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Educação e Pesquisa

versión impresa ISSN 1517-9702versión On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.49  São Paulo  2023  Epub 28-Abr-2023

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202349252847 

Artigos

Investigação científica em Angola: desafios e estratégias para a autonomia nacional

Scientific research in Angola: challenges and strategies for national autonomy

Marcelino Mendes Curimenha1 
http://orcid.org/0000-0001-7447-0660

1-Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP


Resumo

Esse estudo apresenta uma contribuição sobre a temática entre o ensino superior e a investigação científica em Angola, colaborando, de modo geral, para o mapeamento de uma zona pouco explorada nos estudos do ensino superior desse país. Referenciam-se os desafios e estratégias ante as políticas científicas que Angola, nos últimos anos, tem implementado, com resultados ainda muito tênues. Situa-se, então, por meio de uma pesquisa qualitativa de análise documental, a cosmovisão da problemática do fazer ciência nesse país africano, cuja independência, conquistada há menos de cinquenta anos, em parte pode justificar o caráter ainda incipiente de sua estrutura acadêmica. Vê-se, todavia, que o Estado angolano tem buscado sanar alguns dos seus principais entraves por meio de medidas como a expansão de instituições de ensino no interior do país e a criação de programas de intercâmbio internacional. Apesar, porém, das medidas recentes de fomento à produção científica em Angola, conclui-se que tal processo encontra-se ainda em estado embrionário, não apenas pela insuficiência das medidas até aqui estabelecidas, mas também pelo legado colonial e a guerra civil, ainda muito presentes na realidade angolana.

Palavras-chave Ensino superior; Investigação científica; Angola

Abstract

This study presents a contribution on the theme between higher education and scientific research in Angola, collaborating, in general, to map an area little explored in studies of higher education in that country. Reference is made to the challenges and strategies facing the scientific policies that Angola has implemented in recent years, with results that are still very tenuous. Therefore, through a qualitative research of documentary analysis, the cosmovision of the problematic of doing science in this African country, whose independence, conquered less than fifty years ago, can partly justify the still incipient character of its academic structure. It can be seen, however, that the Angolan State has sought to remedy some of its main obstacles through measures such as the expansion of educational institutions in the interior of the country and the creation of international exchange programs. Despite, however, recent measures to encourage scientific production in Angola, it is concluded that this process is still in an embryonic state, not only due to the inadequacy of the measures established so far, but also due to the colonial legacy and the civil war, still very present in the angolan reality.

Keywords Higher education; Scientific research; Angola

Introdução

Vários motivos básicos me estimulam a desenvolver uma análise sobre a produção e divulgação da ciência em Angola. O primeiro motivo consiste em empreender um estudo capaz de propor certa ruptura discursiva em relação às sequências conceituais largamente trabalhadas pela tradição, os consensos intelectuais, as repetições e as ordens discursivas já normatizadas sobre o olhar à África. Em um estudo sobre a produção africana do conhecimento, Furtado ( FURTADO, 2016, p. 127) se concentrou em analisar criticamente “[...] ausências e silêncios devotados à África pela historiografia e demais ciências sociais e humanas, ou aparecendo de forma subalternizada e/ou atrelada e subsidiária”. Ademais, o autor ressaltou que:

A ruptura com estas condições teóricas e sociais de produção intelectual sobre o continente africano pelos africanos pressupõe a emergência de intelectuais não-eurófonos, capazes de, não apenas se contraporem teórica e epistemologicamente aos paradigmas hegemônicos, essencialmente euro-ocidentais, quanto de propor novos paradigmas, novos métodos e novas fontes, dialogando, aqui também criticamente, com e a partir de outros topoi, nomeadamente e centralmente africanos. ( FURTADO, 2016, p. 131).

Busco aqui desenvolver um estudo que contribua para o mapeamento de zonas raramente exploradas pela Academia, especificamente a investigação científica em um país de língua portuguesa do continente africano, isto é, Angola. Percorro também os tipos de políticas científicas que têm sido criadas em Angola, no intuito de analisar como buscam potencializar o desenvolvimento nacional.

Outra motivação que inquieta este estudo é estabelecer uma análise que possa compreender o papel que os angolanos têm no desenvolvimento de conhecimentos, na autonomia científica, na cultura da investigação 2 realizada por agentes nacionais sem “intervenção externa”, na valorização dos seus especialistas, professores e estudantes, e no estímulo a uma pesquisa operada por africanos e, sobretudo, embora não apenas, para africanos.

Além disso, pretendo estabelecer um pontapé inicial no debate sobre esse tópico, abrindo caminhos para investigações sobre a necessidade de estabelecerem-se mecanismos de políticas científicas e de incentivos, tais como financiamento, premiação e a valorização dos pesquisadores nacionais angolanos. Isso posto, os textos serão instrumentalizados pela pesquisa qualitativa por meio da análise documental, visando favorecer os fragmentos enunciativos como decretos, leis, artigos, jornais e demais textos que apresentam um quadro geral da criação de políticas científicas em Angola.

Pensar a ciência africana além dos consensos

As pesquisas tradicionalmente desenvolvidas sobre africanidade no Brasil atravessam quatro eixos temáticos centrais: cultura, raça, colonialismo e religião. Jean-Marc Ela ( 2016), intelectual camaronês, autor de diversas obras sobre o continente africano, reitera que devemos “[...] evitar encerrar o pensamento africano no universo das crenças, levando a acreditar que a tradição africana comporta apenas as representações coletivas relativas às divindades e aos espíritos” ( ELA, 2012, p. 48).

Embora esses tópicos sejam caros, sobretudo às problematizações sobre racismo estrutural e decolonialidade, religiões de matrizes afro-brasileiras e feminismo negro, permitem uma aplicabilidade imediata à realidade brasileira, africana e não só, num período, como o atual, no qual emerge, de modo explícito, o fascismo e tudo o que ele representa. Entendo como essencial pensar o contexto africano a partir de outras possibilidades. Hostins ( 2013, p. 433), em seu estudo sobre formação de pesquisadores em programas de excelência de pós-graduação em educação, compreendeu que:

Quando se trata da formação do pesquisador, é necessária a presença da crítica, sob pena de inviabilizar a discussão esclarecida e fundamentada dos problemas filosóficos inerentes a todas as concepções de ciências. Caso contrário, o pesquisador corre o risco de manter-se enredado no domínio da manipulação prática da realidade e de se prender na teia de sistematização de categorias. Por serem dadas na prática imediata ou por resultarem de construções da comunidade científica, são falsas e ilusórias em si mesmas, distorcem o mundo real e bloqueiam a busca por estruturas determinantes dos fenômenos.

Neste exercício inicial, é necessário considerar o pensamento do professor cabo- verdiano, Cláudio Furtado ( 2016, p. 118), segundo quem as

[...] negações, denegações e silenciamentos da África, dos africanos e suas historicidades persistem tanto em determinadas tradições teóricas e epistemológicas quanto em discursos de algumas elites, nomeadamente a política, dos países euro-ocidentais.

Organizou-se um consenso intelectual no âmbito acadêmico com o poder de definir (o pensamento e pesquisa) e delimitar que tipo de estudo pode ser selecionado, eliminado, proibido ou difundido em relação às questões africanas. Poucas vezes, ao pensar o continente africano, as pesquisas construídas no Brasil avançam fronteiras, quebram paradigmas e analisam temáticas mais contemporâneas. Há, isto sim, todo um desejo pelo exótico e misterioso ao pesquisar o continente africano.

Customiza-se, assim, um consenso em ambientes tranquilos, que classifica as questões africanas, isto é, apenas como espaço cultural e religioso. O argumento de Thiengo, Bianchetti e Pinto ( 2019, p. 36) é de que essas ações têm suas intencionalidades, visam uma economia dos limites que fecham a discussão a partir dessas categorias. Para os autores, “[...] a dominação de classes precisa também ser cultural, ou seja, necessita forjar corações e mentes a partir da edificação de consensos”. Pensar além dos consensos preestabelecidos sobre o continente africano permite compreender esse papel, que:

Implica renunciar tanto aos mitos da ciência, tal como historicamente construída no universo sociocultural ocidental, como à imagem que essa mesma tradição intelectual construiu de África e dos africanos, recheada de mitos seculares que tornaram possíveis falsas ‘divisões entre os povos e as atividades humanas’. É, pois, necessário recusar o mito da ‘excepção negra’, da incapacidade dos povos africanos de produzirem um pensamento e uma prática no âmbito da ciência. ( PATACHO, 2016, p. 337).

Isso nos conduz ao olhar do historiador nigeriano, Toyin Falola ( 2007, p. 20), que analisa o poder de definir consensos e delimitar a expressão de uma cultura como modos de tornar “[...] negativo o que é positivo, para transformar seu próprio localismo em universalismo, para disseminar e semear sua própria cultura e religião, para se tornar o próprio centro do mundo, para tornar sua civilização a norma e fazer com que as demais corram para alcançá-la”.

Os consensos e as delimitações do que podem ser ditos, pensados e escritos nas escolas e universidades, relacionados às temáticas africanas, operam-se por meio de discursos coloniais e paternalistas, que determinam os tópicos que supostamente interessam às pessoas negras e africanas. Fanon ( 1968) chama isso de compartimentos, estabelecidos pelo universo colonial.

O mundo colonial é um mundo dividido em compartimentos. Sem dúvida é supérfluo, no plano da descrição, lembrar a existência de cidades indígenas e cidades europeias, de escola para indígena e escolas para europeus [...] A linha divisória, a fronteira, é indicada pelos quartéis e delegacias de polícia. Nas colônias, o interlocutor legal e institucional do colonizado, o porta-voz do colono e do regime de opressão é o gendarme ou o soldado [...] Vê-se que o intermediário do poder utiliza uma linguagem de pura violência [...] O intermediário leva a violência à casa e ao cérebro do colonizado [...] Não basta ao colono afirmar que os valores desertaram, ou melhor, jamais habitaram o mundo colonizado. O indígena é declarado impermeável à ética, ausência de valores, como também negação de valores [...] por vezes este maniqueísmo vai até o fim de sua lógica e desumaniza o colonizado. A rigor, animaliza-o. ( FANON, 1968, p. 27–31).

É necessário então pensar a ordem dos discursos que articulam as questões africanas de forma interditada e discutir a realidade africana “livre de estereótipos e de um olhar folclórico e exótico”, como aponta o professor Victor Kajibanga ( 2012), ao fazer uma nota de abertura no livro de Jean-Marc Ela ( 2012), cujo título, Restituir a história às sociedades africanas, promover as ciências sociais na África negra, já demonstra a intencionalidade de sua análise. Ademais, vale salientar que Foucault ( 2012) traz questões que podem ser compreendidas na mesma direção: a interdição dos discursos (educacionais), controlados dentro de um contexto intelectual e acadêmico e por meio do aparelho de Estado. Aqui, ele trata do dito e do não dito, dos discursos considerados ortodoxos e canonizados, dos discursos heréticos e profanos. Segundo a consideração de Foucault ( 2012, p. 41), a educação:

Embora seja, de direito, o instrumento graças ao qual todo indivíduo, em uma sociedade como a nossa, pode ter acesso a qualquer tipo de discurso, é bem sabido que segue, em sua distribuição, no que permite e no que impede, as linhas que estão marcadas pela distância, pelas oposições e lutas sociais. Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou de modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo.

Tais confiscos ou confinamentos dos discursos podem ser encontrados em todos os espaços de relações de poder. Para Ferreirinha e Raitz ( 2010, p. 370), o poder como “[...] verdade vem se instituir, ora pelos discursos a que lhe é obrigada a produzir, ora pelos movimentos dos quais se tornam vitimados pela própria organização que a acomete e, por vezes, sem a devida consciência e reflexão”.

Em outro momento, Foucault ( 1999) pousou seu olhar nos discursos médico- científicos e nas interferências religiosas no que tange à elaboração de um comportamento verdadeiro. Embora a questão levantada por Foucault seja atinente aos modos discursivos que formam o conceito e a prática sobre sexo, é possível pensar outras realidades a partir dessa arqueologia. De forma sucinta, para esse estudioso, discursivamente o sexo passa por um processo de restruturação, no qual se condensam as práticas que passam a ser consideradas como desvios e perversões sexuais. A família emerge nesse contexto como uma aliada dos discursos aparelhados pelo Estado. Logo, a família conjugal, representante legal do Estado, pode confiscar, por exemplo, os saberes caros a outras questões

E absorve-a, inteiramente, na seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, o sujeito se cala. O casal, legítimo e procriador, dita a lei. Impõe-se como modelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de falar, reservando-se o princípio. ( FURTADO, 2016, p. 9).

No estudo intitulado “Em defesa da sociedade”, o filósofo sugere que esses discursos nos esforçam a “[...] produzir a verdade pelo poder que exige essa verdade e que necessita dela para funcionar, temos de dizer a verdade, somos coagidos, somos condenados a confessar a verdade ou encontrá-la” ( FURTADO, 2016, p. 29).

Quais verdades são produzidas em relação ao continente africano? Quais saberes emergem das pesquisas desenvolvidas nas universidades? Sabemos que a verdade é desse mundo, historicamente mascarado em diferentes formas, e que, ademais, embranqueceu- se e estabeleceu regimes de verdades. Mas, para clarear melhor esse pensamento, faz-se necessário enegrecer além dos consensos normatizados. A coesão estabelece os consensos, reproduz aquilo que é normal pensar dentro de um ambiente específico, silencia problematizações necessárias para o estudo das Ciências Humanas. Hostins ( 2013, p. 424) demonstra tais consequências ao salientar que:

Quando se prioriza o pluralismo e o consenso nega-se a possibilidade de crítica e inviabiliza- se a existência de um efetivo e sistemático debate e embate nos estudos da área. Para haver embate supõe-se a existência do contraponto, da posição que oferece resistência ou, no mínimo, de um aparato conceitual no qual haja espaço para o desenvolvimento, o debate interno e a argumentação filosófica de sustentação à ciência. E essa é uma questão que não pode ser ignorada por pesquisadores em formação.

É nessa aparência que se tem arquitetado, durante séculos, a impossibilidade de um conhecimento, reconhecidamente científico, concebido nos territórios africanos por intermédio dos africanos e para os africanos. Dominique Combe ( 2015, p. 12), professor de literatura na École Normale Supérieure (Paris), anota que, ao ser “[...] designado, nomeado pela linguagem (dos brancos, por definição), o negro está fadado à passividade de um objeto comentado – o ‘tema’ ou o ‘assunto’ tanto do discurso quanto do olhar”. Tempels ( 1969) acrescenta que esses discursos patriarcais, da dependência dos negros ao sujeito colono provedor, manifestam-se por meio de uma declaração do tipo:

Não pretendemos que os Bantus sejam capazes de nos presentear com um tratado filosófico acabado, já com todo o vocabulário próprio. É graças à nossa própria preparação intelectual que ele irá sendo desenvolvido de uma forma sistemática. Cabe-nos fornecer-lhes um quadro preciso da sua concepção das entidades, de forma a que eles se reconheçam nas nossas palavras e concordem, dizendo: ‘Vós percebestes-nos, agora conheceis-nos completamente, ’conheceis’ da mesma forma que nós ‘conhecemos.’’ ( TEMPELS, 1969, p. 14).

A sociedade angolana é de origem bochimane, caçadores, de estatura pigmoide e claros, de cor acastanhada, e dos bantus. Estes últimos povos, no início do século VI d. C., inseriram-se no território angolano utilizando-se de um sistema tecnológico de metalurgia, cerâmica e agricultura da Idade dos Metais, empreendendo uma das maiores migrações da história africana negra. Considera-se bantu uma civilização que manteve a sua unidade e foi desenvolvida “por pessoas de pessoas” do grupo etnolinguístico bantu. O radical ntu, vulgar para a maioria das línguas bantu, significa homem, ser humano, e ba é o plural. Assim, bantu significa homens, seres humanos. Estudar a dinâmica de fazer ciência em Angola, por meio da formação de pesquisadores e produção de saberes, é problematizar os modos como os povos de origens bochimanes, bantus, e não só, enfrentam suas próprias questões no campo da ciência. Tal estudo pode permitir a organização de respostas à realidade angolana.

Outrossim, é uma tentativa de estabelecer uma descontinuidade à maneira como tradicionalmente são tratados os africanos no universo acadêmico. A noção de descontinuidade é uma opção deliberada neste processo da escrita. Permito-me, assim, a delimitação de uma análise pouco problematizada no cenário acadêmico: a arqueologia de fazer ciência no contexto africano, sobretudo no contexto angolano.

Por pouca problematização, trata-se da quase ausência de trabalhos acadêmicos, estudos de investigação cientifica que resultam em produção de artigos, livros, ensaios críticos sobre o tema. Logo, será necessário caminhar sobre as pedras com o pouco referencial teórico capaz de sustentar o presente estudo. Reconheço a dificuldade de acesso a artigos e trabalhos anteriores, que dificultam uma melhor reflexão sobre o tema, já que existe no contexto angolano um quase silenciamento sobre o desenvolvimento de políticas científicas.

Ciência amordaçada: retrato de uma independência tardia

Ernane Xavier da Costa (2018), livre docente da Faculdade de Zootecnia da Universidade de São Paulo, argumenta que todo projeto de desenvolvimento científico deve evocar “[...] a imagem de uma política científica onipresente em todas as necessidades sociais de interesse público e (principalmente) privado, capaz de gerar mudanças necessárias para um crescimento econômico real” ( COSTA, 2018, s. p.). Além disso, o autor salienta que:

A importância da política científica para um país está [...] relacionada com o desenvolvimento econômico de forma mais que direta. Vejam bem, no passado o desenvolvimento econômico e a redução da pobreza dependiam de fatores domésticos, como por exemplo, da propensão dos habitantes de uma certa região a economizar. Mas isso mudou e os nossos gestores da política científica parecem não entender que a economia mundial depende fortemente do conhecimento e este, por sua vez, move-se para além das fronteiras espaciais ficando à mercê inclusive de influências externas. E, nesse ponto, não gerar emprego para cientistas implica na geração de pobreza. E o futuro da pobreza, meus queridos, não poderá ser compreendida até que os gestores da política científica deste país levem em conta as implicações desse fato. ( COSTA, 2018, s. p.).

Em 2002 houve, no Brasil, o Fórum de Reflexão Universitária da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), quando foi discutida a natureza da ciência e a utilização do conhecimento nos países periféricos. Nesse encontro, apontou-se a relevância de um país valorizar a produção científica para a melhoria da qualidade de vida de sua população, atendendo às necessidades básicas de sobrevivência e da consequente sofisticação da atividade humana em seus aspectos sociais. Uma das afirmações expostas nesse Fórum pode ser usada para pensar também a realidade angolana:

Os povos que não participam do desenvolvimento científico estão, em grande medida, alijados dos avanços nos padrões de qualidade de vida e são economicamente subalternos em relação aos povos que lideram os avanços do conhecimento. Reverter esta situação não é tarefa fácil já que criar uma cultura científica exige inúmeros investimentos em educação e cultura, o que é agravado pelas carências advindas da dificuldade que essas sociedades têm em criar riquezas sem o insumo principal para isso, que é o conhecimento. ( PATACHO, 2016, p. 17).

A colonização portuguesa produziu dependência em Angola e com ela a volúpia pelo que é exterior, o desprezo pelos saberes locais e o estigma contra o especialista nativo. Após a independência nacional, e o surgimento da guerra civil entre os movimentos políticos de libertação nacional contra o sistema colonial, legitimaram-se a intensificação do autoritarismo, a centralização política e a constituição de uma cultura social “[...] que não valoriza o diálogo, sendo a desconfiança um pilar importante nas relações entre pessoas e instituições” ( PAIN, 2007, p. 254). Além disso, os severos limites impostos à participação de atores não estatais, como salienta Pain, impediram a construção social de uma cultura do diálogo e ignoraram a contribuição de mecanismos promotores de coesão social. Com isso, como consequência de uma sociedade que não participa no desenvolvimento científico, Angola tem demonstrado pouco avanço nos padrões de qualidade de vida.

Em um estudo sobre a evolução e crescimento do ensino superior, Paulo de Carvalho ( 2012, p. 1) afirmou existir uma “[...] ausência total de investigação científica, havendo casos individuais que demonstram que se chega mesmo a ignorar quem pretenda promover a investigação (pesquisa)”. Pain ( 2008, p. 13), por outro lado, pontua a problemática em propor soluções, principalmente no “[...] que diz respeito às restrições de sua atuação, à dificuldade de inserção na formulação de políticas públicas e ao desenvolvimento de parcerias junto ao governo, [que] caracterizam a sociedade civil angolana”. A expansão universitária nas 18 províncias de Angola reflete também essas questões na:

Deficiente aposta em bibliotecas e laboratórios, havendo mesmo a assinalar a criação de faculdades sem haver a preocupação com a criação destas infraestruturas e sem a aquisição de meios de trabalho indispensáveis a docentes e estudantes. ( CARVALHO, 2012, p. 64).

Se o pensar é existir, segundo concluiu Descartes, o ambiente monopartidário ou de partido único e de sujeição que se engendrou durante 27 anos de guerra civil decretaram a morte da ciência em Angola. Por fazer ciência, recorro a Volpato ( 2016), pensando-o como processo de:

Construir novos conhecimentos dentro da rede de conhecimento científico pré-existente. Esse conhecimento não é estático, mas dinâmico, e sua construção contempla inclusão de novas informações, bem como modificação do que se aceita, ou mesmo fortalecimento de ideias ainda controversas. ( VOLPATO, 2016, p. 217).

Logo, a ausência de autonomia do pensar/fazer ciência e de mecanismos alternativos que atendam à demanda nacional – no campo da cultura, economia, tecnologia, saúde, em especial a educação –, sem recorrer, constante e religiosamente, ao estran(ho)geiro, consistem num dos principais desafios que a educação angolana precisa superar. Falola ( 2007, p. 15) argumenta que:

Há detalhes conhecidos, como a escassez de livros e recursos educacionais, fuga de cérebros, baixa autoestima e muito mais. Há alguns aspectos que ignoramos. Nós, de fato, produzimos conhecimento, mas o que acontece com seu consumo? A África enfrenta uma clivagem digital e há muitos novos desafios criados pela revolução digital, envolvendo, em particular, o processamento da quantidade maciça de dados que a internet torna possível. Temos ainda a rigidez na forma como as disciplinas são estruturadas, que determina o modo como os cursos são criados e como as instituições acadêmicas são administradas. A rigidez dos departamentos acadêmicos desencoraja a colaboração entre pesquisadores, de maneira que temas de interesse comum se fecham em guetos. Não estou certo de que dispomos da burocracia universitária apropriada para resolver este problema, especialmente no que toca ao ensino.

A Ministra do Ensino Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação (MESCTI), Maria Bragança Sambo ( 2019), reconheceu, numa entrevista dada ao Jornal de Angola, que a investigação científica em Angola enfrenta dois grandes obstáculos, nomeadamente a escassez de investigadores e a falta de financiamento.

Em todo o caso, e como a experiência de vida nos tem demonstrado, precisamos de contar com o que temos, quer em termos de recursos humanos escassos quer em termos de meios financeiros exíguos. Não podemos passar a vida a lamentar pela falta de investigadores quando, se calhar, os poucos que temos não são devidamente considerados e plenamente incentivados. Devemos todos aprender, enquanto sociedade, que a criação de condições humanas, materiais e financeiras, para que os nossos investigadores trabalhem, é um investimento com garantias de êxitos e efeito multiplicador para o país. Numa altura em que há uma certa dificuldade dos países emergentes em aceder às tecnologias, acrescida da resistência de muitos países para transferir tecnologia e ‘know-how’, nada melhor do que começarmos por contar com os nossos investigadores. ( SAMBO, 2019, s. p.).

Portanto, a emergência de pensar sobre a autonomia na produção científica no contexto angolano e a declaração de uma independência na construção de conhecimento foram preocupações determinantes do professor angolano, Albano Ferreira ( 2018), doutor em Ciências Fisiológicas pela Universidade Federal do Espírito, ao considerar que:

A nossa produção científica ainda é escassa e insuficiente, mas tem aumentado nos últimos anos. Para melhorar, precisamos de engajar cada vez mais pessoas em atividades de investigação, sobretudo os profissionais com maior qualificação académica com responsabilidade nesse domínio, tais como os possuidores de graus de Doutor e Mestre. Temos escassez de recursos humanos e um número ainda insuficiente de profissionais com elevada qualificação académica, científica e técnica em Instituições de Ensino Superior (IES) e de Desenvolvimento de Investigação (IDI). Para melhorar esse cenário é necessário continuar a investir na formação e ao mesmo tempo evitar a dispersão desses profissionais, concentrando-os e vinculando-os a projetos prioritários e de grande impacto no domínio da Ciência, Tecnologia e Investigação (CTI). Primeiro, defendo uma estratégia da sua concentração e foco nas IES e IDI, para reforço dos projetos de formação pós-graduada e de CTI, para favorecer, depois, a sua dispersão por outros setores. ( FERREIRA, 2018, s. p.).

A urgência na formação e valorização de pesquisadores nacionais e de produção científica, que atendam às necessidades de Angola, possibilitando a produção, criação, melhoria, aplicação e difusão de novos conhecimentos e/ou de novas tecnologias sobre a natureza e sociedade, consistem nas principais lutas do ensino superior e da história da educação contemporânea angolana. O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos (2005, p. 2) reforça a ideia de que:

A universidade é um bem público e tem que ser assumida como uma prioridade dos Estados nacionais. Caminhamos para uma sociedade de informação, para uma economia baseada no conhecimento e, neste momento, o que está em disputa é saber quem vai produzir esse conhecimento. Há uma grande pressão dos países centrais, mais desenvolvidos, de que são as suas universidades, transformadas em universidades globais, que vão produzir conhecimento para o resto do mundo. E que, portanto, as universidades dos países periféricos vão funcionar em sistemas de franquia. O que significa que perdem autonomia de definirem os seus projetos de pesquisas. Que perdem autonomia de realizar a ciência que corresponda às necessidades do País.

A partir desse pensamento, prossigo com esta análise para mapear de que modo a sociedade acadêmica angolana tem buscado promover estratégias, por meio de políticas educacionais, para dinamizar ou potencializar a produção de conhecimento científico qualificado, desenvolvido por angolanos e para Angola. Pretendo dirigir-me pelos caminhos que foram trilhados até aqui e descrever os desafios encontrados nesse percurso, aparentemente tão sinuoso.

Política científica em Angola

A Lei de Bases do Sistema de Educação (nº 32/20) de Angola ( 2020, p. 4444) afirma, no seu artigo 76º, que é função do titular do Poder Executivo a promoção e apoio às iniciativas das entidades públicas, privadas e público-privadas no sentido de estimular o desenvolvimento da formação de quadros e técnicos, da investigação científica fundamental e aplicada e da extensão universitária. Além disso, a Constituição da República ( ANGOLA, 2010) reforça esse dever do Estado, em seu artigo 79º, de promover a ciência e a investigação científica e tecnológica.

A Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação foi estabelecida pelo Decreto presidencial n. 224/11 de 2011, a definir o mecanismo de coordenação do Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (SNCTI), visando a estratégia de desenvolvimento do país, especialmente ligada a fatores determinantes no combate à pobreza e melhoria de vida do cidadão angolano. Essa política científica, portanto, é um mecanismo de coordenação tutelado pelo Ministério do Ensino Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação (MESCTI), que se aplica às Instituições de Investigação Científica, Desenvolvimento Tecnológico e Inovação e aos atores intervenientes da ciência, tecnologia e inovação, tanto públicos como privados, que integram o SNCTI.

Em relação à investigação científica, o financiamento de projetos, apetrechamento de laboratórios e o aumento do número de investigadores doutorados foram também estabelecidos, assim como o estatuto da carreira do Investigador Científico ( ANGOLA, 2019a).

Fonte: Decreto presidencial 125/15 ( ANGOLA, 2015).

Figura 1 – Sistema Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação 

Embora o atual secretário de Estado para a Ciência, Tecnologia e Inovação, Domingos Silva Neto ( 2019, s. p.), tenha frisado, em entrevista concedida ao Jornal OPAIS, “[...] que não se promove pesquisa científica via despachos, decretos e leis”, a sua recomendação era pensar em uma mudança radical, urgente e precisa na forma de analisar e fazer ciência em Angola. Neto pensa que todas as estratégias, tomadas em prol do desenvolvimento da pesquisa em Angola, serão melhor compensadas se realizadas vagarosamente e de forma segura do que às pressas e com muitos atropelos.

Além disso, tais políticas educativas têm sido, segundo Mendes ( 2014, p. 145), “[...] objeto de reformulação, fazendo parte de projetos legislativos que visam a melhoria da qualidade do desempenho das Instituições de Ensino Superior (IES), bem como dos centros de investigação científica e dos cursos ministrados”.

Quadro 1 - Lista das Instituições de Investigação Científica e Desenvolvimento Tecnológico 

Ministério da Agricultura Ministério da Cultura Ministério da Pesca Ministério da Geol. e Minas
Instituto de Investigação Agronómica (IIA); Instituto de Investigação Veterinária (IIV); Instituto de Desenvolvimento Florestal (IDF); Instituto Nacional de Café (INCA); Instituto de Desenvolvimento Agrário (IDA); Instituto Nacional de Cereais (INCER); Serviço Nacional de Sementes (SENSE) Instituto de Línguas Nacionais (ILN); Instituto Nacional do Património Cultural (INPC); Arquivo Histórico Nacional (AHN); Museu Nacional de Antropologia (MNA); Museu Nacional de História Natural (MNHN); Museu Nacional de História Militar Instituto Nacional de Investigação Pesqueira (INIP); Instituto de Desenvolvimento da Pesca Artesanal e da Aquicultura (IPA); Instituto de Apoio às Indústrias da Pesca Instituto Geológico de Angola (IGEO)
Ministério da Saúde
Instituto Nacional de Saúde Pública (INSP); Instituto de Combate e Controlo das Tripanossomíases (ICCT)
Ministério de Urbanismo e Habitação Ministério das Obras Públicas Ministério do Ensino Superior, Ciências e Tecnologia Ministério da Defesa
Instituto Nacional de Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano (INOTU); Instituto Geográfico e Cadastral de Angola (IGCA) Laboratório de Engenharia de Angola (LEA) Centro Nacional de Investigação Científica (CNIC); Centro Tecnológico Nacional (CTN) Instituto de Defesa Nacional (IDN)
Ministério da Industria Ministério da Educação Ministério do Comércio
Instituto Angolano de Normalização e Qualidade (IANORQ) Instituto Nacional de Investigação e Desenvolvimento da Educação (INIDE) Laboratório Nacional de Controlo de Qualidade (LANCOQ)
Ministério das Telecomunicações e Tecnologia de Informação Estado Maior General das Forças Armadas Angolanas
Instituto Nacional de Geofísica e Meteorologia (INAMET) Museu Nacional de História Militar

Fonte: Organizado pelo autor ( ANGOLA, 2022).

O MESCTI implementou diferentes projetos e programas para o desenvolvimento da pesquisa nacional no intuito de trazer soluções aos problemas concretos da realidade científica angolana. Silva Neto ( 2019, p. 23) apresenta esses projetos e programas:

Temos um programa em curso que se denomina ‘melhoria da qualidade do ensino superior e desenvolvimento da investigação cientifica’. Encontramos muitas ações como o ensino superior e outras como a investigação científica propriamente dita. Temos ainda outro programa cujo objetivo é desenvolver o potencial humano científico e tecnológico nacional através da consolidação do sistema nacional de ciência, tecnologia e inovação. Temos metas concretas no Plano de Desenvolvimento Nacional, 2018-2022 e elas estão traduzidas em números. No caso concreto da investigação científica, até 2022 temos de formar 40 novos doutores, para potenciar e reforçar a investigação científica; têm que ser financiados no mínimo 300 projetos de investigação científica que passem por uma grelha de avaliação, onde se aplica o princípio de excelência e de financiados via editais. Temos de assumir que o primeiro edital deste mandato é o que aconteceu em novembro de 2018 e os projetos estão em avaliação. São no total 148 propostas e em breve saberemos quantas serão financiadas. Temos outro edital resultante de uma parceria externa pela via da plataforma SASSCAL [Centro de Ciência da África Austral para as Alterações Climáticas e Uso Sustentável do Solo], uma iniciativa que incorpora cinco países da região austral de África: Angola, África do Sul, Botsuana, Namíbia e Zâmbia, mais o principal promotor da iniciativa que é a Alemanha. ( SILVA NETO, 2019, p. 2019, p. 23).

Em relação ao financiamento da investigação científica, foi implementado o Plano Anual de Ciência, Tecnologia e Inovação (PLANCTI). No dia 10 de junho 2013, foi aprovado um investimento de 68.264.471.553,77 kwanzas, moeda nacional, equivalente a 161.753.080,89 dólares norte-americanos, por meio do PLANCTI 2013/2014 ( ANGOLA, 2013). Já em 2015, o valor investido no PLANCTI 2014/2015, por meio do Decreto presidencial n.º 8/15, foi de apenas de 27.000.000.000 kwanzas ( ANGOLA, 2014), evidenciando uma redução drástica no investimento anual em pesquisa.

O Plano Anual de Ciências, Tecnologia e Inovação (PLANCTI) define-se como um conjunto de programas e projetos que visa a materialização a curto e longo prazo (anual) da Estratégia Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação (ENCTI), cumprindo a visão e a missão definidas na Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, contribuindo assim para uma resposta eficiente aos principais problemas identificados nos diferentes sectores da socioeconômica do país e determinar/quantificar o investimento público em Ciência, Tecnologia e Inovação. ( ANGOLA, 2013, p. 1523).

O Banco Nacional de Angola, equivalente ao Banco Central do Brasil, assinou, por outro lado, quatro protocolos de cooperação no domínio de Investigação Científica, celebrados nos dias 15, 16 e 21 de Abril de 2021 com várias instituições de ensino superior, nomeadamente: Universidades Agostinho Neto (UAN), Instituto Superior Politécnico de Tecnologias e Ciências (ISPTEC), Centro de Estudos e Investigação Científica da Universidade de Angola (CEIC/UCAN) e Agência de Investimento Privado e Promoção das Exportações (AIPEX).

O Banco Nacional de Angola reforça, deste modo, o desafio premente da formação qualitativa dos quadros angolanos, bem como das relações de cooperação institucional com as universidades públicas e privadas, tendo em vista o incremento de ações de investigação científica em matérias de economia e finanças, a promoção do diálogo e a partilha de conhecimentos no domínio das ciências económicas. Por seu turno, o acordo rubricado com a AIPEX visa a definição de bases para o aprimoramento dos mecanismos de cooperação em matéria de regulação, supervisão, estatística e assistência técnica, bem como a criação de condições que contribuam para a eliminação e/ou diminuição de duplicações de exigências regulatórias, garantindo-se, deste modo, a eficiência da respectiva articulação, devidamente alinhada às orientações político-econômico e de investimento, visando, sobretudo, a diversificação da economia e o desenvolvimento da competitividade das empresas nacionais e promoção da sua internacionalização. ( BANCO NACIONAL DE ANGOLA, 2021, s. p.).

Ademais, a Assembleia Nacional, por meio de um Decreto presidencial do dia 25 de maio de 2021, aprovou a criação da Fundação Nacional para o Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FUNDECIT). A novidade desse decreto é a estipulação de o investimento na ciência ser de ao menos 1 por cento do Produto Interno Bruto (PIB) anual, seguindo a recomendação da Unesco. A FUNDECIT, segundo a ministra Sambo ( 2021, s. p.), é uma “[...] aprovação que é conseguida no Dia de África, relevante para nós, porque a investigação científica é, sem dúvida nenhuma, a base do desenvolvimento”. Além disso, espera-se que “com esta medida o nosso Governo consiga de fato contribuir para melhorar a produção científica nacional” ressaltou a ministra. Os efeitos desses protocolos e da FUNDECIT para a ciência angolana só poderão ser mensurados no longo prazo, como posteriores objetos de estudo.

Plano Nacional de Formação

Com o surgimento em Angola do Plano Nacional de Formação de Quadros (PNFQ), que abrangeu o período de 2013-2020, a relação entre educação, pesquisa e economia se estreitou. O PNFQ representou, ou pode ser considerado, uma política educacional que revoluciona a oferta de formação. Para o Diretor Nacional do Trabalho e Formação Profissional, Leonel Bernardo ( 2014, s. p.), “[...] o PNFQ prioriza os programas de ação de formação de profissionais superiores, médios, docentes, especialistas, capacitação de professores e de investigadores para o ensino superior e o sistema nacional de ciência tecnologia e inovação, bem como da educação”. É na economia, contudo, que todo o investimento implementado pelo programa PNFQ foi centralizado. Ao olhar de Bernardo (2014, s. p.), o PNFQ, ciente desses desafios, constitui-se como:

Instrumento de gestão dos recursos humanos para a economia e visa a melhoria de competências à população ativa desempregada, centradas em objetivos estratégicos da economia, assegurando o equilíbrio entre a procura e a oferta de mão-de-obra qualificada e competente para os desafios atuais e futuros.

Aprovou-se, no dia 22 de fevereiro de 2019, o Decreto presidencial n.º 67/19, cuja finalidade é direcionar recursos financeiros aos pesquisadores e docentes. Esse programa se enquadra no âmbito do:

Programa de Formação e Capacitação de Quadros para o Ensino Superior e Desenvolvimento Científico e Tecnológico, inscrito na Estratégia Nacional de Formação de Quadros (ENFQ) para o horizonte de 2020, define o conjunto de metas e objetivos que devem nortear as dezesseis atividades a desenvolver, no sentido da transformação radical deste setor em termos de produção, disseminação e aplicação de conhecimento, tendente ao desenvolvimento científico, tecnológico e da inovação. ( ANGOLA, 2019b, p. 1466).

Essa modalidade de bolsa é também um recurso que tentou contribuir para a efetividade do programa vinculado ao PNFQ, que delimitou, por meio desse Decreto presidencial n.º 67/19, o envio anual de trezentos licenciados com elevado desempenho e mérito acadêmico para as melhores universidades do mundo. Tal resolução reforçou o Programa de Ação 3 do PNFQ, conforme consta na amostra do Quadro 2, sobre a formação de professores do ensino superior e de investigadores para a melhoria e eficiência do SNCTI.

Quadro 2 – Amostra do programa 

PROGRAMA DE AÇÃO EXECUÇÃO (% ) 2013 e 2014 META ATÉ 2020

PA1

Formação de Quadros Superiores

25.576 Quadros Superiores Formados (21%) 121.350 Diplomados

PA2

Formação de Quadros Médios-Técnicos

39.611 Quadros Médios

Formados (13,9%)

284.800 Diplomados

PA3

Formação professores ensino superior e investigadores SNCTI

Mestrados: 53 Cursos (1.056 Matriculados);

Doutoramento: 4 Cursos (341 Matriculados)

4.800 Mestres;

1.500 Doutores; 140 Doutores SNCTI

PA4

4.800 Mestres; 1.500 Doutores;

140 Doutores SNCTI.

13.024 Docentes Formados (Pré-Escolar: 99; Primário: 2.243; I

Ciclo: 8.336; II Ciclo: 2.346)

Processo de Definição de Metas Iniciado

PA5

Formação de Quadros Administração Pública

50.609 Quadros Capacitados

(29,17%)

173.466 Quadros AP (Administração Pública Central e Local)

PA6

Formação de Quadros Empreendedorismo e Desenvolvimento Empresa

64.687 Quadros Empreendedores Capacitados (36,9%) 175.000 Empreendedores e Gestores

PA7

Apoio à Procura de Formação Superior: Política de Bolsas De Estudo

Bolseiros Internos: 18.217; Bolseiros Externos: 7.793

(88,6% Licenciaturas; 4%

Mestrados; 7,32% Doutoramentos)

Inverter a política de atribuição de Bolsas de Estudo priorizando a Formação Avançada em Domínios Estratégicos

PA8

Formação Profissional Para o Emprego

53.662 Quadros Capacitados Metas a Definir Anualmente

Fonte: Informações obtidas através da revista Qualificar ( PNFQ, 2016, p. 5).

A noção de mérito, definida pelo Decreto n.º 67/19, aponta para o sujeito que reúne um desempenho acadêmico elevado (por meio de notas), que revela competências cognitivas e sociais reconhecidas, independentemente do nível socioeconômico do candidato. O Instituto Nacional de Gestão de Bolsas de Estudos (INAGBE) de Angola executa e gerencia as bolsas internas (em instituições nacionais) e externas (em instituições internacionais) fornecidas pelo Estado. Esses bolseiros externos, dos cursos de mestrado e doutorado, além dos subsídios mensais, recebem anualmente um valor financeiro para investigação e participação em eventos científicos.

O Programa, de execução anual, suportará os custos com os subsídios de bolsa, propinas, passagens aéreas de e para Angola, subsídios para a investigação e participação em eventos científicos. Elaborou-se uma estimativa de orçamento anual para 300 estudantes da totalidade do Programa, orçamento em AKz: 10 930 555 382, 50 (dez milhões, novecentos e trinta milhões, quinhentos e cinquenta e cinco mil, trezentos e oitenta e dois Kwanzas e cinquenta cêntimos). A este montante será necessário adicionar o valor anual de USD 200.000 (duzentos mil dólares norte-americanos), respeitante ao subsídio anual para a investigação científica e participação em eventos científicos, perfazendo, para os cincos anos, o total de USD 1.000.000, 00 (um milhão de dólares norte-americanos). ( ANGOLA, 2019b, p. 1468).

Um dos objetivos centrais que emerge também nesse decreto, assim como noutros documentos legislativos, é a priorização de profissionais para o desenvolvimento na formação de investigadores científicos, assim como para a economia nacional, como suprarreferido.

Estas áreas constituem a base para um desenvolvimento sustentado da economia nacional, o que implica a existência de quadros e profissionais angolanos altamente qualificados. Angola enfrenta o desafio da formação de recursos humanos diferenciados, capazes de assegurar o desenvolvimento do País dos diversos domínios da economia, razão pela qual urge garantir a formação de quadros angolanos competentes. Neste contexto, o Programa do Governo 2017-2022 preconiza, em termos de políticas estratégicas de desenvolvimento, e no eixo relativo à estimulação e valorização do capital humano e à promoção do emprego qualificados e remunerador, medidas de política que visam desenvolver e capacitar os recursos nacionais. ( ANGOLA, 2019b, p. 1466).

Durante a formação de pesquisadores e docentes universitários, estes se beneficiarão da qualificação fornecida pelas mais conceituadas universidades do mundo, todas avaliadas nos rankings internacionais, tendo contato, de acordo com o Decreto n. 67/19, com experiências formativas e científicas, e seus efeitos da aprendizagem, em contextos de alta exigência ( ANGOLA, 2019b).

Considerações finais

Em suma, entre planos e decretos, investimentos em bolsas de mestrado e doutorado, o reconhecimento da deficiência de pesquisa por parte de entes políticos e acadêmicos, a sociedade angolana tem trabalhado no sentido de compensar o seu atraso histórico na formação de novos pesquisadores. Angola começa a trilhar um caminho desconhecido, recente, desafiador, mas promissor. As diferentes políticas adotadas, portanto, têm procurado estabelecer mecanismos eficientes no intuito de favorecer a produção de trabalhos de investigação científica. A autonomia nacional, não obstante, é custosa, sobretudo para um país cuja independência deu-se há tão pouco tempo, e requer a presença e o interesse do Estado em todos os setores.

Pensar a autonomia de produção acadêmica nacional em Angola é a tentativa de sinalizar os mecanismos que orientam o país no investimento de uma educação de qualidade e na valorização dos seus pesquisadores. Além disso, o desenvolvimento econômico, social, cultural e tecnológico de uma sociedade só é potencializado quando seus sujeitos, por meio de políticas públicas eficientes, criam condições para produzir mecanismos capazes de instrumentalizar as diversas soluções para as suas próprias demandas.

As respostas atuais de Angola convergem na busca pela qualificação dos seus especialistas, na ação de pensar e produzir saberes. Tais conhecimentos, uma vez transformados em tecnologia, resultarão em benefícios inegáveis para todo o país. No campo da educação, dever-se-á ainda, no entanto, discutir a natureza de políticas educacionais que possam atender aos históricos problemas socioeconômicos que afetam Angola e a toda África.

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2Na língua portuguesa angolana, os termos investigador e investigação referem-se ao pesquisador e à pesquisa. No Brasil, investi- gador ou investigação se referem (na maioria das vezes) ao trabalho policial ou de um simples detetive que busca descobrir indícios de autoria e materialidade de ações delituosas. Neste trabalho, procurei utilizar ambos os termos (investigador e investigação) para mencionar o indivíduo que desenvolve e produz estudos científicos de nível acadêmico.

Recebido: 01 de Junho de 2021; Revisado: 22 de Dezembro de 2021; Aceito: 25 de Maio de 2022

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