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Educação e Pesquisa

versão impressa ISSN 1517-9702versão On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.48  São Paulo  2022  Epub 04-Nov-2022

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202248246923 

Artigos

Representações das classes secundárias experimentais construídas por Gildásio Amado (1958-1973)

Representations of the experimental secondary classes built by Gildásio Amado (1958-1973)

Fernanda Gomes Vieira1 
http://orcid.org/0000-0001-6722-5288

Norberto Dallabrida1 
http://orcid.org/0000-0002-5100-2028

1- Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis (SC) – Brasil. Contatos: fernandabiofgv@gmail.com; dallabrida@edu.udesc.br


Resumo

Este trabalho tem o propósito de compreender as representações feitas por Gildásio Amado, considerado um mediador cultural, sobre as classes secundárias experimentais, que se constituíram no ensaio pioneiro de inovação pedagógica no ensino secundário brasileiro nas décadas de 1950 e 1960. Essas representações são analisadas em dois textos produzidos por Gildásio Amado como chefe da Diretoria do Ensino Secundário do Ministério da Educação e Cultura (MEC) durante a implantação das classes secundárias experimentais, e em outros dois textos, escritos por ele, após a realização do primeiro ciclo dessa experiência pedagógica. Para ler essa questão usou-se o conceito de representação do historiador Roger Chartier, que tem duas dimensões: a presentificação do ausente ou do que já passou, mas também, necessariamente, a construção desse ausente. Assim, a operação de produção de fatos e de processos passados é realizada a partir dos interesses e ideologias de seu autor. De um lado, analisa-se o olhar de Gildásio Amado, na condição de ocupante de alto cargo no MEC, sobre as classes secundárias experimentais no momento de sua entusiasmada implantação. De outra parte, procura-se compreender a visão desse autor também sobre as classes secundárias experimentais após a realização de seu primeiro ciclo, que apresenta um tom mais avaliativo. Busca-se, portanto, perceber as apreciações de Gildásio Amado sobre a primeira onda de renovação do ensino secundário brasileiro em dois momentos históricos diferentes.

Palavras-Chave: Gildásio Amado; Classes experimentais; Ensino secundário

Abstract

This work aims to understand the representations made by Gildásio Amado, who was considered a cultural mediator, about the experimental secondary classes, which were the pioneering essay of pedagogical innovation in Brazilian secondary education in the 1950s and 1960s. These representations are analyzed in two texts produced by Gildásio Amado as head of the Secondary Education Board of the Ministry of Education and Culture during the implementation of the experimental secondary classes, and in two other texts, written by him, after the first cycle of this pedagogical experience. To read this question, we used the concept of representation developed by the historian Roger Chartier, which has two dimensions: the presentification of the absent or what has passed, but also, necessarily, the construction of this absent. Thus, the operation of the production of past facts and processes is carried out from the interests and ideologies of their authors. On the one hand, Gildásio Amado’s look, as a high-ranking official of the Ministry of Education and Culture, at the experimental secondary classes at the time of their enthusiastic implementation are analyzed. On the other hand, we seek to understand the author’s view also on the experimental secondary classes after the performance of their first cycle, which presents a more evaluative character. We seek, therefore, to perceive Gildásio Amado’s evaluations of the first wave of renewal of Brazilian secondary education in two different historical moments.

Key words: Gildásio Amado; Experimental classes; Secondary education

Introdução2

O sergipano Gildásio Amado iniciou a sua vida escolar no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, localizado em Aracaju e dirigido pelos padres salesianos e, a partir de 1913, passou a frequentar o Colégio Antônio Vieira, em Salvador, Bahia, onde fez o ensino secundário. Este último colégio fora criado por jesuítas portugueses em 1911 e se estabeleceu como instituição escolar de ensino secundário das elites baianas e de estados contíguos, como Sergipe, formando, entre outros, Anísio Teixeira e Jorge Amado (OLIVEIRA; COUTO, 2011). Após concluir o curso de medicina na Universidade do Rio de Janeiro, radicou-se na capital da república, onde atuou por várias décadas como professor do Colégio Pedro II, o principal educandário público de ensino secundário do país, tendo sido seu diretor de 1947 a 1956, e em diversas faculdades de universidades públicas cariocas. Assim, sua formação e atuação docente conferiram-lhe prestígio para galgar altos cargos administrativos da educação brasileira, tais como presidente da Comissão Nacional do Livro Didático (1947-1955) e chefe da Diretoria de Ensino Secundário (DES) de 1956 a 1963 e, posteriormente, de 1964 a 1968. Entre o final dos anos 1960 e o início da década de 1980, Gildásio chefiou a Coordenação de Programas Especiais do Departamento de Ensino Fundamental do MEC, participou do Conselho Estadual do Rio de Janeiro, exercendo a presidência por um mandato, e desempenhou o papel de assistente da Secretaria de Educação do Rio de Janeiro (BARRETO; THOMAZ, 2012).

Especialmente pela sua atuação como ocupante de altos cargos no MEC e do campo educacional do estado do Rio de Janeiro, bem como pelas suas contribuições para a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 1961 e por seus escritos pedagógicos, Gildásio Amado é considerado um mediador cultural. Cunhado por Gomes e Hansen (2016), este conceito procura pensar o agente cultural além da dicotomia de intelectual produtor e divulgador. Pois com frequência o intelectual mediador no campo educacional, que dedica seu tempo, seus esforços e tem sempre um projeto político-cultural para educação, fica “negligenciado nas análises e considerado de valor secundário, quando não supérfluo” (GOMES; HANSEN, 2016, p. 17). Assim, ao usar o mediador cultural como um agente estratégico, marcado pela ampla sociabilidade intelectual, que realiza práticas de mediação cultural em determinado tempo e espaço, sendo estas marcadas pela circulação e apropriação, pode-se inferir que aquilo que o intelectual “mediou” acaba por tornar-se “um bem cultural singular” (GOMES; HANSEN, 2016, p. 18), e assim este ganha seu devido peso e importância.

Como diretor do Colégio Pedro II, Gildásio visitou a França e a Inglaterra com o intuito de compreender as inovações desses países no tocante ao ensino secundário. As impressões desse estágio pedagógico na Europa foram publicadas na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos sob o título “Relatório de viagem do professor Gildásio Amado sobre as reformas na educação da França e da Inglaterra” (AMADO, 1955). Já na condição de titular da Diretoria do Ensino Secundário do MEC, ele envidou esforços e produziu a exposição de motivos ao Ministro da Educação no sentido de criar uma legislação que permitisse classes experimentais no ensino secundário, resultando na publicação das “Instruções sobre a natureza e a organização das classes experimentais” (BRASIL, 1958). De outra parte, essa legislação também é fruto do impacto da experiência realizada por Luís Contier no Instituto de Educação Alberto Conte, que integrava a rede pública paulista, a qual foi levada a Gildásio Amado, então diretor da DES, em 1956, por Marina Cintra – delegada do MEC no estado de São Paulo. Após um estágio no Centre International d’Études Pédagogiques (CIEP) em Sèvres, em 1951, Luís Contier passou a implantar inovações em turmas do ensino secundário a partir do modelo francês das classes nouvelles (VIEIRA, 2015). Desta forma, em 1959, as classes secundárias experimentais começaram a ser implantadas tanto em colégios públicos como em educandários confessionais, em uma tentativa de renovação do ensino secundário brasileiro.

Nesta direção, o objetivo do presente trabalho é compreender as representações sobre as classes secundárias experimentais, nas décadas de 1950 e 1960, feitas por Gildásio Amado. Essas representações foram construídas em quatro textos, publicados durante e após a realização do ensaio das classes secundárias experimentais. O primeiro texto foi publicado na Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos com o título “Classes experimentais” (AMADO, 1958) e aborda a exposição de motivos do chefe da DES, Gildásio Amado, para a implantação das classes secundárias experimentais. O segundo texto é o tópico “Classes experimentais” do relatório do titular da DES sobre o ensino secundário enviado ao ministro da educação (BRASIL, 1960). O terceiro texto integra o relatório “Classes secundárias experimentais: o balanço de uma experiência” (CUNHA; ABREU, 1963), elaborado por dois técnicos do MEC após a conclusão das primeiras turmas do curso ginasial experimental, tendo como título “Comentários de Gildásio Amado” (AMADO, 1963). E o quarto texto é a parte intitulada “Classes experimentais” do primeiro capítulo do livro O ensino fundamental e médio, de Gildásio Amado (1973), que constitui uma avaliação temporalmente mais afastada das classes secundárias experimentais. Esses diferentes escritos expressam a visão de Gildásio Amado sobre a renovação pioneira no ensino secundário brasileiro no século XX.

Adota-se o conceito de representação de Roger Chartier, que lhe confere uma dupla dimensão, qual seja: representar o ausente, isto é, torná-lo presente através de uma imagem, e apresentar a si mesmo enquanto imagem (CHARTIER, 2002). Mas, essa presentificação do ausente é atravessada por interesses e intenções, pois existe uma construção social do que está ausente, e, no caso do conhecimento histórico, o ausente é o passado (DALLABRIDA, 2017). Assim, os textos escritos não são reflexos, mas representações da realidade – atual ou pretérita. Nesta clave teórica, usam-se também os conceitos de apropriação e de circulação de Chartier, uma vez que, para chegarmos à construção das classes secundárias experimentais, ideias, pessoas e objetos foram movimentados. Chartier (1992) considera que os bens culturais, carregados de ideias, circulam de forma multifacetada e expansiva, mas dentro de um campo específico, e que, apesar de essas ideias intencionarem representações, a apropriação delas é feita de forma criativa, que ressignifica, resiste, rearranja.

Desse modo, o artigo está dividido em duas partes. Por um lado, é feita uma análise dos dois escritos de Gildásio Amado na condição de titular da DES, produzidos durante o processo de criação e implantação da experiência das classes secundárias experimentais, o que lhes confere um caráter mais burocrático. De outra parte, procura-se compreender os textos escritos por Gildásio após a conclusão do primeiro ciclo de quatro anos das classes secundárias experimentais no curso ginasial, os quais apresentam um tom predominantemente avaliativo.

O olhar do chefe da DES sobre as classes secundárias experimentais

Um ensino secundário no Brasil que assegurasse a formação humana e que possuísse uma unidade central, mas que também garantisse a diversidade cultural e social através de organizações mais autônomas de seus sistemas, de seu currículo e de seu professorado, articulando-se com o ensino primário e superior, tendo como essenciais a educação moral e cívica e as atividades extraclasse, era o desejo do educador Gildásio Amado enquanto diretor da DES. A inspiração para essas perspectivas educacionais tinha fundamentos anteriores, como a simpatia com os ideais escolanovistas e as suas viagens investigativas, em 1954, quando ele conheceu as reformas educacionais do pós-guerra na França e na Inglaterra, ou seja, as classes nouvelles e o Plano Langevin-Wallon que pautaram a renovação da educação secundária francesa, e o Education act, que inovou o sistema escolar inglês (AMADO, 1955).

A partir de suas vivências, Gildásio Amado acreditava na construção de uma educação secundária que conseguisse abarcar, sem diminuir a qualidade do ensino, o rápido crescimento da procura pelo ensino secundário. Para tanto, propôs desenvolver as aptidões dos alunos dando-lhes o maior número de oportunidades possíveis para que cada estudante aproveitasse seu nicho de possibilidades, e encontrou nas classes experimentais um caminho para executar essa educação para a sociedade moderna (AMADO, 1957). Desse modo, no seu artigo intitulado “Exposição de motivos do Diretor do Ensino Secundário ao Sr. Ministro da Educação e da Cultura” (AMADO, 1958), ele coloca as classes secundárias experimentais como uma iniciativa que “vem sendo aclamada constantemente pelos educadores brasileiros como uma das medidas de maior necessidade, diante das perspectivas de uma diversidade maior no ensino secundário” (AMADO, 1958, p. 73-74). A aclamação e as perspectivas de diversidade colocadas por Gildásio Amado advêm da onda pedagógica renovadora do pós-guerra, que circulava pelo Brasil, e do seu conflito com a rígida Reforma Capanema. Assim, ele representava a necessidade de flexibilizar e diversificar o ensino secundário, afastando o dualismo que consistia na existência de uma escola técnica e outra para a formação humana, tão realçado pela Reforma Capanema, enfatizando as individualidades de cada aluno (AMADO, 1957). E, nesse sentido, faz-se importante compreender as lutas de representações que visam hierarquizar e ordenar a própria estrutura social (CHARTIER, 1991).

À luz dos relatórios de viagem, da exposição de motivos e das ações de Gildásio Amado como diretor do ensino secundário no MEC, ficam visíveis as influências internacionais escolanovistas nas suas iniciativas, publicações e no seu interesse em mover os esforços necessários à implementação da experiência brasileira inovadora e pioneira do ensino secundário: as classes experimentais, como uma brecha para contornar certos entraves encontrados nas Leis orgânicas do ensino secundário de 1942. Porém, esse interesse pelas classes experimentais passa quase despercebido da representação gildasiana, já que o foco maior sobre esse educador é a sua tendência mais técnica: os ginásios modernos. Desta forma, fica visível que o titular da DES, no seu artigo “Exposição de motivos do Diretor do Ensino Secundário ao Sr. Ministro da Educação e da Cultura” (AMADO, 1958), não só coloca as classes experimentais como uma aclamação geral dos educadores brasileiros, como faz questão de ressaltar seu encaixe legal dentro dos limites já estabelecidos pela Lei nº 1.821 de 12 de março de 1953, que dispõe sobre o regime de equivalência entre os diversos cursos de grau médio, e assim consagrou o princípio de variação do ensino. Além de colocar que a variação curricular entre as classes não experimentais e experimentais estava dentro dos limites compatíveis, mas estas teriam a oportunidade de oferecer

[...] o ensaio de modalidades do ensino de segundo grau que procurem harmonizar o ensino acadêmico com as tendências (da vida moderna) a dar ao curso secundário um sentido mais concreto de formação para as tarefas e responsabilidades da vida social e profissional. (AMADO, 1958, p. 74).

A visão do que era um ensino secundário que atendia à modernidade, formava para a vida e harmonizava o ensino acadêmico com a tendência não dualística do técnico e humanístico foi incorporada por Gildásio em suas viagens para o exterior. Mas essa perspectiva tornou-se mais concreta e específica após tornar-se chefe da DES e ter despertado o seu interesse na criação das classes experimentais pelo seu contato com Marina Cintra, que conheceu a inovadora experiência do educador Luís Contier no Instituto Alberto Conte (VIEIRA; CHIOZZINI, 2018), experiência essa que tinha como modelo as classes nouvelles, que Gildásio conhecia e aprovava. Quando ele expõe as características e normas gerais das classes experimentais na exposição de motivos, estas podem ser facilmente correlacionadas com seu relatório de viagem, cuja ideia central é que o ensino “se volta para a interpretação do mundo moderno e que prepara para a vida em seu mais largo sentido” (AMADO, 1955, p. 182). Afinal, para ele, o cidadão deve contribuir para suprir as necessidades sociais, ou seja, cada indivíduo deve ser orientado para onde será capaz de produzir frutos melhores para a sociedade. Por isso, Gildásio reforça fortemente o uso da orientação educacional, inspiração advinda das classes nouvelles francesas, pois, esse instrumento seria a forma mais eficiente de evitar a segregação entre intelectuais e técnicos (AMADO, 1955). E, ao expor as normas das classes secundárias experimentais, fica claro que estas deveriam adaptar-se melhor a cada aluno, examinar suas tendências e orientá-lo, oportunizando-lhe, assim, opções de acordo com as suas aptidões. Dessa forma, outra prescrição torna-se essencial: a atividade dirigida, colocada por Gildásio, juntamente com as atividades extraclasse e, como já citado, com a orientação educacional (AMADO, 1958).

Para arrematar sua “Exposição de motivos”, Gildásio afirma que a instituição das classes secundárias experimentais foi recomendada na primeira Jornada de Estudos de Diretores de Estabelecimentos de Ensino Secundário, realizada em São Paulo, em 1957, e ressalta que tal experiência, assim como as classes nouvelles francesas, podiam ser efetivadas “por ato do poder executivo” (AMADO, 1958, p. 77), e que esse encaminhamento tinha sido discutido com os inspetores na 5ª Reunião de Inspetores Seccionais, que teve aprovação unânime (AMADO, 1958). Porém, Gildásio não citou a presença de Luís Contier, que expôs seu relatório na Jornada dos Diretores sobre a experiência do Instituto Alberto Conte, de conhecimento do próprio Gildásio. Segundo Vieira (2015), foi a experiência de Contier que serviu de modelo para o projeto de criação das classes secundárias experimentais. Nessa representação percebe-se um apagamento de autoria do projeto das classes secundárias experimentais e uma tentativa de colocá-lo como uma criação e decisão conjunta.

No subtítulo “Classes Experimentais” do relatório enviado ao Ministro da Educação Clóvis Salgado (BRASIL, 1960), Gildásio relata que estão em funcionamento classes experimentais em 36 estabelecimentos de ensino secundário dos estados de São Paulo, Guanabara, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Espírito Santo, Rio de Janeiro, Pernambuco e Paraná. E expõe que um dos objetivos dessas classes é a liberdade educacional, porque permitem aos educadores a oportunidade de contribuir com suas experiências e individualidades educacionais para a renovação do secundário, já que o sistema educacional em voga controla as minúcias da ação educativa, tendendo a enquadrar e deformar o órgão vivo que a escola deve ser (BRASIL, 1960).

Nesse texto é visível a necessidade de Gildásio de construir a ideia de oposição entre o ensaio das classes secundárias experimentais e as premissas das Leis orgânicas do ensino secundário, ao colocar estas leis como a representação do que é o ensino tradicional, rígido, controlador. Além disso, era necessário responsabilizá-las pela incapacidade do sistema educacional de acolher o crescente número de alunos do ensino secundário, impossibilitando o acesso para grande parte da população. Para os renovadores, isso estava na contramão da modernidade, que precisa de maior especialização com a evolução técnica, industrial e econômica, logo, precisava que se abarcasse toda a demanda, possibilitando o acesso a todos, mas trilhando caminhos de acordo com as devidas capacidades de cada estudante. As classes secundárias experimentais, portanto, eram vistas como instrumento de flexibilização e democratização do ensino, porque, segundo Amado (1957), o objetivo de uma democracia é fazer da parte melhor uma elite e ao restante, que é a maioria, assegurar oportunidade de desenvolvimento.

Outro ponto destacado por Gildásio é o da diversificação das classes secundárias experimentais, necessária para a evolução do ensino secundário paralelamente à melhora social e econômica do país. Afinal, estas não estavam ensaiando “só novos métodos de ensino, novos processos escolares, entre os quais de aferição de aprendizado, como também tipos de currículo” (BRASIL, 1960, s/p.). Segundo ele, o currículo ali empregado é no sentido do conjunto de disciplinas, porém, sabe-se que este não traz somente a organização dos conhecimentos, mas também constrói uma identidade e, assim, a proposta curricular não aborda apenas o que deve ser estudado, mas deve também responder a perguntas tais como qual o tipo de ser humano se quer formar e para que tipo de sociedade (SILVA, 2010). Desse modo, Gildásio deixa clara a sua representação do ensino secundário de excelência e para que serve seu currículo: o ensino que deve preparar para a sociedade moderna e, por isso, ressalta no seu relatório as tendências mais importantes manifestadas nas classes secundárias experimentais, sendo uma delas a formação integral do adolescente com atenção maior aos fins sociais da educação, sendo estes embasados em uma sociologia durkheimiana (BRASIL, 1960). Ou seja, ele reforça a ideia do papel da educação na condução de cada indivíduo para desempenhar sua função social, fazendo com que este prospere econômica e socialmente. Segundo Amado, outra tendência seriam as atividades extraclasse, que aproximam a atividade educativa da educação não formal dentro do currículo, reforçando uma educação moral e cívica mais completa (BRASIL, 1960).

Dentro da construção desse contexto enaltecedor da experiência, Gildásio relata o sucesso das classes secundárias experimentais reconhecido em um “recente parecer” do Conselho Nacional de Educação, que cita a experiência como um modelo inspirador de confiança e a necessidade de desconectar-se das cautelas iniciais e ampliar esse campo renovador (BRASIL, 1960, s/p). Outro comentário positivo foi feito por Jayme Abreu no estudo Instituto Brasileiro de Estudos Pedagógicos nº 78, para o INEP, que coloca a experiência das classes como a mais virtuosa proposta do ensino secundário (BRASIL, 1960). Assim, fica claro o intuito de Gildásio de representar a conquista das classes experimentais frente a importantes órgãos educacionais, para que estas pudessem crescer mais em número, ampliando a renovação ainda muito pequena perto do tradicionalismo educacional, embora, estrategicamente, esse relatório dê a impressão oposta. Ideia reafirmada quando ele também expõe a conclusão a que chegou na 1ª Reunião das Classes Experimentais com os diretores dos colégios que executavam a experiência e seus ‘observadores-assistentes’, em outubro de 1960, quando concordaram que

[...] o alto nível técnico dos que estão trabalhando na experiência, a segura fundamentação pedagógica de seus planos no aproveitamento de modernas técnicas didáticas, no ensaio de novos tipos de currículo e de novos processos escolares, foram por nós apreciados e justificam nosso entusiasmo e confiança no sucesso da iniciativa. (BRASIL, 1960, s/p.).

Para finalizar seu relatório, Gildásio coloca em evidência, em um exercício de poder, a representação das tendências por ele consideradas mais importantes nos planos e trabalhos das classes secundárias experimentais, além das duas anteriormente citadas – métodos de escola ativa, extensão do horário escolar, qualificação da avaliação (sendo esta por conceitos e não notas), o conselho de classe para apreciação global do trabalho dos alunos pelos professores para que estes possam analisar comportamentos, a variação curricular para aptidões individuais e, por fim, a simplificação da seriação, com menor número de matérias para um maior aprofundamento (BRASIL,1960). Assim, essas tendências se colocam como soluções para as principais preocupações do diretor da DES com o objetivo de alcançar um ensino secundário de qualidade, além de retratar a forte influência da renovação secundária que circulava pelo mundo na época, os métodos ativos e a base biopsicológica do movimento escolanovista.

Desta forma, no final dos anos 1950 e início da década de 1960, Gildásio encontra-se em um momento de luta pela implantação das classes secundárias experimentais, quando enfatiza a ideia de um clamor educacional em prol da renovação pedagógica. Em seguida tem-se o momento de divulgação e defesa da relevância da experiência a fim de que esta cresça e, por isso, apresentar um olhar estrategicamente positivo e de reafirmação legal sobre as classes secundárias experimentais, ressaltando progressos da experiência selecionados de forma meticulosa a fim de promover uma renovação maior no sistema, conquistando mais apoio do MEC.

Avaliação gildasiana das classes secundárias experimentais

Em 1962 as classes secundárias experimentais completavam o primeiro ciclo da sua implantação com a formação das turmas de ginásio que tinham iniciado em 1959, o que tornou o momento propício para um balanço da experiência. Como o INEP estava estimulando a publicação de estudos sobre/para o ensino secundário renovado, Jayme Abreu e Nádia Cunha, que demonstraram interesse na experiência desde o princípio, produziram o artigo “Classes secundárias experimentais: balanço de uma experiência” (CUNHA; ABREU, 1963), com a apresentação de Anísio Teixeira, diretor do INEP, e comentário final de Gildásio Amado, ainda titular da DES, que franqueou a documentação para a realização da pesquisa. No comentário final ressaltou o lado positivo colocado pelos autores do balanço e defendeu as críticas colocadas.

O artigo trazia as classes como construtoras de uma nova cultura escolar, já que reverberaram na redação do artigo 104 da primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que permitia a criação de cursos e escolas com currículos, métodos e períodos inovadores mediante a aprovação dos Conselhos Estaduais de Educação (DALLABRIDA, 2017). O comentário de Gildásio começa ressaltando o fato de as classes secundárias experimentais terem possibilitado a abertura para a autonomia da escola, bem como sua diversificação. Assim, ele comenta que o movimento das classes experimentais foi o “precursor do regime de maior autonomia, de maior liberdade, asseguradas às escolas e aos educadores pela Lei de Diretrizes e Bases” (AMADO, 1963, p. 151), e reforça a expressão de Anísio Teixeira, na apresentação do artigo, de que as classes são um aprendizado de “liberdade pedagógica” (AMADO, 1963, p. 151), solução dada a uma das críticas centrais do movimento renovador à rigidez das leis orgânicas do ensino. Percebe-se mais uma vez essa luta por espaço no âmbito educacional, que foi representada de maneira dicotômica pelos renovadores, já que “as lutas de representações são assim entendidas como uma construção do mundo social por meio dos processos de adesão ou rechaço que produzem” (CHARTIER, 2011, p. 22).

Uma das críticas colocadas por Cunha e Abreu (1963) referia-se à aprovação da implementação das classes secundárias experimentais com uma precaução quase temerosa do MEC e do Conselho Nacional de Educação em contrariar as leis vigentes, o que os autores colocam que foram temores demasiados e infundados. O chefe da DES defende que “se esta [a experiência das classes experimentais] se revestiu de algum defeito estrutural, seria exatamente o da falta de maior espírito de inovação, tão presa ainda que foi aos modelos tradicionais” (AMADO, 1963, p. 96), que transfere o temor colocado no MEC por Cunha e Abreu (1963) para os atores da cultura escolar, que resistiam em inovar.

O balanço demonstra que a experiência foi pouco significativa estatisticamente, embora o número de alunos atingidos do início ao final do primeiro ciclo da experiência tenha aumentado em sessenta vezes. Neste sentido, Cunha e Abreu (1963) asseveram:

Não houve em verdade maior aproveitamento do ensejo concedido, especialmente por parte do poder público, lamentavelmente omisso nesse caso, para a organização de novos tipos de escola secundária, exigidos pela ampliação de suas matrículas, com a decorrente diversificação da origem social e dos interesses da clientela emergente de nossa expansão demográfica urbana, mercê da industrialização. (CUNHA; ABREU, 1963, p. 146, grifo dos autores).

Desse modo, Gildásio aproveita a oportunidade do comentário para também defender, de forma breve e firme, a crítica sobre a temerosidade do MEC com a nova experiência. De forma astuciosa não entra no mérito de discutir a ineficácia de abarcar o crescente número de estudantes, principalmente os que necessitam da rede pública de ensino, e realoca a responsabilidade do pouco crescimento afirmando que

[...] os projetos de classes experimentais foram de livre iniciativa das escolas. As limitações a que ficaram presas foram impostas, sem apelação, pela legislação que então vigorava. Iniciada a execução do projeto, a presença do Ministério restringia-se à observação do funcionamento com o objetivo de reunir elementos que permitissem a avaliação, em conjunto, da experiência. (CUNHA; ABREU, 1963, p. 151).

Por fim, Gildásio representa essa liberdade que as classes experimentais promoveram como um leque de novas perspectivas e que os educadores “a receberão não apenas como um direito, mas para usá-la como instrumento de transformação da escola” (AMADO, 1963, p. 151). E essa possibilidade de transformar está relacionada por ele à diversificação, à flexibilização do currículo e dos processos, e de adaptá-la às condições do aluno, pelo que ele levanta mais uma vez a base biopsicológica escolanovista de aptidões e tendências. E mais uma vez deixa presente a dicotomia entre o renovador e o tradicional colocando na conclusão do seu comentário que as classes experimentais fizeram com que a escola não fosse a “escola de padrões pré-fixados, de planificação preestabelecida, estática, mas a escola viva e mutável, isto é, a escola para o aluno” (CUNHA; ABREU, 1963, p.151) e para a sociedade moderna, o que as Leis Orgânicas não conseguiam alcançar pela rigidez.

Com o golpe de 1964, que instaurou uma ditadura civil-militar no Brasil, inicialmente houve desestímulos a experiências inovadoras, mas ainda não haviam sido fortemente reprimidas e seus idealizadores perseguidos, presos, como ocorreu com a promulgação do AI-5, em 1968, não sendo possível fazer grandes reflexões e estudos sobre as classes secundárias experimentais, que ainda estavam em andamento após a formação das primeiras turmas de ginásio em 1962 (DALLABRIDA, 2017). Porém, Gildásio continuou participando do MEC no período ditatorial, em 1968, na equipe de planejamento do Ensino Médio da Diretoria de Ensino Secundário. Nos dois primeiros anos da década de 1970, trabalhou na reforma do ensino de 1º e 2º graus, além de ter prestado assessoria técnica no Departamento de Ensino Fundamental do MEC. Em 1972 apresentou o projeto para o ensino supletivo e em 1973 participou do Conselho Estadual de Educação do Rio de Janeiro (BARRETO; THOMAZ, 2012). É importante ressaltar que em 1968 ele foi retirado do seu cargo de diretor da DES, cargo de maior influência, a que tinha sido restituído após o golpe com o afastamento do então diretor Lauro de Oliveira Lima, que havia assumido a DES em 1963, e teve suas atividades da CADES bem esvaziadas até esta ser completamente dissolvida dentro desse mesmo contexto histórico (PINTO, 2008).

Desse modo, por ter continuado influente no contexto educacional e na ideia de eternizar sua dedicação e visão para o ensino secundário brasileiro, Gildásio escreveu o livro “Educação Média e Fundamental” (AMADO, 1973), no qual separou um subtítulo no primeiro capítulo para tecer seu balanço sobre as classes experimentais. Trata-se do subtítulo “Classes Experimentais”, em que Gildásio inicialmente discorre sobre as classes nouvelles, que começaram a ser aplicadas na França por Charles Brunold, diretor do ensino secundário em 1945, como uma ampliação das classes de orientação implantadas por Jean Zay, na década de 1930, quando o Front Populaire estava no poder, o que abriu caminho para a orientação educacional como uma constante na educação francesa. Amado (1973) faz questão de discorrer sobre o Plano Langevin-Wallon, que ele conheceu e estudou em sua viagem para França, em 1954, pois o plano tratava a orientação educacional de uma maneira profunda por tornar mais fácil o encaminhamento das aptidões sem dualismo de preparação técnica e intelectual. Afinal, tratava-se de uma reformulação estrutural que associava as intenções pedagógicas e da sociedade, e ressaltava que as classes nouvelles não conseguiram trazer essa fusão do secundário e do técnico proposta por Langevin-Wallon.

Tais apontamentos reforçam tudo que o autor desde seu primeiro envolvimento em repensar o ensino secundário desejava: acabar com o desmerecimento do ensino técnico, ressaltando a importância de existir um espaço para esse ensino de forma especializada e de qualidade. Ele acreditava que o caminho para isso era a orientação educacional que ele vislumbrou com o Plano Langevin, que coloca a escola secundária como uma escola profissional em seu mais amplo sentido ao preparar o indivíduo e suas capacidades para encontrar na vida social a sua função mais adequada (AMADO, 1973). Dessa forma, ao adentrar no tema das classes secundárias experimentais, Amado (1973) coloca que a ideia começou a ser pensada em 1957,

[...] coincidindo com uma intenção desde o começo de nossa administração na Diretoria do Ensino Secundário, inspirada pelo estudo das “classes nouvelles” que em 1953 havíamos feito diretamente na França e que constou do relatório apresentado ao Ministro e publicado por aquela Diretoria em 1955, começamos a receber sugestões no mesmo sentido. (AMADO, 1973, p. 40-41).

Em seguida refere-se à carta enviada por Marina Cintra, que seguia os mesmos anseios de mudança, e na qual ela escrevia em apoio à proposta colocada na reunião de diretores de São Paulo de permitir que colégios secundários criassem classes experimentais em que se pudesse ensaiar novos métodos didáticos, processos escolares e até novos currículos. Expectativas estas que, segundo Gildásio, vinham sendo expostas nos congressos, nas manifestações e nas reclamações docentes por mais autonomia da escola, afinal os educadores desejavam “que nos antecipássemos a essa expectativa, criando as classes experimentais em prosseguimento às outras iniciativas com a mesma orientação” (AMADO, 1973, p. 41). Então, em 1958, durante o primeiro semestre, o diretor da DES, junto com o técnico em educação Cleantho Rodrigues de Cerqueira, elaborou o projeto das classes experimentais (AMADO, 1973).

Nessa contextualização proposta por Gildásio, percebe-se o apagamento das experiências pioneiras de Irene Carvalho com as classes experimentais do Colégio Nova Friburgo (CLARINO, 2017) e de Luís Contier do Instituto Alberto Conte em São Paulo, experiência esta que é a relatada na carta por Marina Cintra (VIEIRA, 2015), colocando-as apenas como “iniciativas com a mesma orientação” (AMADO, 1973, p. 41), além de retirar toda a influência do que foi exposto por Contier na reunião de diretores para a elaboração do projeto das classes experimentais, como argumenta Vieira (2015), dando o crédito da proposição do projeto às suas viagens para o exterior, em especial para a França, e mencionando a ajuda do técnico em educação do MEC Cleantho Rodrigues Siqueira. E é com base nas informações dos estudos das classes experimentais deste mesmo técnico, em sua tese para a docência livre de Administração Escolar da antiga Faculdade de Filosofia do Estado da Guanabara em 1960, que Amado norteia suas reflexões sobre as classes experimentais no seu livro (AMADO, 1973).

Gildásio Amado (1973) argumenta de maneira perspicaz que, apesar do número reduzido de escolas, isso não diminui a experiência de significação, já que ela trouxe contribuições metodológicas, dando a oportunidade para as escolas de serem criativas e saírem da cópia do modelo oficial, além de criarem uma forma de trazer consensos entre os mestres e diretores ao traçarem o plano da escola. E, nesse aspecto, as classes experimentais brasileiras davam ênfase à liberdade, à autonomia da escola necessária para desamarrar os educadores de “um sistema de ensino pedagogicamente absurdo, socialmente injusto, economicamente estéril” (AMADO, 1973, p. 47). Afinal, Gildásio relembra que as classes experimentais proporcionaram uma compreensão mais ampla de currículo, seriação mais lógica das disciplinas, permanência prolongada, metodologia ativa e “instrumentos menos imprecisos de medida do rendimento escolar” (AMADO, 1973, p. 48) que fugiam da simples verificação intelectualista.

Nessa parte de seu livro o educador sergipano procura contornar as críticas feitas pelos escritos de Cunha e Abreu (1963) e de Werebe (1963), que tratavam principalmente do pouco alcance das classes secundárias experimentais e do fato de a maioria ter se dado em escolas de clientela privilegiada (DALLABRIDA, 2017). Dessa forma, ele ressalta que as classes secundárias experimentais tiveram um baixo alcance em escala nacional, pois assim devia ser, afinal eram uma experiência de abertura em um rigoroso e centralizado regime que deveria evoluir gradualmente. Porém, essa oportunidade era também, para grande parte dos administradores escolares, um convite a sair da zona de conforto das Leis Orgânicas, que asseguravam o regime de nenhuma autonomia e criavam a atitude de dependência e subordinação, e que infelizmente eles não conseguiriam superar como deveriam (AMADO, 1963). Ademais, Amado (1973) diz:

A relativa limitação numérica era natural, ainda por outros motivos, entre os quais o de que a manutenção de classes experimentais envolvia problemas de custo (reduzido número de alunos por classe, permanência prolongada na escola, equipamento didático, serviços especializados, multiplicidade de atividades) e de disponibilidade de professores identificados com as novas ideias. (AMADO, 1973, p. 45).

E, a partir desse pensamento sobre o custo da manutenção, Gildásio defende a experiência das críticas em relação ao alcance ter sido maior em escolas particulares, pontuando que “era do ensino particular, principalmente, que procediam as reivindicações de liberdade e renovação” (AMADO, 1973, p. 45), pois este, além de estar em maior quantidade, era menos preso ao sistema burocrático e pouco flexível.

Outra defesa significativa do ensaio das classes secundárias experimentais é traçada por Gildásio quanto à flexibilidade do currículo que reduziu ligeiramente as disciplinas, exceto uma experiência que sobrecarregou adicionando disciplinas; e trouxe pela primeira vez os princípios que se fariam muito mais frequentes com a LDB de 1961. Um deles era o surgimento da opção de escolha de disciplinas para os alunos e o outro o prenúncio de uma base comum de dois anos com componentes vocacionais no currículo, o que não se encontrava até então no projeto da LDB. Porque, “foi no substitutivo apresentado pelo ministro Clóvis Salgado, em 1957, quando já estudávamos o projeto das classes experimentais, que surgiu o dispositivo hoje incorporado à lei” (AMADO, 1973, pp. 48-49), tratando aqui da influência direta do projeto das classes experimentais no artigo 104 da LDB de 1961. Desse modo, as classes secundárias experimentais “demonstravam que a finalidade que haviam tido em vista não fora, precisamente, experimentar, mas mudar o regime, fugindo quanto possível à inflexibilidade e ao arcaísmo da legislação anterior” (AMADO, 1973, p. 49).

Por fim, Amado (1973) reconhece que, mesmo com instrumentos legais que permitiam a experimentação curricular, haja vista a LDB de 1961, ou por falta de interesse ou por desestímulos, não cresceram as iniciativas de escolas/cursos experimentais, afinal era mais fácil criar classes do que cursos inteiros, e estas davam relevo ao experimental, pois podia se comparar as classes tradicionais com as experimentais. Logo, as classes experimentais tiveram previsão efetiva no legislativo, mas não se firmaram no chão da escola.

Considerações finais

As intenções representativas das visões gildasianas se dividem em dois blocos: a representação engajada em divulgar e firmar a experiência, e a análise dos desdobramentos das classes secundárias experimentais. Ambas são entendidas como a materialização dos ideais de uma sociedade moderna em prol da intelectualidade mais hábil como reguladora das necessidades sociais atrelada a uma ideia de liberdade individual como construtora da autonomia e da flexibilização para os atores da educação. Dessa forma, Gildásio percebia a educação como garantia da sustentação dessa nova sociedade que se queria construir, e o ensino secundário como primeiro passo para possibilitar essa construção, com o desenvolvimento de um ensino mais elevado e intelectualizado, principalmente o técnico, que não recebia no sistema educacional brasileiro a devida atenção. Assim, as aptidões e capacidades seriam critério para os direcionamentos dos alunos, necessários ao desenvolvimento da sociedade. E a flexibilização e autonomia para as escolas e professores no que diz respeito ao currículo e métodos permitiriam proceder às classificações e ao direcionamento “correto” para o bem-estar social moderno, tendo como base principal o serviço de orientação educacional.

Desse modo, quando o diretor da DES faz a exposição de motivos para a implementação da experiência das classes secundárias experimentais a fim de firmar o movimento renovador no sistema educacional brasileiro, ele apresenta essa ideia como um clamor coletivo dos profissionais da educação por mudanças nas engessadas leis que regiam a educação. E de forma conveniente apaga as experiências pioneiras que começaram no início da década de 1950, driblando, estrategicamente, a legislação vigente. Porém, nos escritos posteriores ao primeiro ciclo das classes secundárias experimentais, a partir de uma leitura mais crítica, vê-se que o que foi colocado como clamor coletivo, na verdade provinha, principalmente, de docentes de escolas particulares, que efetuaram em maior número essa renovação. E ainda, nesse olhar já mais distante da experiência, ele propõe que o número de classes experimentais não foi expressivo em nível nacional por conta da escolha das escolas, já que a experiência era de livre iniciativa delas. Ou seja, o que antes era tratado na exposição de motivos como uma experiência de grande potencial, e no relatório ao Ministro da Educação, omitindo a classificação de setores público ou privado das experiências citadas, como uma iniciativa admirável, de peso e competente, não teve como ser sustentado. Dez anos depois, o próprio animador da experiência reconhece o pequeno progresso quantitativo dela, principalmente na rede pública de educação, e sua baixa eficiência em uma transformação mais abrangente da cultura escolar como um todo, mas sem jamais renunciar à sua importância para abrir caminhos na legislação.

Outro ponto observado nos seus escritos é o apreço pela influência das classes nouvelles francesas e sua admiração pelo Plano Langevin-Wallon, que ficam refletidos na aproximação de Gildásio com a orientação educacional e seu vislumbre do que deveriam ser os caminhos da educação para a modernidade. Este foco do olhar gildasiano também gerou ausências ao excluir as outras influências que as classes secundárias experimentais tiveram, como o Plano Morrison e a Pedagogia Personalizada e Comunitária nos educandários católicos. E é a partir dessa admiração pelo ensino francês que ele sustenta fortemente seus pontos positivos sobre a experiência, pois esta trazia oportunidades metodológicas e curriculares que coincidiam com a visão de ser humano do mundo moderno e foi a estratégia mais efetiva para flexibilizar a Reforma Capanema. Assim, entendendo as representações também como construtoras de desigualdades, ele não economiza nos elogios à liberdade pedagógica dada pelas classes secundárias experimentais, e exalta o modo como isso contribuía para manter a escola viva. Também, a partir disso, construía de maneira mais efetiva uma representação negativa do sistema vigente, do que uma exaltação da inovação em si, pois o que era positivo era o fato de se diferenciar do que estava enraizado.

Em síntese, pode-se dizer que mesmo depois do fim da experiência e da constatação inegável de seu pequeno alcance dentro do campo educacional, Gildásio Amado continuou acreditando na sua relevância, e enxergando-a pelas lentes que lhe convinham, que no caso foram: suas viagens, a tese do inspetor do MEC Cleantho Siqueira, o compromisso com a mudança do quadro educacional da inspetora paulista Marina Cintra, a oportunidade de flexibilização e a autonomia para as escolas e professores, consideradas por ele características de uma verdadeira liberdade pedagógica. Fica claro, portanto, que Gildásio, desde suas representações mais engajadas e entusiastas até sua visão mais analítica, vislumbrara a importância da reverberação da experiência trazida pelas classes secundárias experimentais: o impulsionamento das mudanças, que ele julgava essenciais para sustentar a modernidade que se firmava e que foram efetivadas na Lei de Diretrizes e Bases de 1961, pois não era de fato sua intenção a construção de uma cultura escolar inovadora pontual nas escolas.

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2- Disponibilidade de dados: Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Recebido: 22 de Dezembro de 2020; Revisado: 09 de Novembro de 2021; Aceito: 23 de Novembro de 2021

Fernanda Gomes Vieira é mestranda em educação pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) no Centro de Ciências Humanas e da Educação (FAED). É graduada em pedagogia pela UDESC, no Centro de Educação à Distância (CEAD).

Norberto Dallabrida é doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP). É professor do Programa de Pós-Graduação em Educação da UDESC e bolsista produtividade do CNPq (PQ 1D).

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