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Educação e Pesquisa

versión impresa ISSN 1517-9702versión On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.49  São Paulo  2023  Epub 06-Ene-2023

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202349248608por 

Artigos

O dispositivo da performatividade em um programa de intervenção pedagógica para o ensino de matemática 1

The device of performativity in a pedagogical intervention program for mathematics teaching

Ismael Santos Lira2 
http://orcid.org/0000-0003-1023-6319

Jonei Cerqueira Barbosa2 
http://orcid.org/0000-0002-4072-6442

2- Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil. Contatos: ismael.lira@ufba.br; jonei.cerqueira@ufba.br


Resumo

Neste artigo, aborda-se, no âmbito da pesquisa em educação matemática, o impacto de políticas públicas educacionais reformistas que viabilizam o crescimento de parcerias público-privadas, com o pretexto de promover a melhoria no desempenho dos estudantes em avaliações externas de larga escala. Busca-se caracterizar alguns princípios comunicacionais relacionados a este fenômeno no contexto de um programa de intervenção pedagógica para o ensino de matemática nos anos iniciais, desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação de Teresina, Piauí, em parceria com o Instituto Alfa e Beto. Essa caracterização fundamenta-se em alguns conceitos da teoria sociológica de Basil Bernstein, em especial na ideia de dispositivo pedagógico, em associação com a noção de performatividade, tomada em consonância com Stephen Ball. Trata-se de um estudo qualitativo, cujos dados foram coletados por meio de observações de encontros de formação de professores, de aulas e da rotina escolar, assim como de documentos e entrevistas realizadas com uma formadora, dois docentes e três gestoras escolares. Os dados foram analisados à luz da linguagem de descrição bernsteiniana e os resultados apontaram dois princípios reguladores das atividades realizadas no referido programa: o das relações verticalizadas entre os agentes; e o da preparação para a reprodução de textos matemáticos válidos.

Palavras-Chave: Dispositivo pedagógico; Performatividade; Ensino de matemática; Anos iniciais

Abstract

Within the scope of research in mathematics education, this article discusses the impact of reformist public educational policies that enable the growth of public–private partnerships with the excuse of improving student performance in large-scale external assessments. The work seeks to characterize some communication principles related to this phenomenon in the context of a pedagogical intervention program for mathematics teaching in the initial years, developed by the Municipal Department of Education of Teresina, Piauí, in partnership with the Alfa e Beto Institute. This characterization is based on some concepts of Basil Bernstein’s sociological theory, especially on the idea of a pedagogical device in association with the notion of performativity, in line with Stephen Ball. This is a qualitative study, whose data were collected through observations of teacher education meetings, classes, and school routine, and documents and interviews carried out with a teacher educator, two teachers and three school administrators. The data were analyzed in the light of the Bernsteinian language of description, and the results pointed to two regulating principles of the activities carried out in that program: the vertical relationship between the agents; and the preparation for the reproduction of valid mathematical texts.

Key words: Pedagogical device; Performativity; Mathematics teaching; Initial years

Introdução

Em um estudo publicado no final da primeira década deste século, Oliveira (2009) propôs o deslocamento, para o campo da pesquisa em educação matemática, da discussão acerca das políticas públicas educacionais que facilitam o aumento de parcerias público-privadas, com o pretexto de promover a melhoria no desempenho dos estudantes em avaliações externas de larga escala. A autora chamava a atenção para o fato de que tais políticas dão impulso às referidas avaliações e colocam a performance dos estudantes no centro do debate público. Esses exames ganham “lugar de destaque na mídia, pois, na maioria das vezes, os resultados dos alunos em matemática são ruins, e uma leitura simplista tende a culpar o professor, os baixos salários e a formação docente” ( OLIVEIRA, 2009 , p. 28).

Essas políticas foram e continuam sendo desenvolvidas num cenário de transição e mudança da atuação do Estado, que deixa gradualmente o papel de executor, para assumir o de regulador a distância da atuação dos agentes ( GANDIN; LIMA, 2015 ; SILVA; HYPOLITO, 2018 ). Isso implica, segundo Ball (2000 , 2003 ), profundas transformações nos sistemas educacionais de diversos países e, em consequência, afeta o trabalho de professores ao redor do mundo, visto que tais políticas se baseiam na lógica da sanção e recompensa e têm sido utilizadas como instrumento de responsabilização dos docentes. Algumas pesquisas ( BRADFORD; BRAATEN, 2018 ; CLARKE, 2013 ; HENNESSY; MCNAMARA, 2013 ; POVEY; ADAMS; EVERLEY, 2017) corroboram essa tese ao sustentar que essas reformas vão além da implantação de novas estruturas/incentivos, uma vez que promovem também novas relações e valores no contexto educacional como um todo.

A produção acadêmica a que nos referimos tem contribuído para a ampliação da compreensão de impactos macrossociais de políticas públicas educacionais decorrentes do processo de perda de poder dos Estados nacionais e aponta a necessidade de aprofundarmos as análises dos efeitos da ênfase dada ao desempenho em avaliações nos espaços microssociais, como a sala de aula ( WERLER; FÆREVAAG, 2017 ). Dessa forma, a pesquisa em educação matemática pode contribuir com a ampliação das discussões acerca das políticas reformistas ao abordá-las a partir de seus impactos microssociológicos. Por isso, tomamos como contexto de estudo o Programa de Intervenção Pedagógica para o Ensino de Matemática nos Anos Iniciais (Pipemai)3 , desenvolvido pela Secretaria Municipal de Educação (Semec) de Teresina, Piauí, em parceria com o Instituto Alfa e Beto (IAB)4 .

Para tanto, lançamos mão dos conceitos de performatividade , tomado em consonância com Ball (2000 , 2003 ), e dispositivo pedagógico , de Bernstein (1990) . A compreensão dos princípios de um dispositivo pedagógico nos permite conceber novos dispositivos e “prever seu efeito provável sobre quem ganha acesso ao poder simbólico e sobre aquele a quem esse acesso é negado” ( LERMAN, 2014 , p. 200, tradução nossa). Assim, sugerimos que há um dispositivo que opera a ênfase dada ao desempenho de estudantes e, em Lira e Barbosa (2020) , propusemos a denominação de dispositivo da performatividade .

No referido estudo, focalizamos como professores que ensinam matemática transformam, na sala de aula, aquilo que é preconizado pelo Pipemai. Agora avançaremos em relação às regras comunicacionais que subjazem à ênfase no desempenho de estudantes, ou seja, buscamos, por meio da análise de um caso, caracterizar alguns princípios comunicacionais relacionados às políticas públicas pautadas na performatividade.

A seguir, discutiremos a literatura sobre políticas com foco na performatividade, em especial no ensino de matemática. Abordaremos o dispositivo pedagógico como um conceito que nos oferece uma linguagem de descrição útil para análises tanto no micro como no macronível. Em seguida, descreveremos o percurso metodológico e, por fim, apresentaremos a análise e a discussão dos dados.

Performatividade e ensino de matemática

A “pressão” exercida por agentes públicos oficiais e não estatais sobre professores que ensinam matemática para que orientem seu trabalho, principalmente, ao treino dos estudantes para as avaliações externas tem sido objeto de estudo ( ALDERTON; GIFFORD, 2018 ; POVEY; ADAMS; EVERLEY, 2017). Mas essa cobrança é, também, realizada por membros da comunidade escolar e da sociedade em geral, como observado por Franco Neto e Silva (2013) , que mostram como as competências (no sentido de saber fazer) mais valorizadas nos profissionais atuantes em uma escola de ensino médio são aquelas relacionadas à demanda da melhoria do desempenho dos estudantes nesses exames.

Cria-se, dessa forma, segundo Kanes, Morgan e Tsatsaroni (2014), um regime de avaliações padronizadas em nível nacional e internacional, que envolve não somente estruturas de conhecimento, mas também formas pelas quais estudantes, professores e outros agentes podem ser “fabricados”, no sentido de serem responsabilizados. Esse regime gera, portanto, a necessidade de uma “análise […] de como diferentes campos de ação se reconfiguram, reconstituem-se e, simultaneamente, desconstroem o campo do controle simbólico” (KANES; MORGAN; TSATSARONI, 2014, p. 19, tradução nossa). Destacamos que ele é concebido, justamente, no contexto da tendência global de implementação de políticas educacionais reformistas a que já nos referimos, sendo caracterizado pela busca do aperfeiçoamento dos resultados a serem obtidos, que servem como indicadores econômicos (formação de mão de obra) significativos no mercado global. Isso atrai a atenção da mídia, como afirmamos anteriormente, que se concentra “principalmente em como cada país está posicionado nos rankings, produzindo e divulgando manchetes chocantes” (KANES; MORGAN; TSATSARONI, 2014, p. 2, tradução nossa).

Um conceito que nos ajuda a compreender a dinâmica dessas políticas públicas educacionais é o de performatividade ( BALL, 2000 , 2003 ). Ele é compreendido como uma tecnologia política que introduz na arena pública o modelo de gestão da iniciativa privada, favorecendo a criação de um ambiente de trabalho em que os agentes são constantemente vigiados, medidos, classificados e comparados, com vistas ao melhoramento de seu desempenho. Assim, emerge uma nova maneira de “ser-professor”, que exige dos docentes o abandono de suas crenças e compromissos pessoais para viver uma vida baseada em recompensas e sanções, tendo impactos na constituição da identidade do “ser-professor-que-ensina-matemática” (POVEY; ADAMS; EVERLEY, 2017).

A resistência a essa “pressão”, no dia a dia de seu trabalho, por parte de alguns desses profissionais é relatada por Souza e Silva (2015) , ao estudarem como o cotidiano propiciado por essas políticas representa um ataque frontal à autonomia desses docentes. Nesse mesmo sentido, Cunha, Marcondes e Leite (2015, p. 683) concordam que essa nova forma de ser-professor-que-ensina-matemática tem sido construída “a partir de referências culturais e individualizadas […], cujo foco é a instrumentalização técnica dos sujeitos para se atingir resultados mensuráveis”. Soma-se a essa constatação aquela identificada por Ball (2000 , 2003 ) de que tais resultados são encarados como algo que “encapsula” o valor do professor, que é medido em termos de qualidade ou eficácia do desempenho apresentado.

A Figura 1 apresenta uma síntese esquemática de alguns dos impactos da ênfase no desempenho dos estudantes para o ensino de matemática elencados neste texto. São apresentados interligados, pois esses fatores estão imbricados e atuam como instrumentos de construção das realidades/dificuldades enfrentadas pelos docentes.

Fonte: Elaboração própria.

Figura 1 – Resumo dos impactos da performatividade no ensino de matemática 

Essa nova forma de ser-professor-que-ensina-matemática se assenta no medo causado pelo “terror da performatividade” ( BALL, 2003 ), algo que vai além da certeza da vigilância constante, por não se saber quando uma inspeção pode ocorrer e quais serão os critérios de avaliação do inspetor ou supervisor. Dessa forma, o docente fica em estado de permanente alerta, devido às possíveis represálias, que podem ser financeiras ou mesmo simbólicas, por exemplo, expor um profissional ou taxá-lo como descompromissado por não conseguir atender à sequência de conteúdos e ao ritmo propostos pelas autoridades educacionais ( ALDERTON; GIFFORD, 2018 ; BRADFORD; BRAATEN, 2018 ). Essa incerteza é suficiente para manter o controle sobre alguns docentes, sendo, por isso mesmo, a performatividade uma tecnologia política que possibilita o controle do trabalho de grupos humanos ( CLARKE, 2013 ; POVEY; ADAMS; EVERLEY, 2017).

Na seção seguinte, abordaremos o conceito de dispositivo pedagógico como uma linguagem de descrição que nos auxiliará na definição do contexto interacional em termos da prática pedagógica no Pipemai.

O dispositivo pedagógico

Consideramos que este aspecto da performatividade no contexto educacional – a ênfase nos resultados obtidos pelos estudantes em avaliações externas – é regulado por um conjunto de princípios comunicacionais que operam em determinado contexto. Por isso, ela será abordada em associação com o conceito de dispositivo pedagógico ( BERNSTEIN, 1990 ), definido como um conjunto de princípios que regulam a prática pedagógica. Tal conjunto constitui-se pela interação comunicacional entre agentes que estão na condição de ensinar e aqueles que se encontram na condição de aprender, como formadores e professores, professores e estudantes etc.

Os princípios do dispositivo pedagógico constituem suas regras internas ( Figura 2 ), consideradas hierarquicamente relacionadas e constituidoras de sua gramática. Elas estão agrupadas em três tipos: as regras de distribuição, que regulam as de recontextualização, que, por sua vez, regulam as de avaliação. As regras de distribuição repartem conhecimentos e habilidades específicas para diferentes grupos de agentes, por exemplo, formadores e professores. As de recontextualização indicam como a prática pedagógica deve ocorrer, sinalizam o “que” e o “como” daquilo que deve ser ensinado. Já as de avaliação fazem referência à regulação da prática pedagógica.

Fonte: Elaboração própria.

Figura 2 – Regras internas do dispositivo pedagógico 

Tais regras são consideradas variáveis em função da mudança de contexto e estão condensadas no código, que é entendido como princípio regulador da prática pedagógica e tacitamente adquirido pelos agentes ao selecionar e integrar significados, realizações e práticas interacionais válidas. Portanto, gera princípios orientadores para o reconhecimento e a realização de textos adequados para um contexto específico. Destacamos que o termo realização é utilizado para expressar a ideia de tornar visível algo sob a ação de um princípio abstrato, e a palavra texto engloba as produções verbais (escritas, faladas), gestuais e comportamentais, ou seja, são as “materializações” dos princípios, por exemplo, a forma de se vestir e de gesticular do professor.

Os princípios comunicacionais gerados pelo código estão relacionados aos conceitos de enquadramento e classificação. Este último diz respeito ao isolamento entre as categorias (professor, formador, estudante, escola, família etc.), à manutenção de suas especificidades, à regulação da interação entre elas e, consequentemente, à regulação dentro de uma categoria específica. Indica o que pode ser dito (o código regula aquilo que conta como texto válido em determinado contexto) e por quem (as regras distributivas atuam como um princípio básico de classificação ao especializar conhecimentos para diferentes grupos de agentes). É considerado forte quando as categorias têm limites bem demarcados, e fraco quando há um esbatimento das fronteiras que as separam.

O enquadramento associa-se aos princípios de controle que regulam a interação pedagógica e diz respeito às relações dentro de uma categoria e ao controle que os agentes em interação têm sobre a comunicação pedagógica (o modo como algo deve ser dito). É forte quando o agente ou a categoria de menor posicionamento hierárquico têm pouco ou nenhum controle sobre a comunicação pedagógica, e é fraco quando possuem maior controle sobre ela.

A Figura 3 ilustra como esses dois conceitos (classificação e enquadramento) se relacionam entre si e com o código.

Fonte: Elaboração própria.

Figura 3 – Princípios do código que se “materializam” em textos válidos 

Em relação a essa regulação da comunicação pedagógica, Bernstein (1990) considera que é o dispositivo pedagógico que a torna possível, por meio do controle sobre a consciência e ação dos agentes, uma vez que estabelece a relação entre interações pedagógicas, conhecimento e formas de “ser”. Por conta disso, concebe-o como um governador simbólico da consciência, mecanismo de posicionamento seletivo dos agentes e sempre como um campo de disputa pelo acesso aos meios que tornam possível o controle simbólico. Fazendo uma associação com a vigilância exercida sobre o trabalho de professores que ensinam matemática, e em concordância com Werler e Færevaag (2017) , vemos que a ênfase dada ao desempenho, no macronível, se dá por meio de políticas de prestação de contas e, no micronível, da pressão a que os docentes são submetidos para que alcancem os resultados esperados.

Como o leitor pode notar, realizamos aqui uma aproximação entre a noção de performatividade tomada em consonância com Ball (2000 , 2003 ) e o conceito de dispositivo pedagógico teorizado por Bernstein (1990) , o que nos ajudou a avançar nos estudos do controle de interações pautadas no desempenho dos agentes, como buscamos demonstrar em Lira e Barbosa (2020) . Ball e Bernstein, dois sociólogos da educação ingleses, pertencem a escolas distintas. Porém, neste estudo, não temos como objetivo nos aprofundar na discussão das dificuldades e potencialidades advindas dessa aproximação, tarefa já empreendida por autores como Cunha, Marcondes e Leite (2015) e Lopes (2005) , que, além de apontar divergências e convergências, tratam do fato de Ball recorrer ao conceito bernsteiniano de recontextualização em suas abordagens de políticas públicas. Para Lopes (2005 , p. 53), um dos pontos em comum é que ambos “valorizam a linguagem como constituinte do social e consideram a cultura em termos simbólicos e linguísticos”.

Como afirmado de forma intuitiva na introdução, os princípios reguladores de um contexto orientam a prática pedagógica (micronível). Assumimos, portanto, que a ênfase no desempenho dos estudantes em avaliações externas de larga escala pode ser abordada em termos dos princípios do dispositivo pedagógico, pautados na performatividade, no dispositivo da performatividade.

Uma vez expostos os aportes teóricos que fundamentam esta pesquisa, podemos enunciar nosso objetivo em termos conceituais: caracterizar princípios do dispositivo da performatividade no Programa de Intervenção Pedagógica para o Ensino de Matemática nos Anos Iniciais, realizado pelo Instituto Alfa e Beto na rede municipal de Teresina, Piauí. Dessa forma, buscamos lançar luz sobre os princípios que regulam a ênfase no desempenho de estudantes, no referido contexto, para reconhecê-los em operação nos encontros de formação continuada e no ambiente escolar.

Na próxima seção, detalharemos o contexto da coleta de dados. Também relataremos o percurso metodológico que nos permitiu caracterizar alguns dos princípios do dispositivo da performatividade em operação no Pipemai de Teresina.

Percurso metodológico

Para caracterizar os princípios do dispositivo da performatividade que regulam atividades relacionadas ao ensino de matemática desenvolvidas em locais de atuação do Pipemai, na rede municipal de ensino de Teresina, definimos os contextos de coleta de dados. São eles: encontros quinzenais para professores que ensinam matemática no quinto ano do ensino fundamental, realizados no Centro de Formação Professor Odilon Nunes, e observações em duas escolas dessa rede de ensino que participam do programa.

Contamos com a participação de uma formadora da área de matemática, uma vice-diretora, duas pedagogas (nomenclatura oficial para o cargo equivalente ao de supervisoras ou coordenadoras) e dois professores que ensinam matemática no quinto ano, participantes do programa, que assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido. Para manter o sigilo sobre a identidade dos participantes, eles receberam nomes fictícios, e as escolas foram nomeadas escola A e escola B. Na escola A, contamos com a participação da vice-diretora Silvia, da pedagoga Maria e do professor Marcos. Na escola B, participaram a diretora Joana, a pedagoga Sandra e a professora Júlia.

Ambas as escolas se localizam em regiões periféricas de Teresina, mas apresentam desempenhos distintos no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) de 2017. A escola A obteve nota superior a 7, ficando entre as primeiras do ranking, já a escola B recebeu nota inferior a 5,8 e está entre as escolas que ocupam as últimas posições. Com essa variação de desempenho, buscamos heterogeneidade nos dados coletados.

Para caracterizar os princípios do dispositivo da performatividade, propusemo-nos a efetuar uma abordagem que aponta aspectos qualitativos da prática dos participantes, seguindo, assim, o método qualitativo de pesquisa ( CRESWELL, 2012 ; DENZIN; LINCOLN, 2005 ; FLICK, 2014 ). Seguimos este percurso: procedemos às observações de quatro encontros de professores conduzidos pela formadora Patrícia, no período de dois meses, e observamos a rotina (um turno) de duas escolas por quatro dias não consecutivos. Cada seção de observação teve duração de quatro horas, equivalente ao tempo de duração das atividades realizadas.

Combinamos com os participantes que as observações seriam registradas com o auxílio de um caderno de campo e um gravador de áudio. Não utilizamos um guia observacional preestabelecido nem nos envolvemos diretamente nas atividades observadas. Nessas observações, buscamos indícios de princípios reguladores das atividades de ensino de matemática nesses contextos como fonte de ideias que nos ajudassem nas entrevistas. Ao final de cada sessão, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com todos os participantes. Com isso, visamos identificar princípios do dispositivo da performatividade subjacentes aos textos produzidos pelos participantes durante as respostas. Para aprofundar essas informações, também procedemos à análise de roteiros de aulas preconizados pelo Pipemai.

Depois de coletados, os dados foram transcritos, sistematizados, categorizados e analisados à luz da linguagem de descrição fornecida pela teoria bernsteiniana. Desse processo, resultou a caracterização de dois princípios do dispositivo da performatividade em operação no Pipemai. Como vimos, esses princípios comunicacionais geram um código (codificação específica) regulador das interações pedagógicas em um dado contexto, traduzido em valores de classificação e enquadramento. Os dados apontam para dois princípios: o das relações verticalizadas entre os agentes e o da preparação para a reprodução de textos matemáticos considerados válidos. À medida que os caracterizaremos, apresentaremos os dados coletados simultaneamente com sua análise.

Princípio das relações verticalizadas entre os agentes

No Pipemai, encontramos um forte valor de classificação que proporciona fronteiras bem demarcadas e relações acentuadamente verticalizadas entre os agentes posicionados, pelas regras de distribuição, como planejadores, fiscalizadores e executores. Cada um desses agentes possui papéis bem definidos, implicados em relações de poder, em conformidade com Bernstein (1990) , uma vez que a manutenção fixa das fronteiras entre as diferentes categorias dificulta a mobilidade dos agentes dentro de uma mesma categoria ou entre categorias diferentes e garante, portanto, a manutenção do posicionamento hierárquico do agente e, consequentemente, seu poder.

A vice-diretora Silvia está posicionada como agente fiscalizadora do trabalho dos professores participantes do programa. Em relação ao aumento da cobrança por resultados nos anos de realização da Prova Brasil e da vigilância sobre o trabalho docente, ela se expressou da seguinte maneira:

É um ano tenso, de preocupação. Confesso que me sinto, muitas vezes, angustiada de estar em busca deste resultado com muita pressão […]. Porque o que as escolas têm recebido do município hoje é muita pressão para que esse resultado [nota do Ideb] não caia; e, diante desta pressão, muitas vezes, você se sente desestimulada e impotente e pensativa [pausa]. […] Os alunos do quinto ano, os professores do quinto ano, a Secretaria Municipal como um todo, eu digo uma gerência inteira, um sistema inteiro do município. Na hierarquia, é o de cima puxando o de baixo, numa maneira rasteira de falar. E você puxando cada vez mais para que a gente consiga esse resultado. […] Eu acho que essas práticas devem ser repensadas. Digo porque tenho conversado com muitas colegas [outras diretoras de escola] e tenho visto muitas delas estressadas e doentes, por assim dizer.

Ela diz sentir-se angustiada com essa situação e considera que essas práticas precisam ser repensadas pela administração pública, pois considera que o trabalho nesses moldes tem adoecido algumas pessoas, gerando medo, ansiedade e outros desconfortos emocionais, algo já indicado na literatura ( CLAPHAM, 2015 ; CLARKE, 2013 ; POVEY; ADAMS; EVERLEY, 2017; SOUZA; SILVA, 2015 ). A fala de Silvia deixa evidente a classificação forte entre agentes atuantes nesse contexto, o que indica que o dispositivo da performatividade propicia práticas pedagógicas verticalizadas, de modo que um profissional que ocupa determinado nível hierárquico exerce pressão sobre aqueles que estão no nível imediatamente inferior. Por isso, os técnicos e supervisores são pressionados e pressionam as diretoras e pedagogas, a formadora cobra resultados dos professores, e estes dos estudantes.

O posicionamento dos docentes ( Figura 4 ) participantes do Pipemai como agentes executores não somente reflete, se considerarmos Bernstein (1990) , relações específicas entre agentes, mas também cria relações específicas no interior e no exterior desses agentes, sendo essa uma aproximação possível ao modo de operação da performatividade, que opera tanto de fora para dentro como de dentro para fora. No primeiro caso, temos o medo proporcionado pela vigilância e, no segundo, paradoxalmente, o orgulho que o agente sente pelo desempenho obtido ( LIRA; BARBOSA, 2020 ), relacionando-se com o que já falamos sobre a emergência de uma nova forma de ser-professor-que-ensina-matemática.

Fonte: Elaboração própria.

Figura 4 – Esquema do posicionamento dos agentes 

A formadora Patrícia ocupa um posicionamento dual (possui duas posições diferentes na hierarquia): atua como agente planejador (quem elabora os roteiros de aula) e agente fiscalizador (quem compõe o grupo que fiscaliza as aulas dos professores). Cabe a ela, portanto, atividades e responsabilidades vinculadas a saberes e fazeres especializados, o que estabelece, de forma inequívoca, uma divisão de trabalho assentada em seu conhecimento “especializado” em oposição ao conhecimento “prático” dos professores que ensinam matemática e participam desse programa, que estão posicionados como agentes executores, responsáveis pela tarefa de executar os planos de aula estabelecidos.

Para garantir que tais planos de aula sejam colocados em prática em conformidade com o estabelecido pelo programa, tem-se a atuação de um grupo de agentes, os fiscalizadores, que, além das formadoras, inclui pedagogos, superintendentes e outros técnicos da Semec. A Figura 5 mostra um exemplo de um desses planos, que consiste, na prática, em uma lista de descritores de habilidades da Prova Brasil a serem trabalhados em sala de aula, no período determinado.

Fonte: Dados da pesquisa.

Figura 5 – Exemplo de plano de aula estabelecido pelo Pipemai 

Durante uma entrevista, ao abordar como ocorre a fiscalização da execução dos planos de aula, a formadora Patrícia relatou:

Nós temos um sistema de monitoramento, o professor vem para o Centro de Formação, de 15 em 15 dias. Na outra semana, em que ele não está aqui, no horário pedagógico dele, ele se senta com o pedagogo da escola que acompanha todas essas atividades [propostas pelo programa]. Além dele, tem o superintendente que também vai lá e verifica se o professor está aplicando essas atividades em sala de aula. Ele assiste à aula do professor, pede o plano de aula para ver […], saber se o professor tem o plano de aula, se aquela aula estava proposta naquela semana. Então, é um sistema de monitoramento.

Exemplo disso, é o monitoramento das aulas do professor Marcos, conduzido pela pedagoga Maria, que não é feito aleatoriamente, pois se utiliza de um guia observacional fornecido pelos dirigentes do Pipemai, em que constam alguns itens que devem ser avaliados. Durante o período em campo, percebemos que Maria se mostrava desconfortável com essa prática, mas continuava, pois precisava prestar contas à superintendente nas visitas regulares que esta faz à sua escola. Pudemos notar também que as diretoras fazem essa mesma verificação. Citamos como exemplo um cronograma de verificação das aulas da professora Júlia, exposto no mural da coordenação da escola B. Fomos informados que a diretora e as duas pedagogas se revezam durante a semana para que as aulas de Júlia sejam observadas. Nesse cronograma, há a previsão de três observações semanais, além daquela realizada pela superintendente. A docente, entretanto, não se mostrou incomodada com essa prática.

Esse monitoramento, além de estar relacionado ao posicionamento inferiorizado (estar na base da pirâmide hierárquica) dos professores que ensinam matemática na estrutura hierárquica do programa, diz respeito ao valor forte de enquadramento. Bernstein (1990) faz uma distinção entre relações de poder (isolamento entre categorias) e controle (qualidade da interação pedagógica), isso significa que o sistema de codificação específica, no contexto do Pipemai, possibilita, por meio de um enquadramento forte, uma regulação – neste caso, o monitoramento constante – acentuada sobre a categoria posicionada na base da hierarquia vigente.

Destacamos que o professor Marcos reconhece que os professores são resistentes a esse monitoramento:

Noventa por cento dos professores, inclusive eu já tive essa percepção do fiscalizar. O nome é fiscalizar . O que o professor faz, como ele está fazendo, porque ele está fazendo, porque este simulado deu certo e porque aquele não deu, o que foi trabalhado naquele mês […]. Mas hoje eu não vejo tanto como fiscalização […] porque o meu trabalho eu faço independente de ter alguém ou não. No início, eu era mais duro em não querer ninguém na minha sala […], só que com a pedagoga da escola facilita, porque é ali, naquele momento, que a gente vai perceber que tem uma ajuda; então, quando eles vêm para monitorar ou fiscalizar, é para saber o que precisa melhorar.

Ele afirma que também considerava essa prática como uma fiscalização de seu trabalho, mas atualmente julga haver vantagens, como a ajuda da pedagoga de sua escola na resolução de problemas que surgem na rotina escolar. Mas, em conversas não gravadas, durante o tempo de convivência em campo, ele reconhece que fica desconfortável com a presença da superintendente por ser ela um agente externo à escola.

O princípio das relações verticalizadas entre os agentes fica, portanto, caracterizado como uma regra do dispositivo da performatividade. Nele, estabelece-se um posicionamento inferiorizado para os docentes participantes do programa, possibilitando a manutenção de uma estrutura de vigilância do trabalho de professores que ensinam matemática participantes do Pipemai.

Em relação aos professores ocuparem a base da pirâmide hierárquica do programa, precisamos relembrar a tese de que um baixo posicionamento pode ser alterado pelo próprio agente “através da sua participação ativa em agências de resistência, oposição e desafio” ( MORAIS; NEVES, 2013 , p. 296). Mesmo diante desse quadro de controle, precisamos destacar que há espaços para oposição, resistência e mudança de posicionamento dos professores que ensinam matemática.

As possibilidades de resistência são múltiplas. Uma delas é a constituição daquilo que Giraldo e Fernandes (2019) denominam de coletivos de professores, nomenclatura empregada para abarcar uma multiplicidade de lentes teóricas e metodológicas na abordagem de grupos colaborativos de professores que ensinam matemática. Contudo, Crecci e Fiorentini (2018 , p. 5) alertam que alguns desses grupos podem ir na contramão da resistência e “ter por objetivo exclusivo elevar a pontuação dos alunos em testes, muitas vezes em detrimento de seu letramento”. Amaro (2014) já havia verificado esses efeitos paradoxais que o cotidiano propiciado pelas políticas reformistas de avaliação gera, sejam eles a acomodação, as resistências ou as discordâncias. Destacamos, contudo, que o dispositivo da performatividade possibilita a efetivação de estratégias que visam superar as possibilidades de resistência, visto que, segundo Bernstein (1990) , as formas de controle sobre a comunicação pedagógica são sempre aperfeiçoadas.

Na próxima seção, apresentaremos uma das consequências do enquadramento de valor forte do sistema de codificação específica desse contexto. Em especial, mostraremos como ele torna possível a preparação dos estudantes para a reprodução dos textos matemáticos válidos nas avaliações externas de larga escala.

Princípio da preparação para a reprodução de textos matemáticos considerados válidos

A formação e o trabalho dos professores que ensinam matemática no Pipemai são orientados para a preparação dos estudantes para a Prova Brasil e, consequentemente, para que eles produzam textos matemáticos considerados, nesse contexto, como válidos (as respostas corretas). Lembremos que o grau de enquadramento regula como a interação pedagógica deve ocorrer, como algo deve ser dito ou feito, isto é, assegura a produção e reprodução de um texto para que ele se adeque aos princípios do dispositivo pedagógico em operação. Em outras palavras, o sistema de codificação específica cria regras de reconhecimento que possibilitam identificar o texto correto para um contexto específico. Com isso, temos os textos válidos, resultantes das relações no interior de um contexto específico, que indicam o posicionamento seletivo, pois são encarados como aqueles capazes de conferir algum privilégio aos agentes que conseguem realizá-los, ou seja, como texto privilegiante. Sua produção está ligada aos princípios reguladores, isto é, às regras comunicacionais que a constituíram válida ( Figura 6 ).

Fonte: Elaboração própria.

Figura 6 – Esquema da reprodução de textos matemáticos válidos 

Por exemplo, o trabalho da formadora Patrícia gira em torno de garantir que os professores conduzam as crianças no desenvolvimento das habilidades e competências avaliadas na Prova Brasil, expressas em descritores (BRASIL, 2008) que baseiam os encontros de formação conduzidos por ela:

Do primeiro ao quinto ano são 28 descritores [de matemática]. Ao longo do ano, a gente dá conta desses descritores. Dividimos nas avaliações [padronizadas], a primeira avaliação a gente vai trabalhar descritores tal e tal, na segunda avaliação, aquele descritor que a gente trabalhou no primeiro, e [se] o resultado foi baixo a gente traz o resultado para cá [centro de formação]. A gente repete de novo, o aluno tem que aprender, porque, no final do ano, ele tem que dar conta daquele descritor. […] A gente já entrega para eles os descritores no planejamento e as expectativas de aprendizagem: o que eu quero que meu aluno aprenda com aquele descritor.

A formadora evidencia a pressão exercida sobre os estudantes para que desenvolvam as habilidades requeridas na referida prova ( FERREIRA; FONSECA, 2017 ). Nos encontros de formação observados, Patrícia se concentrou em instrumentalizar os professores para que levassem os estudantes a treinar as habilidades propostas para aquela quinzena. A cada encontro, apresentou os descritores a serem trabalhados e propôs atividades (sempre exercícios de múltipla escolha) que os contemplavam. Sua fala materializa o sistema de codificação subjacente e, assim, revela seu posicionamento dual como agente planejador e fiscalizador, como afirmamos anteriormente. A esse respeito, o professor Marcos expressou-se da seguinte forma:

A minha crítica nesse aspecto é porque é direcionado para o Ideb, para a Prova Brasil, para o resultado dessa prova. A meta é esta . Quando o aluno não atinge aquela habilidade, pergunta-se o porquê, tem que voltar essa habilidade, porque ele não atingiu. Às vezes, é uma habilidade que não é muito fácil, adequada para o aluno naquele momento […]. Nós sabemos que crianças não aprendem todas ao mesmo tempo. Quando eu não terminei as habilidades daquela aula, na próxima aula, se eu não voltar para aqueles que não conseguiram ou pelo menos tentaram, ficaria difícil, mas aí vem a questão do reforço que eles querem que aconteça. Se fizerem uma prova e o resultado da turma toda for ruim, pega-se aquelas habilidades e faz-se um “tarefão” completo só com elas.

Ele critica a ênfase dada ao resultado a ser obtido pelos estudantes na Prova Brasil e compartilha sua preocupação quanto à questão do ritmo de aquisição das habilidades, pois reconhece que esta não acontece uniformemente, variando de estudante para estudante. Fanizzi e Santos (2017 , p. 471) expressam um achado semelhante ao alertar para a realidade de que as políticas de avaliação pautadas no desempenho não se “efetivam a contento, pois transitam em um ciclo de poucas possibilidades de mudança, devido à distância entre o que se espera do aluno e o que de fato ocorre”.

Embora Marcos teça críticas, percebemos que todas as atividades desenvolvidas por ele (inclusive aquelas que não estavam preconizadas pelo programa) em sala de aula visavam à reprodução dos textos matemáticos válidos. Em duas das quatro aulas observadas, ele aplicou “tarefões” de revisão elaborados nos mesmos moldes das avaliações padronizadas, sempre no formato de exercícios voltados para a memorização, exemplo disso são os simulados da Prova Brasil aplicados periodicamente, corroborando Silva, Barbosa e Oliveira (2013). Na Figura 7 , apresentamos parte de um dos simulados aplicados aos alunos.

Fonte: Dados da pesquisa.

Figura 7 – Primeira parte de um simulado da Prova Brasil para ser realizada em 25 minutos 

Patrícia e Silvia contam qual o objetivo dos simulados da Prova Brasil:

[O simulado visa] preparar o aluno, preparar mesmo o aluno, no tempo. O simulado tem a mesma quantidade de questões da Prova Brasil. São dois cadernos: o primeiro caderno tem 25 minutos para você fazer; e o segundo caderno, 25 minutos. É para preparar mesmo o aluno para a Prova Brasil. As questões são de acordo com a Prova Brasil, o tempo que ele tem que fazer […]. Eles fazem [os simulados] de 15 em 15 dias. Quando chegar perto da Prova Brasil, vai ser toda semana. (Patrícia).

Eu vejo que, se você simula uma situação, você fica mais craque. Você vai ter um resultado melhor, porque você treinou […]. É outro professor que aplica para os alunos irem se familiarizando com a pessoa de fora que vem, porque quem vem aplicar a Prova Brasil é uma pessoa de fora. (Silvia).

Essas avaliações consistem, portanto, na tentativa de reproduzir o ambiente em que os estudantes realizam o exame, o número de questões, o tempo cronometrado. Tudo é organizado para que eles se habituem à situação que enfrentarão, inclusive contando com a presença de uma pessoa estranha. Inicialmente, os estudantes fazem um simulado a cada quinze dias, mas, com a aproximação da data de aplicação da prova, eles passarão a realizar um simulado por semana. Aqui, podemos abordar também o posicionamento dos estudantes, que, sob a regulação de um sistema de codificação com classificação e enquadramento fortes, serão taxados como “excelentes”, “bons” ou “ruins” em matemática, a depender do texto matemático que produzam nesses simulados, conforme encontramos em Lira e Barbosa (2020) .

Todos os esforços são empreendidos pelos agentes envolvidos para que, durante a realização da Prova Brasil, os estudantes consigam reproduzir os textos matemáticos válidos. É preciso dizer que algum estudante pode tentar “resistir” aos mecanismos de reprodução dos textos matemáticos válidos, ou mesmo não conseguir identificar as regras de reconhecimento, e apropriar-se intuitivamente delas sem sofrer uma punição mais séria que ser tachado como ruim em matemática ( AGUIAR; OLIVEIRA, 2014 ). Contudo, Bernstein (1990) considera essa autonomia (no sentido da possibilidade de transformar textos circulantes na sala de aula) como um ocultamento da violência do controle simbólico, pois confere ao sistema educacional uma aparência de normalidade. Esse paradoxo se desfaz quando compreendemos que o dispositivo da performatividade transforma a produção de textos válidos em fator que proporciona privilégios para quem os produz, seja somente o reconhecimento público das habilidades do estudante em matemática, seja uma atenção maior do professor ou outros fatores que possam favorecê-lo nesse contexto.

Considerações finais

Os dados analisados, à luz da sociologia de Basil Bernstein e da perspectiva de Stephen Ball, possibilitaram caracterizar princípios do dispositivo da performatividade no Programa de Intervenção Pedagógica para o Ensino de Matemática nos Anos Iniciais, realizado pelo Instituto Alfa e Beto na cidade de Teresina: relações verticalizadas entre os agentes e preparação para a reprodução de textos matemáticos válidos. Os resultados nos levaram a conceber o dispositivo da performatividade como um conjunto de princípios ou regras comunicacionais, embutidas em um código específico, que criam condições para a implementação do trabalho nos moldes performativos. Essas regras são tacitamente aceitas e regulam as práticas pedagógicas. Encontramos os princípios desse dispositivo em operação nos materiais disponibilizados aos professores e estudantes, nos encontros de formação, nas aulas e reuniões de planejamento pedagógico, como mostrado anteriormente.

Neste ponto, podemos dizer que o dispositivo da performatividade é um dispositivo pedagógico que cria as condições para a materialização do controle simbólico que visa à implementação do trabalho nos moldes performativos. Em outras palavras, inspirados em Bernstein (1990) , identificando o contexto escolar analisado como lócus de um dispositivo pedagógico, e usando a teorização de Ball (2000 , 2003 ), adjetivamo-lo como performativo.

No contexto estudado, os princípios caracterizados indicam que o dispositivo da performatividade opera instaurando um sistema de princípios expresso por graus de classificação e enquadramento fortes, ou seja, com nítida separação entre agentes e categorias. Esse sistema de codificação propicia o controle baseado na vigilância constante, no posicionamento hierárquico inferiorizado de professores que ensinam matemática como executores de roteiros de aula elaborados pela formadora e nos esforços de um grupo de agentes fiscalizadores, para garantir a reprodução dos textos matemáticos válidos durante os exames.

Por fim, consideramos que abordar a performatividade em termos de princípios de um dispositivo pedagógico, a partir dos aportes teóricos expostos, abre possibilidades para novas pesquisas. Elas podem ser macrossociológicas, por exemplo, ao ampliar a discussão da centralidade das avaliações externas na política curricular vigente, ou microssociológicas, ao aprofundar os estudos dos modos de operação de controle comunicacional sobre grupos de agentes, avançando quanto ao impacto de programas semelhantes ao Pipemai para a constituição da identidade de professores que ensinam matemática.

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3- Nomenclatura não oficial utilizada para evitar repetições.

4- O Instituto Alfa e Beto (IAB) é uma empresa privada do setor educacional que atua em diversas cidades, entre elas Teresina, colaborando com a formação de professores e o fornecimento de livros e cadernos de atividades para os estudantes e de materiais de apoio para os professores. Mais informações sobre essa organização podem ser obtidas em seu site: https://www.alfaebeto.org.br/ .

1- A pesquisa contou com apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).

Recebido: 09 de Fevereiro de 2021; Revisado: 14 de Setembro de 2021; Aceito: 23 de Novembro de 2021

Editor responsável: Prof. Dr. Ivã Gurgel

Ismael Santos Lira é professor da educação básica na Rede Municipal de Ensino de Teresina. É mestre em ensino, filosofia e história das ciências pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS). Atualmente, cursa o doutorado no referido programa de pós-graduação.

Jonei Cerqueira Barbosa é professor associado do Departamento II da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), onde atua como docente permanente nos programas de pós-graduação em Educação e em Ensino, Filosofia e História das Ciências.

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