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Educação e Pesquisa

Print version ISSN 1517-9702On-line version ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.49  São Paulo  2023  Epub June 22, 2023

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202349267098 

SEÇÃO TEMÁTICA: Educação em contexto de crise sanitária causada pela Covid-19

“Sinto que estou sempre a falhar”: o dano existencial decorrente da hiperconexão do teletrabalhador docente

“I feel that I am always failing”: the existential damage resulting from the hyperconnection of the teaching telework

Jose Airton Carneiro Junior1 
http://orcid.org/0009-0005-7168-7182

Maura Lúcia Martins Cardoso1 
http://orcid.org/0000-0001-5462-0668

1- Universidade Federal do Pará, Belém, PA, Brasil. Contatos: carneiro_airton@yahoo.com; mauralmc@ufpa.br


Resumo

O artigo tem como objeto analisar a hiperconexão causada pelo teletrabalho dos professores como hipótese de dano existencial. O trabalho docente presencial no período da pandemia causada pelo novo coronavírus foi substituído pelo ensino remoto emergencial (ERE) para inibir o contágio e, assim, contribuir para conter a crise sanitária de abrangência mundial e garantir o direito à educação de crianças, jovens e adultos. Dessa forma os professores tiveram, abruptamente, de se adaptar ao trabalho por meio de plataformas virtuais e aplicativos multiplataforma para smartphones. Essa mudança, somada ao contexto de aflição causado pela pandemia, pode ocasionar um dano existencial no docente devido à violação do direito à desconexão. Sob essa perspectiva, a pesquisa parte do problema: seria esse um dano de natureza individual ou coletiva? Assim, trazemos como hipótese: a mudança abrupta do ensino presencial para o remoto da forma como ocorreu configura dano existencial à categoria. Para tal propósito, esta investigação tem por objetivo geral: refletir, com base na mudança abrupta do ensino presencial para o remoto, de que forma a hiperconexão causada pelo trabalho virtual configura dano existencial aos professores. Para o desenvolvimento deste estudo teórico e de cunho exploratório, utiliza-se uma abordagem qualitativa, aliada a um procedimento de pesquisa bibliográfica. Enquanto referencial teórico, tomamos como base o conceito de sociedade do desempenho de Byung-Chul Han. A partir dos elementos que caracterizam o dano existencial, podemos inferir que o trabalho remoto dos docentes, em tais condições, pode concorrer para violação ao direito à desconexão e ao consequente dano existencial.

Palavras-Chave: Covid-19; Teletrabalho docente; Hiperconexão; Educação; Dano existencial

Abstract

The article aims to analyze the hyperconnection caused by teachers’ telework as a hypothesis of existential damage. Face-to-face teaching during the pandemic caused by the novel coronavirus has been replaced by emergency remote teaching (ERE) to inhibit contagion and thus contribute to containing the global health crisis and ensuring the right to education of children, young people and adults. In this way, teachers had to abruptly adapt to their work through virtual platforms and multiplatform applications for smartphones. This change, in the context of distress caused by the pandemic, can cause existential damage to the teacher due to the violation of the right to disconnection. From this perspective, the research aims to answer the following question: is this a demage of an individual or collective nature? Thus, we bring as a hypothesis: the abrupt change from face-to-face to remote teaching in the way it occurred configures existential damage to the category. For this purpose, this investigation has as general objective: to reflect, based on the abrupt change from face-to-face to remote teaching, how the hyperconnection caused by virtual work configures existential damage to teachers. For the development of this theoretical and exploratory study, a qualitative approach is used, combined with a bibliographic research procedure. As a theoretical framework, we take as a basis Byung-Chul Han’s concept of the performance society. From the elements that characterize the existential damage, we can infer that the remote work of teachers, in such conditions, can contribute to the violation of the right to disconnection and the consequent existential damage.

Key words: Covid-19; Teaching Telework; Hyperconnection; Education; Existential demage

Introdução

A pandemia de Covid-19 afetou inúmeros aspectos da vida em sociedade, tais como a maneira de estudar, trabalhar, consumir, interagir etc. As relações sociais, em virtude da adoção de medidas sanitárias impostas pelo novo coronavírus, se transmutaram para o paradigma da mediação por ferramentas tecnológicas, que foram capazes de transpor as barreiras geográficas e temporais impostas pelo isolamento/distanciamento social, tendo em vista que, para o capital, “a vida não pode parar”.

No que tange às formas de trabalho, o novo normal as estruturou em torno das tecnologias da informação e comunicação (TICs), tornando o trabalho remoto uma imposição da pandemia. Essas inovações tecnológicas, de certa forma, trazem proveitos econômicos para a organização e para diversos aspectos relacionados ao exercício do labor. No entanto, também podem acarretar problemas humanos e sociais que têm sido objeto de profundo debate devido às consequências para a saúde mental do trabalhador.

No âmbito da educação, essa aceleração da implementação de tecnologias digitais para suplantar os efeitos associados ao isolamento social se traduz na utilização de ferramentas e plataformas para o ensino remoto, como forma de contenção da disseminação da pandemia de Covid-19, conforme o disposto pela Portaria MEC nº 342, de 17 de março de 2020 ( BRASIL, 2020 ), as quais têm sido adotadas em grande escala pelas instituições de ensino e têm alterado as rotinas de pais, alunos e professores, trazendo consigo inúmeras implicações sobre o contexto da precarização do trabalho docente ( CHIBA, 2021 ; NUZZI, 2020 ).

A transição abrupta do ensino presencial para o remoto, decorrente do medo e da preocupação com a pandemia, aliados à latente necessidade de se reinventar, tem provocado em muitos professores a sensação de mal-estar, causado pelos desafios impostos pela Covid-19, trazendo uma série de novos desafios à prática docente ( MANAÇA, 2020 ). Os professores foram expostos a diversas situações e pressões das instituições escolares referentes ao manuseio das tecnologias e à busca pela inovação nas metodologias de ensino, as quais deveriam garantir o engajamento e aprendizagem dos alunos, mas resultaram em gravames de várias ordens aos docentes, como a mácula à higidez mental nas relações de trabalho.

O trabalho virtual enquanto modalidade laboral passou a ser a regra no cotidiano da categoria, resultando no maior tempo à disposição dos empregadores, mediante uma maior demanda não apenas de atendimento remoto dos alunos, mas também na preparação das aulas e de materiais adequados aos novos meios digitais, nas horas em gravação de vídeos e até mesmo no tempo para o carregamento das plataformas digitais. Todas as informações que antes eram, em sua maioria, transmitidas oralmente, em horário de aula e nas dependências do empregador, na pandemia requisitaram etapas adicionais para ingressar no meio digital e abastecer os sistemas, gerando a necessidade de mais trabalho ao empregado e menos tempo de vida livre do trabalho.

As demandas do trabalho docente, nesse contexto, tiveram grandes mudanças: os professores foram sobrecarregados com constantes dúvidas, reclamações e problemas em horários diversos, uma vez que os estudantes tiveram dificuldades no processo de aprendizagem por via remota, fazendo com que os docentes estivessem em contínuo labor e tivessem dificuldade de se desligar das suas atividades profissionais por conta das inúmeras solicitações discentes, mesmo em momentos que deveriam estar em repouso ou lazer.

Com isso, houve uma penetração insidiosa do trabalho em todos os espaços e momentos de seu cotidiano, não importando que seus empregadores, tanto o governo quanto os donos das escolas, não lhes tenham garantido estrutura para o labor virtual. Os professores, em virtude das condições de mudanças no trabalho presencial para o remoto, são impulsionados ou até mesmo obrigados a se adequarem às atribuições de um “novo” perfil profissional e, consequentemente, às exigências de novos desempenhos para que as demandas sejam atendidas com qualidade, fatores esses que geram graves problemas à saúde mental da categoria.

Para o bom desenvolvimento da pesquisa, faz-se importante esclarecer que o interesse no tema de pesquisa nasceu não só da própria vivência dos autores enquanto docentes, mas também da observação de relatos de colegas de profissão, tanto da área da pedagogia quanto do direito, a respeito da nova realidade de ensino e que também vivenciaram na pele a transição abrupta do ensino presencial para o remoto, o que resultou em diversas indagações que deram origem a este estudo.

Por isso, o artigo tem por objeto refletir, com base na mudança abrupta do ensino presencial para o remoto, de que forma a hiperconexão causada pelo trabalho virtual configura dano existencial aos professores. O marco temporal da pesquisa é o tempo de duração da pandemia, desde a instituição do ensino remoto emergencial (ERE) até o retorno das aulas presenciais com a vacinação.

Para tanto, o estudo em questão se caracteriza como jurídico-sociológico, tendo em vista a necessidade do estabelecimento de um diálogo entre o direito e as ciências sociais para a concepção interdisciplinar das problemáticas e de seus impactos no campo social. Quanto à abordagem, a pesquisa é qualitativa, pois busca interpretar as informações obtidas durante a execução do estudo, relacionando-as umas com as outras, aliadas a observações críticas. Quanto à natureza científica, a pesquisa é de cunho teórico, pois objetiva analisar e discutir conceitos e teorias que serão utilizadas para a compreensão das problemáticas em questão. Neste estudo, como ponto de partida, aplicam-se as lentes teóricas da “sociedade do desempenho” de Byung-Chul Han.

Quanto à análise de dados, para a execução do objetivo da pesquisa, o estudo é exploratório, tendo em vista que a temática em questão ainda é pouco debatida, além de a questão do trabalho docente ainda não ter sido abordada sob a ótica do dano existencial. Quanto ao procedimento, a pesquisa é bibliográfica, materializando-se pela devida filtragem do arcabouço teórico, sendo necessária para a compreensão e formulação de conceitos abertos como saúde mental, dano existencial, hiperconexão e outros. Contudo, a análise documental de alguns instrumentos normativos, como a Portaria MEC nº 342, de 17 de março de 2020 , também se faz necessária para o bom desenvolvimento do trabalho. Assim, será possível responder à pergunta problema e alcançar o objetivo de pesquisa proposto.

As fontes que serviram de base teórica para a elaboração do trabalho são constituídas por artigos científicos, livros, notícias, portaria e dissertação. A seleção bibliográfica aconteceu a partir da análise da pertinência temática do material consultado, tendo em vista o referencial preliminar apresentado em debates durante o grupo de pesquisa do qual um dos autores foi participante. Pode-se destacar a escolha da dissertação de mestrado utilizada, oriunda da instituição de ensino superior da qual o mesmo autor é egresso. Além disso, favoreceu-se o uso de periódicos de Tribunais Regionais do Trabalho, pois têm notória especialização na área trabalhista, assim como das obras de autores consagrados: Kant, Dejours, Fernández Sessarego e Franco Filho.

Dito isso, o trabalho está estruturado em cinco partes. Na introdução, apresentamos o tema, as preocupações que dele decorrem, assim como os objetivos e os procedimentos metodológicos. No segundo tópico, “Ensino remoto e a relação da hiperconexão laboral com a saúde mental do professor”, é tratada a questão de como a possibilidade do trabalho remoto resultou em novas dinâmicas laborais que primam pelo culto ao desempenho, resultando em questões que comprometem a saúde mental. Já o tópico “Os impactos do trabalho virtual no meio ambiente de trabalho docente: o papel do direito do trabalho na proteção do direito à desconexão” apresenta o novo contexto no qual o docente em trabalho remoto está inserido e que, somado à sobrecarga de trabalho causada pela teledisponibilidade e a confusão dos ambientes de trabalho e doméstico, resulta na hiperconexão desses trabalhadores. Na quarta parte do texto, “Da lousa para o Google Meet e a configuração do dano existencial: dano individual ou coletivo?”, trazemos indagações e discussões acerca do dano existencial causado à categoria docente pela violação de direitos fundamentais como o direito à desconexão e acerca do dano ao projeto de vida em decorrência da nova dinâmica imposta pelo trabalho remoto. E, finalmente, as “Considerações finais” apresentam a síntese das reflexões e resultados obtidos por meio da pesquisa bibliográfica, demonstrando que as condições do teletrabalho dos docentes, em meio a uma crise sanitária mundial, podem promover o dano existencial causado pela hiperconexão e, portanto, pela violação do seu direito à desconexão do trabalho.

Ensino remoto e a relação da hiperconexão laboral com a saúde mental do professor

Segundo Maciente (2020) , no mundo afetado pela pandemia de Covid-19, as mais diversas partes da vida humana estão passando por mudanças no comportamento social, seja em termos de estudo, trabalho e consumo, seja em termos de métodos de relacionamento social. Sob a ótica do digital, algumas pessoas dizem que a pandemia finalmente acelerou o uso e a disseminação de tecnologias digitais, especialmente aquelas relacionadas ao trabalho virtual e à automação de eventos.

Ainda que a “digitalização” das relações sociais represente um progresso tecnológico, por outro lado, também reflete problemas decorrentes dessa interdependência, como a sobrecarga de informação, a fadiga mental e a ansiedade. Para Segata (2020) , o fetiche tecnocrático do tempo real que imputou a culpa no ócio, no cuidado de si, no respeito ao tempo da saúde e da doença, garante a outra parte do negócio. Ninguém fica parado sem a sensação de dívida. É preciso executar múltiplas tarefas: responder, informar, manter-se inundado de atividades que maximizem o rendimento.

Amado (2018) , em outra perspectiva, aponta que, com o advento e o incremento das TICs mais recentes, surgiu um novo e complexo desafio para o direito do trabalho, dado possibilitarem que o trabalho acompanhe o trabalhador fora do espaço/tempo profissional, invadindo o seu tempo de (suposta) autodisponibilidade. Todos conhecem as impressionantes mudanças registradas em nossa forma de viver, comunicar e trabalhar, resultantes da informatização, da internet, do e-mail, das redes sociais, dos celulares e dos computadores.

Por isso, o direito do trabalho não deve ser entendido apenas como ramo do direito privado que regulamenta a relação entre empregados e empregadores, mas também a administração do trabalho vivo em uma sociedade na qual o único bem monetizável que o homem possui é a sua força de trabalho.

A seara trabalhista tem uma função antropológica que, segundo Supiot (2007 , p. 209), serve enquanto “técnica de normatização dos comportamentos”, a fim de “obter dos seres humanos um comportamento espontaneamente conforme com as necessidades da ordem estabelecida”. Essa estrutura, que tem por escopo garantir a vida longa do trabalhador em um mundo em que o tempo é fugaz, além de regular a concorrência, sendo limitador da autonomia própria, visando coibir práticas de dumping entre trabalhadores.

Todavia, nos últimos anos, ao acompanhar não só a evolução da legislação laboral, como também a prática das relações entre empregados e empregadores, é possível vislumbrar que o campo do trabalho tem sofrido inúmeras modificações, como a fragilização dos vínculos empregatícios, a flexibilização dos contratos de trabalho e o favorecimento aos empregadores nos acordos trabalhistas, entre tantas outras. Tais mudanças causam repercussões, direta ou indiretamente, em toda a organização social e geram impactos significativos na saúde dos trabalhadores, independente da categoria.

É motivo de reflexão a monetização da saúde e o uso do trabalho como simples instrumento da cadeia produtiva, calcados exclusivamente na busca do lucro e na redução de custos, optando pelo pagamento em virtude da exposição aos riscos ou da reparação dos danos, quando já acontecidos, em detrimento da implementação de medidas preventivas.

Para Quaresma (2020) , a política empresarial, ao visar o aumento da produtividade, quase sempre, ocasiona um custo social elevado para toda a sociedade, pois o aumento do número de trabalhadores acidentados resulta na diminuição da mão de obra ativa, devido aos afastamentos, e desequilibra o ambiente de trabalho, com frequentes reivindicações por melhores condições laborais, aumento da tributação para custear os gastos com a Previdência Social, bem como das despesas com processos judiciais.

Por esses motivos, Von Randow et al . (2021) defendem que a cobrança por produtividade no trabalho se tornou cada vez maior em meio à pandemia de Covid-19, o que reflete no número de pessoas com sintomas de ansiedade e depressão no Brasil. A imposição do isolamento social tem feito o trabalhador misturar o tempo de ficar em casa e o de trabalhar em casa, principalmente devido ao medo de perder o emprego, sendo compelido a trabalhar mais para gerar melhores resultados.

Em razão deste culto pelo desempenho, a dependência das novas tecnologias é uma das consequências mais marcantes para os trabalhadores, os quais necessitam destas direta ou indiretamente para executar as atividades laborais, considerando que a exigência não se restringe à capacitação para se adaptar aos novos meios de trabalho, mas à exigência maior de velocidade, dinamismo e superação como premissa e meta organizacional.

Nesse cenário, (RAY, 2015 apudMOREIRA, 2020 ) argumenta que o trabalhador atualmente, neste “mundo novo do trabalho”, para não ser excluído, tem de ter obrigatoriamente um Quociente de Inteligência (QI) digital mínimo que lhe permita conhecer, sobreviver e trabalhar na era digital. Logo, aqueles que não se mostram dispostos a se adaptar à nova realidade pelo digital ou que não se desempenham a contento são acometidos pela angústia de serem substituídos, o que exacerba ainda mais a ocorrência das sensações anteriormente mencionadas.

Nesse sentido, Standing (2014) argumenta que o mercado global é uma máquina que funciona no esquema 24/7: nunca dorme ou relaxa; não tem nenhum respeito pela luz do dia ou pela escuridão, pela noite ou pelo dia; e se um país, empresa ou indivíduo não se adapta à cultura do tempo 24/7, haverá um preço a pagar.

Com isso, faz-se mister trazer à baila os ensinamentos de Kant (2011) quando afirma que, no reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem um preço, pode-se pôr, em vez dela, qualquer outra coisa como equivalente; mas, quando uma coisa está acima de todo o preço e, portanto, não permite equivalente, então tem ela dignidade, ou seja, quando se cultua o desempenho, enxergam-se apenas números, e não as pessoas responsáveis por eles.

Em uma sociedade na qual as relações são descartáveis e pautadas em números, Han (2017) afirma que na “sociedade do desempenho”, na qual estamos inseridos, a principal característica é a imanência do poder coercitivo de produção ao próprio trabalhador. Nesse sentido, a intensa competitividade difundida na sociedade faz com que os próprios empregados sofram uma coerção pessoal a fim de ampliar a produtividade. Os obreiros que não enxergam limites no trabalho realizando-o de forma exaustiva, segundo Ferreira (2019) , são meros objetos perdendo o sentido da sua existência, o que é incompatível com a ideia de dignidade humana.

Os impactos do trabalho virtual no meio ambiente de trabalho docente: o papel do direito do trabalho na proteção do direito à desconexão

No que tange aos professores, a pandemia causada pela Covid-19 trouxe consigo para o sistema educacional, além de vários outros elementos corrosivos, a custosa demanda da constante “reinvenção docente”, transmudada esteticamente enquanto necessária manutenção de uma educação remota que se faça ativa, presente e minimamente acessível, sem considerar, entretanto, as lacunas das condições trabalhistas, estruturais e até mesmo formativas desses profissionais.

Com a migração do ensino presencial para as plataformas digitais, os professores, subitamente, tiveram que se adaptar a uma nova realidade, na qual a grande maioria não tinha qualificação necessária para enfrentá-la, ou sequer tinha experiência profissional para o trabalho nessas condições virtuais, sendo algo inédito para gerir. Esse cenário exigiu do professor uma reestruturação em sua forma de trabalho, mudando completamente seu método, sua linguagem, sua didática, sua forma de avaliação e relação para se adequar ao ambiente virtual e às plataformas digitais de videoconferência.

Outro agravante – nessa mudança nunca antes vivenciada – são as alterações para além do campo didático e na forma de trabalhar. Os docentes precisaram organizar um ambiente de trabalho em sua própria residência, ou seja, tiveram que prover espaço físico e equipamentos para desenvolver seu trabalho, tais como: energia elétrica, serviço de internet, computador, câmera, microfone, mesa, cadeira e demais materiais para dar conta da atividade pedagógica.

Dessa forma, agrava-se a precarização do trabalho docente, notadamente pela mudança abrupta das atividades presenciais sem a devida formação e estrutura necessária para o desenvolvimento do trabalho pedagógico. E a percepção – por parte dos professores – das necessidades formativas e da estrutura laboral pode ter acarretado frustrações, angústias e ansiedades para dar conta de um trabalho que antes era realizado em outro formato historicamente conformado.

Isso posto, a categoria docente, que outrora tem sofrido com um cenário de intensas instabilidades e rupturas na educação somado a exigência de posturas requeridas pela sociedade, com uma intensificação do trabalho em razão da pandemia, enfrentou o processo de adaptação ao novo formato de ensino, o que exigiu novas formas de envolvimento, empatia e dinâmica com a rede escolar.

De acordo com Mill (2018) , na perspectiva trabalhista da profissão docente, existem prós e contras no que tange ao teletrabalho incentivado pela cultura digital e consolidado com a pandemia. Indiscutivelmente, a internet possibilitou às pessoas novas relações com o espaço e o tempo, novas experiências e novas noções em relação ao lugar e ao horário ou momento de socialização. Todavia, a confusão entre o local de trabalho e o de descanso deu azo a novas questões, como a saúde mental docente no contexto pandêmico de trabalho à distância.

Com isso, Zaidan e Galvão (2020) defendem que professoras e professores experimentaram uma mudança brusca em suas rotinas, que se caracteriza pela penetração insidiosa do trabalho em todos os espaços e momentos de seu cotidiano, não importando que seus empregadores (o governo ou os donos de escola) não lhes tenham garantido estrutura para o teletrabalho. Isso porque, com a transição abrupta do ensino presencial para o remoto, o trabalho docente ganhou novos contornos no que se refere às condições de trabalho, visto que, ao se fazer sempre presente e ao alcance, passaram a ideia de estarem o tempo todo disponíveis para as demandas de trabalho.

A mudança repentina das aulas expositivas na lousa nas quais o professor ficava quase sempre de pé para aulas em que este passa a interagir com uma câmera, sentado, está diretamente relacionada com a ocorrência de fenômenos psicossociais negativos nestes, já que, conforme os estudos de Dejours (1992) , a insatisfação resultante de uma inadaptação do conteúdo ergonômico do trabalho ao homem está na origem não só de inúmeros sofrimentos somáticos de determinismo físico direto, mas também de outras doenças do corpo provocadas por algo que atinge o aparelho mental.

A expansão do sentido de lugar pode significar a dilatação de espaços de trabalho, incluindo a invasão de espaços-tempo de lazer, resultando na ideia de que esses profissionais são multitarefa, o que os conduz ao mal-estar.

Nesse novo mundo do trabalho, Moreira (2019) afirma que o tempo de trabalho se torna cada vez mais flexível, podendo originar, por um lado, uma melhor conciliação dos tempos de trabalho, mas, simultaneamente, novos problemas com a sua limitação, já que hoje em dia os trabalhadores são muitas vezes avaliados pelos resultados que apresentam, e não pelo trabalho que realizam, o que pode levar à sua intensificação, bem como dos tempos de trabalho.

Em verdade, para muitos, flexibilidade temporal não significa liberdade, mas sim o seu contrário, tornando-se cada vez mais difícil a conciliação dos tempos de trabalho com os tempos pessoais. Cremos que a oportunidade do anytime/anyplace não pode se tornar no always and everywhere.

Ademais, Moreira (2019) ainda argumenta que se as TICs permitem uma formidável liberdade de movimento, quer intelectual, quer físico, e possibilitam maior autonomia dos trabalhadores, simultaneamente originam uma teledisponibilidade permanente que faz desaparecer a distinção entre a vida profissional e a vida pessoal não apenas para os teletrabalhadores, mas para todos os trabalhadores que utilizam essas novas tecnologias. Por isso, em meio a diversas e crescentes cobranças organizacionais de atualização e capacitação, maior exigência cognitiva e, consequentemente, maior sobrecarga mental, sintomas como o estresse, a ansiedade e a depressão tornam-se fenômenos cada vez mais comuns entre os trabalhadores.

No contexto atual, a necessidade de implementação do labor virtual impôs um cenário de alterações abruptas que impuseram mudanças na experimentação espaçotemporal dos sujeitos resultando não somente em consequências para a saúde mental dos trabalhadores, mas também na reconfiguração do que se entende por ambiente de trabalho. Para Maranhão (2017) , a quantidade e a qualidade da jornada de trabalho constituem elementos centrais para a salvaguarda do necessário equilíbrio labor-ambiental, sob pena de afetação sistêmica lesiva da saúde e da segurança de todos os trabalhadores envolvidos.

A cobrança excessiva por metas e resultados do obreiro em trabalho virtual pode caracterizar o que Maranhão (2017) denomina degradação labor-ambiental, a qual consiste em qualquer alteração ambiental que torna o meio ambiente do trabalho impróprio para a segurança e a saúde física e mental do ser humano exposto a qualquer contexto jurídico-laborativo. Assim, o ambiente de trabalho será considerado equilibrado somente quando acomodar condições de trabalho e organização e relações interpessoais continuamente seguras, saudáveis e respeitosas, com a adoção de uma visão protetiva holística do ser humano (saúde física e mental). Em uma expressão: um meio ambiente de trabalho sadio e mais humano.

Nessa mesma linha, Fincato (2019) defende que a manutenção de um ambiente saudável deve se adaptar às condições de tempo e espaço e que métodos de trabalho não são estáticos, cabendo ao empregador realizar inspeções ao ambiente laboral regularmente e procurar precaver acidentes e adoecimentos laborais no regime de teletrabalho.

Num contexto laboral que prima pelo resultado, Dejours (2017) afirma que não é o aparelho psíquico a primeira vítima do sistema, mas sobretudo o corpo dócil e disciplinado, entregue, sem obstáculos, à injunção da organização do trabalho, ao engenheiro de produção e à direção hierarquizada do comando. Corpo sem defesa, corpo explorado, corpo fragilizado pela privação de seu protetor natural: o aparelho mental.

O indivíduo contemporâneo, segundo Han (2017) , adoece por não poder mais validar o seu desempenho (social e individualmente), uma vez que a lamúria do indivíduo depressivo de que nada é possível só se torna possível numa sociedade que crê que nada é impossível. O excesso de trabalho e rendimento se concentra e se converte em autoexploração, que é muito mais eficaz que a exploração por outros, pois é acompanhada de um sentimento de liberdade.

Essa falsa sensação de liberdade institui mecanismos que são responsáveis pelo adoecimento mental dos trabalhadores, os quais vivem em um estado de tensão constante, tendo em vista que, nas palavras de Amado (2018 , p. 262), “ousar desconectar-se pode implicar a curto ou a médio prazo, ser desligado da empresa”. Essa mentalidade é corroborada pela experiência de Dejours (1992 , p. 78) de que “[…] nas condições de trabalho é o corpo que recebe o impacto, enquanto que na organização do trabalho o alvo é o funcionamento mental”.

Para que a saúde mental seja preservada, é necessário o respeito ao direito à desconexão, entendido por Cassar (2012) como o direito de se afastar totalmente do ambiente de trabalho, preservando seus momentos de relaxamento, de lazer e seu ambiente domiciliar contra as novas técnicas invasivas que penetram na vida íntima do empregado.

Oliveira e Teixeira (2018) compreendem que esse direito à desconexão está relacionado não somente ao lazer, mas a efetiva limitação da jornada de trabalho, ao direito de não trabalhar, ou seja, desconectar-se de fato do trabalho. A desconexão não é um direito novo, mas trata-se do reconhecimento de direitos já existentes. Assim, a desconexão consiste no direito que o trabalhador tem de não sofrer ingerências nos períodos destinados ao seu repouso, logo, é um pressuposto de preservação da saúde e do bem-estar do ser humano.

A violação dos direitos fundamentais, a partir do uso de recursos tecnológicos no desenvolvimento das atividades profissionais – como o ensino remoto ou por meio de conexão contínua (grupos de turmas de alunos no WhatsApp) – para facilitar a comunicação entre docente e discentes acaba por invadir o espaço-tempo particular do professor, subtraindo-o, inclusive, de seu convívio familiar, lazer e privacidade. Esta sobrecarga invasiva o mantém constantemente ocupado e o impede de realizar as pausas necessárias para sua saúde mental, o que faz com que o docente perca ou reduza sua qualidade de vida.

A implementação deste direito à desconexão deve ser considerada enquanto política pública de proteção à saúde do trabalhador, visto que o homem, de acordo com Oliveira (2010 , p. 118), “passa a maior parte de sua vida útil no trabalho, exatamente no período da plenitude de suas forças físicas e mentais, o que acaba por influenciar não só o seu estilo de vida e condições de saúde, mas também na aparência e apresentação pessoal e até mesmo a forma da morte”. É, portanto, impossível alcançar qualidade de vida sem ter qualidade de trabalho, nem se pode atingir um meio ambiente equilibrado e sustentável ignorando o ambiente do trabalho.

Por isso, deve-se primar pelos valores sociais do trabalho digno, consoante o disposto no texto constitucional, já que, nas palavras de Feliciano (2005) , o desenvolvimento econômico não pode solapar as bases naturais da sociedade, tampouco pode vilipendiar a dignidade humana do trabalhador ou ferir seus direitos fundamentais (como, houve, às escâncaras, no auge da Primeira Revolução Industrial). Nesses termos, tanto a tutela constitucional do meio ambiente quanto a do trabalhador são ilhas de resistência democrática à ação voraz do capitalismo industrial e pós-industrial.

Da lousa para o Google Meet e a configuração do dano existencial: dano individual ou coletivo?

A confusão entre o ambiente de trabalho e o de descanso, aliada às preocupações de produtividade e rápida adequação às novas ferramentas de ensino e trabalho, resulta no que se denomina hiperconexão, termo ainda não reconhecido oficialmente por especialistas, mas que é usado para se referir à dificuldade de lidar com a necessidade de conectividade incessante, ou para abordar problemas relacionados (HIPERCONEXÃO…, 2019).

Com o trabalho remoto, os empregadores esperam que o teletrabalhador esteja disponível para trabalhar em todo lugar e a toda hora, pois basta o acesso a um computador com internet para continuar o labor durante o período destinado, em tese, ao seu repouso, o que resulta em um mal-estar docente inteiramente ligado às novas formas de relações da prática pedagógica, à identidade docente e às novas demandas do mundo externo que não estão sob o controle de professores e alunos.

Nesse contexto, Barbosa Junior (2021) sustenta que esse tipo de labor quase ininterrupto ataca frontalmente o direito à desconexão, o qual ultrapassa meros conceitos clássicos de limitação de jornada relacionados ao cronômetro, abarcando também o direito de se desligar a mente de seu trabalho, desconectando-a, visto que a capacidade cognitiva destes trabalhadores é diretamente afetada, de tal modo que, exaustos, têm seu desempenho comprometido, desperdiçando possibilidades de maior qualificação profissional.

Dentro dessa realidade de fim do descanso, há um claro dano à convivência do trabalhador, que sofre “limitações” em relação à sua vida fora do ambiente de trabalho em razão de condutas ilícitas praticadas pelo empregador, impossibilitando-o estabelecer a prática de um conjunto de atividades culturais, sociais, recreativas, esportivas, afetivas e familiares. Possibilitam-se, aqui, prejuízos às metas e objetivos que importam na autorrealização do indivíduo, frustrando seus projetos de vida pessoais, profissionais ou sociais.

Com isso, Delgado, Di Assis e Rocha (2020) advertem que é necessário refletir sobre os danos e as violações que podem advir do uso inevitável das novas tecnologias digitais hoje, especialmente no campo do trabalho, ainda mais tendo em conta o isolamento social atualmente vivido com a pandemia do coronavírus, o que resulta no que as autoras denominam de “melancolização do trabalhador”, que pode advir da perda dos referenciais de tempo e espaço de trabalho, propiciada pela incorporação da tecnologia, que, como visto, permite a prestação de serviços fora do estabelecimento e em horários não fixos, quase que em tempo integral, sem direito à desconexão.

Quando isso ocorre, diz-se que o trabalhador se encontra em estado de hiperconexão, o que, nas palavras de Ferreira (2019) , causa prejuízo à saúde do trabalhador e, também, o impede de desfrutar dos prazeres de sua própria existência, de ordem biológica, econômica, cultural e social, o que usualmente tem sido denominado pela doutrina e jurisprudência de dano existencial.

Frota (2013) conceitua o dano existencial enquanto espécie de dano imaterial ou não material que acarreta à vítima, de modo parcial ou total, a impossibilidade de executar, dar prosseguimento ou reconstruir o seu projeto de vida (na dimensão familiar, afetivo-sexual, intelectual, artística, científica, desportiva, educacional ou profissional, dentre outras) e a dificuldade de retomar suas relações de vida (de âmbito público ou privado, sobretudo na seara da convivência familiar, profissional ou social).

Para Fernández Sessarego (2003) , o dano ao projeto de vida implica como consequência um colapso psicossomático de tamanha magnitude para o sujeito – sobre um determinado assunto – que afeta sua liberdade, o que o frustra. O impacto psicossomático é tamanho que o sujeito experimenta um “vazio existencial”, atacando “o núcleo existencial do sujeito, sem o qual nada faz sentido” ( FERNÁNDEZ SESSAREGO, 2003 , p. 36, tradução nossa). Esse vazio é o resultado da perda de sentido que a existência humana sofre como resultado de danos ao seu projeto de vida, os quais afetam a liberdade do sujeito de se realizar de acordo com sua própria decisão livre.

Ainda nessa linha de raciocínio, Franco Filho (2017) sustenta que, quando os projetos de vida do trabalhador são violados, tornando-se impossíveis de serem alcançados e refletindo no abalo de seu bem-estar psicológico, ocorre o que se chama de dano existencial, ligado ao dano psicológico; sendo o prejuízo ao trabalhador subjetivo, lhe está sendo negado o direito à felicidade e, por corolário, a usufruir de alguns dos direitos contemplados no art. 6º da Constituição de 1988 (BRASIL, 1988). É praticamente unânime o entendimento de que a caracterização do dano existencial está ligada, na sua essência, à frustração de um projeto de vida do trabalhador.

Fernández Sessarego (2003) defende que ser é liberdade no tempo, e a vida humana é uma sucessão de tarefas, um dinamismo constante, um ter que decidir o que será feito. Como seres livres e temporários, estamos condenados ao projeto; sendo a vida uma projeção constante, é impossível para o ser humano, como um ser livre e temporário, parar de projetar.

Portanto, a exigência constante de máximo desempenho dos trabalhadores docentes, aliada à abrupta inserção destes no trabalho virtual, além de impactar a saúde mental da categoria, cria um estado de hiperconexão no qual, mesmo durante o período de folga, estes continuam conectados ao trabalho, seja física ou mentalmente. Esse eterno estado de alerta banalizado pela pandemia afronta os valores sociais do trabalho engendrados pelo texto constitucional, privilegiando a ordem econômica.

Neste sentido, o professor, ao ser tolhido de seu direito à desconexão, está sujeito a desordens físicas e mentais. Ao desenvolver suas atividades laborais de forma ininterrupta, sofre o efeito negativo em sua vida, podendo chegar à exaustão e adquirir doenças diversas.

Vale ressaltar que nenhum benefício financeiro pode compensar essa violação, como o pagamento de horas extras, pois, ao ser impedido de se desconectar, o professor pode sofrer um dano existencial.

Nesse diapasão, as lições de Brito Filho e Quaresma (2019) se fazem pertinentes ao afirmarem que não se pode falar em trabalho decente, centralidade humana e preservação da dignidade – fundamento constitucional que deve reger toda a vida em sociedade –, quando as condições de trabalho se apresentam como uma armadilha para a perda da saúde e até mesmo do bem maior, a vida.

Considerações finais

As relações de trabalho e o próprio futuro do trabalho humano têm de ser pensados a partir das transformações que o processo produtivo e a vida dos trabalhadores sofrem com as novas tecnologias. Não há como a pesquisa ignorar e não avançar nos estudos das novas modalidades de prestação de serviços.

A qualidade das relações trabalhistas, o trabalho decente, a manutenção de condições dignas de trabalho, a integridade física e mental, diante do novo mundo tecnológico concretizado pelo teletrabalho. O trabalho decente, independentemente da mudança nos processos de produção, coaduna com a exigência de um patamar mínimo de proteção aos trabalhadores, com fito na precaução e prevenção dos impactos psicossociais negativos vivenciados nos dias atuais e que estendem seus ditames aos mais diversos setores da sociedade.

Por essa razão, qualquer que seja o trabalho desenvolvido, umas das preocupações primordiais é com a saúde, com a segurança, com as condições de conforto e de higiene dos trabalhadores, com o impacto da revolução tecnológica atual no mundo do trabalho e com os rearranjos das relações de trabalho existentes. Nesse cenário, é basilar também a introdução de novas formas de trabalho, além de dinâmicas, conceitos e plataformas para seu desempenho, devendo o direito do trabalho refletir sobre as transformações nas relações laborais provenientes dessas novas tecnologias, determinando quais são os limites e as possibilidades de proteção à dimensão socioambiental do direito fundamental ao trabalho digno na era digital, de modo a preservar o compromisso de atuação como garantidor de um patamar civilizatório mínimo.

Por isso, ao tratar da questão do trabalho remoto docente e dos impactos que a hiperconexão laboral gerou na saúde mental dos professores, deve-se levar em conta os efeitos de forma coletiva, muito embora a reação de cada indivíduo à mudança abrupta decorrente da pandemia seja distinta. Tais repercussões afetam uma categoria como um todo que compartilha dos mesmos sentimentos e questões, seja pela ausência de condições materiais, seja pela inadequação das condições estruturais para o exercício do labor docente de forma remota, que, na maioria dos casos, ocorreu na ausência de um espaço de trabalho privativo (muitas vezes sendo interrompido pelas demandas domésticas e/ou maternas ou paternas) e com o emprego de recursos próprios destes trabalhadores por respeito e compromisso com a educação e com os alunos ( CÂNDIDO; GUEDES, 2020 ).

Para além da questão material, há também os fatores psicossociais, haja vista o impacto do trabalho remoto no estado de ânimo destes profissionais, os quais foram acometidos por sentimentos de exaustão, estresse, ansiedade, irritabilidade etc. em decorrência da exposição a jornadas extenuantes de trabalho virtual, que são superiores às experienciadas no ensino presencial ( LIRA, 2022 ).

Ademais, o dano gerado pela hiperconexão laboral resultante do ensino remoto deve ser entendido na perspectiva coletiva pelo fato de que o direito à saúde e a condições de trabalho dignas estão inseridos no âmbito dos direitos sociais garantidos não só constitucionalmente, mas também por tratados internacionais de direitos humanos, o que imperiosamente lhes confere caráter de ordem pública.

Considerando, outrossim, que o direito a um meio ambiente equilibrado foi reconhecido pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) como direito humano universal em todos os seus desdobramentos ( GOMES; MACHADO, 2022 ), o estabelecimento de limites e regras se faz necessário a fim de mitigar o prejuízo físico e emocional (pela repercussão do teletrabalho nos relacionamentos e nas atividades particulares e pelo prejuízo ao projeto de vida e à qualidade das relações familiares e sociais) causado na vida privada dos profissionais de uma das categorias que mais foi negativamente afetada pela instituição abrupta do teletrabalho, a dos professores, os quais tiveram e têm dificuldades em gozar de seu direito à desconexão, ligados de forma contínua ao trabalho (planejando aulas e atendendo alunos, coordenadores, diretores e pais), incluindo os espaços-tempo de repouso e/ou lazer.

Desconsiderar essa realidade de cobrança de produtividade somada à adaptação abrupta resulta não só no agravamento dos sentimentos de angústia, frustração e desmotivação pela insatisfação com seu próprio desempenho, acarretando a ideia de fracasso, mas também na subtração dos projetos de vida destes profissionais e na sensação de indiferença para com a necessidade de garantir o direito à desconexão docente, perpetuando, assim, o sentimento de que se está “sempre a falhar”.

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Recebido: 20 de Agosto de 2022; Revisado: 07 de Fevereiro de 2023; Aceito: 13 de Março de 2023

Editora: Profa. Dra. Lia Machado Fiuza Fialho

Jose Airton Carneiro Junior é advogado, mestrando em planejamento do desenvolvimento sustentável do trópico úmido no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará (UFPA).

Maura Lúcia Martins Cardoso é pedagoga, doutora em educação pelo Instituto de Ciências da Educação (ICED) da UFPA e professora associada I da Faculdade de Educação (FAED) da UFPA.

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