilidade de trazer vida e dinamicidade às aulas em decorrência da necessidade do uso do lúdico em todos os momentos, como evidenciado em suas respostas ao questionário escrito:

Dora: De acordo com o livro (conteúdo) eu tento aliar a experiências lúdicas, criativas com um enfoque socioambiental. A criança aprende mais quando se diverte.

Eduarda: O livro do bilíngue já possui passo a passo de cada lição e com base nele é que são criados projetos, atividades e até vídeos que vão tornar as aulas mais dinâmicas e interessantes.

Pamela: […] procuro realizar atividades que estejam próximas de seu cotidiano e da maneira mais lúdica possível.

Percebemos, então, que o livro do professor pode desempenhar duas funções distintas e contraditórias: na medida em que é usado pelas professoras como um instrumento que as ajuda a pensar suas aulas, também causa angústia no que se refere ao que precisam cumprir. Ao mesmo tempo em que, de certo modo, “salva” as professoras, também as pressiona. As falas de Dora e Eduarda corroboram o papel central dele em suas práticas. Sua implicação parece ser a de uma espécie de manual, com um papel de regulador da qualidade do ensino. Desse modo, percebemos que as professoras realizam seu protagonismo de forma potente quando tomam decisões em relação ao uso, não uso ou adaptação das instruções que o livro do professor traz, além da seleção dos conteúdos feita por uma delas, já discutida na seção anterior.

Em um contexto tão complexo como esse, o livro do professor é um recurso central em suas práticas e pode representar o ponto onde o método e o pós-método convergem. Pode representar, também, a ponte entre o que as professoras precisam ou devem fazer e o que realmente fazem. É relevante considerar que, frente a suas formações superiores diversas, algumas sequer voltadas para a docência (Administração e Comércio Exterior), poderíamos problematizar as escolhas das professoras pela distância do livro didático, uma vez que poderiam não ter clareza sobre as concepções que as levam a buscá-la. Nesse sentido, Tardif (2002) nos ajuda a pensar que os saberes experienciais, essencialmente heterogêneos, intrínsecos ao cotidiano da profissão e não sistematizados em teorias, também são relevantes quando se trata de práticas pedagógicas. Além disso, o mesmo autor explica que os saberes da teoria não são invalidados pela prática, tampouco são mais importantes que elas. Para ele, existe um processo de retroalimentação conforme os professores constituem seus saberes no exercício da sala de aula. Portanto, tudo que aprendem nas suas formações não é invalidado, muito pelo contrário ( TARDIF, 2002 ). Tardif (2002) afirma que o que é aprendido na teoria se ressignifica na prática. Em outras palavras, mesmo sem formação para tal contexto, as práticas pedagógicas e a autonomia desenvolvida assincronamente têm valor e podem, inclusive, orientar discussões sobre formação docente para essa modalidade de ensino.

Os aspectos discutidos nessas duas seções se revelam como botes salva-vidas das professoras que chegam para atuar no contexto com suas formações iniciais diversas. O modo como os aspectos apareceram na fala das professoras nos levou a uma percepção de que a autonomia docente existe, mesmo na ausência de formação específica para o bilíngue. Tendo em vista que essas professoras não são preparadas formalmente para trabalharem com crianças em inglês (ou sequer para trabalharem com crianças), há um jogo entre o que a instituição espera que façam nas suas práticas e o que elas querem fazer porque acham mais adequado quando analisam seu convívio com os alunos. O olhar para sua autonomia pode indicar caminhos e potencialidades, e parece ser na ação pedagógica que residem as respostas. Portanto, não está somente no que é feito, em si, mas no que está no entrelugar entre o proposto e o realizável.

Finalizamos esta seção indicando que fizemos inferências a respeito do papel do livro do professor, do planejamento e das escolhas das professoras no que se refere às suas práticas pedagógicas. Na próxima seção, abordaremos nossas últimas considerações a respeito da ação docente e da autonomia do professor que trabalha no contexto de ensino bilíngue.

Últimos entrelaçamentos

Percebemos que as professoras do contexto de ensino bilíngue vivem intensamente seus cotidianos e utilizam os recursos disponíveis dentro do que é esperado delas e dos objetivos que devem cumprir. Buscamos aqui atribuir sentido ao que vivem e ao modo como lidam com os desafios que se apresentam cotidianamente.

Em face ao que discutimos, reiteramos que, mesmo que os manuais não tragam a autonomia das professoras como uma prioridade, há um protagonismo por parte delas que se revela pelas escolhas que fazem no que tange a suas práticas pedagógicas. Apesar de o currículo e os conteúdos serem determinados, e a instituição definir como devem desempenhar suas práticas, seu protagonismo se desvela na medida que escolhem seguir ou não as orientações dadas pela escola.

Suas tomadas de decisão na busca por adequar sua ação ao que o livro do professor preconiza e ao que a gestão pede são o que evidenciam sua presença como professoras bilíngues, e não como instrutoras de língua adicional. Mesmo entre as forças que influenciam suas práticas, as professoras se colocam como protagonistas de seus cotidianos. Pudemos perceber que essa transgressão não acontece no vazio. Ela é resultado de percepções das professoras em relação ao que funciona ou não com suas turmas. Portanto, percebemos que existe autonomia das professoras para decidir que caminho seguir para atingir as expectativas da instituição.

Enfatizamos que, apesar de cada uma das professoras possuir uma formação superior inicial distinta, e nenhuma delas ter sido formalmente preparada para o contexto no qual atua, suas práticas pedagógicas acontecem e podem ser significativas. Suas escolhas não devem ser desvalorizadas e muito menos seu protagonismo deve ser apagado pela ausência de uma formação específica para o contexto em questão. Pelo contrário: seu fazer docente desenvolvido em meio a tantas forças aparentemente desfavoráveis deve ser exaltado e suas trajetórias de conquistas cotidianas merecem atenção e análise.

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3- Referimo-nos aos professores usando o gênero feminino levando em conta que todas as participantes eram mulheres.

4- Frisamos que entendemos “métodos” e “técnicas” como conceitos distintos entre si. Temos consciência de que não são sinônimos. Neste recorte, porém, ambos apontam para as práticas pedagógicas, que é o que nos interessa..

5- As escolas e personagens citadas aqui tiveram seus nomes omitidos e/ou trocados para preservação de identidades e instituições. O projeto que deu origem às informações analisadas foi aprovado em julho de 2019 pelo Comitê de Ética da universidade pela qual a pesquisa foi desenvolvida. O número do parecer é 3.353.870.

6- A justificativa dada pela coordenação a respeito da impossibilidade de acesso ao PPP relacionou-se ao início da pandemia de Covid-19 e à virtualização das aulas. A gestão não tinha condições de nos auxiliar naquele momento.

Recebido: 13 de Dezembro de 2020; Revisado: 11 de Fevereiro de 2021; Aceito: 07 de Abril de 2021

Luana Mayer é doutoranda em linguística aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestre em educação pela Universidade da Região de Joinville (Univille).

Rosana Mara Koerner é mestre e doutora em linguística aplicada pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É professora do curso de Letras, do curso de Pedagogia, do curso de Educação Escolar Quilombola e do Mestrado em Educação da Universidade da Região de Joinville (Univille).

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