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Educação e Pesquisa

Print version ISSN 1517-9702On-line version ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.49  São Paulo  2023  Epub May 19, 2023

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202349256358 

Artigos

Compreensão e aprendizagem: uma abordagem hermenêutica 1

Understanding and learning: a hermeneutic approach

1-Universidade de Brasília, Faculdade de Educação, Brasília, Distrito Federal


Resumo

Este ensaio propõe-se a pensar a relação e a diferença entre compreensão e aprendizagem. Assim, concentra-se em dois propósitos fundamentais. Primeiro, mostrar como a compreensão precede e prepara a aprendizagem; segundo, observar como a aprendizagem se diferencia da compreensão. Mais especificamente, a aprendizagem exige a habilidade prática para realizar a atividade relacionada à coisa compreendida. Metodologicamente, a exposição segue os princípios fundamentais da hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer e da fenomenologia de Martin Heidegger. Enfim, na primeira seção, este ensaio parte do conceito mais amplo, do ponto comum entre compreensão e aprendizagem: a experiência. Então, mostra como a experiência da compreensão e aprendizagem é essencialmente aplicação no sentido apresentado em Verdade e método, de Gadamer. Por fim, conclui-se com a proposição segundo a qual ambas as experiências – compreensão e aprendizagem – se fundam em um fenômeno mais abrangente, o jogo. Daí resulta uma conclusão importante: a compreensão e, sobretudo, a aprendizagem não são experiências inofensivas, sem consequências práticas; antes, concernem à maneira como cada ser humano se orienta no mundo. Portanto, as regras do jogo segundo as quais a compreensão e a aprendizagem devem ser experimentadas acabam se apossando do ser mesmo de quem compreende e aprende.

Palavras-chave Compreensão; Aprendizagem; Experiência; Aplicação; Jogo

Abstract

This essay aims to reflect upon the relationship and the difference between understanding and learning. Thus, it focuses on two fundamental purposes. First, how understanding precedes and prepares for learning; and second, how learning differs from understanding. Specifically, learning requires a practical ability to carry out an activity related to what has been understood. Methodologically, this essay follows the fundamental principles of Hans-Georg Gadamer’s philosophical hermeneutics and Martin Heidegger’s phenomenology. In the first section, the essay begins from a broader concept, a common point between understanding and learning: the experience. Then it demonstrates how the experience of understanding and learning is essentially application in the sense presented in Gadamer’s Truth and method. Finally, it concludes with the proposition that both experiences – understanding and learning – are based on a broader phenomenon: the play. This leads to an important conclusion: understanding and, above all, learning are not naive experiences, without practical consequences; rather, they concern the way in which each human being behaves in the world. Therefore, the rules of the play according to which understanding and learning must be experienced end up taking over the very being who understands and learns.

Keywords Understanding; Learning; Experience; Application; Play

Apresentação e justificativa do problema motivador deste ensaio 3

A investigação desenvolvida neste ensaio parte de uma premissa fundamental: a compreensão é condição de possibilidade da aprendizagem. Por quê? A aprendizagem exige uma experiência específica, diferente da compreensão; a aprendizagem requer o domínio da habilidade prática para realizar a atividade relacionada ao que compreendi. A compreensão é uma relação deveras fundamental, profundamente fundamental com o mundo. Compreender significa primordialmente tornar familiar algo, em princípio, estranho. Algo só se torna familiar quando encontra um nexo, uma maneira de se relacionar com coisas já familiares a quem está se esforçando para compreendê-lo. Assim a coisa, até então estranha, passa a fazer sentido. Ora, só a partir daí, é possível aprendê-la. Não é possível aprender algo estranho, algo fora do horizonte de sentido onde se encontram as coisas familiares para alguém.

A investigação aqui desenvolvida é o desdobramento de um projeto mais amplo intitulado Por uma concepção filosófica de educação (BACK, 2019). Filosófica, porque a contrasto com outra concepção, predominante não só aqui, no Brasil, mas também em outros países. Chamo-a de concepção escolar de educação. Para ela, a educação é uma relação profissional exercida em instituições de ensino, em particular, em escolas. Aí alguém chamado/a professor/a se encarrega de ensinar uma coisa a alguém chamado/a estudante. Então, caberia à filosofia examinar tal experiência e propor respostas – preferencialmente, respostas práticas – aos problemas ali enfrentados. Tal concepção não é exatamente um equívoco. Antes padece, creio, de um esquecimento do que impulsiona a filosofia desde os gregos antigos.

Para despertá-la, é necessário imbuir-se em um ânimo particular pelo qual se redefine completamente a experiência humana com o mundo. Os gregos antigos cunharam uma palavra para designá-lo: thaumázein. Traduzida em português, ela significa aproximadamente perplexidade, maravilhamento. Ora, quem se encontra perplexo assim está em relação a alguma coisa. A quê, especificamente? Ao fato simples, eis o ponto, de que as coisas sejam. Sim, apenas porque são, as coisas, qualquer coisa, manifestam um quê com o qual se maravilha um/a filósofo/a autêntico/a. Assim ele/a se sente impelido/a a fazer a pergunta filosófica mais fundamental: que é isto? “Que” provém da partícula latina quid, que, por sua vez, remete à quididade, à essência de algo. Ao perguntar Que é isto?, o/a filósofo/a visa, por exemplo, à essência da beleza, linguagem e religião, donde se constitui a filosofia da arte, linguagem e religião.

Todavia, quando se volta para a educação, a filosofia parece se esquecer do que deveria movê-la e, então, torna-se uma espécie de pedagogia filosófica. Portanto, no intuito de me manter no ânimo originário da filosofia, pergunto-me: Que é isto – a educação? Filosoficamente, o que importa na educação é seu próprio ser. Em outros ensaios BACK ( 2020), eu defendo: em seu quid, a educação é fundamentalmente experiência 4. Em tal horizonte de questionamento, pergunto-me aqui pela diferença e correlação entre dois aspectos da educação enquanto experiência – compreensão e aprendizagem. Enfim, só me parece possível abrir o horizonte para o surgimento de tal questão, caso assuma uma atitude teorética. Uma concepção escolar, em contraste, tende a partir de uma atitude preponderantemente prática. Portanto, em princípio, a diferença entre ambas as concepções se encontra na atitude.

A diferença entre atitude teorética e atitude prática é bastante antiga. Remonta à Grécia Antiga, em particular, a Aristóteles, em sua obra postumamente intitulada Metafísica. Para o filósofo grego ( 2005, p. 269, 1025b), o conhecimento se divide em três categorias. Ele pode ser teorético, prático ou técnico, este último não interessa discutir aqui. Resumidamente 5, o conhecimento puramente teorético se distingue pelo fato de visar ao ser mesmo da coisa investigada. O conhecimento prático, por sua vez, visa ao princípio da ação – à vontade de quem age. Afinal, o conhecimento prático pretende influenciar a vontade, a fim de induzi-la a praticar boas ações. É o que Aristóteles observa em sua obra de filosofia prática Ética a Nicômacos. Aqui a investigação, afirma Aristóteles ( 2001, p. 28, 1099b), deve “infundir certo caráter nos cidadãos” para “torná-los bons”. Em suma, ela deve ser útil a quem almeja ser virtuoso 6.

Um exemplo de como a filosofia, ao visar à educação, pretende ser uma investigação prática é a abordagem de Hans-Georg Flickinger ( 2010). Em A caminho de uma pedagogia hermenêutica, no capítulo “Para que filosofia da educação? 11 teses”, ele apresenta claramente sua posição. A filosofia da educação, segundo ele a concebe, deve assumir como tarefa uma preocupação intelectual. Qual? “Levar os integrantes do processo educativo a um comportamento refletido” (FLICKINGER, 2010, p. 99–100). Sua preocupação intelectual não pretende pensar exatamente o quid da educação, mas antes procura estimular um comportamento refletido em alguém. Quem? Ele esclarece: “os integrantes do processo educativo”, professores/as, estudantes, diretores/as etc. Com qual fim? Obrigá-los, prossegue Flickinger ( 2010, p. 99–100), “a se dar conta dos pressupostos e das implicações determinantes do perfil profissional do educador”.

Logo, sem dúvida, Flickinger concebe a educação imbuído de um interesse prático. É a orientação de onde também partirá anos mais tarde, ao escrever Gadamer & a educação ( 2014), filósofo com o qual eu pretendo dialogar neste ensaio. Segundo Flickinger ( 2014, p. 65), a hermenêutica filosófica de Gadamer poderia ser a base para o desenvolvimento de uma teoria pedagógica. “Poderia”, atenta Flickinger, pois seu propósito é bem diferente. Ele, por sua vez, considera mais importante “pôr em relevo a fertilidade da hermenêutica [de Gadamer] para a atuação pedagógica concreta” (FLICKINGER, 2014, p. 65). Afinal, a hermenêutica filosófica pode assim recuperar “aspectos negligenciados ou até reprimidos da prática pedagógica [...] em vigor” (FLICKINGER, 2014, p. 65). Em suma, ele se apropria de Gadamer para despertar nos “integrantes do processo educativo” uma reflexão sobre “pressupostos e implicações” de certa prática pedagógica.

Quem assim investiga a educação a mantém nos limites de um horizonte prático, permeado de problemas profissionais, institucionais e, no máximo, sócio-políticos. Para uma investigação munida de uma atitude teorética, a educação passa a se manifestar, diria, em uma perspectiva universal. A educação em seu ser é o que lhe desperta perplexidade, maravilha e assim impele a investigação. Tal investigação não pretende estimular certo comportamento em quem participa do processo educativo. Embora algo assim possa acontecer, seria apenas uma consequência eventual, estranha ao que impulsiona verdadeiramente a investigação. Ademais, nada impede a educação de manifestar traços práticos, como ocorrerá aqui, na investigação da aprendizagem. Portanto, a diferença mais importante, convém frisar, não se encontra propriamente na coisa investigada, mas sim na definição da atitude de quem a investiga.

Mas há ainda um problema hermenêutico na diferença entre a concepção filosófica e a concepção escolar de educação. Escrevo hermenêutico, pois concerne aos preconceitos de quem investiga. Mesmo sob a orientação de uma atitude teorética, seria possível pensar a educação segundo uma concepção escolar. Bastaria concebê-la baseado no modo como o senso comum a preconcebe, outro exemplo de uma concepção escolar. Para ele, o senso comum, a educação se define pela relação entre professores/as e estudantes e/ou entre pais, mães e filhos/as. Além de partir de uma atitude prática, Flickinger também se deixa guiar pelo senso comum, conforme as citações feitas o mostram claramente, creio. Mesmo se fosse possível discernir em sua abordagem características de uma atitude teorética, sua concepção ainda seria escolar. Assim, a atitude teorética da investigação é condição necessária, mas não é suficiente 7.

Enfim, neste ensaio, ao contrário de Flickinger, eu pretendo realizar uma apropriação filosófica da hermenêutica de Gadamer. Em 1990, ele proferiu uma conferência intitulada “Educação é educar-se” (GADAMER, 2000, p. 10). O filósofo resume seu propósito assim: justificar por que a aprendizagem só é possível pela conversação. Porém, durante a conferência, Gadamer não desenvolve bem tal justificação, mas se dispersa em considerações gerais sobre educação baseadas em experiências pessoais. Neste artigo, pretendo assumir mais sistematicamente a tarefa. Para tanto, pretendo partir de um aspecto fundamental da conversação: a compreensão. Ao conversar com alguém, preciso obviamente compreender o que ele/a me diz. Ora, se a conversação implica a compreensão, então ela, a compreensão, participa do que, segundo Gadamer, torna possível a aprendizagem. Assim, encontro-me em seu horizonte de questionamento.

Nos próximos tópicos, a investigação será desenvolvida de acordo com o seguinte itinerário. Dedicar-me-ei a expor os princípios fundamentais da compreensão: a experiência, a aplicação e, enfim, o jogo. Em cada um deles, mostrarei como a aprendizagem se funda nos mesmos princípios. Logo, compreensão e aprendizagem são primeiramente experiências; ambas trilham o caminho onde é necessário se desfazer de certas verdades em favor de outras. Para trilhá-lo, é necessário, porém, aplicar a verdade recolhida da coisa compreendida para, somente então, poder aprendê-la. E a experiência deve ser feita segundo o movimento geral do que Gadamer chama de jogo. Cuidarei sempre da diferença entre compreensão e aprendizagem, a saber, o fato de a aprendizagem exigir o domínio de uma habilidade prática. E a especificidade da aprendizagem se desenvolverá gradativamente, à medida que eu passar da exposição sobre a experiência para a exposição sobre a aplicação e, enfim, sobre o jogo.

A experiência enquanto princípio da compreensão e da aprendizagem

Compreensão e aprendizagem são primordialmente experiências. Porém, o que compreendo por experiência? A princípio, a pergunta deve introduzir um esclarecimento. Não concebo a experiência desde a perspectiva de filósofos empiristas como Locke e Hume. Por quê? Para eles, o princípio fundamental da experiência é a “observação”. Mas o que a define? Bom, eles mesmos não o esclarecem muito bem. Para Locke ( 1997, p. 57), seria a atenção dirigida a objetos externos ou a operações mentais capazes de impressioná-la e assim se tornarem ideias. Para Hume ( 2000, p. 35), seria a suscetibilidade da atenção para, primeiro, sofrer impressões vivas das coisas arredor das quais derivariam impressões mais fracas, as ideias. Para ambos, a experiência funda-se na observação, na suscetibilidade da atenção para sofrer estímulo enquanto está dirigida a algo e, ao notar sua presença, formar outra coisa chamada ideia.

O que compreendo por experiência se baseia em Hegel, cuja fenomenologia, comparada a Locke e Hume, é muito mais atenta, creio, à complexidade da coisa investigada. Para Hegel, a experiência não se baseia na observação enquanto suscetibilidade da atenção para sofrer estímulo de uma coisa e dela formar uma ideia. Antes, a experiência define-se pela relação bastante emaranhada entre dois aspectos da consciência – a consciência da coisa e a consciência de si. Não me proponho fazer uma exposição minuciosa, o que já cumpri em outro ensaio (BACK, 2020); pretendo me concentrar nos momentos mais fundamentais da experiência. Também não almejo desenvolver um comentário de Hegel ou, menos ainda, disputar espaço com comentadores especialistas em sua filosofia 8. Resumo assim minha atitude neste tópico: pensar eu mesmo a experiência a partir do que Hegel me apresenta desde sua perspectiva.

Tenciono pensar a experiência de modo mais conforme com a posição prévia desde a qual penso qualquer outra questão: a hermenêutica fenomenológica. Digo hermenêutica fenomenológica, pois me baseio, sobretudo, na hermenêutica, porém, com aquela atenção escrutinadora característica da fenomenologia. Meu desafio consiste em pensar a experiência sem me valer da noção de consciência, onipresente em Hegel. Assim, parece-me possível contornar a interpretação de ser humano nela pressuposta. Afinal, a consciência encontra seu sentido na perspectiva segundo a qual há objetos aí presentes e contrapostos ao ser humano enquanto sujeito. Cabe então ao sujeito apresentá-los a si novamente, ou seja, representá-los, a partir de uma demonstração, de uma razão suficiente. Então, o que antes apenas parecia ser agora, uma vez demonstrado, efetivamente é, como Heidegger HEIDEGGER ( 1999b) tão bem denuncia 9.

Qual seria a determinação geral da experiência a partir da qual, portanto, seria mais adequado iniciar a exposição? Primeiramente, ela define-se pelo fato de o ser humano se relacionar com as coisas arredor e consigo. E tal relação é possível, porque ele está aberto para as coisas. Eis o modo peculiar pelo qual ele se relaciona com algo HEIDEGGER ( 1999a). Estar aberto significa, em geral, a capacidade de identificar as possibilidades em virtude das quais algo é tal como é. Mas há um ponto decisivo graças ao qual o ser humano revela mais claramente a peculiaridade de sua relação com as coisas, em contraste com os animais. 10 Quando se relaciona com algo, ele simultaneamente se distingue daquilo com que se relaciona – mesmo quando, eis um ponto importante, aquilo com que se relaciona é ele próprio; sim, o ser humano é aquele que pode se distinguir de si mesmo.

Até aqui me detive nos aspectos mais fundamentais do modo pelo qual um ser humano se relaciona com uma coisa. Daí é possível derivar algumas determinações igualmente fundamentais da coisa enquanto algo aí, manifesto, sendo. Uma coisa, qualquer coisa, primeiramente é, se encontra aí manifesta. Por um lado, ela se manifesta para a compreensão humana. Por outro lado, em seu ser, ela não depende da compreensão humana para ser assim. 11 Em si mesma, ela é tal como é. Ora, daí deriva uma distinção importante entre certeza e Verdade. Porque a coisa é para a compreensão humana, ela, tal compreensão, sempre nutre certezas a seu respeito. Porém, tais certezas podem não coincidir com o que a coisa é em si mesma, em sua Verdade. Enfim, a experiência consiste nas descobertas sucessivas pelas quais o que parecia ser uma Verdade da compreensão humana não passava de mera certeza.

Então, a experiência é algo essencialmente negativo. Em contraste nítido com o que pensavam os filósofos empiristas, a experiência, para Hegel, é uma relação entre dois momentos na qual um tende frequentemente a negar outro. Ela origina-se da diferença entre uma intuição fundamental da coisa repousando em sua Verdade e a certeza de que ela, a coisa, é tal como o ser humano a compreende. A confrontação com a Verdade tende a negar a certeza. Digo “tende” – e aqui penso por mim, a despeito de Hegel –, pois não se trata de uma negação absoluta em dois sentidos. A compreensão humana não é nem uma negação absoluta da Verdade nem uma negação absoluta da certeza; não se encontra nem absolutamente enclausurada em um reino fantasmático de meras certezas nem, claro, absolutamente acomodada no reino da Verdade pura. Ela apreende algo da Verdade das coisas, decerto, mas o que ainda não compreende, eis meu ponto, apresenta a estrutura da experiência tal como Hegel a descreveu.

Mas o que é mais decisivo ainda não se encontra aí, no que tem sido exposto. Uma vez que a coisa é tal coisa segundo certa maneira de compreendê-la, quando se torna outra a compreensão a respeito dela, também se torna outra a própria coisa. Sim, é quando Hegel pode afigurar incompreensível para certo realismo incrustado no senso comum. Mas não há nenhum mistério aqui. Bem interpretado, Hegel revela, na verdade, uma intuição muito arguta. Qualquer coisa, uma vez mais bem compreendida, torna-se diferente do que antes vinha sendo. Afinal, seu ser se compõe de dois momentos; ela tanto é em si mesma quanto é para alguém, no caso, a compreensão humana. Obviamente, não é uma mudança na aparência sensível da coisa, que, sob tal aspecto, continua sendo tal como era. Portanto, de que maneira ela muda?

Mais uma vez, devo pensar por mim. 12 Para respondê-lo, uma pergunta: o que ocorre quando compreendo algo? 13 Só o compreendo, quando o relaciono com outras coisas já familiares. E familiar é algo cujo ser se constitui de uma verdade já presente em minhas expectativas de sentido. O que está sendo compreendido passa a integrar o horizonte do que considero verdadeiro; antes ignoto, ele assume agora um lugar, diria, entre outras coisas ao se relacionar com elas. Porém, enquanto ainda é ignoto, ele não deixa de ser; em si mesmo, ele está aí manifesto. Mas como? É aí, em como ele se presenta para mim, onde reside a mudança. Antes, entre mim e ele havia um estranhamento. Algo estranho é, em seu ser para mim, diferente de algo familiar. Familiaridade e estranheza, portanto, são aspectos pelos quais algo é para alguém. Estranho, vale frisar, é o que escapa às expectativas de sentido de alguém. De sorte que, para se tornar familiar, ele precisa mudar; precisa ser de outro modo para alguém. 14

Há ainda um ponto fundamental da experiência, sobretudo, para a aprendizagem. Não se deve a uma casualidade o fato de a coisa se mostrar de outra maneira quando a experimento. Ao contrário, sua novidade resulta, diz Hegel (-HEGEL ( 2003), p. 80-81), da coisa tal como vinha sendo experimentada antes. O que significa resultar? A experiência não é uma série arbitrária, fortuita onde se sucedem uns aos outros os diferentes modos pelos quais uma coisa pode se manifestar para alguém. Antes, ela é um encadeamento onde as possibilidades de uma experiência acabam conduzindo a outras experiências. 15 De fato! Uma compreensão só pode ser nova – e, consequentemente, a coisa compreendida só pode afigurar diferente – quando contrastada com e, sobretudo, desenvolvida a partir de uma compreensão inadequada. Em outras palavras, uma compreensão inadequada já contém em si as condições de sua própria superação, pois se constitui de uma inadequação em relação à Verdade mesma da coisa compreendida.

Enfim, tais considerações fazem ver algo fundamental não só sobre a experiência da compreensão, mas também sobre a experiência da aprendizagem. Sim, a experiência da compreensão implica, a cada nova compreensão, mudanças na maneira como a própria coisa se apresenta. Mas, como já apontei inicialmente, a aprendizagem, por sua vez, exige ainda a habilidade de realizar eu mesmo a atividade relacionada à coisa compreendida. Ao realizá-la, a coisa assume outra feição, diferente daquela quando tinha sido apenas compreendida. Por exemplo, um cálculo matemático qualquer se afigura diferente quando enfim o compreendo. E se afigura ainda mais diferente quando não só o compreendo, mas também aprendo a realizar eu mesmo a atividade de calculá-lo. Agora, sou eu quem precisa aplicar, e aplicar corretamente, as regras pelas quais devo delimitar a cada momento as possibilidades dos termos envolvidos no cálculo.

A aplicação enquanto aspecto fundamental da compreensão e aprendizagem enquanto experiências

A compreensão consiste na experiência de confirmar se a certeza quanto a como algo se manifesta para mim coincide com a coisa considerada em si mesma, em sua Verdade. Tal Verdade só se torna compreensível ao se relacionar a outras Verdades com as quais já me familiarizei e compõem assim o horizonte das minhas expectativas de sentido. Só então, estou em condições de aprender tal coisa, que, como já venho sugerindo, exige de mim a habilidade para realizar a atividade relacionada à coisa compreendida. Quando tratei de um exemplo de aprendizagem ao concluir o tópico anterior, eu recorri a um conceito fundamental da hermenêutica de Gadamer: a aplicação. Se compreendo um cálculo matemático, eu dizia, então posso fazer outra coisa; posso eu mesmo aplicar as regras segundo as quais o cálculo deve ser executado.

Mas o que significa aplicação? Na hermenêutica filosófica, trata-se de um aspecto fundamental da compreensão, que, portanto, “a determina desde o princípio”, palavras de Gadamer ( 2003, p. 426). Eu, por minha vez, defendo uma proposição ligeiramente diferente, embora ela só aprofunde o que Gadamer não parece ter pensado mais explicitamente. Sim, a aplicação é um aspecto fundamental da compreensão. Mas assim é, porque, considerada mais originariamente, eis o ponto, a aplicação é um aspecto fundamental da experiência. Destaco o fato de Gadamer recorrer constantemente à expressão “experiência hermenêutica”, ao investigar filosoficamente a compreensão. Vejam, na expressão, ele confere à experiência a condição de substantivo, ao passo que designa à hermenêutica a tarefa de adjetivá-lo. Em suma, a compreensão é fundamentalmente experiência. Tal é a posição apropriada para definir o que é aplicação. Assim, ela consiste na necessidade de a compreensão, para fazer o que lhe cabe, “pôr à prova” 16 sua certeza, confrontando-a com a Verdade da coisa.

Como assim? Primeiro, é imprescindível suspender o senso comum sobre a palavra aplicação. Não se trata de assimilar certo conhecimento para depois, como dizem, aplicá-lo a uma situação prática. Gadamer não supõe nem uma situação prática nem um lapso de tempo entre a assimilação de um conhecimento e sua aplicação posterior. A aplicação, eis o ponto, envolve uma exigência: fazer valer a pretensão do texto de dizer a verdade sobre aquilo que está versando. Quando alguém escreve, por exemplo, ele/a escreve sobre alguma coisa – sobre algo cuja Verdade17 ele/a pretende apresentar a quem o/a lerá. E, ao atender à pretensão de quem escreveu o texto, estou fazendo o que Gadamer chama de aplicação; estou aplicando à situação em que me encontro a verdade segundo a qual ele/a compreendeu algo sobre o qual escreveu; em suma, estou procurando compreender uma coisa tal como ele/a a compreendeu.

Então, se considero a experiência, o que aplico à situação em que me encontro? Ora, a princípio, eu aplico a “certeza”, a verdade da coisa tal como ela se manifestou para quem escreveu o texto. Digo certeza entre aspas, pois ela pode coincidir com a Verdade mesma da coisa. Para sabê-lo, porém, eu também preciso me deparar com a coisa mesma em questão no texto. Trata-se de uma situação bastante complexa quando considerada como experiência de quem escreve e, ao mesmo tempo, de quem interpreta. Quem escreve um texto se defronta com a Verdade da coisa e procura apreendê-la tão bem quanto possível. Quem está interpretando o texto, por sua vez, se encontra em uma situação diversa. Ele/a se depara não só com a coisa tal como a apreendeu quem escreveu o texto, mas também com a coisa mesma ali em questão.

Quem lê um texto precisa se deparar também com a coisa mesma. Do contrário, ele/a não poderia criticar quem o escreveu e dizer: “Ele/a compreendeu mal a coisa”. Não haveria alternativa senão a compreender tal como o texto a apresenta. Não por acaso, Gadamer ( 2003, p. 358) observa, ninguém pode realmente interpretar um texto baseado só em sua arbitrariedade; é necessário haver uma coisa comum entre quem escreve e quem interpreta. Eis a razão pela qual o intérprete se encontra sempre em uma situação em que deve realizar a aplicação. Eu somente posso dialogar com alguém se compartilho com ele/a um mundo comum onde estou necessariamente situado. Quando leio um texto, o mundo se abre para mim e, em consequência, qualquer coisa nele experimentável com cuja Verdade me defronto na interpretação.

Ora, quando aplico a “certeza” de quem escreveu um texto também não aprendo algo? Afinal, para aplicar, eu preciso fazer alguma coisa; preciso fazer valer a pretensão de quem escreveu o texto de dizer a verdade sobre algo. A aplicação, necessária à compreensão, já não seria, portanto, uma demonstração de que, além de compreender, aprendi algo? Aqui, devo diferenciar o que é necessário na aplicação e o que é necessário na aprendizagem. Na aplicação experimentada na compreensão, a atividade consiste em, por assim dizer, ver as coisas tal como as vê quem escreveu o texto. Posso até discordar, mas, se pretendo compreender alguém, devo deixá-lo/a me mostrar as coisas tal como ele/a as compreende. Porém, deixá-lo/a mostrá-las não implica ainda, eis o ponto, o domínio da habilidade mesma de mostrar a alguém certas coisas; ter compreendido um texto bem escrito não implica ter aprendido a escrever bem.

Então, alguém poderia questionar: a aprendizagem não supõe a aplicação? Ora, se é assim, como a aprendizagem ainda seria uma experiência? Mais uma vez, evoco a premissa deste ensaio: ninguém aprende algo sem antes compreendê-lo. Logo, a aplicação, necessária à experiência da compreensão, também é condição da aprendizagem. Mas, convém frisar, quando aprendo algo, preciso experimentá-lo de outra maneira. Há uma diferença, insisto, entre compreensão e aprendizagem. Sim, ambas são experiências, mas o são em sentidos distintos. Se preciso fazer eu mesmo o que compreendi, então devo aplicar a situações particulares o que desejo aprender; para me manter no exemplo usado aqui, devo mostrar como aprendi a escolher cada palavra com o propósito de escrever bem um texto. Cada escolha feita deve contribuir para apresentar algo a alguém e, quando bem-sucedido, posso concluir: aprendi a escrever.

Porém, a aplicação, enquanto princípio motriz da experiência, sempre envolve o risco de abandonar uma verdade outrora considerada legítima. Cada escolha, seja quando mostro como compreendi, seja quando mostro como aprendi algo, implica o risco de estar enganado. No caso da compreensão, o risco envolve tanto quem submete ao crivo alheio sua certeza sobre como compreende algo quanto quem se propõe a compreender o que alguém lhe apresenta como certo. Afinal, ao submeter a alguém o que compreendo sobre algo, uma crítica certeira me expõe ao risco em cada detalhe; ou, ao compreender, cada uma das minhas preconcepções sobre a coisa em apreço está em risco. No caso da aprendizagem, o risco consiste em me expor ao fracasso quando faço eu mesmo o que compreendi. Quando tento escrever, por exemplo, cada palavra escolhida me expõe ao risco de mostrar que, na verdade, ainda não sei escrever.

Em certo momento da Fenomenologia do Espírito, Hegel ( 2003, p. 74) apresenta uma proposição emblemática sobre a experiência. Ela trilha “o caminho da dúvida” ou, “com mais propriedade”, ele mesmo se emenda, o “caminho do desespero”. De fato! Enquanto experiência, a compreensão trilha um caminho árduo, que não se resume a eventuais vacilos. Ao aplicar a uma situação sua certeza ou a certeza de alguém, ela está sempre pondo em risco a si mesma; cada aspecto do que está sendo compreendido, quando posto à prova, pode desestruturar totalmente a compreensão. Tal é a situação da aprendizagem, mas em outro sentido. Quando aplico o que estou aprendendo, ponho à prova eu mesmo enquanto alguém dotado da disposição para aprender. Qualquer um sabe quão desesperadora pode ser a admissão de um fracasso na aprendizagem. Ele, o fracasso, não é um deslize qualquer; sou eu quem fracassa.

Mais dois pontos. Primeiro: um fracasso na aprendizagem pode acusar, na verdade, um fracasso prévio na compreensão. Se acabo mostrando que não aprendi algo, a razão pode ser que, na verdade, não o compreendi bem. Mas não é necessariamente assim, creio. Posso realmente compreender algo, mas, quando me disponho a fazê-lo eu mesmo, posso fracassar mesmo assim. O ponto distintivo da aprendizagem, volto a frisar, é o fato de, agora, eu mesmo fazer o que compreendi. Há entre mim e a coisa compreendida uma tensão típica de quem está lidando com algo cujas possibilidades concretas ainda não lhe são inteiramente familiares. Segundo ponto: ao tratar de erro, fracasso, enfim, é necessário supor um julgamento. E um julgamento é sempre uma relação entre, pelo menos, duas pessoas. Há quem julga o que alguém compreendeu e está pretendendo aprender, e há quem submete ao julgamento alheio o que compreendeu e está desejando aprender. Vista mais amplamente, a aplicação é um risco porque ocorre em um contexto, que Gadamer, tal como o interpreto aqui, chama de jogo.

O jogo enquanto determinação mais ampla da experiência da compreensão e aprendizagem

Para concluir este ensaio, algumas considerações acerca do que define um conceito fundamental da hermenêutica filosófica: o jogo. Trata-se de um desdobramento no qual pretendo sintetizar e ampliar tudo o que tem sido exposto até aqui acerca da experiência e sua estrutura fundamental, a aplicação. Vista mais amplamente, a aplicação, enquanto o que concentra em si todo o risco da experiência, é o princípio mediador de algo mais abrangente, de um jogo. Em geral, o jogo consiste em uma rede complexa de interrelações em cujo epicentro se encontra a Verdade e cuja tecitura a aplicação trata de urdir. Digo interrelações, porque o que move o jogo é uma disposição recíproca. Ele resume-se em dois movimentos básicos. Por um lado, mostrar ou ensinar algo a alguém e, por outro lado, compreender ou aprender o que alguém pretende mostrar ou ensinar. Há aí alguns aspectos fundamentais que devo esmiuçar aqui.

O esforço de Gadamer ( 2003, p. 154) concentra-se basicamente em um ponto: contrapor-se ao que Kant e Schiller, séculos antes, haviam definido sobre o jogo. Para Kant ( 2005, p. 62), o jogo se resumia de uma espécie de estado cognitivo experimentado subjetivamente, quando alguém estivesse lidando com algo considerado belo. Por exemplo, uma coisa bela surtiria certo efeito sobre duas faculdades humanas, a princípio, contrárias uma a outra: o entendimento e a imaginação. É justamente tal efeito que Kant chama de jogo e que consistiria em uma relação livre entre ambas as faculdades enquanto alguém visasse alguma coisa bela. Schiller ( 1991, p. 88), em uma orientação muito similar, concebia o jogo como a relação harmoniosa entre os impulsos sensível e formal, reciprocamente contrários. A harmonia entre eles explicaria a sensação agradável experimentada quando alguém percebe algo belo. Para Gadamer, em contrapartida, o jogo não é uma experiência feita subjetivamente.

De acordo com ele, o jogo apresenta algumas características essenciais. Primeiramente, diz Gadamer ( 2003, p. 155), considerado em si mesmo, o jogo revela uma “natureza própria”, independente do que ocorre na consciência de quem está jogando. Precisamente aí, quando concentra sua atenção no jogo em si mesmo, Gadamer encontra um ponto cego da perspectiva de Kant e Schiller. O aspecto determinante do jogo, eu dizia, não se encontra no que acontece na consciência de quem está jogando. O que não implica, claro, a desvinculação entre jogo e quem o joga, como se ele, o jogo, pairasse em algum plano ideal, sem ninguém para jogá-lo. Sim, o jogo exige alguém jogando, mas apenas adquire uma representação através de quem o joga, esclarece Gadamer ( 2003). Em outras palavras, o jogo realiza-se por meio de jogadores, porém, eis o ponto, nada do que acontece neles, enquanto o jogam, pode defini-lo.

Então como caracterizá-lo sem se basear em quem joga? Gadamer descobre uma fundamentação fenomenológica no emprego considerado metafórico da palavra jogo. Para ele ( 2003, p. 156), aí está seu “significado originário”, ao contrário do que parece a quem concebe o jogo como uma atividade eminentemente humana. Nos empregos considerados metafóricos, o jogo acaba se revelando em coisas destituídas de algo semelhante à consciência humana. O que neles, então, justifica a escolha da palavra? Primeiro, no jogo de forças, moscas, luzes, ondas etc., há sempre um movimento de vaivém, em constante repetição; um movimento sem nenhum fim específico onde o jogo encontrasse uma conclusão e sem nenhum sujeito com poder para dirigi-lo. Segundo, derivado do primeiro, considerado em si, o jogo revela sua essência no próprio movimento, portanto, no que acontece entre os que dele participam. O que define o jogo, enfim, é sua “forma medial”, nas palavras de Gadamer ( 2003, p. 157).

A respeito da crítica de Gadamer à concepção antropológica do jogo, a passagem seguinte de Verdade e método parece-me decisiva:

Do fato de o modo de ser do jogo encontrar-se tão próximo da forma de movimento da natureza, podemos extrair uma importante conclusão metodológica. É claro que não podemos dizer que os animais também jogam e que a água e a luz só “jogam” em sentido figurado. Antes, deveríamos dizer que também o homem joga. Também o seu jogar é um processo natural [...]. Assim, nesse âmbito já não faz sentido distinguir entre uso próprio e metafórico. (GADAMER, 2003, p. 158, grifo meu).

Gadamer desloca a humanidade de uma posição supostamente privilegiada em torno da qual gravitariam outras coisas em cujo movimento também seria possível identificar o jogo; na verdade, ele provoca, também a humanidade joga. Em outras palavras, o jogo humano não é jogo em sentido mais originário, de sorte que, a partir dele, seria possível concluir: outras coisas também jogam. Não. O jogo humano é apenas um dentre outras maneiras possíveis de jogar. Eis a razão pela qual ele conclui: “não faz sentido distinguir o uso próprio e metafórico”. Não por acaso, em sua argumentação contra Kant e Schiller, Gadamer parte do princípio segundo o qual o jogo é um fenômeno independente da consciência humana. Agora, é possível compreendê-lo melhor, mais incisivamente. Sua pressuposição parece-me mais radical: o jogo é um movimento tão espontâneo que pode ser comparado ao movimento da natureza mesma. As coisas jogam, dentre as quais o ser humano desenvolve seu jogo específico.

Mas há ainda uma terceira característica do jogo, além de ser um movimento de vaivém, sem fim conclusivo, e se definir pela sua forma medial. É-lhe próprio induzir em quem o joga os movimentos pelos quais ele se define. Portanto, quem realmente joga não são os jogadores, mas sim o próprio jogo. Para recorrer às palavras desconcertantes de Gadamer ( 2003, p. 160), “o verdadeiro sujeito do jogo não é o jogador, mas o próprio jogo”. Mais sinteticamente: “todo jogar”, na verdade, “é um ser-jogado” (GADAMER, 2003, p. 160). À primeira vista, tudo pode parecer anti-intuitivo, mas o que Gadamer defende aqui se sustenta em uma boa dose de bom senso. O que faz do jogo uma atividade tão cultivada está justamente no fato de ele absorver, assenhorar-se de quem o joga em um movimento repetitivo. É muito comum, por exemplo, não notar a passagem do tempo quando alguém está realmente envolvido/a em um jogo. Não por acaso, creio, jogo e passatempo podem até ser consideradas palavras sinônimas.

Para conferir à exposição um caráter mais intuitivo, um exemplo de jogo humano. O que caracteriza o futebol, senão um movimento de vaivém, sem fim conclusivo, cuja forma é a maneira como os jogadores se relacionam? Eu disse: sem fim conclusivo. Ora, marcar mais gols – alguém poderia retrucar – é a finalidade do jogo, certo? Errado! É o que cada time busca, mas não é o fim do jogo enquanto jogo, eis o ponto fundamental. Para compreender melhor, basta olhar panoramicamente o que acontece em campo sem se envolver com o jogo, nem como torcedor. O jogo constitui-se de uma movimentação constante e repetitiva, sem alguém específico em seu comando; uma movimentação, claro, segundo regras e durante certo período. Para jogá-lo, cada um, conforme sua posição em campo, precisa se entregar ao movimento exigido. É o que vale para qualquer outro jogo – xadrez, baralho, amarelinha etc.

Não pretendo aqui extrair as consequências mais radicais da terceira característica do jogo, aquela segundo a qual o sujeito do jogo é ele mesmo, o jogo 18. Para os propósitos deste ensaio, interessa mais uma expressão curta, cujo sentido, porém, esconde uma complexidade enorme: jogo da verdade. Sim, para Gadamer ( 2003, p. 630), a experiência da verdade se estrutura como um jogo. Ele o diz ao concluir Verdade e método. Porém, segundo creio, Gadamer não desenvolveu bem o sentido da expressão. É o que pretendo aqui, porém, à minha maneira, sem a preocupação de ser fiel ao que ele, Gadamer, pensa. E você, leitor atento, já deve estar suspeitando por que ela, a expressão jogo da verdade, interessa-me. Sim, a verdade é um aspecto fundamental da experiência, tal como tem sido exposta aqui. Agora, sob o prisma do jogo, ela, a experiência da verdade, pode se revelar em sua máxima universalidade.

Bem considerada, a experiência revela a característica fundamental do jogo: o movimento de vaivém. Quando a compreensão se dirige a certa coisa, nela colhe uma verdade; em suma, considero verdadeiro o modo como a apreendi. Mas, quando retorno à coisa, eis o movimento do jogo, e a examino mais atentamente, deparo-me com algo ligeiramente distinto; ela, a coisa, agora rejeita o modo como eu a tinha compreendido pela primeira vez. Portanto, o que antes considerava verdadeiro, agora se revela mera certeza subjetiva, diria, de sorte que preciso aprimorar minha compreensão. Trata-se do famoso círculo hermenêutico, cujo fundamento, segundo pressuponho aqui, 19 remonta ao movimento da experiência mesma. Mas a reelaboração da minha compreensão é uma resposta, na verdade, à necessidade de condizer com outra coisa, distinta daquela apreendida anteriormente. Em outras palavras, a manifestação da coisa também realiza um movimento correspondente àquele feito na compreensão.

Também é possível discernir aí aquela outra característica do movimento do jogo: sua inconclusão. Eu, em particular, até posso visar a uma finalidade em meu esforço para compreender algo; e poderia afirmá-lo também das experiências de outras pessoas. Porém, nelas se sucedem aqueles mesmos inevitáveis abandonos de verdades pretensamente sólidas. Vistas panoramicamente, todas as experiências particulares compõem juntas um espaço de jogo mais amplo que, este sim, denomino-o jogo da verdade. Para a Verdade, em sentido geral, – portanto, com v maiúsculo – não há conclusão. Como bem observa Gadamer ( 2004, p. 71) em “O que é verdade?”, ensaio escrito em 1957, ninguém pode “abarcar a [Verdade]” 20 em seu pensamento. Embora não tenha encontrado nada escrito assim, eu poderia lhe creditar a seguinte proposição: a Verdade é “o verdadeiro sujeito do jogo”; ela própria não visa a nenhum fim conclusivo.

Para esmiuçar ainda mais o sentido da expressão jogo da verdade, convém finalmente tratar de um aspecto do jogo especificamente humano, a representação (GADAMER, 2003, p. 161). Para tanto, é necessário partir de um ponto básico: jogar significa primordialmente jogar algo, alguma coisa. Mas o que significa jogar algo? Significa desempenhar uma tarefa no espaço definido do jogo; o desempenho de uma tarefa é o que precisa ser posto literalmente em risco. Não se trata de uma tarefa qualquer, que cada um escolhe segundo dita seu capricho. O que define o espaço onde qualquer jogo se desenrola são certas regras. Daí, aliás, provém a especificidade do movimento pelo qual cada jogo se distingue dos outros. Elas, na condição mesma de regras, prescrevem tarefas: como cada um deve participar do espaço lúdico, como nele se movimentar, como nele agir e reagir. Eis a razão de uma observação importante de Gadamer ( 2003, p. 160): cada jogo prefigura e ordena seu movimento de vaivém.

Portanto, de antemão, antes de qualquer consideração minha ou sua, certas regras já definiram como a verdade deve ser experimentada. Vejam, nada do que disse até aqui, é bom frisar, implica minha anuência, enquanto autor deste ensaio, a quaisquer regras segundo as quais deve ser feita a experiência da verdade. A exemplo de Gadamer, pretendo apenas apontar e dizer: “Olhem! Acontece assim”. Todavia, não encontro em Gadamer um comprometimento real com o valor político de tais regras para o jogo em torno da Verdade. É justamente onde discirno um ponto de cruzamento entre sua hermenêutica e a genealogia de Michel Foucault; ambos estão visando a uma coisa só, porém, sob perspectivas e premissas distintas. Não pretendo desenvolvê-lo aqui, tal ponto, pois se trata de um tema cuja complexidade exige obviamente um espaço próprio para amadurecê-lo. Mesmo assim, não seria inadequado, creio, remeter a algumas palavras bastante precisas de Foucault em A arqueologia do saber:

Não se pode falar de qualquer coisa em qualquer época; não é fácil dizer alguma coisa nova; não basta abrir os olhos, prestar atenção, ou tomar consciência, para que novos objetos logo se iluminem e na superfície do solo, lancem sua primeira claridade. (FOUCAULT, 2002, p. 51).

Um ano depois, ele evoca o instrutivo exemplo de Mendel em sua aula inaugural no Collège de France intitulada A ordem do discurso:

Muitas vezes se perguntou como os botânicos ou os biólogos do século XIX puderam não ver que o que Mendel dizia era verdade. Acontece que Mendel falava de objetos, empregava métodos, situava-se num horizonte teórico estranhos à biologia de sua época. [...] Mendel dizia a verdade, mas não estava “no verdadeiro” do discurso biológico de sua época: não era segundo tais regras que se constituíam objetos e conceitos biológicos. (FOUCAULT, 2009, p. 34–35, grifo meu).

Ao jogar, jogo alguma coisa, realizo uma tarefa definida segundo as regras do espaço onde jogo. É aí, em tal espaço, onde a represento, tal tarefa, para os outros com quem jogo. Representar uma tarefa, portanto, significa desempenhá-la para alguém, para aqueles/as com os quais estou jogando. Fatalmente, o desempenho de cada um, ao realizar sua tarefa, passa pelo crivo alheio. E assim retomo o ponto onde introduzi pela primeira vez o problema do jogo ao concluir o tópico anterior. Qualquer julgamento sobre como desempenho uma tarefa se baseia em critérios, os quais, por sua vez, também remontam às regras segundo as quais o jogo deve ser jogado. No jogo da verdade, minha tarefa consiste basicamente em defender perante os outros o que considero verdadeiro. Quem me interpreta, por sua vez, assume a tarefa oposta de avaliar criticamente se o que penso pode ser considerado verdadeiro.

A verdade, eis um ponto fundamental, não é uma experiência meramente teórica, sem cunho prático, como podem induzir a pensar certas abordagens epistemológicas. Quando defendo como verdadeiro o modo como compreendo certas coisas, estou defendendo meu modo de me orientar no mundo. Não por acaso, são invariavelmente calorosos embates acadêmicos sobre distintos modos de compreender as coisas, embora, em sua aparência imediata, possam parecer puramente teóricos. Ora, por que tanto dispêndio de energia em torno da verdade? Convém lembrar uma observação arguta de Jean Hyppolite ( 1999, p. 29). Quando me sinto forçado a abandonar uma verdade, o que estou abandonando não é apenas uma proposição verdadeira em sentido inofensivamente teórico. Eu perco algo de uma visão da vida, uma intuição de mundo. Eis a razão profunda em virtude da qual a experiência da verdade acaba se tornando o “caminho do desespero”, para frisar as palavras de Hegel.

Considerar algo verdadeiro significa definir as possibilidades segundo as quais uma coisa é o que é e assim se relaciona com outras coisas. Um exemplo simples. Uma árvore se define pela possibilidade, dentre inúmeras outras, de produzir frutos que, por sua vez, podem nutrir outros seres vivos. Mas seria contrário à verdade de uma árvore esperar a possibilidade de ela, por si mesma, movimentar-se por aí como os animais em sua maioria. Trata-se de uma verdade categórica para a maneira como os seres humanos se relacionam com árvores, e assim é a respeito de quaisquer outras verdades categóricas. Juntas, as verdades sobre o mundo em geral formam um nexo relativamente coerente de possibilidades a partir das quais me oriento; elas delimitam o horizonte geral onde se situa tudo o que posso compreender e aprender sobre as coisas. Em suma, elas definem o que estou compreendendo por intuição de mundo.

Não é o caso desenvolver aqui uma teoria sobre a verdade. Mas são imprescindíveis algumas considerações esquemáticas sobre sua relação com a compreensão e a aprendizagem. Certas verdades são tão fundamentais que, sem elas, minha intuição de mundo poderia ser totalmente desestruturada. Por exemplo, é uma verdade fundamental o fato de eu ter nascido e, desde então, ter feito as experiências das quais me lembro e graças às quais me tornei quem sou. Todavia, outras verdades são, diria, periféricas para minha intuição de mundo. Por exemplo, a verdade sobre o horário de funcionamento do parque próximo à minha residência. Enfim, a importância de uma verdade para o modo como me oriento no mundo pode variar bastante. E sua perda ou assimilação impacta em minha compreensão e aprendizagem proporcionalmente a seu grau de importância. Há verdades transformadoras; há outras praticamente insignificantes.

A princípio, pode parecer arbitrária ou, talvez, meramente subjetiva a importância de uma verdade para a maneira como alguém se orienta no mundo. Mas não é assim. Daí a necessidade de compreender a verdade como um jogo. De fato, a verdade resultante de cada experiência está relacionada à história de vida de quem a realizou e seu valor, portanto, pode até se afigurar relativo. Contudo, as experiências de cada ser humano só podem ser feitas em um mundo comum, e aí elas acabam sendo invariavelmente submetidas ao crivo alheio. Do contrário, existiriam tantos mundos quantos seres humanos em cada época. Ninguém pode simplesmente inventar verdades a seu bel-prazer, embora, ultimamente, alguns pareçam partir da pressuposição contrária 21. São justamente as experiências feitas em conformidade com um mundo comum que definem o horizonte onde se encontra tudo o que cada um pode compreender e aprender.

Não se forma um mundo comum em uma assembleia convocada para definir o que realmente são as coisas com as quais os seres humanos podem se relacionar. Se assim fosse, verdades daí resultantes seriam tão arbitrárias quanto aquelas que estou refutando aqui. Sim, um mundo comum resulta de um acordo, mas um acordo tácito sobre o que são as coisas. Não é mera coincidência o fato de me referir à mesma coisa a que se refere outra pessoa com quem, só assim, posso manter uma relação chamada conversação. Um mundo, um mundo comum se impõe tacitamente e assim enseja a necessidade de um acordo. Mesmo na discordância, é necessário concordar quanto a que há discordância. Só então é possível discordar sobre o que é educação, verdade, fé, conhecimento, arte etc. Tais coisas – educação, verdade, fé etc. – interpelam desde um mundo comum a todos/as os que estão envolvidos/as na discordância.

Tais considerações podem até parecer meramente teóricas, sem consequências práticas. Ao contrário, insisto, elas tratam das condições em virtude das quais cada um orienta suas ações em um mundo necessariamente comum. Nele se define o horizonte limítrofe onde acontece o jogo da verdade – fundamento, volto a frisar, para qualquer experiência de compreensão e aprendizagem. Ninguém pode realmente compreender e aprender algo sem realizar a experiência da verdade da coisa compreendida e aprendida. Compreender tanto quanto aprender certa coisa significa experimentá-la em conformidade com as possibilidades de ser pelas quais ela se define como tal coisa. Enfim, transformações na compreensão e aprendizagem resultam em transformações práticas respectivas no modo como alguém age. Afinal, cada um age conforme o que compreende e aprende das coisas com as quais se relaciona. 22

Encontro-me, enfim, em um ponto mais próximo do que considero ideal para concluir este ensaio. E o que diz sobre a aprendizagem toda a exposição feita até então? A aprendizagem supõe, claro, tudo o que expus sobre a compreensão, mas, conforme venho advertindo, acrescenta um ponto importante. Seu movimento de vaivém se refere a como faço as coisas; aprendo e, de repente, descubro a necessidade de reaprender o que tinha aprendido. A aprendizagem, inclusive, pode até aprofundar e, por vezes, transformar a compreensão do que está sendo aprendido. É um movimento inconclusivo, pois ninguém, suponho, aprende tudo o que poderia aprender sobre algo. Afinal, a aprendizagem é uma experiência: ela está assim infinitamente aberta a novas experiências de aprendizagem. Além disso, deve ser representada para os outros, cujo crivo pretenderá determinar se ela pode ser considerada verdadeira aprendizagem.

Exemplos? Como eu toco um instrumento musical, como eu trabalho, como eu escrevo, como eu falo, como eu penso filosoficamente etc. Qualquer experiência em que é necessário realizar eu mesmo uma atividade acaba sendo alvo do julgamento alheio. E a aprendizagem, mais claramente do que a compreensão, também não é uma experiência inofensiva, sem consequências práticas. Quão desesperador pode acabar sendo a frustração resultante de uma experiência de aprendizagem malsucedida! E quanto mais valor houver na experiência em questão na aprendizagem tanto maior é o sentimento de desespero de quem não consegue realizá-la ele/a mesmo/a. Afinal, sou eu quem fracassa. Finalmente, definir as regras do jogo onde acontece a experiência da aprendizagem implica não só ditar as regras segundo as quais como e o que cada um aprende; implica, sobretudo, apossar-se do ser mesmo de quem aprende. Não me refiro, evidentemente, a normas ditadas em escolas, mas a qualquer instância da vida. Não se trata de algo universal na vida humana? O que não passa pela aprendizagem?

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3Disponibilidade de dados: O conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo não está disponível publicamente, devido ao fato de este estudo se basear em pesquisa bibliográfica cujos direitos de difusão são propriedade privada de editoras.

4Para ser mais preciso, é uma série de experiências pelas quais alguém se torna diferente do que tem sido.

5Para uma investigação mais profunda sobre a diferença cheia de sutilezas entre atitude prática e atitude teorética, sugiro a leitura da minha tese de doutorado, Distanciamento teórico e engajamento prático: acerca da unidade entre atitude teórica e atitude prática a partir de um problema oriundo da hermenêutica filosófica (BACK, 2013, p. 87).

6Giovanni Reale distingue assim as ciências teoréticas e as ciências práticas: “Na sistematização aristotélica do saber, depois das ciências teoréticas, em segundo lugar aparecem, como vimos, as “ciências práticas”. Estas são hierarquicamente inferiores às primeiras, enquanto nelas [nas ciências práticas] o saber não é mais fim para si mesmo em sentido absoluto, mas subordinado e, em certo sentido, servo da atividade prática. Estas ciências práticas, de fato, dizem respeito à conduta dos homens, bem com ao fim que através dessa conduta eles querem alcançar […]” (REALE, 1997, p. 405).

7A abordagem de Oliver Reboul ( 2017, p. 29), em A filosofia da educação, também é outro bom exemplo. Ele até se imbui de uma atitude genuinamente teórica no tratamento de várias questões. Embora elabore uma concepção relativamente ampla de educação enquanto aquisição de cultura, logo ele recai no senso comum. Onde ocorre a educação? – ele se pergunta. A resposta lhe parece óbvia: família, escola e universidade. Para ele, portanto, a educação é uma atividade exercida em lugares específicos, em instituições. É necessário, enfim, um senso hermenêutico-crítico para se precaver do senso comum.

8Aliás, nunca escrevo com o intuito de ser comentador em nenhum sentido possível da palavra.

9Consideradas mais atentamente, as coisas são o que são a despeito de provas, de demonstrações, conforme Heidegger ( 1999b) conclui criticamente. Mediante a citação de um poema de Angelus Sibelius, “Ohne Warum” [“Sem porquê”], Heidegger ( 1999b, p. 59) afirma: “a rosa é sem porquê; ela floresce, porque ela floresce”. Quem procura provas é o sujeito – concebido, durante a filosofia moderna, a partir da necessidade de certeza e, consequentemente, de repulsa à dúvida.

10Sim, Agamben, em O aberto, acredita ter encontrado no tédio profundo a possibilidade de haver um ponto comum entre a abertura característica da humanidade e o aturdimento característico da animalidade. É uma interpretação controversa, creio, cujo desenvolvimento não cabe aqui. Confira Agamben ( 2011, p. 89).

11Como Heidegger adverte, a realidade mesma das coisas, enquanto algo aí, com sua existência autônoma, não sofre qualquer prejuízo com o fato de ela, tal realidade, estar relacionada à compreensão humana. Confira Heidegger ( 2007, p. 207).

12Pode haver uma resposta de Hegel para a questão. Se houver, ela deve estar implícita no desenvolvimento da Fenomenologia do Espírito. Para explicitá-la, porém, eu precisaria realizar uma digressão que poderia se estender por páginas. Enfim, prefiro eu mesmo enfrentar o problema.

13Não me importa aqui a seguinte questão: então, como a compreensão começa, por exemplo, na vida de um bebê recém-nascido? De alguma maneira, respondo. Mas, sem dúvida, ela começa.

14Para ser, portanto, uma coisa não precisa ter sentido. Em si mesma, uma coisa sem sentido, com características logicamente contraditórias, como um quadrado circular, também é.

15Marcos Nobre, em Como nasce o novo, esclarece esse ponto relacionado a uma passagem mais hermética da Fenomenologia do Espírito; ela, tal passagem, escapa até mesmo a Heidegger ( 2002), apesar de sua extensa e minuciosa interpretação do conceito de experiência. “O objeto ‘verdadeiro’”, esclarece Nobre ( 2018, p. 210), “contém nele a história de sua renovação, a verdade do objeto anterior”; e mais adiante: “somente quem já tenha percorrido o conjunto das estações da Fenomenologia pode afirmar com inteiro conhecimento de causa que uma experiência foi realizada porque é quem está em condições de compreender por inteiro a necessidade da progressão da concatenação [grifo meu]”.

16Uso acintosamente a expressão “pôr à prova” – e, por favor, prestem atenção nas aspas. Com a palavra “prova”, não me refiro à prova, à demonstração metódica mediante à apresentação de uma razão suficiente para que só assim a coisa possa efetivamente ser, como exigiam os filósofos modernos. Prova aqui envolve qualquer espécie de aferição, por exemplo, olhar novamente para me certificar de algo.

17Aqui, eu preciso diferenciar dois vocábulos. Verdade com v maiúsculo, quando me referir à Verdade da coisa considerada em si mesma, e verdade com v minúsculo, quando me referir à “maneira como” quem escreveu um texto apreende a Verdade da coisa.

18Já apresentei tais consequências em outro ensaio. Confira Back ( 2010).

19Prefiro apresentá-lo apenas sugestivamente, como uma pressuposição. É um ponto cujo desenvolvimento é necessário reservar para outra ocasião, pois fazê-lo aqui fatalmente me conduziria, receio, a uma digressão desnecessária.

20Eu a escrevo com v maiúsculo para manter coerência com a distinção feita aqui entre a verdade relacionada ao modo como alguém compreende uma coisa e a Verdade da coisa considerada em si mesma.

21Por exemplo, o que pode ser considerado verdadeiro sobre o impacto da ação humana no equilíbrio climático da Terra. Algumas pessoas podem até desdenhar e, pior ainda, duvidar da realidade de um problema tão sensível à humanidade, atualmente. Mas um mundo comum não poderia ser constituído a partir de uma atitude tão arbitrária, sem suficiente reconhecimento epistemológico, social e, inclusive, ético.

22Nada impede a ação, uma vez realizada, de condicionar retrospectivamente o que alguém havia compreendido e aprendido das coisas sobre as quais ele/a agiu.

Recebido: 14 de Setembro de 2021; Revisado: 05 de Outubro de 2021; Aceito: 09 de Novembro de 2021

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Este ensaio é parte de um projeto de pesquisa de pós-doutorado realizado com bolsa de estudos Pós-doutorado Sênior (PDS) da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ. Edição feita com com recursos do Edital 02/2021 do Decanato de Pesquisa e Inovação (DPI)/Decanato de Pós-Graduação (DPG) da Universidade de Brasília (UnB).

Contato: rainri.back@yahoo.com.brv

Editor:

Prof. Dr. Marcos Sidnei Pagotto-Euzebio

Rainri Back

é graduado e mestre em filosofia na Universidade de Brasília (UnB); doutor em filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Seu projeto fundamental consiste em desenvolver uma concepção filosófica de educação.

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