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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 04-Nov-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248246037por 

Artigos

Modos de conceituar e investigar a identidade profissional docente nas revisões de literatura

1- Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil

2Instituto Federal de Ciência e Tecnologia de São Paulo, Caraguatatuba, São Paulo, Brasil. Contato: c210337@dac.unicamp.br

2- Universidade de Sorocaba, Sorocaba, São Paulo, Brasil. Contato: ana.losano@prof.uniso.br

3- Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo, Brasil. Contato: dariof@unicamp.br


Resumo

Diversos estudos que revisaram a literatura nacional e internacional sobre identidade de estudantes e professores foram realizados nos últimos cinco anos para analisar como pesquisadores do campo da educação matemática têm usado este conceito. Neste artigo, realizou-se uma revisão sistemática do tipo metassíntese das cinco principais revisões de literatura sobre este tema publicadas nas duas últimas décadas, dentro e fora do Brasil. Seu objetivo é compreender e discutir múltiplas perspectivas e conceitualizações da identidade profissional docente e suas implicações para a pesquisa desta área de investigação. O processo de revisão de revisões sistemáticas deu-se mediante fichamento e síntese interpretativa de cada estudo para, ao final, discutir e elaborar uma síntese integrativa das sínteses interpretativas produzidas. Os resultados evidenciam que conceitualizações de identidade se desenvolveram em um movimento pendular que oscila entre as dimensões do sujeito e do contexto social e caminham em direção à inter-relação entre elas. Foram apontados problemas teórico-metodológicos em pesquisas da área que ainda constituem um desafio à construção de conceitualizações mais operacionais. Entende-se que conceituar identidade de forma consistente e operacional quanto às perspectivas assumidas e às metodologias de análise desenvolvidas é um caminho em construção e um desafio a ser enfrentado pelo campo de estudo da identidade profissional. O estudo dos múltiplos modos de conceituar e investigar a identidade, além de problematizar uma questão epistemológica importante, fornece lentes ou ferramentas teóricas úteis para analisar e compreender a complexidade de quem é e como se constitui o professor que atua nas escolas, sobretudo o de matemática.

Palavras-Chave: Identidade; Revisão de literatura; Professor de matemática

Abstract

Several studies that reviewed the national and international literature on the identity of students and teachers have been conducted over the last five years to analyze how researchers in the field of mathematics education have used such a concept. This article has made a systematic meta-synthesis review of the five most relevant literature reviews on this topic published in the last two decades inside and outside Brazil. Its objective is to understand and discuss multiple perspectives and conceptualizations of teachers’ professional identity, along with its implications for research in this area of investigation. The reviewing process of systematic reviews occurred by recording and interpreting each study to eventually discuss and elaborate an integrative synthesis of the final interpretative syntheses. The results reveal that identity conceptualizations have developed in a pendulum movement that oscillates between the dimensions of the subject and its social context, moving towards an interrelation. Research on the area identified theoretical-methodological problems, which still represent a challenge to formulate more operational conceptualizations. Furthermore, in terms of assumed perspectives and the methodologies of developing analysis, defining the concept of identity consistently and operationally is a path under construction and a challenge to be faced by the professional identity field of study. The study of multiple ways of conceptualizing and investigating identity, besides problematizing an important epistemological issue, provides relevant theoretical lenses or tools to analyze and understand the complexity of who and how teachers that work at schools are, particularly in the field of mathematics.

Key words: Identity; Literature review; Mathematics teacher

Introdução

Há mais de vinte anos pesquisadores da educação matemática investigam como professores entendem e realizam o trabalho de ensinar matemática. Essa questão foi abordada em diferentes perspectivas, sendo as principais aquelas que têm como foco de estudo o conhecimento, as crenças e a identidade do professor (SKOTT, 2013). Em busca de novas compreensões, alguns pesquisadores mudaram o foco das suas pesquisas empregando perspectivas mais dinâmicas, participativas ou interacionistas para investigar o professor e sua prática (SKOTT; MOSVOLD; SAKONIDIS, 2018). Tal mudança deu origem ao que Lerman (2000) chamou de “virada social”, na qual ganharam força perspectivas socioculturais que destacam a atividade social como produtora de significados, pensamentos e raciocínios. Nesse novo cenário, a identidade profissional do professor emerge como uma nova perspectiva investigativa que pode contribuir para compreender como o professor se constitui e se transforma profissionalmente em diferentes contextos sociais e culturais.

Desde então, a quantidade de artigos que utilizam a noção de identidade aumentou significativamente (DARRAGH, 2016; GRAVEN; HEYD-METZUYANIM, 2019; LOSANO; FIORENTINI, 2018). Ao longo desse período, foram engendradas muitas conceitualizações de identidade profissional fundamentadas em diferentes referenciais teóricos, abrindo-se múltiplas possibilidades para compreender a complexa articulação entre a dimensão individual do professor e o contexto sociocultural no qual sua prática se desenvolve. Ainda que a existência de diversas perspectivas para concebê-la possa trazer alguns desafios teóricos e metodológicos a serem enfrentados (DARRAGH, 2016, LUTOVAC; KAASILA, 2018; GRAVEN; HEYD-METZUYANIM, 2019), entendemos que essa natureza múltipla faz da identidade profissional uma ferramenta teórica potente para investigar diferentes problemáticas envolvendo o professor e suas práticas. Nessa direção, ela tem sido utilizada para abordar diferentes situações tais como: questões de equidade, acesso e exclusão de professores em processo de formação (HOSSAIN; MENDICK; ADLER, 2013); para analisar e compreender como se negociam diferentes discursos do que é ser “bom professor” em tempos de reforma (CHRONAKI; MATOS, 2014); para discutir as relações entre as aprendizagens docentes em iniciativas formativas e os dilemas para atualizá-las em sala de aula (BATTEY; FRANKE, 2008; LOSANO; FIORENTINI, 2020; LOSANO; FIORENTINI, 2021); ou, ainda, para compreender a constituição do professor em um cenário de lutas ideológicas e políticas relacionadas às adversidades e vulnerabilidades vivenciadas no exercício da profissão (DE PAULA; CYRINO, 2019).

A diversidade de temáticas exploradas e investigadas, tendo por base a noção de identidade, bem como a multiplicidade de abordagens teóricas adotadas, justificam a realização de revisões sistemáticas desses estudos e de produção de sínteses integrativas dessas contribuições, de maneira a compreender os avanços, as potencialidades e as limitações deste campo de pesquisa. Assim, neste estudo, pretendemos compreender e discutir diferentes conceitualizações de identidade profissional do professor no campo da educação matemática e suas implicações para a pesquisa dessa área de investigação. Para isso, optamos por realizar uma revisão sistemática, do tipo metassíntese, de revisões de literatura sobre a identidade profissional do professor de matemática.

Encaminhamento metodológico

Com este propósito, realizamos uma metassíntese (FIORENTINI; CRECCI, 2017; GEPFPM, 2018) de cinco importantes revisões de literatura que examinaram diversas perspectivas empregadas para conceituar e investigar a identidade. Com esta base, discutimos as direções assumidas pela pesquisa deste campo investigativo e a projeção de novas possibilidades de investigação.

Fiorentini e Crecci (2017) e Gepfpm (2018), apoiados em Godfrey e Denby (2006), entendem que a metassíntese de pesquisas consiste, primeiramente, na produção de evidências qualitativas que são extraídas de cada pesquisa analisada acerca de um problema, fenômeno ou foco de estudo para, a seguir, serem relacionadas, confrontadas ou contrastadas, produzindo outras interpretações que permitem, ao final, compor uma síntese integrativa dessas interpretações. A metassíntese, desse modo, “representa uma tentativa sistemática e rigorosa de realização de leituras de segunda ordem acerca das interpretações encontradas nos estudos qualitativos de primeira ordem” (GEPFPM, 2018, p. 247). Isso permite produzir uma maior compreensão conceitual e teórico-metodológica acerca de um tema, fenômeno ou campo de investigação, obtendo, como resultado, uma síntese integrativa que vai além daquela produzida pelos estudos precedentes.

Assim, o processo de metassíntese realizado consistiu, primeiramente, na realização de um levantamento de estudos de revisões sistemáticas nacionais e internacionais sobre identidade do professor desde uma perspectiva mais geral até uma mais específica (relativa aos professores que ensinam matemática) para, a partir delas, selecionar um corpus mais restrito e representativo de estudos de revisão relativos à identidade do professor. Em seguida, cada um desses estudos passou por um processo de revisão sistemática mediante realização de fichamentos e elaboração de uma síntese interpretativa de cada estudo de revisão para, ao final, discutir e elaborar uma síntese integrativa dessas sínteses interpretativas de primeira ordem.

Para compor o corpus de nossa metassíntese, selecionamos quatro estudos internacionais e um nacional, de modo a contemplar um amplo período de publicações (1988 a 2019). Iniciamos com o estudo pioneiro de Beijaard, Meijer e Verloop (2004) que evidenciou a importância e potencialidade de se explorar o tema da identidade na pesquisa sobre o professor.

A fim de compreender a evolução histórica das pesquisas sobre identidade, ao longo dos últimos 20 anos, no cenário internacional, selecionamos para exame, as revisões de Darragh (2016), Lutovac e Kaasila (2018) e Graven e Heyd-Metzuyanim (2019). Cada um destes estudos discutiu diferentes perspectivas e modos de conceituar identidade, apontando limitações e avanços na construção e utilização dessas conceitualizações.

Com o objetivo de situar a pesquisa nacional sobre identidade profissional de professores que ensinam matemática (PEM) no cenário da educação matemática, tomamos por referência o trabalho de De Paula e Cyrino (2018). Neste estudo, foram discutidos os polos teóricos e epistemológicos presentes em dissertações e teses brasileiras sobre Identidade do PEM, defendidas no Brasil no período 2006-2016.

O trabalho analítico e interpretativo iniciou com uma leitura flutuante das cinco revisões. A seguir, foram identificadas e fichadas as principais características e resultados de cada revisão. Assim, para cada revisão identificamos, na primeira fase: o período de publicação considerado; a quantidade de estudos analisados; as fontes e os critérios de seleção do corpus analítico de cada revisão; o idioma de publicação dos artigos examinados; e o modo como cada revisão agrupou ou categorizou os estudos revisados, examinando se as pesquisas revisadas abordavam apenas a identidade de professores ou também de estudantes. Ao finalizar cada revisão produzimos uma síntese interpretativa, contendo os principais resultados de cada revisão e o posicionamento dos autores da revisão sobre as diferentes conceitualizações encontradas nas pesquisas revisadas.

A fim de compreender melhor as diferentes perspectivas que as pesquisas sobre identidade podem assumir, empreendemos uma segunda fase analítico-interpretativa, na qual fizemos uma síntese interpretativa da concepção de identidade colocada em destaque pelos autores de cada revisão sistemática analisada.

O restante do artigo é organizado da seguinte maneira: na próxima seção, apresentamos as sínteses interpretativas das cinco revisões; e dedicamos a última seção à realização da metassíntese, momento em que discutimos os resultados encontrados e produzimos uma síntese integrativa das sínteses interpretativas acerca dos múltiplos modos de conceituar e investigar a identidade profissional do professor.

O que revelam as principais revisões de literatura dos últimos vinte anos sobre identidade no campo da educação matemática?

A revisão que primeiro evidenciou a importância e a potencialidade do estudo da identidade profissional para investigar o professor

Beijaard, Meijer e Verloop (2004) realizaram uma revisão de literatura na área da Educação, abrangendo pesquisas desenvolvidas sobre a identidade profissional do professor publicadas entre 1988 e 2000. Os autores pesquisaram o termo “Professional identity” no título e/ou como descritor principal nos bancos de dados vinculados ao site “Web of Science” e no banco de dados ERIC4. Desta busca resultaram vinte e dois artigos, todos escritos em língua inglesa, que foram analisados sob os seguintes aspectos: objetivos do estudo; definição de identidade profissional assumida; conceitos relacionados a essa definição; metodologia desenvolvida pelo estudo; e seus principais resultados.

Esses artigos foram divididos em três categorias, considerando-se o foco de estudo investigado, a saber: formação da identidade profissional do professor; identificação de características da identidade profissional do professor; identidade profissional evidenciada pelas/nas histórias contadas e escritas pelos professores.

Os autores concluem que a maioria dos estudos tem conceituações distintas de identidade, ou simplesmente não a conceituam. Pontuam serem frequentes os estudos que confundem conceitos próximos ao de identidade, utilizando-os como se fossem idênticos, quando a literatura os aponta como distintos. Este é o caso de alguns estudos revisados que usam, indistintamente, os termos “eu” e “identidade”, sem esclarecer como esses termos relacionam-se conceitualmente.

Beijaard, Meijer e Verloop (2004) finalizam a revisão sugerindo aos pesquisadores que busquem, em seus artigos, uma maior clareza conceitual para identidade profissional. Além disso, apontam para a potencialidade do estudo das relações entre as histórias individuais contadas por professores e suas identidades como um caminho frutífero para sustentar teórico-metodologicamente futuras pesquisas sobre a identidade profissional do professor. Ressaltaram também que, nos estudos nos quais a identidade e as narrativas individuais estão relacionadas, o contexto social tem relevância na constituição da identidade dos professores. Os autores, portanto, reconhecem a narrativa como um importante recurso para análise e compreensão da identidade.

Ao elaborar uma síntese interpretativa da perspectiva narrativa sobre identidade desta revisão, podemos afirmar que, para Beijaard, Meijer e Verloop (2004), a identidade profissional do(a) professor(a) é concebida como tendo um núcleo central, mais ou menos coerente, constituído por subidentidades que se harmonizam em alguma medida. Sobre as relações estabelecidas pelas subidentidades, os autores destacam que,

Algumas dessas subidentidades podem estar amplamente vinculadas e podem ser vistas como o núcleo da identidade profissional dos professores, enquanto outras podem ser mais periféricas. Parece ser essencial para um professor que essas subidentidades não entrem em conflito, ou seja, que sejam bem equilibradas. (BEIJAARD; MEIJER; VERLOOP, 2004, p. 122, tradução nossa).

O caminho para a harmonização destas subidentidades é visto como algo conveniente e esse núcleo seria tecido a partir das experiências vividas e conhecimentos práticos pessoalmente construídos pelo(a) professor(a) em diferentes tempos e espaços profissionais dos quais faz e fez parte ao longo da vida.

O pesquisador que assume essa perspectiva entende que, ao explorar os enredos que um(a) professor(a) investigado(a) constrói para compor suas narrativas, consegue acessar esse núcleo central da identidade profissional do(a) professor(a), bem como os aspectos mais periféricos dela. Fica entendido que, ao recontar e reviver suas histórias profissionais, esse(a) professor(a) reflete sobre elas e reconstrói, de forma situada no tempo e espaço, o seu conhecimento prático profissional, reformando sua identidade por meio da integração do que, individual e coletivamente, é considerado um bom ensino (BEIJAARD; MEIJER; VERLOOP, 2004). Dessas narrativas, podem emergir compreensões sobre os modos como um(a) professor(a) explica e justifica suas relações consigo mesmo(a) e com os vários personagens (pais, alunos, diretores, formadores) presentes nos diversos cenários profissionais dos quais participa: escolas; grupos de formação continuada, entre outros. Por outro lado, ao assumir essa perspectiva, as análises se fundamentam nas histórias que o(a) professor(a) conta, deixando, em segundo plano, dados que não se constituem em narrativas, como, por exemplo, as discussões e diálogos com seus alunos, colegas ou formadores. Nessa direção, é preciso considerar que tais episódios podem ficar ausentes das narrativas relatadas pelo(a) professor(a) ou serem reconstruídos de modo a ocultar aspectos da sua identidade profissional, caso ele ou ela não se identifique, ou não queira ser identificado(a), com os modos de ser professor(a) evidenciados nos episódios de atuação profissional.

A revisão de literatura que aborda conjuntamente identidade de estudantes e de professores que ensinam matemática

Tendo como foco a educação matemática, Darragh (2016) fez uma revisão de estudos publicados em inglês no período de 1997 a 2014 e que tratavam da identidade de estudantes e de professores que ensinam matemática. A autora pesquisou cinco bancos de dados da área da Educação, a saber, Education Sage Full Text Journal Collection, Education Research Complete (EBSCO host), ERIC, JSTOR, e ProQuest Education Journals. Utilizou os termos “Mathematics”, “Education” e “Identity” na busca realizada em cada um dos cinco bancos de dados. Após leitura do título e do resumo, selecionou 188 artigos para compor o corpus analítico da revisão.

Darragh (2016) analisou a definição de identidade presente em cada estudo e seus fundamentos teóricos. A autora encontrou cinco categorias que caracterizam os modos de definir a identidade nos estudos que revisou, mas sem fazer distinção entre identidade de estudantes e de professores: participativa; narrativa; discursiva; psicanalítica; e performativa. Observou que alguns artigos não assumiam ou não adotavam claramente uma definição de identidade, embora tivessem revisto as definições de outros autores.

Dentre aqueles que assumiram uma conceitualização para a identidade, predominou a utilização de perspectivas teóricas provenientes de campos externos à educação matemática e à educação, principalmente Lave e Wenger (1991) e Wenger (1998), seguidos por Holland et al. (1998) e Gee (2000). Dentro da área da educação matemática, o trabalho de Sfard e Prusak (2005) foi o mais citado pelos estudos revisados. Ademais, a autora constatou imprecisões e incoerências teórico-metodológicas nos trabalhos como, por exemplo, a existência de artigos que assumiam uma conceituação de identidade dentro de um quadro sociológico, mas mobilizavam procedimentos analíticos vinculados a uma perspectiva psicológica da identidade.

Em sua revisão, Darragh (2016) defendeu uma conceitualização sociológica e performática para a identidade. Para ela, a identidade não é algo que está dentro de nós e sim algo que fazemos (identidade como ação). Quando contamos histórias, nos reunimos em grupos, agimos de forma particular em determinado momento, ou posicionamos a nós mesmos e a outros por meio de discursos, encenamos nossas identidades para audiências específicas. Tais audiências podem, ou não, nos reconhecer como desejamos ser reconhecidos. Assim, as identidades são o resultado de processos de autoidentificação ou de identificação por outros. Reconhecer a identidade como uma performance que pode ou não ser reconhecida como desejado é apontada, ainda, por Darragh (2016), como uma direção útil e promissora para futuros estudos.

Fazendo uma síntese interpretativa da concepção sociológica e performática de identidade de Darragh (2016) e de como investigá-la, podemos afirmar que esta perspectiva se afasta da ideia da existência de uma identidade com um núcleo central ou essencial que se constitui ao longo da vida profissional de um(a) professor(a), para assumir a existência de múltiplas identidades que se evidenciam em momentos específicos quando o(a) professor(a) atua profissionalmente nos diferentes contextos educacionais e formativos dos quais participa. Desde essa perspectiva, é possível interpretar as encenações dos seus diversos “eus – professor(a)” com foco no momento em que esteja atuando em suas aulas, fazendo negociações com seus alunos e gestores e com outros participantes do contexto escolar, sem que necessariamente nos conte essas histórias.

Nesse sentido, é importante que o pesquisador, ao investigar a identidade de um professor, faça registros em áudio e vídeo da prática profissional do professor e selecione diálogos e atuações em aula ou junto à comunidade profissional da qual participa, priorizando momentos de negociação. Isso permite ao pesquisador ter acesso às diferentes identidades “encenadas” no momento em que age como professor(a). Do ponto de vista sociológico, o pesquisador pode identificar, analisar e compreender as relações de poder que perpassam os diversos momentos de atuação e como o(a) professor(a) acolhe, incorpora ou rejeita a forma como é reconhecido(a) e posicionado(a) como professor(a), em sua escola ou no grupo profissional e/ou investigativo do qual participa, evidenciando sua identidade profissional assumida em uma perspectiva performática.

A revisão de literatura centrada nas identidades de professores de matemática

O estudo desenvolvido por Lutovac e Kaasila (2018) situa-se na área da educação matemática e tem como foco exclusivo as identidades de professores de matemática. Para a seleção dos artigos foram examinados estudos publicados em periódicos acadêmicos nos domínios da matemática e da formação de professores, sendo realizadas pesquisas com as palavras-chave “Identity”, “Mathematics” e “Teacher” nos bancos de dados Education and Social Sciences e ERIC (ProQuest). Foram selecionados 40 artigos revisados por pares, escritos em inglês, e publicados no período 2000 - 2015.

Lutovac e Kaasila (2018) reconheceram seis temas centrais sobre a identidade do professor: os modelos teóricos e o que constitui a identidade; os fatores contextuais na identidade e o seu desenvolvimento; o desenvolvimento da identidade na formação inicial e/ou continuada; as relações afetivas com a matemática e as mudanças na identidade do professor; os estudos pós-estruturais e as questões de poder, justiça social, discursos de gênero e raça na identidade; e a ligação entre a identidade e a prática de ensino.

Os autores encontraram múltiplas definições de identidade que variam de acordo com os referenciais teóricos adotados. Observaram, porém, que todos esses estudos apresentavam, ao menos, uma conceitualização operacional (SFARD, PRUSAK, 2005) para identidade. Constataram, além disso, que a maioria dessas conceitualizações foi emprestada de outros campos de pesquisa e fundamentadas em teorias já estabelecidas tais como Aprendizagem Situada de Lave e Wenger (1991), Comunidades de Prática de Wenger (1998) ou os trabalhos de Foucault sobre discurso, conhecimento e poder. Encontraram estudos que abordavam os indivíduos como contadores de histórias, sendo suas identidades constituídas por estas histórias ou definidas por elas. Nas conclusões, Lutovac e Kaasila (2018) sugerem que pesquisadores da educação matemática incorporem, com mais frequência, teorias do domínio da Educação em suas pesquisas, evitando assim o isolamento deste campo de pesquisa.

Embora Lutovac e Kaasila (2018) admitam que as identidades do professor sejam moldadas pelo contexto social, eles ressaltam a importância do afeto e das emoções relacionadas à matemática na constituição da identidade do professor. Nessa direção, argumentam que perspectivas socioculturais e pós-estruturalistas concentram-se nas estruturas sociais, deixando em segundo plano o mundo interior do participante. Assim, eles recomendam que se assuma uma perspectiva teórica psicossocial mais equilibrada na conceitualização da identidade, perspectiva esta que pode ser reconhecida em muitos dos seus estudos. Por exemplo, Kaasila, Hannula e Laine (2012) argumentam que a forma como as pessoas se posicionam socialmente, ou são posicionadas, influencia o modo pelo qual expressam, ou não, suas emoções. Lutovac e Kaasila (2018) sustentam que as pesquisas que relacionam o afeto e a cognição à identidade, podem fornecer compreensões mais amplas da identidade, vinculando-a à aprendizagem e ao ensino.

Em uma síntese interpretativa da perspectiva de identidade de um(a) professor(a) de matemática assumida por Lutovac e Kaasila (2018), e de como investigá-la, podemos destacar que o pesquisador precisa reunir narrativas de múltiplas experiências profissionais desse(a) professor(a) de modo a evidenciar e compreender suas diferentes identidades constituídas em suas histórias, considerando o contexto e os interlocutores presentes em cada trama narrada. De uma história sobre uma relação conflituosa de um docente com a matemática formal, contada em uma entrevista narrativa para um pesquisador, pode emergir uma identidade matemática (KAASILA, 2007) associada a ações de superação e a emoções positivas. No entanto, a mesma história contada a professores participantes do seu grupo de formação pode evidenciar outra identidade, associada a emoções negativas e ações de distanciamento desta matemática. Nesta perspectiva, identidades diferentes podem surgir de situações diversas, e um(a) mesmo(a) professor(a) pode ter muitas identidades narrativas, sendo cada uma delas conectada a diferentes contextos ou relações sociais (KAASILA; HANNULA; LAINE, 2012). Identidades são entendidas como formas de argumentação e modos de posicionamento (KAASILA; HANNULA; LAINE, 2012) sendo, portanto, algo que o professor(a) usa e não algo que ele ou ela tenha dentro de si.

Tendências atuais da pesquisa internacional sobre identidades de estudantes e professores de matemática em revisões de literatura

No campo da educação matemática, Graven e Heyd-Metzuyanim (2019) realizaram uma revisão das revisões de literatura publicadas sobre identidade nos últimos três anos (2016-2018). O corpus analítico deste estudo é composto por revisões5 que tratam tanto da identidade de professores como de estudantes de matemática. As descobertas e críticas comuns apontadas por essas revisões foram resumidas e comparadas aos resultados de 47 estudos recentes (2014-2018), visando estabelecer a tendência atual da pesquisa neste campo. Os artigos, escritos em inglês, tratavam da identidade de aprendizes e/ou de professores de matemática. Para selecioná-los foi usada a palavra identi* em diversos campos em uma busca feita em vinte principais periódicos revisados por pares, nos bancos de dados Academic Search Premier e ERIC.

Graven e Heyd-Metzuyanim (2019) analisaram os artigos considerando duas dimensões: a quantitativa (estatística) e a qualitativa. Estatísticas descritivas sobre localização regional dos estudos; sobre o objeto do estudo (identidade de professores ou de estudantes); sobre os métodos e tamanho das amostras, foram realizadas e comparadas com as das outras revisões discutidas. Utilizaram uma abordagem qualitativa para agrupar os artigos e analisá-los e discuti-los quanto: às referências teóricas utilizadas; às definições de identidade e aos modos de operacionalizá-las; à presença/ausência de objetos matemáticos nos estudos; aos “Colapsos Ontológicos”6; e aos objetivos e funções para o uso do conceito de identidade.

Graven e Heyd-Metzuyanim (2019) identificaram, ainda, um predomínio dos quadros socioculturais para estudar a identidade tanto de alunos quanto de professores e a prevalência de estudos empíricos sobre os estudos teóricos. Verificaram que Holland et al. (1998), Sfard e Prusak (2005), Lave e Wenger (1991) e Wenger (1998) fundamentavam teoricamente a maioria dos estudos revisados. Também constataram que a imprecisão e a incoerência conceituais continuavam presentes nos estudos sobre identidade de estudantes e professores, apesar de pontuarem alguns avanços. Observaram que artigos publicados nos últimos cinco anos já continham definições explícitas de identidade. Esse avanço abre caminho para um novo desafio: a operacionalização de tais definições. Nessa direção, Graven e Heyd-Metzuyanim (2019) defendem que o pesquisador deve, além de indicar o que entende por identidade, explicitar como esta compreensão de identidade será estudada e tratada analítica e empiricamente.

Graven e Heyd-Metzuyanim (2019) mostram-se mais próximos a estudos que usem conceitualizações narrativas onde a identidade é entendida como uma ação discursiva, nos moldes de Sfard e Prusak (2005). Nestes, a coerência dos resultados relaciona-se com uma análise focada na narrativa em si e sua estrutura.

Ao fazer uma síntese interpretativa da perspectiva narrativa de identidade evidenciada por Graven e Heyd-Metzuyanim (2019) e de como investigar a identidade de um(a) professor(a), entendemos que as falas deste(a) professor(a) sobre suas experiências em diferentes contextos e contadas a diferentes audiências expressam suas identidades. Coleções de histórias da sua vida de aprendiz de matemática na formação inicial, ou de professor(a) que experimenta novas práticas investigativas nas aulas ou grupo de formação, podem expressar aspectos de suas múltiplas identidades. Quando agrupadas e significadas pelo pesquisador, elas podem dizer do seu modo de ser aprendiz de matemática, de ser investigativo(a) ou de ser professor(a)-pesquisador(a). Compreender as estruturas das histórias em contextos diferentes - uma entrevista ou uma discussão vídeo-gravada de uma reunião do grupo colaborativo - é um caminho possível para evidenciar as identidades. Nesta perspectiva, é importante analisar do que, sobre quem e para quem este(a) professor(a) fala, e porque se expressa de determinado modo em cada um desses contextos. A identidade é vista como uma ação discursiva (SFARD; PRUSAK, 2005), portanto, recursos linguísticos e discursivos observados podem ser úteis para compreendê-la. Por outro lado, permanecem, em segundo plano, as interpretações do pesquisador sobre interações observadas e não faladas pelo(a) professor(a) ou outros envolvidos.

A revisão de pesquisas brasileiras sobre identidade profissional de professores que ensinam matemática

De Paula e Cyrino (2018) objetivaram analisar os polos teóricos e epistemológicos7 subjacentes às teses e dissertações brasileiras que se propuseram a investigar a identidade profissional do PEM, publicadas no período de 2006-2016.

A definição do corpus da análise foi realizada em duas etapas. A primeira, quando 858 dissertações e teses que envolviam PEM foram examinadas pelos autores. Da leitura dos seus resumos, foram selecionados 15 estudos publicados no período de 2006 a 2012. Na segunda etapa, o recorte temporal foi ampliado até o ano de 2016, quando foi feito um novo levantamento junto ao Banco de Teses da Capes, utilizando “identidade profissional” como descritor de busca para o período de 2013 a 2016. Foram encontrados mais 9 estudos, totalizando 24 trabalhos, todos escritos em português e que passaram a constituir o corpus de análise do estudo de revisão.

Inicialmente os trabalhos foram organizados em sete categorias, a saber: condições de trabalho do PEM; políticas públicas, programas ou projetos de fomento; contextos diferenciados de formação docente; comunidade de prática ou grupos de estudo; formação inicial do PEM e práticas pedagógicas; formação do PEM na modalidade a distância; e PEM como abordagem secundária. Em uma segunda análise, os estudos foram agrupados de acordo com as escolhas teóricas dos seus autores. A maioria das pesquisas fundamentou-se nos trabalhos de Claude Dubar, seguidos de Selma Pimenta e Stuart Hall (DE PAULA; CYRINO, 2018). Os autores encontraram quatro perspectivas epistemológicas para identidade profissional do PEM: sociológica, cultural, psicológica/psicanalítica e generalista, não sendo elas mutuamente excludentes.

Quanto aos referenciais teóricos utilizados, observaram que a maioria era externo ao campo da educação matemática, cabendo a cada pesquisador fazer as aproximações necessárias para discutir a identidade desses professores. Observaram que poucos estudos publicados em língua estrangeira foram utilizados como suporte teórico para as pesquisas brasileiras. Os autores concluíram que são escassos os estudos nacionais que discutem especificamente a identidade do PEM e sugerem a ampliação de discussões teóricas direcionadas à caracterização específica desta identidade profissional. Destacaram que, em geral, quando os estudos analisados apresentam sua fundamentação teórica a respeito da identidade profissional do professor, são mencionadas diferentes perspectivas desta identidade sem que o pesquisador se posicione ou indique a escolha/adoção de um referencial específico.

De Paula e Cyrino (2018) compreendem a identidade profissional do PEM como “um movimento que se dá em vista de um conjunto de crenças e concepções interconectadas ao autoconhecimento e aos conhecimentos a respeito de sua profissão, associado à autonomia (vulnerabilidade e sentido de agência) e ao compromisso político” (DE PAULA; CYRINO, 2019, p. 637). Como decorrência, admitem a complexidade, a dinamicidade, a temporalidade e a experiencialidade como aspectos qualificadores dos movimentos de constituição desta identidade profissional (DE PAULA, CYRINO, 2019).

Fazendo uma síntese interpretativa da perspectiva de identidade assumida por De Paula e Cyrino (2019) em seus estudos e de como investigá-la, podemos afirmar que a identidade do professor(a) pode ser vista como mutável, em um movimento de constituição permanente, e associada aos modos dele ou dela lidar com as possibilidades e impossibilidades que experimenta na sua profissão. As suas compreensões - construídas a partir de crenças e concepções, bem como do que conhece de si mesmo(a) e de outros - sobre o que é ser “um bom professor de matemática”, ganham destaque. Estas podem mudar a depender do contexto (grupo de formação, escola e sociedade) e do momento no qual vive suas experiências de ser professor(a) e participante de diferentes comunidades profissionais. Suas compreensões sobre possíveis modos de ser professor(a) de matemática (por exemplo: mediador; professor-pesquisador; comunicador do conhecimento, promotor de equidade social, e outros) em um dado contexto, podem constituir indícios do movimento de constituição da sua identidade, por exemplo, de professor-investigativo, professor-formador, professor-militante ou professor-tradicional. Ganham evidência os modos de participação nos diferentes grupos e os posicionamentos políticos e sociais.

Discussões e síntese integrativa

Com base na investigação apresentada neste artigo, pudemos observar que as perspectivas para conceituar identidade experimentaram um movimento pendular que parece oscilar entre o sujeito e os contextos socioculturais.

Observamos, também, que nos primeiros estudos sobre identidade do professor, prevaleciam perspectivas cognitivistas e biográficas que consideravam como única fonte de dados a voz do professor, expressa por meio de narrativas orais e escritas (BEIJAARD, MEIJER, VERLOOP, 2004). A ênfase incidia sobre os conhecimentos e compreensões pessoais que o professor tinha de suas práticas e de seu papel.

Com a “virada social” na pesquisa em educação matemática, as pesquisas sobre identidade assumiram uma nova tendência e as perspectivas socioculturais, para defini-la, passaram a predominar neste campo de pesquisa. As noções sobre Comunidades de Práticas (WENGER, 1998) e Aprendizagem Situada (LAVE; WENGER, 1991) foram assimiladas pelos pesquisadores e passaram a sustentar a maioria das investigações sobre identidade (DARRAGH, 2016; GRAVEN; HEYD-METZUYANIM, 2019). Os modos de constituição das identidades de professores e futuros professores por meio da participação e engajamento em grupos sociais (diferentes escolas, grupos de formação inicial e continuada) se tornaram objeto de estudo de vários pesquisadores (GRAVEN, 2004; GOOS; BENNISON, 2008; HORN et al., 2008; LOSANO; FIORENTINI, 2018; LOSANO; FIORENTINI, 2021). Perspectivas da identidade profissional baseadas em teorias pós-estruturalistas, utilizando-se principalmente das ideias de Foucault sobre o poder do discurso na construção do sujeito, foram bastante utilizadas para tratar as relações de poder e questões de equidade em contextos educacionais diversos (HOSSAIN; MENDICK; ADLER, 2013; WALSHAW, 2004). Aspectos da estrutura e contexto social no qual o professor atua, e suas relações com diversos atores do cenário educacional, passaram a ganhar presença nas pesquisas sobre identidade profissional.

Contudo, a percepção de que a constituição da identidade do professor vai além do papel que têm sua participação e sua interação com outros nos diferentes contextos educacionais, orientou novos entendimentos da identidade que complementassem os já existentes. O que o professor pensa e faz não é apenas resultado do contexto social no qual ele está inserido, mas também de seus movimentos interiores em direção aos seus objetivos particulares, às suas convicções sobre ensinar e aprender matemática, bem como de seus modos pessoais de lidar com as contingências impostas por este contexto social (BEIJAARD, MEIJER, VERLOOP, 2004; LOSANO, FIORENTINI, VILLARREAL, 2018). Suas compreensões da profissão orientam a sua prática e constituem sua identidade profissional. Perspectivas de identidade que considerassem dimensões pessoais e sociais do professor foram surgindo. Neste sentido, Lutovac e Kaasila (2018) reclamaram por estudos que apresentassem perspectivas psicossociais interrelacionadas, argumentando que não se pode negligenciar o indivíduo, deixando em segundo plano aquilo que o professor pensa, sente e quem ele é. Na mesma direção, Graven e Heyd-Metzuyanim (2019), ao constatarem, na sua revisão de literatura, a ausência de estudos com enfoques puramente psicológicos para tratar a identidade, assumem que a escolha unânime dos pesquisadores por perspectivas sociais pode deixar para trás percursos potencialmente elucidativos e produtivos. Nota-se, portanto, um novo movimento em direção à valorização de enfoques que tragam novamente à discussão da identidade o sujeito e seu mundo interior, mas sem negligenciar o papel e a força do contexto social.

Nessa perspectiva, consideramos que a conceitualização de identidade proposta por Holland et al. (1998) pode ser particularmente frutífera por contemplar essa interdependência dialética. Tal perspectiva assume que a identidade resulta de compreensões de si e dos modos de ser e atuar em diversos contextos e práticas. Portanto, a identidade é compreendida como uma noção com duas faces interrelacionadas, como vemos em Losano e Fiorentini (2018):

Por um lado, as identidades são sociais e, nesse sentido, elas são formas-chave pelas quais a vida coletiva é organizada, coordenada e controlada. Simultaneamente, as identidades são pessoais e, nesse outro sentido, elas são formas-chave pelas quais as pessoas organizam, coordenam e tentam controlar suas vidas cotidianas e suas experiências íntimas. Segundo [Holland], existe uma relação bidirecional entre estas duas faces: as identidades sociais tornam pública parte da atividade pessoal, e as identidades pessoais tornam íntimas as identidades sociais. (LOSANO, FIORENTINI, 2018, p. 5).

Podemos dizer que esta conceitualização procura estudar não como as pessoas vivem a história, mas como as pessoas fazem a história (HOLLAND, LAVE, 2009), o que é uma boa porta de entrada para analisar dialeticamente o professor enquanto indivíduo e a escola, bem como os espaços de formação, enquanto contextos socioculturais. Desde este ponto de vista, as autocompreensões não são entendidas apenas como uma construção pessoal e subjetiva, mas como sendo construídas socialmente e historicamente com outros participantes do mundo do ensino. A identidade do professor passa a ser vista como dialeticamente constituída na interface entre seu terreno íntimo e as práticas e discursos aos quais está exposto e condicionado (LOSANO, FIORENTINI, VILLARREAL, 2018).

Quanto à sua conceitualização, inicialmente os pesquisadores definiam a identidade profissional de diferentes formas, ou muitas vezes nem a definiam. Faltava clareza às definições enunciadas, e estudos que se diziam sobre identidade profissional, buscavam caracterizações gerais da identidade do professor ignorando a natureza dinâmica, processual e contextual da sua constituição. Tais estudos poderiam ser considerados sobre “características profissionais” e não sobre identidade profissional (BEIJAARD; MEIJER; VERLOOP, 2004). As crenças e conhecimentos pessoais sobre a prática profissional dos professores, expressos em suas narrativas biográficas, eram considerados centrais na constituição da sua identidade.

Após avanços quanto à necessidade de explicitar de forma clara como o pesquisador conceitualiza identidade, o foco de atenção passou a ser as questões teórico-metodológicas que perpassam o trabalho de investigação. A questão central deixou de ser se o pesquisador havia definido ou não identidade, mas de que modo a conceitualização de identidade definida era compatível (ou não) com os procedimentos de análise e discussão dos resultados (DARRAGH, 2016). Ainda são frequentes pesquisas que constroem definições demasiadamente amplas, com o intuito de contemplar a complexidade que envolve a identidade. Deste modo, fica difícil operacionalizá-las nos processos de análise dos dados e na discussão dos resultados (GRAVEN; HEYD-METZUYANIM, 2019). Por outro lado, existem definições que fogem desta complexidade, focando um determinado aspecto ou conceito associado mais operacional, mas que não trata especificamente da identidade. Podemos concluir, então, que é possível reconhecer avanços no campo da conceitualização da identidade, mas ainda temos o desafio de construir conceitualizações que sejam, analiticamente, mais operacionais.

Por sua vez, a metassíntese realizada mostra que algumas questões conceituais sobre a identidade ainda permanecem em discussão. Posições sobre se as crenças e concepções dos professores constituem ou não sua identidade profissional (SKOTT; MOSVOLD; SAKONIDIS, 2018), ou se devemos ou não incluir aspectos relacionados ao afeto e às emoções sobre a matemática, ao construir conceituações da identidade do professor, ainda dividem opiniões (DARRAGH, 2016; LUTOVAC; KAASILA, 2018).

Ademais, o nosso trabalho mostra que, no campo da educação matemática, a pesquisa sobre identidade profissional docente no Brasil apresenta aproximações e distanciamentos em relação ao cenário internacional, conforme destacamos nesse processo de revisão sistemática. Pesquisadores brasileiros e internacionais têm feito da pesquisa sobre a identidade do PEM um caminho para compreender melhor a formação inicial e continuada de professores e propor discussões que auxiliem na elaboração e melhoria das políticas públicas (DE PAULA; CYRINO, 2019). As dificuldades em conceituar e operacionalizar a identidade nos estudos nacionais são similares às discutidas nas pesquisas internacionais. Assim, são vários os estudos brasileiros que discutem a identidade do PEM sem apresentar/assumir uma compreensão/entendimento particular a respeito da mesma. Outros, embora explicitem as concepções de identidade assumidas, revelam-se incompatíveis com as perspectivas teóricas apresentadas para fundamentá-las (DE PAULA, CYRINO, 2018).

Nosso trabalho destaca que as pesquisas brasileiras se distanciam das demais, principalmente, quanto às perspectivas teóricas utilizadas e às temáticas de interesse. Segundo De Paula e Cyrino (2018), a maioria dos estudos brasileiros fundamenta suas conceitualizações de identidade profissional usando as ideias de Claude Dubar, Selma Pimenta e Stuart Hall. Tais referências teóricas não são frequentes em estudos internacionais sobre identidade no campo da educação matemática, e não foram evidenciadas por nenhuma das revisões examinadas. Na maior parte dos casos estão presentes em estudos que investigam a identidade profissional de forma geral e não a identidade de professores de matemática em específico (DE PAULA; CYRINO, 2019). As temáticas que são investigadas por meio da identidade profissional também se distanciam daquelas presentes na literatura internacional. A maioria dos trabalhos relaciona-se às condições, contingências, vulnerabilidades e desafios de exercer a profissão de professor que ensina matemática em nosso país. Ganham relevância as políticas públicas de formação inicial e continuada e questões sobre os movimentos de resistência a essas políticas (DE PAULA, CYRINO, 2019).

Os modos como se constitui essa identidade nesses cenários sócio-políticos prevalecem na pesquisa brasileira. Consideramos a hipótese de que as particularidades que adquirem a pesquisa sobre a identidade do PEM no Brasil poderiam enriquecer e ampliar os debates no âmbito internacional onde muitas pesquisas são desenvolvidas em contextos sociopolíticos completamente diferentes do contexto brasileiro ou latino-americano.

Na educação matemática as múltiplas conceitualizações de identidade profissional fundamentadas em diferentes perspectivas teóricas fazem da identidade uma ferramenta versátil para investigar como o professor atua e se constitui profissionalmente em diferentes contextos de prática. Mas, como vimos nesta revisão sistemática, esta multiplicidade pode trazer problemas.

Reconhecemos que conceitualizações de identidade que sejam consistentes quanto às perspectivas assumidas e operacionais dentro das metodologias de análise desenvolvidas são um caminho em construção e um desafio a ser enfrentado pelo campo de estudo da identidade profissional (GRAVEN; HEYD-METZUYANIM, 2019). Por outro lado, a riqueza de aspectos da identidade profissional de um(a) professor(a) que, potencialmente, podem emergir quando nos posicionamos em diferentes perspectivas teóricas, nos mostra que a identidade e suas múltiplas conceituações podem se constituir uma poderosa ferramenta teórica que ajuda a compreender a complexidade de quem é o professor de matemática que atua em nossas escolas e como ele se constitui e se desenvolve profissionalmente.

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4- Educational Resources Information Center - https://eric.ed.gov/

5- (DARRAGH, 2016; LANGER-OSUNA; ESMONDE, 2017; HEYD-METZUYANIM; LUTOVAC; KAASILA, 2016; RADOVIC; BLACK; WILLIAMS; SALAS, 2018; LUTOVAC; KAASILA, 2018).

6- Colapsos ontológicos são entendidos pelos autores como unificações implícitas de diferentes tipos de identidades narrativas.

7- O termo “polo” é utilizado no sentido de “questão central” ou “ponto de referência”, conforme Lessard Herbert, Goyette e Boutin (1994 apud DE PAULA; CYRINO, 2018).

Recebido: 28 de Novembro de 2020; Aceito: 18 de Janeiro de 2022

Cristina Meyer é docente do Instituto Federal de Ciência e Tecnologia de São Paulo (IFSP), atua no Campus de Caraguatatuba, vinculada ao curso de licenciatura em matemática. É doutoranda em educação pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), desenvolve estudos sobre a formação de professores que ensinam matemática e identidade profissional docente.

Leticia Losano é docente do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Sorocaba (UNISO). Desenvolve estudos sobre a formação de professores de matemática, identidade profissional docente e dimensões sociais e culturais da educação matemática. É doutora em ciências da educação pela Universidade Nacional de Córdoba, Argentina (UNC).

Dario Fiorentini é docente permanente dos Programas de Pós-Graduação em Educação (PPGE) e Multiunidades em Ensino de Ciências e Matemática (PECIM) da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador dos Grupos de Pesquisa Prática Pedagógica em Matemática (Prapem) e Grupo de Sábado (GdS). Desenvolve estudos sobre formação e desenvolvimento profissional de professores que ensinam matemática, identidade, aprendizagem docente e pesquisa do estado do conhecimento. É doutor em educação pela Unicamp e pesquisador do CNPq/PQ-1B.

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