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Educação e Pesquisa

Print version ISSN 1517-9702On-line version ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.49  São Paulo  2023  Epub June 22, 2023

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202349265127 

SEÇÃO TEMÁTICA: Educação em contexto de crise sanitária causada pela Covid-19

A suspensão das suspensões: a “forma escolar” e a “ skholé ” em tempos de pandemia

Luiz Antonio Callegari Coppi1 
http://orcid.org/0000-0001-7613-1355

1- Luiz Antonio Callegari Coppi, Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, São Paulo/SP, Brasil. É bacharel em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e Mestre e Doutor em Educação pela Faculdade de Educação da mesma Universidade. luiz.coppi@usp.br


Resumo

A pandemia de Covid-19 promoveu, a toque de caixa dada a urgência do momento, a transposição para plataformas digitais de atividades escolares planejadas originalmente para o contexto presencial. No entanto, a substituição da arena em que as aulas ocorrem não é irrelevante, e, neste artigo, pretende-se mostrar como as características tecnológicas dos aplicativos utilizados tensionam o que, nos últimos séculos, vem se entendendo como escola. Para tanto, propõe-se, em primeiro lugar, uma visita ao momento do ressurgimento da escola durante o Renascimento e a relação desse evento com uma tecnologia específica, a prensa de tipos móveis de Gutenberg — os saberes livrescos, então, instituem a escola como um espaço diferente dos ambientes familiares e sociais, dando origem ao que se convenciona chamar de “Forma Escolar”. A partir daí, o artigo avança na argumentação articulando esse conceito ao de skholé , que concebe a escola como um espaço de suspensão das lógicas que vinculam as crianças e os jovens a uma identidade fixa e incontornável. Essa suspensão permite a eles uma desidentificação em relação a destinos pré-determinados e uma experiência de igualdade, de experimentação de si. Por fim, contrastam-se esses conceitos de “Forma Escolar” e de skholé com as condições de realização do ensino remoto durante a pandemia, e se colocam algumas questões sobre o que se espera da escola enquanto projeto coletivo.

Palavras-Chave: Ensino remoto; Pandemia; Forma escolar; Skholé; Tecnologia

Abstract

Due to the moment’s urgency, the Covid-19 pandemic promoted the transposition of school activities originally planned for the face-to-face context to digital platforms. However, replacing the arena in which classes take place is not irrelevant, and this article intends to show how the technological characteristics of the applications used strain what, in recent centuries, has been understood as the school. To this end, we propose, firstly, a visit to the moment of the resurgence of the school during the Renaissance and the relationship of this event with a specific technology, Gutenberg’s movable type press — bookish knowledge, then establishes the school as a space different from family and social environments, giving rise to what is conventionally called “School Form.” From there, the article advances in the argument articulating this concept to that of skholé , which conceives the school as a space of suspension of the logic that binds children and young people to a fixed and unavoidable identity. This suspension allows them to disidentify from predetermined destinations and experience equality and self-experimentation. Finally, these concepts of “School Form” and skholé are contrasted with the conditions for performing remote teaching during the pandemic. Some questions are raised about what is expected of the school as a collective project.

Key words: Remote teaching; COVID-19 Pandemic; School form; Skholé; Technology

Introdução

Neil Postman (1993 , p. 18) defende uma tese instigante a respeito das mudanças tecnológicas. Escreve ele que a relação que se estabelece entre um dado ambiente e uma tecnologia não é nem aditiva nem supressiva. Se essa tecnologia for significativa, afirma o autor, há uma alteração que ele categoriza como “ecológica”. Para explicar essa ideia, ele recorre ao exemplo do que ocorre quando uma lagarta é inserida em um determinado habitat ou é dele suprimida: essas mudanças não produzem como efeito o mesmo habitat mais a lagarta, em caso de inserção, ou menos a lagarta, caso haja sua retirada — o resultado é, na verdade, uma alteração total nas condições de reprodução, nas lógicas das cadeias alimentares. Em suma, um ambiente totalmente novo é criado. Para Postman, algo de similar ocorre no que diz respeito às tecnologias. A Europa com a prensa de tipos móveis de Gutenberg, exemplifica, não é a mesma Europa mais a prensa — tem-se uma Europa completamente nova, com novas condições para a circulação de informação, com possibilidades inéditas de desenvolvimento científico. A chegada do televisor aos Estados Unidos tampouco gera o mesmo país mais o televisor: há uma transformação profunda em “cada campanha política, em cada residência, em cada escola, em cada igreja, em cada indústria” ( POSTMAN, 1993 , p. 18). Essa percepção “ecológica” vai ao encontro do que defende Pierre Lévy (2014), também interessado nas transformações operadas a partir das tecnologias — em especial, em seu caso, a partir do mundo virtual — ainda que sob um ponto de vista bastante diferente do adotado por Postman. Lévy afirma ser inadequado pensar nos “impactos” de uma dada tecnologia como se ela viesse de algum lugar externo à sociedade em que se desenvolve. Ela é, afinal, elemento intrínseco aos contextos em que surge e capaz de alterá-los e de ser alterada por eles.

A esse respeito, aliás, Postman escreve que “coisas novas requerem palavras novas, mas também modificam palavras antigas” (POSTMAN, 1993, p. 9). “O computador”, escreve o autor, “transforma o que se entende por informação; a escrita altera o que se entendia por verdade e por lei; a imprensa, depois, modifica de novo os sentidos desses termos; depois, a televisão e o computador também o reconfiguram” ( POSTMAN, 1993 , p. 9). E conclui:

As palavras antigas ainda parecem as mesmas, são usadas nos mesmos tipos de sentenças. Mas não têm os mesmos sentidos; em alguns casos, aliás, contradizem o que significavam. [...] São redefinidos os conceitos de ‘liberdade’, de ‘verdade’, de ‘inteligência’, de ‘fato’, de ‘sabedoria’, de ‘memória’, de ‘história’ — palavras a partir das quais se vivia. E sem que haja uma pausa para que se possa nos explicar. E sem que pausemos as coisas para podermos questionar. ( POSTMAN, 1993 , p. 9).

Neste artigo, pretendemos colocar em cena a alteração de uma outra palavra que escapa a esta listagem de Postman: trata-se do termo “escola”. Mas, diferentemente do que motiva as reclamações do teórico americano, procuraremos pausar por um instante, a despeito da velocidade das mudanças e da urgência do momento, e colocar algumas questões a tal alteração. Comecemos, portanto, com um pouco mais de vagar, afinal, antes de tratar das possíveis transformações no sentido de “escola”, é preciso contextualizar alguns dos elementos que as motivam.

A pandemia de Covid-19, que se iniciou no final de 2019 e ganhou corpo no começo de 2020, obrigou os países, de maneira mais ou menos efetiva, mais ou menos drástica, a suspenderem o ritmo acelerado de suas economias. O distanciamento social, uma das poucas medidas seguras para evitar a propagação do vírus, provocou uma interrupção, um ralentamento em diversos serviços. E, com as escolas, não foi diferente. No estado de São Paulo, por exemplo, o decreto 64.864, publicado no dia 16 de março de 2020, iniciou a suspensão das aulas presenciais e, após alguns dias, em 23 do mesmo mês, 100% delas foram interrompidas. Quase um mês depois, por meio da Resolução Seduc, autorizou-se a retomada dos trabalhos de maneira remota por meio do aplicativo do Centro de Mídias e da TV Educação2 . Nas escolas particulares, as atividades também se transferiram para o modelo online, e plataformas como o Google Meet e o Zoom foram utilizadas para manter os calendários. A urgência provocada pela pandemia transpôs para o ambiente virtual um planejamento escolar feito para atividades presenciais, ou seja, não se trata do Ensino à Distância propriamente dito, como regulamentado pelo decreto 9.057/17, mas sim de uma solução improvisada e, de certa forma, incontornável, diante da gravidade do momento. No entanto, caso levemos a sério o ponto defendido por Postman a respeito das transformações ecológicas derivadas da inserção de uma dada tecnologia num determinado contexto, talvez valha a pena refletir com um pouco mais de cuidado sobre as modificações operadas por uma tal transposição.

A respeito dela, Loureiro e Veiga-Neto (2022) , por exemplo, criticam, em certo sentido, justamente a inexistência de modificações substanciais no cotidiano escolar em meio a essa situação de exceção. A manutenção de um calendário produtivista que ignorou a especificidade do momento vivido globalmente e que atendeu a interesses mais econômicos do que propriamente pedagógicos é o alvo dos autores. Carvalho (2020) , por sua vez, também descrente em relação à tentativa de se manter uma rotina como se nada houvesse de diferente, sugere, a partir do pensamento de Hannah Arendt, que se reconheça a potência do que a crise indica. Para Arendt, momentos como esse recolocam como questões aquilo que nos acostumamos a tomar como natureza, como dado. Nesse sentido, o autor reivindica que a interrupção não seja ignorada em nome de uma rápida superação preenchida por atividades habituais como se nada de novo houvesse: talvez, sugere, fosse possível apostar na busca por sentidos formativos nas obras humanas. Seguindo uma postura parecida à proposta por esses autores, também procuramos dar espaço ao que a crise nos conta. Alinhados a um fazer próprio da Filosofia da Educação ( REBOUL, 2017 ), não estamos interessados aqui no estabelecimento de um programa ou de soluções. Tampouco é nosso intuito criticar os procedimentos didáticos adotados pelas professoras e pelos professores ao longo do período de suspensão das aulas presenciais ou sugerir encaminhamentos do que se poderia ter feito e do que, em caso de novas interrupções, pode-se ainda fazer. O que pretendemos, na verdade, é aproveitar a lacuna potencial aberta pelo momento para lançar algumas interrogações: o que se transforma no que se entende por “escola” quando são outras as tecnologias que a suportam? Quais as consequências dessas alterações? Querem-se essas consequências? Aqui, pretendemos arriscar respostas para as duas primeiras dessas questões. A última, cremos, parece implicar-nos a todos, individual e coletivamente, em uma decisão acerca da escola que se deseja enquanto projeto.

Para o que nos cabe, então, este texto se organiza da seguinte maneira: num primeiro momento, buscando justificar que a alteração do contexto em que a educação se realiza tecnologicamente não é algo menor, desenvolveremos uma breve apresentação da relação entre o reaparecimento da ideia de “escola” após o Renascimento e o surgimento de uma tecnologia específica: a prensa de tipos móveis desenvolvida por Johannes Gutenberg. Nesse sentido, realizaremos uma breve revisão bibliográfica dos trabalhos de Ariès (1978) e de Postman (1999) a fim de esboçar como essa invenção tem relevância para o que Vincent, Lahire e Thin (2001) chamarão de “forma escolar”. Um dos traços desse conceito é a escola ser uma instituição separada do ambiente doméstico, o que, em tempos de ensino remoto, acaba se anulando. Essa anulação, todavia, não altera apenas a “forma escolar”: ela coloca em xeque as condições necessárias para que a escola possa ser skholé , como Masschelein e Simons (2014) compreendem tal ideia. Para explicar essa afirmação, primeiramente, exporemos essa noção a partir de dois movimentos operados por ela — a “suspensão” e a “desidentificação”. A seguir, por meio de uma breve descrição de aspectos das tecnologias que, durante a pandemia, suportaram a escola, trataremos das tensões que essa reconfiguração instaura nas próprias condições de skholé .

Em linhas gerais, portanto, o que pretendemos defender por meio dessas revisões bibliográficas, da explicitação do conceito de skholé e da descrição de características das plataformas digitais é que, ao menos em potência, essas características colocam em risco uma certa compreensão do fazer educacional que, a nosso ver, deve ser defendida.

A forma escolar e a tecnologia da imprensa

Recorrendo a Harold Innis, Neil Postman (1999 , p. 37) afirma que as tecnologias de comunicação não são neutras, pois, invariavelmente, alteram o que é pensado, os símbolos utilizados para pensar, e a arena, ou a comunidade, em que se pensa. E isso, salienta o autor, nem sempre é planejado. Numa outra obra, por exemplo, tratando sobre o desenvolvimento do relógio mecânico, Postman (1993) lembra que este objeto, aperfeiçoado no século XIV por monges que queriam ajustar os tempos para suas preces, tornou possível a ideia da produção regular e a subsequente padronização das horas de trabalho e daquilo que é produzido, ou seja, tornou possível a própria noção de Capitalismo. A prensa de tipos móveis de Gutenberg, nesse sentido, não é uma ferramenta que simplesmente, sem maiores consequências, aumenta o número de livros produzidos e postos em circulação: ela o faz, certamente, e, com isso, multiplica as ideias e difunde o pensamento, algo que, por si só, já é bastante transformador, mas não é exatamente este o ponto de interesse. Os livros que começam a circular não modificam apenas o que se sabe; eles modificam, sobretudo, como se sabe. É aí, argumenta Postman, que reside uma transformação fundamental na mentalidade e na subjetividade humanas que torna possível a criação de uma condição sine qua non para o desenvolvimento das escolas: o aparecimento da “infância”.

Observemos mais cuidadosamente o argumento.

Conta Ariès (1978) , que “infante” é um termo que vem do latim e que é composto por duas partes. O prefixo in- é uma partícula de negação; -fans, por sua vez, remete a voz. “Infância”, nesse sentido, indica a pessoa que ainda não fala, que não domina todos os códigos de comunicação de seu grupo. Por volta dos sete anos de idade, então, quando já se tem relativo domínio sobre esses códigos, o sujeito já é considerado pronto para integrar a sociedade em praticamente todos os seus ambientes e atividades. Num mundo organizado sobretudo oralmente, “a criança da Idade Média tinha acesso a quase todas as formas de comportamento comuns à cultura”, escreve Postman (1999 , p. 30) antes de também afirmar que “o menino de sete anos era um homem em todos os aspectos, exceto na capacidade de fazer amor e guerra”. Citando J. H. Plumb, o autor ainda lembra que “não havia em separado um mundo da infância; as crianças compartilhavam os mesmos jogos com os adultos, os mesmos brinquedos, as mesmas histórias de fadas; viviam juntos, nunca separados” ( POSTMAN, 1999 , p. 30). A infância, então, como a entendemos hoje, precisou ser criada, inventada, e, para Postman, o artefato inventado por Gutenberg atua nesse processo a partir de duas frentes, mesmo que, provavelmente, sem intenção de fazê-lo: por um lado, cria um sentimento de identidade individual; por outro, produz uma “lacuna do conhecimento” que, para ser suprida, demanda a separação e o prolongamento do que se passa a entender como o mundo infantil.

Quanto ao primeiro desses aspectos, Postman o vincula à prensa de tipos móveis a partir de um gesto inaugurado pela leitura. Com o livro impresso, afirma, “a oralidade emudeceu, e o leitor e sua reação ficaram separados de um contexto social” (POSTMAN, 1999, p. 41). Do século XVI até o presente, continua o autor, “o que a maioria dos leitores exigiu dos outros foi a sua ausência, ou, se não isto, seu silêncio” ( POSTMAN, 1999 , p. 41), e, um pouco mais adiante, conclui que a leitura é um ato antissocial. Isso não significa, defende o autor, que a prensa tipográfica tenha criado o individualismo, mas sim que o tornou algo aceitável. “Podemos dizer”, escreve, “que a prensa tipográfica nos deu nossos ‘eus’, como indivíduos únicos, para pensar e falar deles” ( POSTMAN, 1999 , p. 42).

São necessárias, no entanto, antes de continuarmos, algumas ressalvas quanto às afirmações de Postman e a outras condutas contemporâneas a esse gesto inaugural da individualidade. Em primeiro lugar, Roger Chartier, por exemplo — ainda que também aponte para esse fenômeno, afirmando que “a leitura silenciosa abre horizontes inéditos” (CHARTIER, 2009, p. 129) para aqueles que podem praticá-la, uma vez que “propicia audácias até então interditas” e “libera das antigas mediações, subtrai aos controles do grupo, autoriza o recolhimento” ( CHARTIER, 2009 , p. 119) —, ressalta a importância da concomitância entre essas novas práticas de leitura com práticas coletivas, as quais não apenas se mantiveram, mas também se transformaram ao longo do tempo. Nesse sentido, pontua o autor, “entre os séculos XVI e XVIII, a leitura em voz alta num grupo de amigos diletantes ou companheiros casuais torna-se um dos elementos essenciais da sociabilidade” ( CHARTIER, 2009 , p. 148). A leitura silenciosa, por um lado, indica Chartier, estimula o estudo pessoal; por outro lado, uma nova espécie de laço social também se começa a difundir com a proliferação livresca: “a sociedade amistosa baseia-se na leitura em voz alta, na glosa, na discussão”, as quais, continua o autor, “podem reunir um auditório mais amplo que se instrui ouvindo os textos lidos e os argumentos expostos” (CHARTIER, 2009, p. 150). Além disso, cabe também mencionar, como o faz Chartier, que a expansão da leitura não condiz exatamente com a da escrita: segundo o autor, é mais difícil medir a quantidade de pessoas que eram capazes de escrever, porque, normalmente, essa estimativa é feita a partir das assinaturas, as quais “são indicadores culturais microscópicos, compósitos, que não medem exatamente nem a difusão da capacidade de escrever, mais restrita do que os números indicam, nem a da leitura, que é mais extensa” (CHARTIER, 2009, p. 114).

Uma outra ressalva a se fazer é a de que o processo de construção desse “eu”, evidentemente, não se limita àquilo que se começa a vivenciar a partir da prensa. Alain Corbin (2009) , por exemplo, aponta como, ao longo do século XIX, a difusão de alguns objetos, como o espelho de corpo inteiro e o retrato pessoal, e a proliferação de novos traços arquitetônicos, como os quartos privados no interior das casas, também atuam na gênese desse sentimento de identidade individual, “interditando a metamorfose” ( CORBIN, 2009 , p. 403) e “desamontoando os corpos” ( CORBIN, 2009 , p. 410).

Em todo caso, voltando-nos agora à argumentação de Postman, “a ideia de que cada indivíduo é importante em si mesmo, de que a vida e a mente humana transcendem a comunidade em algum sentido fundamental” (POSTMAN, 1999, p. 42) será estendida também para os jovens e para as crianças.

Soma-se a isso aquilo que o autor chama de “lacuna do conhecimento”, a qual se abre com a tipografia. Forma-se “uma nítida divisão entre aqueles que sabiam ler e os que não sabiam, ficando estes últimos limitados a uma sensibilidade e a um nível de interesse medievais, ao passo que os primeiros eram lançados num mundo de novos fatos e percepções” ( POSTMAN, 1999 , p. 42). Ser adulto, nesse sentido, significa não mais dominar apenas os códigos orais de comunicação, mas também, e sobretudo, os códigos escritos de uma sociedade que, a passos largos, encaminha-se para uma cultura livresca. Sintetizando, Postman escreve o seguinte:

No transcorrer do século um ambiente simbólico inteiramente novo tinha sido criado. Esse ambiente encheu o mundo de novas informações e experiências abstratas. Exigia novas habilidades, atitudes e, sobretudo, um novo tipo de consciência. Individualidade, enriquecida capacidade para o pensamento conceitual, vigor intelectual, crença na autoridade da palavra impressa, paixão por clareza, sequência e razão — tudo isso passou para o primeiro plano, enquanto o oralismo medieval retrocedia.

O que aconteceu, simplesmente, foi que o Homem Letrado tinha sido criado. E ao chegar deixou para trás as crianças. Pois, no mundo medieval, nem os jovens nem os velhos sabiam ler e seu interesse era o aqui e agora, o “imediato e local”, como disse Mumford. É por isso que não havia necessidade da ideia de infância, porque todos compartilhavam o mesmo ambiente informacional e, portanto, viviam no mesmo mundo social e intelectual. Mas, quando a prensa tipográfica fez a sua jogada, tornou-se evidente que uma nova espécie de idade adulta tinha sido inventada. A partir daí a idade adulta tinha de ser conquistada. Tornou-se uma realização simbólica e não biológica. Depois da prensa tipográfica, os jovens teriam de se tornar adultos e, para isso, teriam de aprender a ler, entrar no mundo da tipografia. E para realizar isso precisariam de educação. Portanto a civilização europeia reinventou as escolas. ( POSTMAN, 1999 , p. 50).

Doravante, a aprendizagem necessária para a inserção social e cultural passa a ser, curiosamente, apartada desse contexto social e cultural. “Durante séculos”, escreve Ariès, “a educação foi garantida pela convivência da criança ou do jovem com adultos” (ARIÈS, 1978, p. 11); com a tipografia, isso se altera. “A criança deixou de ser misturada aos adultos e de aprender a vida diretamente”, pontua o autor antes de afirmar que “a criança foi separada dos adultos e mantida à distância numa espécie de quarentena antes de ser solta no mundo; essa quarentena foi a escola, o colégio” ( ARIÈS, 1978 , p. 13). E esse distanciamento é fundamental para que se desenvolva aquilo que Vincent, Lahire e Thin (2001) definirão como “forma escolar”. Segundo esses autores:

O que aparece em certa época, nas sociedades europeias, é uma forma inédita de relação social entre um “mestre” (num sentido novo do termo) e um “aluno”, relação que chamamos de pedagógica. Ela é inédita, em primeiro lugar, no sentido em que é distinta, se autonomiza em relação a outras relações sociais: o mestre não é mais um artesão “transmitindo” o saber-fazer a um jovem [...]. Essa autonomização por referência às outras relações desapossa os grupos sociais de suas competências e prerrogativas. Por toda parte, em relação ao que, de agora em diante, será considerado como a antiga sociedade, “aprender” se fazia “por ver-fazer e ouvir-dizer”: seja entre camponeses, artesãos ou nobres, aquele que aprendia — isto é, em primeiro lugar, a criança —, fazia a aquisição do saber ao participar das atividades de uma família, de uma casa. Dito de outra maneira, aprender não era distinto de fazer. É esta retirada de poder que vai suscitar resistências à escolarização, inclusive, por parte de grupos, como a nobreza, com relação a escolas concebidas especialmente para ela. (VINCENT, LAHIRE e THIN, 2001, p. 13).

Essa “relação pedagógica”, como qualquer outra relação social, “instaura um lugar específico distinto dos lugares onde se realizam as atividades sociais: a escola” (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001, p. 13). Além disso, implementa um tempo específico, que é o tempo escolar. “Num espaço fechado e totalmente ordenado para a realização, por cada um, de seus deveres” (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001, p. 15), continuam um pouco mais à frente os autores, “num tempo tão cuidadosamente regulado que não pode deixar nenhum espaço a um movimento imprevisto, cada um submete sua atividade aos princípios ou regras que a regem” (VINCENT; LAHIRE; THIN, 2001, p. 15). A relação pedagógica, portanto, organiza-se menos a partir da vontade do mestre ou do aluno e mais por meio de regras impessoais: é essa, no essencial, a forma escolar, segundo a conclusão dos autores.

Posto isso, dois pontos parecem decorrentes do que foi desenvolvido até aqui. O primeiro é que a “escola”, ao menos da forma como ela se instituiu até os dias de hoje, tem vínculos com as tecnologias de comunicação: sua instauração é devedora, em alguma medida, da tipografia de Gutenberg e, portanto, não é coisa pouca sua transferência apressada, dada a urgência da pandemia, para um outro suporte tecnológico. O segundo aspecto relevante é que alguns pontos importantes do que caracteriza a forma escolar são também transformados com essa transposição. Por um lado, durante as aulas remotas, não há mais a especificação de um tempo/espaço distinto dos tempos e espaços do restante da vida social: o acompanhamento das aulas é feito no ambiente doméstico e nem sempre segue os mesmos tempos e ritmos do que pode ocorrer nos encontros presenciais (a qualidade da conexão na internet, por exemplo, que impede que se participe das aulas sincronamente e transforma o aluno em um “espectador” de uma aula gravada, ilustra esse ponto). Por outro lado, quase como uma consequência do tópico anterior, talvez se torne ainda mais difícil a manutenção de uma submissão a “regras impessoais” quando as fronteiras entre o que é escola e o que é casa se esfumaçam.

Nesse sentido, é importante notar que as aulas remotas não são um mero espelhamento da escola na tela de um dispositivo digital. Aspectos fundamentais do que, até aqui, entendeu-se por “forma escolar” são suspensos, e essa suspensão não é irrelevante. Ela, afinal, não coloca em xeque apenas a “forma escolar”: como pretendemos argumentar a seguir, suspender a forma escolar suspende, por consequência, aquilo que permite à escola ser, fundamentalmente, skholé.

A suspensão da suspensão

Numa perspectiva também histórica, mas, sobretudo, filosófica, Jan Masschelein e Maarten Simons, em “Em defesa da escola: uma questão pública”, recuperam a etimologia de “escola” para definir as bases daquilo que pretendem reivindicar. “Escola”, escrevem eles, vem do grego skholé , termo que significa “tempo livre, descanso, adiamento, estudo, discussão, classe, escola, lugar de ensino” (MASSCHELEIN et SIMONS, 2014, p. 30). Segundo eles:

[...] a escola é uma invenção (política) específica da polis grega e surgiu como uma usurpação do privilégio das elites aristocráticas e militares na Grécia antiga. Na escola grega, não mais era a origem de alguém, sua raça ou “natureza” que justificava seu pertencimento à classe do bom e do sábio. Bondade e sabedoria foram desligadas da origem, da raça e da natureza das pessoas. [...] Em outras palavras, a escola fornecia tempo livre , isto é, tempo não produtivo, para aqueles que por seu nascimento e seu lugar na sociedade (sua “posição”) não tinham direito legítimo de reivindicá-lo. Ou, dito ainda de outra forma, o que a escola fez foi estabelecer um tempo e um espaço que estava, em certo sentido, separado do tempo e espaço tanto da sociedade (em grego: polis ) quanto da família (em grego: oikos ). Era também um tempo igualitário e, portanto, a invenção do escolar pode ser descrita como a democratização do tempo livre . ( MASSCHELEIN; SIMONS, 2014 , p. 26, grifos dos autores).

Masschelein e Simons, a partir de uma chave de análise diferente daquela que adotam Vincent, Lahire e Thin (2021) para definirem a “forma escolar”, chegam também à separação fundamental entre o que é o espaço/tempo escolar e o que são os tempos e os espaços que regem a vida doméstica e a vida social. Daí em diante, no entanto, dirigirão seu interesse àquilo que a escola, quando consegue fazer jus à skholé , tem de potente no que diz respeito à “desidentificação”. Para chegar a isso, porém, é necessário observar melhor o distanciamento entre essas esferas diversas.

Na argumentação dos autores, tal afastamento entre a escola e os ambientes familiar e social permite à primeira operar uma espécie de suspensão. Essa suspensão, como a compreendem, “significa (temporariamente) tornar algo inoperante, ou, em outras palavras, tirá-lo da produção, liberando-o, retirando-o de seu contexto normal” (MASSCHELEIN; SIMONS, p. 32). Os “juros compostos”, por exemplo, quando entram na escola, quando se tornam objeto de uma disciplina escolar, não servem para se fechar um contrato de empréstimo; um motor, transformado em conteúdo pedagógico, não serve mais para mover um carro; a língua inglesa, por sua vez, tampouco encontra sua justificativa, depois de inserida no currículo escolar, na comunicação em um mundo globalizado. Cada um desses objetos, na escola, torna-se objeto de estudo, tem suas funções, seus lugares habituais desativados, tornados inúteis em relação às lógicas que os definem do lado de fora, e oferecem-se à contemplação, à atenção dentro da sala de aula.

Nesse sentido, os autores seguem sua reflexão estendendo-a aos sujeitos que fazem parte da cena escolar. Escrevem eles que essa suspensão é necessária “para permitir aos alunos se separarem do passado (que os oprime e os define em termos de [falta de] habilidade/talentos) e do futuro (que é, ao mesmo tempo, inexistente ou predestinado) e, portanto, se dissociarem temporariamente de seus “efeitos” ( MASSCHELEIN; SIMONS, 2014 , p. 34). “É o tempo e o espaço”, seguem um pouco mais adiante, “onde os alunos podem deixar pra lá todos os tipos de regras e expectativas sociológicas, econômicas e relacionadas à cultura” ( MASSCHELEIN; SIMONS, 2014 , p. 35). É por meio dessa suspensão, enfatizam, “que as crianças podem aparecer como alunos” (MASSCHELEIN et SIMONS, 2014, p. 36).

Daqui, então, emergem alguns aspectos sobre os quais é importante nos debruçarmos com um pouco mais de atenção. Em primeiro lugar, a suspensão operada pela escola provoca, quando eficaz, uma possibilidade de “desidentificação”: o sujeito, no interior dessa instituição, não é nem aquilo que lhe cabe no espaço doméstico nem aquilo que socialmente se espera dele. Uma menina, por exemplo, em casa, pode ser entendida como a “natural” ajudante nas tarefas domésticas, como aquela a quem se deve exigir que seja “bela, recatada e do lar”; na sociedade, é aquela que será questionada sobre o comprimento das roupas ao sofrer uma violência ou de quem se exigirão cuidados com a aparência impensáveis para um garoto. A escola, no entanto, quando funciona, de fato, como skholé , desativa essas marcações da tradição e das expectativas, tornando-as inoperantes, e, por algum tempo, permite que essa menina seja “aluna”. Num outro artigo, “Fazer escola: a voz e a via do professor”, Jan Masschelein, de uma maneira mais poética, escreve que quando a escola “opera como escola”, “todo mundo recebe a possibilidade de bifurcar, de encontrar seu próprio destino (de não estar encerrado em um destino, em uma natureza ou em uma identidade natural ou predefinida, [...])” (MASSCHELEIN, 2021, p. 31). “Trata-se justamente de recusar toda e qualquer conexão predefinida entre os corpos e as características ‘próprias’ ou as propriedades que se lhes atribuem” ( MASSCHELEIN, 2021 , p. 38), continua, um pouco mais adiante, antes de concluir afirmando que “a pragmática da escola” tem a ver justamente com isto: “oferecer a experiência de ser sem destino, mas ao mesmo tempo de ser capaz de encontrar o seu próprio destino” ( MASSCHELEIN, 2021 , p. 38).

Avançando um pouco mais nos caminhos indicados pelo texto de Masschelein e Simons (2014) , é possível pensar que essa desidentificação é, no limite, uma desidentificação entre o aluno e um certo “eu” com que está habituado, entre o aluno e uma certa noção de identidade. Em outras palavras, poder não ser o que se é no contexto doméstico ou social desvincula o sujeito de destinos pré-traçados, mas, talvez, antes ainda disso, dá a ver o próprio caráter de construção do “eu” independentemente de quem responda por esse pronome de primeira pessoa. A suspensão, nesse sentido, traz em si a potência de provocar uma atitude de espreita, de desconfiança em relação a um “eu” que se sente muito seguro de si, dono de suas vontades e de seus desejos. A escola, portanto, quando skholé , na argumentação dos autores, é o lugar em que se pode ser aluno, antes de ser pobre, antes de ser rico, antes de ser filho do operário ou do industrial, antes de ser mulher, homem, branco, negro, cristão, candomblecista, etc. Mas podemos ir ainda mais fundo nessa experiência de desidentificação: na escola que consegue afirmar-se skholé , é-se aluno antes, sobretudo, de se ser um “eu”.

É por isso, segundo os autores, que a escola é atacada desde seu surgimento. As suspensões que ela opera revelam uma aposta incontornável na igualdade. Mais do que isso: afirmam a igualdade como ponto de partida, como condição de sua própria possibilidade de existência. Nesse sentido, essa invenção a que se deu o nome de skholé , quando, de fato, é tempo/espaço livre, é profundamente política no sentido em que Jacques Rancière compreende o termo. Este filósofo se opõe às definições habituais que reservam à palavra “política” o “o conjunto de processos pelos quais se operam a agregação e o consentimento das coletividades, a organização dos poderes e a gestão das populações, a distribuição dos lugares e das funções e os sistemas de legitimação dessa distribuição” (RANCIÈRE, 1996, p. 372); para Rancière, essa ordenação que se procura fixa e imutável não é política, mas sim “policial”. “Política”, para o autor, é “o conjunto das atividades que vem perturbar a ordem da polícia pela inscrição de uma pressuposição que lhe é inteiramente heterogênea”: a “igualdade de qualquer ser falante com qualquer outro ser falante”, e essa igualdade se manifesta “pelo dissenso”, ou seja, por “uma perturbação no sensível, uma modificação singular do que é visível, dizível, contável” (RANCIÈRE, 1996, p. 372). A interrupção da linha que supostamente ligaria os vínculos originários e os futuros esperados, por um lado, e, por outro, a suspensão do apego a um “eu” bem definido e pretensamente acabado, nesse sentido, provocam o dissenso, criam as possibilidades para uma experimentação de novas configurações de si em meio a relações que, fora da escola, talvez fossem interditadas. A escola é política nesses termos; caso o contrário, sequer é skholé .

E aqui, finalmente, é preciso analisar se as condições com que se desenrolou a transposição das atividades presenciais para os suportes digitais permitiram que, de fato, houvesse escola, houvesse skholé . Para tanto, é necessário observar alguns aspectos da implementação das tecnologias a que se recorreu e seus efeitos.

O primeiro desses aspectos trata das próprias possibilidades de conexão ao mundo virtual. Macedo (2021) , a esse respeito, trabalhando em cima dos dados coletados pela TIC Domicílios de 2019, afirma que quase 30% dos domicílios brasileiros não tinham acesso à internet. Esse número, no entanto, não é constante quando cruzado com as classes sociais: enquanto nas classes A e B o acesso beira os 100%, nas classes D e E esse número cai para metade. Além disso, continua a autora, entre os mais favorecidos é comum o uso de computadores; para os que têm menos, a relação com a internet é mediada quase que exclusivamente pelo celular. Durante a pandemia, como não poderia deixar de ser, esse abismo se manifestou também no campo educacional. Em primeiro lugar, ter ou não conexão afeta a própria viabilidade de se acompanharem as aulas. Depois, há também a maneira pela qual esse acesso pode ocorrer: contar com dispositivos eletrônicos variados permite uma organização e uma visualização das aulas diferente do que as acompanhar apenas pela tela de um celular. Isso talvez explique as informações trazidas por Macedo (2021 , p. 267) acerca de uma pesquisa da Rede de Pesquisa Solidária, segundo as quais, entre março e julho de 2020, “mais de oito milhões de crianças de 6 a 14 anos não fizeram quaisquer atividades escolares em casa” ( MACEDO, 2021 , p. 267). Esse cenário nos permite perguntar se, ao menos da forma como ocorreu, a transposição da escola para o ensino remoto permitiu a uma parcela significativa das crianças e dos jovens em idade escolar serem, de fato, alunos e alunas. Em outras palavras, foi possível ser aluno ou aluna ou, antes disso, essas crianças e adolescentes se mantiveram “pobres”? Pelos dados, talvez essa desidentificação, essa suspensão, tenha sido, ela mesma, suspensa em tempos de ensino remoto: essas experiências distintas ao longo das aulas fizeram destas espaços-tempos de diferenciação e não de uma vivência comum.

Em segundo lugar, quando a escola foi transferida para o ambiente virtual, a separação de espaços tampouco pôde ser garantida. Acompanhando as aulas de suas casas, nem todos os estudantes puderam ser, de fato, estudantes. Dadas as implicações econômicas decorrentes do descaso do governo brasileiro com as medidas de restrição de circulação na pandemia, é possível especular que houve aqueles alunos e alunas que precisaram ajudar os pais a comporem a renda da família, tendo de, enquanto viam os conteúdos escolares, dividirem-se entre ajudantes, trabalhadores e estudantes; é possível imaginar que houve aqueles que precisaram, enquanto alunos, serem também irmãos ou irmãs mais velhos a cuidarem dos mais novos; que outros, por sua vez, precisaram dividir seu engajamento no papel de estudante com o de cuidador de um parente idoso. Enfim, nas condições em que se deu, nosso argumento é de que o ensino remoto talvez tenha sido incapaz de garantir para muitos a possibilidade de ser, por algumas horas, apenas aluno. Pôde-se ser aluno, nesse sentido, antes de ser parente, antes de ser trabalhador? Se sim, quem o pôde ser? As respostas a essas questões são fundamentais para que se possa pesar o quanto a skholé foi possível durante o ensino remoto.

Por fim, cremos que a desidentificação em relação a um “eu” senhor de todas as vontades também é potencialmente prejudicada em meio ao contexto de educação remota. Algumas das plataformas utilizadas para o ensino, como o Google Meet ou o Zoom, por exemplo, permitem que se acompanhem as aulas síncronas sem que, necessariamente, esteja-se sob a visão compartilhada dos outros, dos colegas, dos professores. Com as câmeras e os áudios desligados, pode-se, de alguma forma, fugir dessa presença compartilhada que demandaria negociações com vontades e comportamentos alheios. Já nas modalidades assíncronas, utilizadas por grande parte dos estudantes por conta da qualidade da conexão, por exemplo, o tempo deixa de ser partilhado: importa menos o tempo da aula e mais como encaixá-lo numa rotina que é do “eu”. Mais do que isso, as aulas gravadas nessas plataformas podem ser aceleradas pelos estudantes; pode-se editar o que se vê cortando a participação de colegas, por exemplo. Mais uma vez, prevalece o desejo de um “eu”; sua experimentação como “aluno” em meio a outros alunos míngua. Masschelein e Simons, ainda que não tratando da transposição ao ensino remoto em tempos de pandemia, ao caracterizarem a escola, lembram que ela é um lugar em que “os alunos não são indivíduos com necessidades específicas que escolhem onde eles querem investir seu tempo e energia; eles são expostos ao mundo e convidados a se interessarem por ele” ( MASSCHELEIN; SIMONS, 2014 , p. 52). A nosso turno, cremos que, ao menos em potência, essas características das plataformas digitais afetam diretamente as condições de skholé . E, de novo, poderíamos perguntar: foi possível ser “aluno” antes de um “eu” durante o ensino remoto?

Evidentemente, as respostas a essas perguntas não são cabíveis num trabalho com o recorte que propusemos aqui — talvez sequer seja viável ou produtiva qualquer resposta que se pretenda absoluta e definitiva. Nossos questionamentos são fruto da especulação originada de uma observação das possibilidades decorrentes das características objetivas das tecnologias utilizadas no ensino remoto e da aposta conceitual de que essas tecnologias têm efeitos de ordem ecológica ( Postman, 1993 ). Isso, no entanto, não parece desmerecer as questões colocadas. Como nos ensina Carvalho (2020 , p. 3) lembrando Hannah Arendt, uma crise é o que nos obriga a voltar às questões mesmas, e, como alerta a própria Arendt, a crise “só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados” (ARENDT, 2016, p. 223). Nesse sentido, não pretendemos que as perguntas lançadas sugiram uma idealização do que seria a escola antes da pandemia ou a ilusão de que cremos que ela, de fato, se fazia skholé. O que elas nos parecem colocar em cena é, justamente, uma oportunidade de nos havermos com a escola que queremos e de nos responsabilizarmos por ela, por aquilo que a torna possível. Masschelein e Simons, na introdução de seu livro, já alertavam para o fato de a escola ser uma invenção histórica que, portanto, pode desaparecer. No entanto, seguem, “isso também significa que pode ser reinventada” (MASSCHELEIN et SIMONS, 2014, p. 11), o que, no entanto, demanda atenção, cuidado e sensibilidade para perceber e para criar. “Reinventar a escola”, afirmam ainda, “se resume a encontrar formas concretas no mundo de hoje para fornecer ‘tempo livre’ e para reunir jovens em torno de uma ‘coisa’ comum” ( MASSCHELEIN; SIMONS, 2014 , p. 11).

Nossa aposta, ao fim e ao cabo, é de que a skholé vale o esforço: é, afinal, uma aposta na igualdade, na política, no público, na emancipação em meio a iguais. A suspensão que, a contragosto, impôs-se com a pandemia, dá a ver que a suspensão essencial da skholé possivelmente suspendeu-se durante as aulas à distância: a partir daqui, é escolha, é aposta, e é trabalho reivindicá-la a sério.

Considerações finais

Ao longo deste artigo procurou-se refletir sobre algumas tensões entre a transposição emergencial do ensino para plataformas digitais e os conceitos de “Forma Escolar”, de Vincent, Lahire e Thin (2001), e de skholé , como proposto por Masschelein e Simons (2014) . Nossas questões centrais giraram em torno do que se alterava com a mudança do suporte tecnológico da escola para o ambiente virtual e de quais os efeitos de uma tal alteração.

Para tanto, num primeiro momento, buscamos mostrar como a relação dos fazeres escolares com as tecnologias não é uma relação menor. A partir de Postman (1993 , 1999 ) e de Ariès (1978) , investigamos como a tipografia de Gutenberg criou algumas das condições para o reaparecimento das escolas, à época do Renascimento, ao reinventar uma certa noção de “infância”. O ingresso na idade adulta, numa sociedade pouco a pouco mais letrada, passa a depender do domínio dos códigos escritos e, por isso, a necessidade do ambiente escolar. Ora, esse ambiente configura-se de maneira a estabelecer para si um espaço e um tempo próprios, apartados da vida social e familiar. Com isso, começa a se configurar a “Forma Escolar”.

Num segundo momento, avançamos nos desdobramentos dessa “Forma Escolar” articulando-a a um outro conceito, o de skholé . Essa invenção grega pautava-se na suspensão das lógicas que vigoravam no espaço doméstico, o oikos , e no espaço da polis . Ao fazê-lo, possibilitava um tempo e um espaço livres para que houvesse uma espécie de “desidentificação”: na escola, seria possível abrir mão, por um certo período, das vinculações com as tradições e com os futuros pré-definidos e, com isso, experienciar, em meio a outros iguais, o “ser aluno”.

Essa experiência, ao que nos parece, tende a se interditar com a transposição para o ensino remoto. As tecnologias das plataformas utilizadas para a manutenção dos calendários escolares favorecem menos a desidentificação característica da skholé , e mais um reforço das identificações, um encerramento em si mesmo. Diante disso, a pergunta que se impõe não é mais exatamente sobre o que fazer nessas condições de exceção: elas são contingentes, afinal. O que parece realmente imperativo é a pergunta que decorre do que, nessas condições, pode-se ver: qual a escola que se deseja socialmente como projeto?

A resposta a ela, como antecipamos, é uma decisão, uma escolha que, quando tomada, implica um engajamento fundamental naquilo que a torna possível. E isso, parece-nos, não é coisa de menor importância.

Referências

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2- Informações disponíveis em: https://www.educacao.sp.gov.br . Acesso em 13 de junho de 2022.

Recebido: 13 de Setembro de 2022; Aceito: 10 de Outubro de 2022

Editora: Profa. Dra. Lia Machado Fiuza Fialho

Luiz Antonio Callegari Coppi é bacharel em letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo; mestre e doutor em educação pela Faculdade de Educação da mesma Universidade. Foi professor temporário de didática no Departamento de Metodologia do Ensino e Educação Comparada da Faculdade de Educação da USP entre 2021 e 2022, e atualmente é professor do ensino básico.

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