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Educação e Pesquisa

Print version ISSN 1517-9702On-line version ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.49  São Paulo  2023  Epub Apr 14, 2023

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202349265880 

SEÇÃO TEMÁTICA: Educação em contexto de crise sanitária causada pela Covid-19

A corporeidade e a educação infantil: desafios para os docentes no ensino remoto emergencial 1

Lindsey Machado de Oliveira2 
http://orcid.org/0000-0003-4191-0871

Jade Ariane Medeiros Machado3 
http://orcid.org/0000-0003-0663-1690

Michelle Martins Telles4 
http://orcid.org/0000-0003-1457-2010

Angela Adriane Schmidt Bersch5 
http://orcid.org/0000-0002-1263-9309

1-Universidade Federal do Rio Grande, Rio Grande, Rio Grande do Sul

2-Rede Municipal de Ensino da Cidade de Pelotas. Pelotas, Rio Grande do Sul


Resumo

No início do ano de 2020, a pandemia de COVID-19 foi deflagrada. Como medida de preservação da vida, as escolas foram fechadas por tempo indeterminado. Dentro dessa nova realidade, houve a necessidade de adaptação de algumas atividades básicas e essenciais, como a educação. Nesse sentido, o artigo objetiva apresentar as alternativas encontradas por docentes atuantes na educação infantil para desenvolver questões motoras, corporais e interpessoais com crianças de zero a cinco anos de idade no período de ensino remoto emergencial. A metodologia da pesquisa é de cunho qualitativo e de caráter exploratório. A teoria fundamentada nos dados foi o método de análise de vinte e dois questionários aplicados a professores que atuaram nessa modalidade nesse período. Qual o papel da família em meio ao ensino remoto emergencial? Quais as possibilidades para o movimento e para a corporeidade nesse novo contexto? Quais limitações a pandemia ocasionou no contexto das interações sociais na educação infantil? A partir dessas problematizações, as categorias que emergiram da análise foram as interações e o movimento corporal, bem como a relação das famílias com o ensino e a aprendizagem. Os resultados apontam que o ensino remoto emergencial ocasionou um rompimento no que se refere aos eixos estruturantes da educação infantil; reforçou a imprescindibilidade das experiências vividas por meio do corpo e das interações com o outro; ressaltou a necessidade de metodologias possíveis para ressignificar a importância de estar presente no espaço da escola e a potência dos vínculos afetivos construídos nos encontros presenciais.

Palavras-chave Educação infantil; Pandemia; Covid-19; Corporeidade

Abstract

In early 2020, the pandemic of COVID-19 broke out. As a measure to preserve life, schools were closed indefinitely. Within this new reality, there was the need to adapt some basic and essential activities, such as education. In this sense, the article aims to present the alternatives found by teachers working in early childhood education to develop motor, body, and interpersonal issues with children from zero to five years of age during the period of emergency remote education. The research methodology is qualitative and exploratory in nature. The theory based on the data was the method of analysis of twenty-two questionnaires applied to teachers who worked in this modality during this period. What is the role of the family in the emergent remote teaching? What are the possibilities for movement and corporeality in this new context? What limitations did the pandemic cause in the context of social interactions in early childhood education? From these problematizations, the categories that emerged from the analysis were the interactions and the body movement, as well as the relationship of families with teaching and learning. The results point out that the emergency remote teaching caused a rupture with regard to the structuring axes of early childhood education; reinforced the indispensability of experiences lived through the body and interactions with others; highlighted the need for possible methodologies to re-signify the importance of being present in the school space and the power of affective bonds built in face-to-face meetings.

Keywords Early childhood education; Pandemic; Covid-19; Corporeality

Introdução

No ano de 2020, a humanidade foi surpreendida por uma doença altamente contagiosa (COVID-19) transmitida por um vírus denominado SARS-CoV-2. Com a propagação acelerada em larga escala da COVID-19 e sem um tratamento realmente efetivo para tentar controlar a doença, a Organização Mundial da Saúde (OMS, 2020a) acabou aconselhando os governadores de Estado a trabalharem dentro de uma perspectiva de distanciamento e isolamento social. Setores da sociedade que colaborariam para a propagação do vírus, como restaurantes, escolas, bares, comércio não essencial etc., foram temporariamente fechados e aqueles considerados essenciais tiveram de adotar inúmeras medidas de restrições – número mínimo de pessoas dentro dos estabelecimentos, afastamento de trabalhadores com doenças pré-existentes, o uso de máscara e álcool em gel em todos os locais.

Com a insegurança de conviver em sociedade e as aulas presenciais suspensas há meses, em dezembro de 2020, o governo brasileiro propôs, como medida emergencial para a retomada dos estudos, o ensino remoto emergencial – ERE, na Resolução N°2 de 10 de dezembro de 2020 (BRASIL, 2020). Com a repentina mudança, essa proposta impactou completamente a estrutura da educação básica nacional. É possível afirmar, sem dúvidas, que tal adaptação nos modos de ensinar e aprender afetou todos os níveis da educação básica, dentre eles, a educação infantil (foco desta pesquisa).

A educação infantil é a primeira etapa da educação básica e sua principal finalidade é mediar e auxiliar no desenvolvimento integral da criança (BRASIL, 2010). Nesse sentido, o(a) docente tem como principal tarefa preparar os espaços, o tempo e as propostas pedagógicas com ações intencionais, com o objetivo de ofertar a descoberta e a experiência de novos conhecimentos e situações para as crianças (SANTIAGO; MOURA, 2021). Além disso, de acordo com a Constituição de 1988, Convenção dos Direitos das Crianças de 1989 (BRASIL, 1989) e com o Estatuto da Criança e do Adolescente de 1990(BRASIL, 1990), a educação infantil tornou-se um direito da criança, independente da sua condição financeira.

Estudos indicam que com ajustes nos espaços, nas rotinas e nas práticas pedagógicas desenvolvidas, aliados com o afastamento do convívio social das pessoas que foram contaminadas, seria possível retomar os encontros da educação infantil ainda nesse momento de pandemia (BARBOSA; GOBBATO, 2021; CASTRO; ALVES, 2021). Isso justifica-se, principalmente, pela modalidade de ensino ser considerada o período da educação em que as interações sociais e o movimento são de suma importância. Entendemos que a criança aprende com o outro, com a interação com um novo ambiente e com a socialização entre os pares, além dos familiares (FARIA; ASINELLI-LUZ, 2009; CASTRO; ALVES; CASTRO, 2021). Porém, sem o convívio presencial, como aconteceriam esses aspectos fundamentais para o desenvolvimento infantil?

Desse modo, surgiu o interesse de investigar de que modo o movimento corporal e as interações com as crianças e seus familiares estavam sendo abordadas por vinte e dois docentes que atuam na educação infantil no município de Rio Grande/RS na modalidade do ensino remoto emergencial. Assim, este artigo tem como objetivo apresentar as alternativas encontradas por esses profissionais para trabalhar questões motoras, corporais e interpessoais com crianças de 0 a 5 anos de idade. Buscou responder à seguinte pergunta de pesquisa: quais são os tempos e espaços do movimento corporal e das interações diante o ensino remoto?

Antes de avançarmos, importa destacar que, neste estudo, entenderemos aspectos motores e corporais como aqueles que se referem a movimentos de locomoção, manipulação e estabilização, os quais envolvem correr, pular, saltar, girar, arremessar, equilibrar, engatinhar, rastejar, lançar etc. (GALLAHUE; OZMUN, 2003), realizados de forma individual ou combinados, estando mediados por interações, brincar e ludicidade (RANGEL; DARIDO, 2010).

Em termo de estrutura textual, primeiramente vamos apresentar alguns subsídios teóricos que nos auxiliaram a olhar e analisar a problemática. Na sequência, apresentaremos a metodologia utilizada para a realização e a análise dos dados desta pesquisa. Em seguida, serão feitas algumas análises e discussões acerca dos dados empíricos coletados. Ao final, traremos considerações dos assuntos discutidos ao longo deste artigo visando a uma finalização da escrita, mas não do debate.

Fundamentação teórica

Inicialmente, é importante destacar a origem da educação infantil no Brasil. Por volta da década de 30, a mão de obra para empresas e indústrias era exclusivamente masculina, de forma que as mulheres ficavam responsáveis por serviços domésticos, como cuidar da casa, dos filhos e do marido. Entretanto, em meados da década de 40, com a reestruturação das leis trabalhistas e com a entrada das mulheres no mercado de trabalho, surgiu a necessidade de existir um lugar para que as mulheres que fossem mães conseguissem deixar seus filhos em segurança durante a carga horária exercida no emprego (PASCHOAL; MACHADO, 2009).

Essa reestruturação de funcionamento do mercado de trabalho originou as primeiras creches. Inicialmente, esses espaços eram voltados unicamente para cuidados higiênicos com as crianças, dentro de uma ideia mais assistencialista. Todavia, por volta das décadas de 70 e 80, começaram a surgir novos estudos e concepções sobre as infâncias. O grande marco para a educação infantil é a Constituição Federal de 1988, que reconheceu, pela primeira vez, a creche e a pré-escola como partes da educação básica no país (BRASIL, 1988).

No entanto, apesar desse primeiro marco histórico, a entrada das crianças na educação infantil era uma opção das famílias, que podiam decidir se a criança ingressaria aos 4 anos de idade na escola ou não. Somente em 2013, a partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e com a implementação da Lei n° 12.796, a educação infantil passou a ser obrigatória para todas as crianças brasileiras com 4 anos de idade ou mais: “Art. 6º É dever dos pais ou responsáveis efetuar a matrícula das crianças na educação básica a partir dos 4 (quatro) anos de idade” (BRASIL, 2013, p. 3).

Além disso, a LDB, ainda no ano de 2013, também explicitou a finalidade da educação infantil no Brasil, permitindo a compreensão de que esse nível de educação não é uma etapa preparatória para o ensino fundamental: pelo contrário, ele tem características e finalidades específicas que precisam ser compreendidas nas propostas pedagógicas das escolas (BRASIL, 2013). Nessa perspectiva, a partir do reconhecimento da legislação acerca da importância do ingresso das crianças na educação básica ainda na educação infantil, todos os profissionais responsáveis por trabalhar com esse público desenvolveram habilidades a fim de atender as demandas, como já apresentadas pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil: “Art. 9º As práticas pedagógicas que compõem a proposta curricular da educação infantil devem ter como eixos norteadores as interações e a brincadeira [...]” (BRASIL, 2009, p. 4).

Contudo, com a instauração da pandemia de COVID-19 ainda no ano de 2020, houve grandes mudanças no que se refere à educação infantil. Com o avanço acelerado do número de pessoas contaminadas pelo vírus SARS-CoV-2 no mundo, a Organização Mundial da Saúde – OMS (2020b) emitiu diversos alertas para os países. Como a ciência ainda não tinha desenvolvido um conhecimento aprofundado sobre a doença, o tratamento e as consequências, a melhor medida de preservação da vida foi o isolamento social.

Considerando o cenário totalmente incerto e inseguro para a convivência em sociedade, o Conselho Nacional de Educação, por meio da Resolução CNE/CP Nº 2, de 10 de dezembro de 2020, instituiu diretrizes nacionais orientadoras para a implementação dos dispositivos da Lei nº 14.040, de 18 de agosto de 2020. As normas educacionais instituídas pela referida lei deveriam ser adotadas pelo sistema de ensino durante o estado de calamidade estabelecido no decorrer da pandemia. Nesse sentido, em relação à educação infantil, salienta-se a necessidade da obrigatoriedade do mínimo de dias de trabalho educacional, bem como o cumprimento da carga horária mínima.

No Estado do Rio Grande do Sul, a partir de 23 de março de 2020, todas as Instituições Gaúchas ficaram com suas atividades suspensas. Após o período de suspensão, o Governo emitiu a medida provisória Nº 934, que estabeleceu normas excepcionais para o ano letivo da Educação Básica. Assim, as aulas passaram a ter interações síncronas e assíncronas, considerando os objetivos de cada nível de ensino.

No município de Rio Grande/RS, seguindo as medidas do Estado, a maneira encontrada para que houvesse o retorno das aulas na educação básica foi o modelo ensino remoto emergencial (ERE). Nessa modalidade, pais, irmãos, tios e outros responsáveis que estavam presentes compartilhavam com as crianças atividades pedagógicas encaminhadas pelos professores cotidianamente. Essa dinâmica mobilizou muitas famílias à necessidade de, junto aos filhos, se conectarem às aulas. Nisso, era preciso, sobretudo, prestar auxílio no que se refere ao acesso, à permanência nos encontros, ao que era proposto pelo docente, ao auxílio para a realização das atividades. Faz-se indispensável mencionar que algumas famílias não tinham acesso à internet, às redes sociais ou às aulas síncronas, mas recebiam as atividades pedagógicas elaboradas pelos professores por meio de impressões. As folhas impressas eram retiradas pelos familiares ou responsáveis na escola e, posteriormente, devolvidas. Em algumas ocasiões, os professores ou a equipe gestora faziam a entrega em domicílio, no intuito de garantir que as crianças tivessem acesso às atividades (BERSCH; RIBEIRO; FINOQUETO, 2021).

Por um lado, houve um esforço dos professores e equipe gestora das escolas da rede municipal para que as crianças da educação infantil tivessem acesso ao ensino remoto emergencial — o que era endossado por algumas famílias. Por outro lado, também havia pais e responsáveis que não percebiam a necessidade de os filhos realizarem atividades pedagógicas em casa. Essa compreensão é fruto de uma visão assistencialista da qual a educação infantil foi originada (PASCHOAL; MACHADO, 2012; BERSCH; RIBEIRO; FINOQUETO, 2021).

Barbosa e Gobbato (2021) corroboram quando afirmam que “A pandemia nos mostrou que questões supostamente resolvidas no plano do discurso, ou até então tidas como certezas da área, constituem-se como fragilidades e desafios para a educação infantil” (BARBOSA; GOBBATO, 2021, p. 1440-1441). Tensões em decorrência da pandemia provocaram e desafiaram os docentes a procurar estratégias de forma urgente. Em seus estudos, as autoras supracitadas problematizaram: como agir pedagogicamente diante do reordenamento da relação família e escola?

De acordo com Arruda e Lima (2013), esse envolvimento afetivo dos responsáveis com as rotinas de estudos das crianças, além de fortalecer vínculos familiares, acaba por beneficiar e favorecer a criança durante o seu desenvolvimento.

Ainda na perspectiva da participação de familiares na rotina de estudo das crianças, as autoras Laguna et al. (2021) apresentam que essa influência pode ser benéfica ou nem tanto. Considerando o dia a dia das famílias brasileiras e sua necessidade de trabalhar, muitos empregos adotaram o formato home office devido à pandemia. Assim, trabalhar, cuidar da família, das demais atividades domésticas, administrar as responsabilidades do emprego e dar conta de todas as demandas são fatores que constituem um grande desafio, quase uma tarefa impossível.

Esse fato mobilizou-nos a investigar as alternativas encontradas por docentes atuantes na educação infantil para trabalhar questões motoras, corporais e interpessoais com crianças de 0 a 5 anos de idade no período de ensino remoto emergencial. A partir do objetivo/ou problema, outras questões orientaram nossa investigação: Como os docentes atuantes perceberam essa participação mais ativa das famílias nas relações com as crianças? Como foram pensadas e adaptadas práticas pedagógicas presenciais baseadas nos dois eixos norteadores, brincadeira e interações, para esse momento atípico, a educação remota? Qual o espaço e tempo da corporeidade nos planejamentos e processos de aprendizagens das crianças no ERE? Qual foram as orientações e o suporte oferecido aos docentes pelo Ministério da Educação (MEC) como recursos de compreender e agir perante o desafio?

Ademais, durante a pandemia do COVID-19, além das relações familiares influenciarem nos encontros remotos, outras estruturas básicas que estão envolvidas no processo de educação foram igualmente afetadas, como a alimentação e as interações entre pares.

Além disso, as DCNEIs (BRASIL, 2009) destacam, como eixos norteadores, as interações e as brincadeiras. Logo, é evidente que, devido ao isolamento social, essas estruturas curriculares básicas da educação infantil ficaram comprometidas, assim:

No processo educacional pandêmico, a educação infantil se constituiu como uma modalidade educativa que não admite a educação à distância, por isso a educação deste momento peculiar andou longe do que ocorreria no cotidiano das instituições e bem distante do que se conhece como educação na modalidade à distância. Houve, portanto, uma flexibilização do fazer pedagógico, alinhando as necessidades das crianças, das famílias e do momento. (CASTRO; ALVES; CASTRO, 2021, p. 2).

Ao encontro disso, o movimento e o corpo na educação infantil também são estruturas essenciais para as crianças pequenas. Essa importância é notória nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil(BRASIL, 2013). Nesse sentido, as atividades que envolvem o movimento corporal e a corporeidade têm um papel muito relevante na educação infantil por proporcionar esse espaço de descoberta de si, dos objetos, dos espaços físicos e promover diversas experiências em que as crianças são estimuladas a criar, a inventar e a viver o movimento nos/pelos seus próprios corpos (BASEI, 2008).

Para as crianças, o movimento é fundamental no processo de aprendizagem e de relação com a vida social. Como afirmou Richter (2006), é através do corpo que a criança se expressa e se comunica, muitas vezes se comunicando mais por gestos do que de palavras. Assim, o movimento e a corporeidade são de suma relevância para o aprendizado das crianças, “pois o corpo expressa e carrega consigo marcas do que experienciamos e vivenciamos” (BUSS-SIMÃO, 2021, p. 1545).

Na infância, a linguagem corporal pode comunicar e expressar os seus sentimentos, mostrando a individualidade e a forma em que elas enxergam e estão aprendendo a ver o mundo (BASEI, 2008). Por isso, os movimentos devem ser considerados, para além da área motora, como potenciais formas de aprendizado e de aprender a socializar culturalmente. É na escola e com a mediação do professor que a criança aprende hábitos básicos da sociedade, como por exemplo, a maneira de comer com os colegas, a dividir seus brinquedos, a correr e a brincar (IZA; MELLO, 2009).

Neste estudo, compreendemos a corporeidade na perspectiva de Sayão (2008, p. 94), para quem:

[...] esse vocábulo expressa a totalidade do corpo de um ponto de vista cujas formas, movimentos, gestos, posturas, ritmos, expressões, linguagens são reconhecidos como uma construção social que acontece na relação entre as crianças e/ou os adultos com a sociedade ou a cultura.

Portanto, considera-se o corpo não apenas como físico, mas também a partir das construções sociais. Sendo assim, é necessário fazer reflexões sobre como questões do movimento eram abordadas na educação presencial e quais alterações ou constâncias passaram a ser trabalhadas durante o período remoto. Por isso, a partir de dados empíricos, este artigo investigou como foi e está sendo o ensino para as crianças da educação infantil que participam dos encontros na modalidade de ensino remoto emergencial, a partir da ótica das professoras.

Os documentos legais e os estudiosos acima referidos destacam que o movimento corporal, as práticas corporais e a corporeidade são indispensáveis na educação infantil. Considerando os eixos norteadores da educação infantil já apresentados, Santos (2020), em seu estudo sobre os desafios da educação infantil no contexto de pandemia de COVID-19, salienta ser possível perceber que as redes de ensino empregaram grande esforço para que as atividades escolares não fossem descontinuadas e que o direito da criança de aprender, mesmo em tempos de isolamento, fossem garantidos. Entretanto, não se pode assegurar que as crianças estão vivenciando de maneira adequada as atividades planejadas pelos professores.

Metodologia

O presente estudo é de caráter qualitativo (MINAYO, 2001) e a pesquisa é exploratória (GIL, 1999). Para a realização desta pesquisa, foram utilizadas duas metodologias: primeiramente, no período de janeiro a maio de 2021, foi feita uma coleta de dados a partir de questionários com 22 profissionais — que neste artigo serão identificados pela letra P referindo-se a participante) e por números (de 01 a 22) —, divididos entre professores e gestores que atuam na rede pública da educação infantil no município de Rio Grande/RS. Destacamos que o estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande – FURG e aprovado conforme Parecer nº. 5.021.684.

O município conta com 16 escolas de educação infantil que atendem exclusivamente crianças de 0 a 5 anos. Algumas escolas de ensino fundamental também oferecem educação infantil. Atualmente, há 411 matrículas de professoras de educação infantil, dentre as quais algumas podem ter duas matrículas. Considerando esse número, de forma aleatória, foram escolhidas 8 escolas de educação infantil e 4 professoras de cada instituição para responder aos questionários. A partir desses dados, fez-se uma análise inspirada na Teoria Fundamentada nos Dados — TFD (CHARMAZ, 2009), da qual emergiram as seguintes categorias: relações com as famílias, interações sociais e movimento corporal.

O papel das famílias em meio ao ensino remoto durante a pandemia

Importante na escola não é só estudar, é também criar laços de amizade e convivência.

(Paulo Freire)

De acordo com a Teoria Bioecológica do Desenvolvimento Humano (TBDH), de Urie Bronfenbrenner e Morris (1998), o desenvolvimento humano está diretamente ligado com quatro núcleos inter-relacionados: o processo, a pessoa, o contexto e o tempo. O processo pode ser definido como as ligações de diferentes níveis que vão sendo construídos pelas atividades diárias e pelos papéis do sujeito em desenvolvimento. Já a pessoa, é possível de ser definida como as mudanças constantes que acontecem na vida do ser humano durante o seu processo de desenvolvimento. O terceiro núcleo, o contexto, refere-se ao ambiente em que o ser em desenvolvimento está inserido, ou seja, espaços onde acontecem os processos de desenvolvimento, como elucidados por Martins e Szymanski (2007) apud Faria e Asinelli- Luz (2009). Por último, mas não menos importante dos núcleos inter-relacionados, o tempo é basicamente relacionado às situações e eventos históricos que podem alterar o curso do desenvolvimento humano, como explicado por Bronfenbrenner e Morris (1998).

Autores como Barbosa et al. (2011) apresentam que a família e a escola são contextos fundamentais para o desenvolvimento humano, pois podem contribuir na qualificação de competências socioemocionais externas ou internas, bem como para a redução de problemas de comportamento.

Segundo Petrucci, Borsa e Koller (2016), a família é o primeiro ambiente de desenvolvimento da criança, pois é nesse contexto que começam as primeiras aprendizagens sobre regras e práticas culturais. Já a escola, para as autoras, é o segundo contexto de desenvolvimento infantil, visto que a criança frequenta regularmente tal espaço social onde são construídas, principalmente, a relação entre pares e a relação entre professor e estudante.

A presença dos professores é transitória na vida dos alunos, raramente resultando em interações duradouras como as que ocorrem com os familiares. Porém, devido ao seu papel de cuidador durante todo um ano letivo, o relacionamento professor-aluno constitui-se como um processo proximal que ocorre no ambiente escolar, podendo atuar como preditor do desenvolvimento de competências e disfunções nas crianças. (PETRUCCI; BORSA; KOLLER, 2016, p. 395).

Com isso, na escola de educação infantil estão envolvidas também questões de desenvolvimento da corporeidade das crianças, ou seja, as experiências também são passadas pelos corpos através das brincadeiras, das interações com o contexto e com as pessoas. Como discutido por Kohan (2020b), as escolas são feitas com corpos presentes, os quais se abraçam, se tocam, se cheiram, se empurram e se atropelam.

Nesse sentido, é possível compreender que o ambiente escolar, os profissionais que atuam na instituição, os contextos pedagógicos de cada atividade e o tempo pensado para cada desenvolvimento contribuem de forma significativa e fundamental para o desenvolvimento das crianças, como ressaltado pela TBDH.

Na escola, a criança se relacionará com diferentes pessoas, como com professores, colegas e demais presentes no corpo diretivo. Nesse aspecto, é possível compreender que os processos, como apresentado por Urie Bronfenbrenner e Morris (1998), vão constituindo o sujeito em desenvolvimento. Favorável a isso, dentro desses processos de convívio, o sujeito vai adaptando o modo de convivência no contexto escolar. Portanto, ao passar por essas adaptações, as características individuais da criança se alteram, reforçando o segundo núcleo da TBDH, que é o contexto e como o ambiente interfere no desenvolvimento humano.

Como forma de relacionar ainda mais esses aspectos, o período de tempo que a criança está presente na escola pode alterar de forma significativa o desenvolvimento desse sujeito, por isso que os processos, a pessoa, o contexto e o tempo são núcleos e fatores fundamentais para o desenvolvimento humano. Portanto, durante a pandemia do coronavírus, é evidente que esses núcleos foram afetados de forma direta, uma vez que as crianças foram privadas de conviver com a escola e com os sujeitos que estão presentes no dia a dia escolar.

Além disso, de acordo com a citação que inaugura esta seção, ressalta-se a importância das interações no ambiente escolar, considerando que a escola é um local de convivência. No entanto, com o isolamento e o distanciamento social durante a pandemia, as escolas — principais ambientes de convívio e interações entre os pequenos — foram fechadas e os núcleos básicos do desenvolvimento humano foram afetados.

Diante disso, vamos trazer alguns excertos 4 dos dados empíricos que versam sobre as experiências dos participantes deste estudo com a educação infantil durante a pandemia. O P2 respondeu “Que é algo que ainda não estamos preparados para lidar” e o P3 resumiu, em três palavras, que a situação é “Um grande desafio”.

De acordo com o P21, a educação infantil na modalidade de ensino remoto precisou ser pensada e repensada:

Diria que foi um desafio muito grande, que precisou ser pensado e repensado com muito embasamento, pois a educação infantil é pautada nas interações e brincadeiras, então como pensar em educação infantil a distância? A proposta de estreitamento de vínculos lançada pela Secretaria de Educação trouxe um norte para os professores, pois mostrou como fazer educação infantil a distância e com significado.

O P22 foi um pouco mais profundo sobre essa questão, respondendo:

Acredito que construir uma educação infantil possível no modelo não presencial foi o grande desafio para a educação como um todo. Sendo essa etapa pautada nas interações, acredito que tenha sido a etapa mais prejudicada e até negligenciada durante essa pandemia.

Alguns excertos destacam as principais mudanças na educação infantil com a pandemia:

Considero que uma das principais mudanças foi a descentralização do contexto da escola para o contexto da casa, descobrimos que a escola é essencial para a aprendizagem das crianças, mas que não é exclusiva. As famílias, mesmo não possuindo a técnica de desempenhar a ação de educar, foram grandes parceiras nesse processo. (P6).

Diante dessas declarações e considerando todas as reflexões até o momento propostas por este artigo, é possível perceber que a educação remota para as crianças pequenas, apesar de recente e desafiante para os envolvidos, permite o levantamento de pontos positivos e negativos. Como destacado pelo P6, por meio da educação remota foi possível perceber que a casa das crianças também pode ser usada como espaço educativo; que tal responsabilidade não é unicamente das salas e ambientes das escolas. Além disso, os pais podem ser aliados muito importantes para o processo de ensino e aprendizagem das crianças, pois com mais participação podem perceber a importância do trabalho pedagógico do docente, como já salientado por Arruda e Lima (2013), bem como por Ferreira (2020) e Rocha (2020).

Contudo, outra reflexão que é proposta a partir das falas desses profissionais é que muito pouco são citadas formações continuadas propostas pelo órgão responsável por toda a estrutura educacional no Brasil, o Ministério da Educação (MEC). Ou seja, é possível observar que os(as) professores(as) foram também negligenciados, já que existiu a ordem de retomada dos encontros remotos pelo parecer CNE/CP Nº 5/2020 (BRASIL, 2020), mas não houve qualificação das pessoas que estariam na linha de frente desses desafios.

Por outro lado, o P9 vê a interferência familiar como uma mudança mais contraproducente: “Para mim, a principal mudança foi a interferência da família no brincar, no imaginário dessa criança”. Ainda, em outras respostas, foi possível perceber que muitos profissionais durante as aulas on-line notaram que as crianças às vezes sentiam vergonha de participar da atividade proposta, visto que a presença do responsável acabava por intimidar a sua liberdade de se expressar, como salientado pelo P11:

Queria continuar ouvindo a criança, que ela se mantivesse viva no planejamento e nas ações que iríamos propor! Depois de muito pensar, vimos que a alternativa eram as videochamadas e interações nos grupos de WhatsApp, que era possível contemplar os anseios das crianças, mesmo à distância. Claro que não é a mesma resposta, que temos famílias que conduzem os pensares das crianças, que por vezes a espontaneidade se perde.

No ambiente escolar, a criança pode mudar o seu comportamento diante dos espaços que frequenta quando estão longe dos familiares, visto que cada situação exige e estimula uma forma específica de inserção para que ocorram as interações entre os sujeitos e o meio. Entretanto, com o ensino remoto, muitas crianças foram limitadas aos cômodos da casa, quartos, sala, cozinha, ou seja, a criança já está acostumada a cada um desses ambientes, passando despercebido qualquer desafio que possa ser imposto pelo local.

Portanto, ao considerar a TBDH de Bronfenbrenner, explicada pelas autoras Faria e Asinelli-Luz (2009), o ambiente que o sujeito está inserido é fundamental para o seu desenvolvimento. Por isso, se há o desejo de alterar o comportamento do sujeito, há a necessidade de alterar o ambiente.

Estudar o ambiente em que os sujeitos estão inseridos é de extrema importância para que ocorra o desenvolvimento, pois se conseguimos estudar as interações entre as características dos sujeitos e seus ambientes, conseguiremos encontrar as explicações para o que fazemos, uma vez que os principais efeitos estão na interação, ou seja, se pretendemos alterar os comportamentos, precisamos modificar os ambientes. (BRONFENBRENNER, 2002 apud FARIA; ASINELLI-LUZ, 2009, p. 8128).

A pandemia e a descoberta de novas possibilidades de fazer a educação infantil (BARBOSA; GOBBATO, 2021) para além dos muros da escola oportunizam as/os docentes a acordar, com os responsáveis, atividades que colaborem com o desenvolvimento da criança em todos os espaços que ela frequenta.

Com todas as mudanças ocasionadas pelo vírus SARS-CoV-2, foi possível evidenciar, como nunca antes experienciado, a importância da reciprocidade e concreticidade do vínculo entre famílias e escolas. Pensamos que essa parceria é fundamental para o desenvolvimento infantil, entretanto, é preciso que não se anulem, ou seja, a família não pode desvalorizar o ambiente educador da escola, bem como a instituição escolar não pode menosprezar a casa e o convívio com os familiares — visto que também é um espaço que educa, constrói valores, crenças e, sobretudo, a personalidade do sujeito em desenvolvimento. Nesse sentido, e partindo de pressupostos que o corpo, a corporeidade, o movimento e a linguagem corporal são aspectos imprescindíveis no processo de ensino e de aprendizagem na educação infantil, questionamos: quais são as possibilidades para o movimento e para a corporeidade nesse novo contexto? No intuito de discutir a temática, passamos a tratar da segunda categoria: o movimento corporal.

Tempos e espaços do movimento corporal e das interações diante o Ensino Remoto Emergencial

O movimento corporal é extremamente importante, principalmente na educação infantil, e a mediação do professor influencia nesse processo. Como afirmam Iza e Mello (2009), é importante o auxílio da professora, colocando diversos materiais à disposição da criança, observando os movimentos que ela faz com o corpo e como interage com os colegas, já que os conhecimentos vêm não só do próprio corpo, mas também da interação da criança com os objetos disponíveis e os outros da turma. Por meio das respostas dos questionários sobre a contribuição do movimento na educação infantil, foi possível observar que a maioria está de acordo com a visão apresentada neste estudo, como escrito nas respostas abaixo:

A meu ver, o movimento é algo que ocupa a centralidade no processo de ensino e aprendizagem na educação infantil. É a partir do corpo e suas conexões com o movimento que as crianças vão construindo as suas relações com os espaços da escola e com as pessoas que nela se encontram, seja com funcionários ou com outras crianças. Além disso, é a partir do movimento que as crianças expressam as suas emoções, sentimentos e frustrações [...]. Entendo que é a partir do corpo que as relações com o mundo se estabelecem, bem como a criação das ‘coisas’, dando sentido a tudo. É a partir do corpo e por ele que são estabelecidas a linguagem e a comunicação entre os pares, dando sentido à existência do homem no mundo. (P5).

Sayão (2008, p. 94) salienta que:

Com relação aos/às pequenininhos/as, é através de brincadeiras, de diversas linguagens, de seus sentimentos, de suas expressões, de gestos, de movimentos que empreendem com seus corpos em diferentes espaços, que os/as eles/as vão dando sentido à infância.

Em consonância, P9 afirma: “[O movimento é] Essencial, pois trata-se de corpo inquieto, ativo, com energia e que expressa muito seus sentimentos através deste corpo”. Também P12 assegura que: “O movimento é a base de tudo, seu trabalho é imprescindível na educação infantil, uma vez que as crianças precisam vivenciar os movimentos, reconhecendo e internalizando suas mais variadas potencialidades”. Estudos de Basei (2008) também evidenciam essas percepções:

É um espaço para que, através de situações de experiências – com o corpo, com materiais e de interação social – as crianças descubram os próprios limites, enfrentem desafios, conheçam e valorizem o próprio corpo, relacionem-se com outras pessoas, percebam a origem do movimento, expressem sentimentos, utilizando a linguagem corporal, localizem-se no espaço, entre outras situações voltadas ao desenvolvimento de suas capacidades intelectuais e afetivas, numa atuação consciente e crítica. (BASEI, 2008, p. 1).

Por meio da análise dos dados, foi possível observar a frustração dos professores com o contato virtual, por não conseguirem conduzir os movimentos diretamente, por não acompanharem a reação das crianças e pela falta de interação entre elas (tendo em vista que vários participantes a pontuaram como uma questão importante para o ensino- aprendizado). O P7 escreveu sobre isso: “O sentimento foi de angústia pelas dificuldades trazidas pela pandemia. Era muito difícil pensar nas propostas para a EI sem ter o contato presencial com as crianças”. Tal relato converge para o que Teixeira; Lôbo e Duarte (2016) afirmam sobre as relações:

A criança quando estende seu contato com outras crianças, com outras pessoas e com novos ambientes passa a desenvolver repertórios com características especialmente ligadas a esse contexto que intervém estabilidade do processo até então constituído, influindo mudanças para com a interação, tornando-se mais evidente o desenvolvimento distinto que cada relação oferece. (TEIXEIRA; LÔBO; DUARTE, 2016, p. 9).

Antes da pandemia e no contexto da escola, muitos espaços eram explorados para o ensino das crianças e para além da sala de aula, como é possível observar no relato do P5:

O movimento ocupa espaço central no meu planejamento. Procuro, ao longo das minhas aulas, explorar os diferentes espaços que a escola dispõe: pátio calçado, pátio de grama, pracinha, ginásio, sala de ginástica, sala de aula, Escunoteca 5.

Dessa forma, é possível perceber uma grande dificuldade enfrentada pelos professores em continuar incentivando as crianças a explorar novos espaços e aprender com isso, já que não se sabe se todas elas têm pátios em suas residências ou outros espaços que possibilitem movimentos corporais mais amplos, como correr, saltar, pular, girar etc.

Miragem e Almeida (2021), ao abordarem a relação entre teoria e prática da educação física, afirmam que os espaços contribuem para a prática pedagógica e, muitas vezes, possuem uma relação afetiva com os alunos. Porém, eles sugerem que também é possível expandir o movimento corporal para novos espaços, não se limitando a um ambiente específico. Mesmo que em casa seja possível oportunizar o movimento corporal, é necessário que o professor tenha conhecimento desses espaços e das suas possibilidades para propor estratégias pedagógicas.

Além disso, uma das funções do professor é a mediação entre a criança e o ambiente. Nessa perspectiva, uma das preocupações dos educadores é o despreparo dos pais com relação ao acompanhamento da execução das atividades propostas, fragilizando ou prejudicando a aprendizagem das crianças. O processo de mediação pedagógica nesse novo ambiente tecnológico é citado por Prado (2006), que salienta a importância da busca desse acompanhamento mesmo em ambiente virtual, adaptando-se às necessidades de cada aluno e favorecendo o processo de ensino e aprendizagem. Tardif corrobora com essa ideia:

Uma boa parte do trabalho docente é de cunho afetivo, emocional. Baseia-se em emoções, em afetos, na capacidade não somente de pensar nos alunos, mas igualmente de perceber e de sentir suas emoções, seus temores, suas alegrias, seus próprios bloqueios afetivos. (TARDIF, 2001, p. 29).

Em consonância com os fatos expostos, salienta-se que a pandemia de COVID-19 afetou diversos âmbitos da Educação Infantil. No ERE foram notórias as dificuldades no que tange principalmente ao eixo das interações. Sendo assim, quais limitações a pandemia de COVID-19 trouxe para as interações sociais na Educação Infantil?

Anterior à pandemia, no ensino presencial, o ambiente escolar permitia às crianças a vivência através das interações com seus pares, com o ambiente e com os professores, possibilitando a aprendizagem lúdica e coletiva. Em contrapartida, no modelo de ERE, nota-se um distanciamento dessas práticas, como salienta P5:

[...] a definição que cabe é a ‘falta’. Falta algo: falta o toque, falta o barulho, falta o olhar direto, falta ver o processo das crianças dialogando, brincando e se desentendendo juntas, construindo seus conhecimentos a partir das interações entre si, com os colegas, comigo, com os espaços da escola.

No modelo de ERE, as crianças precisaram adaptar-se a novos modelos de ensino e aprendizagem. Afastados da escola, o contato era realizado por meio de meios digitais, como celulares, notebooks, computadores, entre outros, geralmente com auxílio dos adultos, apenas para acessar as salas virtuais. Nem todas as famílias conseguiam acompanhar as dinâmicas propostas, sendo assim, as crianças tendiam a ficar sentadas em frente às telas, realizando as atividades propostas de maneira individual. Nesse sentido, Cecílio (2021) salienta que a educação infantil foi uma das etapas de ensino mais afetadas, pois a aprendizagem e o desenvolvimento das crianças dependem das relações estabelecidas entre elas e o cotidiano escolar.

Considerações finais

O desenvolvimento do presente estudo possibilitou uma análise sobre as alternativas encontradas por docentes atuantes na educação infantil para trabalhar questões motoras, corporais e interpessoais, com crianças de zero a cinco anos de idade, considerando o cenário de ensino remoto emergencial. Além disso, a pesquisa permitiu um olhar sensível às questões relacionadas às famílias, às interações sociais e aos movimentos corporais estabelecidos nesse período.

Esse artigo foi projetado visando a caracterizar e a problematizar a educação infantil no ensino remoto emergencial ao longo da pandemia de COVID-19. Sendo assim, diversas questões emergiram, como: Qual o papel da família em meio ao ensino remoto emergencial? Quais as possibilidades para o movimento e para a corporeidade nesse novo contexto? Quais limitações a pandemia ocasionou no contexto das interações sociais na educação infantil?

Assim, foi possível analisar diversos pontos de vista sobre a pandemia e os processos educativos possíveis. Concluímos que a COVID-19 trouxe inúmeros desafios para a educação, principalmente na educação infantil, que é baseada no movimento, nas interações e nas brincadeiras. Esse momento que vivemos trouxe várias marcas para as crianças, as quais ainda veremos por muitos anos. Por essa razão, faz-se necessário expandir os estudos sobre a pandemia e a educação infantil, visando a encontrar novas formas de ser e lidar com os corpos infantis nesse novo momento e com as consequências ocasionadas pelo ensino remoto emergencial.

Ademais, é possível identificar que os professores participantes deste estudo consideraram as diretrizes e orientações que compõem os documentos orientadores da educação infantil, entretanto, a insegurança na adaptação dos materiais e propostas pedagógicas do presencial para o remoto foi o principal conflito para os docentes. Tal fato gerou medos e dúvidas sobre como agir perante a nova realidade, visto que o MEC também não ofereceu (in)formações complementares para os educadores para auxiliá-los a compreender e pensar novas estratégias para enfrentar a proposta de ERE.

No que se refere à educação infantil, de acordo com os dados coletados, o ensino remoto emergencial fez com que houvesse um distanciamento das práticas corporais e das interações entre os pares, deixando lacunas nos eixos estruturantes dessa etapa de ensino. Os docentes, embora tenham realizado propostas que buscassem interlocuções pautadas nas interações e brincadeiras, não tiveram resultados satisfatórios, pois compreendem que a educação infantil depende das experiências vividas através do corpo e do contato com o outro. Visto isso, não encontraram metodologias possíveis para ressignificar a importância de estar presente no ambiente escolar, assim como a importância dos vínculos afetivos construídos nas aulas presenciais.

De acordo com os dados apresentados, conclui-se que as famílias no contexto do ensino remoto emergencial foram de suma importância para garantir a participação das crianças durante as aulas. Para tanto, no que se refere às interações sociais e aos movimentos corporais, pode-se concluir que houve um rompimento dessas relações, pois muitas vezes as atividades ficaram pautadas no diálogo dos professores com as famílias, as quais iam mediando as interações entre crianças e, ocasionalmente, não respeitando a autonomia delas. Em consonância com os dados apresentados, é possível afirmar que o ensino remoto emergencial ocasionou um rompimento no que concerne aos eixos estruturantes da educação infantil.

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4Os excertos serão apresentados entre aspas indicando que são oriundos dos dados empíricos.

5Sala de jogos e brinquedos.

Recebido: 11 de Julho de 2022; Revisado: 13 de Setembro de 2022; Aceito: 10 de Outubro de 2022

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Todo o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo foi publicado no próprio artigo.

Editora:

Profa. Dra. Lia Machado Fiuza Fialho

Lindsey Machado de Oliveira

é graduada em pedagogia pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG).

Jade Ariane Medeiros Machado

é graduanda em educação física pela Universidade Federal do Rio Grande. Atualmente é monitora de inclusão na educação infantil.

Michelle Martins Telles

é graduada em pedagogia e educação física pela Universidade Federal do Rio Grande. Atualmente é professora pela Rede Municipal de Ensino da cidade de Pelotas, RS.

Angela Adriane Schmidt Bersch

é doutora e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação Ambiental Uni (FURG). Atualmente é professora adjunta do Instituto de Educação da FURG.

Contato: lindseyoliveira1051@gmail.com

Contato: jadeariane2011@gmail.com

Contato: angelabersch@gmail.com

Contato: michellemartinstelles@gmail.com

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