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Educação e Pesquisa

versión impresa ISSN 1517-9702versión On-line ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.49  São Paulo  2023  Epub 19-Mayo-2023

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202349260638 

Artigos

Compreensão, aprendizagem e linguagem: uma abordagem hermenêutica 1

Understanding, learning and language: a hermeneutic approach

1-Universidade de Brasília, Faculdade de Educação, Brasília, Distrito Federal


Resumo

Este ensaio responde a um problema. Na conferência Educação é educar-se, Gadamer procura justificar a proposição segundo a qual só é possível aprender pela conversação. Todavia, ele não apresenta tal justificação, mas se resume a relatar experiências pessoais com aprendizagem. Assim, este ensaio assume o desafio de justificar sua proposição. A fim de delimitar o problema, a concepção de linguagem aqui pressuposta se baseará metodologicamente apenas em Verdade e método. Em sua obra capital, Gadamer concebe a linguagem estritamente como palavra. A partir daí, este ensaio desenvolve-se resumidamente assim. A compreensão é condição de possibilidade da aprendizagem, pois não é possível aprender algo incompreendido. Compreender significa apreender o sentido de algo, torná-lo familiar. Aprender, por sua vez, requer a aquisição da habilidade necessária para realizar uma atividade relacionada à coisa compreendida. Ora, para aprender a fazer algo, é necessário primeiro elaborar em seu ser o que deve ser aprendido. Senão, permanece indeterminada a coisa mesma da qual deve se ocupar a aprendizagem. Para elaborá-la em seu ser, há apenas um meio: a linguagem, a palavra. A linguagem possibilita determinar o que é aquilo com que alguém está lidando. Assim, este ensaio consiste em um percurso que começa com a determinação da compreensão e aprendizagem como experiência. Então, a experiência estrutura-se como jogo e, por fim, como linguagem, cujo autêntico ser é a conversação. Eis, enfim, como se justifica a proposição segundo a qual só é possível aprender pela conversação.

Palavras-chave Compreensão; Aprendizagem; Experiência; Jogo; Linguagem

Abstract

This essay answers to a problem. In the conference Education is self-education, Gadamer tries to justify the proposition that it is only possible to learn through conversation. However, he does not provide a justification, but instead he only reports personal experiences with learning. Thus, this essay takes on the challenge of justifying his proposition. In order to define the problem, the notion of language assumed here will be methodologically based only on Truth and method. In his capital work, Gadamer conceives language strictly as word. From there, this essay proceeds briefly as follows. Understanding is the condition for the possibility of learning, as it is not possible to learn something that was not understood. Understanding means apprehending the meaning of something, making it familiar. Learning, in turn, requires the acquisition of the necessary skill to carry out an activity related to what has been understood. So, in order to learn to do something, it is first necessary to work out in its being what is to be learned. Otherwise, the thing which learning should be concerned with remains undetermined. To elaborate it in its being, there is only one mean: language, word. Language makes it possible to determine what someone is dealing with. Thus, this essay consists of a path that begins with the determination of understanding and learning as an experience. Then, the experience is conceived as a play and, finally, as a language, whose authentic essence is conversation. This, at last, is how one can justify the proposition according to which it is only possible to learn through conversation.

Keywords Understanding; Learning; Experience; Play; Language

O problema motivador deste ensaio 3

Em uma conferência intitulada Educação é educar-se, proferida em 1999, em Eppelheim (Alemanha), Gadamer propõe-se a desenvolver a seguinte proposição. Em suas palavras, “almejarei justificar por que creio que só se pode aprender pela conversação” (GADAMER, 2000, p. 10, tradução livre). Contudo, rigorosamente, ele não apresenta tal justificação. Ao invés, desenvolve alguns assuntos em certo sentido relacionados à aprendizagem, linguagem e conversação. E, na maioria das vezes, ilustra-os com exemplos pessoais. Entretanto, para ser honesto, realmente não se trata de uma proposição qualquer. Sua justificação não poderia ser plenamente desenvolvida, creio, em uma só conferência. Como Gadamer mesmo reconhece, ela lhe exigiria o empenho de “todos [os seus] esforços filosóficos dos últimos decênios” (GADAMER, 2000, p. 10, tradução livre).

Neste ensaio, pretendo justificar a proposição segundo a qual só é possível aprender pela conversação. Para tanto, preciso valer-me de algumas conclusões desenvolvidas em outro ensaio intitulado Compreensão e aprendizagem (BACK, 2023). Nele, eu procuro determinar o que é aprendizagem, preocupação ausente na conferência de Gadamer, e como ela se relaciona com e se diferencia da compreensão. Neste ensaio, preciso mostrar como a linguagem, cuja essência, segundo Gadamer, é a conversação, determina qualquer experiência humana. Assim, penso, é possível justificar por que a aprendizagem, enquanto experiência, somente é possível pela conversação. Em outras palavras, a conversação precisa ser uma determinação absolutamente universal e, assim, condição necessária, por exemplo, da aprendizagem.

Metodologicamente, minha abordagem de Gadamer se atém a uma diretriz. Por enquanto, baseio-me apenas em Verdade e Método, publicada em um período no qual Gadamer concebia a linguagem estritamente como palavra. Segundo Flickinger ( 2014, p. 48), tal período se estendeu até 1960, quando da publicação de Verdade e Método, que, desde então, passou a repercutir no debate filosófico. Dentre os comentários feitos nas décadas seguintes, houve a crítica segundo a qual Gadamer teria reduzido a experiência da linguagem à interpretação de textos 4 . Realmente, o filósofo lhe confere, à interpretação de textos, uma atenção especial, pois nela, segundo a justificação de Gadamer ( 2003, p. 508), o “problema hermenêutico aparece puramente” 5 . Assim, ele considera necessário lhe atribuir uma “preeminência metodológica”.

Mas, Gadamer apenas identifica no texto escrito uma vantagem metodológica para elaborar o problema hermenêutico. Assim, não supõe uma redução da linguagem à experiência de interpretar textos. Inclusive, ele inicia a terceira parte de Verdade e método, dedicada à linguagem, com considerações acerca da dinâmica da conversação. Eu, por minha vez, identifico em Gadamer outro problema: a redução da linguagem à palavra 6 . Nesse ponto, sim, encontro um questão crítica. Contudo, não haveria espaço suficiente neste ensaio para desenvolvê-la devidamente. Resta-me, então, converter o que é um ponto crítico na concepção de Gadamer em uma vantagem metodológica. Ele ajuda-me a delimitar o problema da linguagem em Verdade e método. Deixo para outra oportunidade a possibilidade de criticar sua concepção de linguagem como palavra 7 .

Filosoficamente, minha abordagem da educação deve ser esclarecida. Nos últimos anos, tenho notado a predominância de certa concepção de educação no que tem sido investigado em nome da filosofia da educação. Eu a chamo de concepção escolar de educação. Por quê? Vários artigos e livros pressupõem, explícita ou implicitamente, um conceito segundo o qual a educação seria uma atividade profissional realizada em instituições de ensino. Por educação, eles compreendem a atividade em que alguém reconhecido/a como professor/a assume a tarefa de ensinar algo a alguém reconhecido/a como estudante. Restaria à filosofia da educação a tarefa de identificar os problemas práticos de tal relação pedagógica e, então, contribuir com algum diagnóstico para solucionar tais problemas. Assim, a filosofia estaria à serviço da pedagogia.

Por minha vez, defendo uma concepção filosófica de educação. Filosófica, pois é uma concepção em que a educação se manifesta tão universalmente quanto possível. Digo universalmente em dois sentidos complementares. Primeiro, concebida filosoficamente, a educação não se restringe a uma atividade profissional. Ela passa a ser uma experiência que, como tal, ocorre em qualquer âmbito, eis sua universalidade, da existência. Segundo, a educação concerne à essência do ser humano. E a essência é a determinação mais profunda de uma coisa; o que a acompanha em qualquer perspectiva, eis sua universalidade, pela qual a coisa possa ser vista. A educação, em suma, é aquilo pelo qual um ser humano distingue-se de outros seres vivos. Não me canso de citar Kant ( 2012, p. 9): “o homem é a única criatura que tem de ser educada”.

Enfim, filosoficamente concebida, a educação consiste em uma sucessão de experiências pelas quais, a cada vez, me torno distinto de quem tenho sido. Eis como defino a educação. Por quê? Qual o traço comum, mais geral, nos casos em que o senso comum identifica intuitivamente uma coisa chamada educação? Exemplos: educação científica, nutricional, física, financeira, moral, política etc. Não parece haver um aspecto humano em que a educação não possa ser identificada. A lista poderia ser estendida: educação psicológica, estética, artística, técnica, familiar etc. Em todos, um ponto comum: alguém se tornando distinto científica, nutricional, física, financeiramente etc. de quem vinha sendo. É o que define, em essência, a educação. E cabe à filosofia, quando está ciente de si própria, visar à essência da coisa investigada 8 .

Convém, por fim, especificar a minha abordagem de Gadamer. Comparo-a com A caminho de uma pedagogia hermenêutica e Gadamer & a educação, de Hans-Georg Flickinger ( 2010, 2014). No Brasil, ele conquistou notoriedade por se dedicar à educação baseado na hermenêutica filosófica. Todavia, além de pressupor uma concepção escolar de educação, curiosamente, Flickinger desconsidera em ambas as obras a conferência de Gadamer. Quanto à linguagem, mais especificamente, distingo-me também de Hermenêutica filosófica, de Luiz Rohden ( 2005). Ao examinar o que é linguagem, segundo Gadamer, Rohden considera quase sua obra completa e o distingue de outras abordagens. Como já afirmado, pretendo realizar uma interpretação pontual; sobretudo, definir melhor conceitos como linguagem, mundo, especulação e dialética.

Compreensão e aprendizagem

Neste tópico, pretendo apenas reunir os principais aspectos do que já desenvolvi mais demoradamente em outro ensaio, Compreensão e aprendizagem (BACK, 2023). Fundamentalmente, parto da pressuposição segundo a qual a compreensão é condição de possibilidade da aprendizagem. A razão parece-me relativamente simples. Compreender significa basicamente tornar familiar algo ainda estranho. E algo apenas se torna familiar para alguém quando ele/a pode relacioná-lo com outras coisas já familiares. Assim, o que antes figurava estranho passa a encontrar, por assim dizer, um lugar no horizonte de compreensão de alguém. Quando a familiarização acontece, então a coisa passa a fazer sentido. Ora, não me parece possível aprender algo ainda incompreensível, cujo sentido ainda me é estranho.

O que caracteriza a aprendizagem? Ela exige de quem está aprendendo a habilidade para realizar por si próprio certas atividades relacionadas à coisa compreendida. A compreensão, por sua vez, requer, sobretudo, a apreensão do sentido, da maneira como uma coisa pode se relacionar com outras já compreendidas. Um texto, por exemplo. Quando o leio, procuro apreender seu sentido, identificar as coisas a que ele se refere e, sobretudo, relacioná-las entre si tal como as concebe quem o escreveu. Mas qual a atividade relacionada à compreensão de um texto? A escrita. Eu posso compreender um texto bem escrito. Mas ainda assim não desenvolvi a habilidade de escrevê-lo bem. Para tanto, preciso eu mesmo dominar a arte de escolher as palavras certas e encadeá-las de tal modo que outra pessoa possa me compreender bem.

Os exemplos poderiam se multiplicar. Posso compreender um cálculo matemático e, porém, devo ainda aprender a atividade do cálculo eu mesmo; posso compreender como funciona um aparelho eletrônico e, porém, devo ainda aprender a atividade de operá-lo eu mesmo; posso compreender como se dirige um automóvel e, porém, devo ainda aprender a atividade de dirigi-lo eu mesmo. Propositalmente, repeti a expressão eu mesmo, pois a aprendizagem se refere à minha habilidade de realizar a atividade relacionada ao que estou compreendendo. Decerto, eu também preciso compreender algo eu mesmo; ninguém pode fazê-lo por mim. Mas, ela exige apenas o exercício de uma faculdade do espírito, diria. A aprendizagem também é uma faculdade, mas ela exige a aquisição, o desenvolvimento de certas habilidades práticas.

A propósito, a compreensão não pode ser adquirida mediante aprendizagem, eis o ponto. Sem dúvida, ela pode ser estimulada, amadurecida. Porém, seria um equívoco submetê-la à aprendizagem. Do contrário, se precisasse ser aprendida, seria tão contingente quanto a atividade de dirigir um automóvel; eu poderia aprendê-la, mas, caso não quisesse ou não tivesse oportunidade, poderia não a aprender. Ora, ninguém pode ser, primeiro, desprovido de compreensão e, só depois de aprendê-la, passar a compreender as coisas. Não por acaso, em Ser e tempo, Heidegger ( 2002b, p. 198) considera a compreensão algo próprio da estrutura existencial do ser humano; sem ela, o ser humano não seria o que é. Igualmente, como já sugeri, a aprendizagem é algo propriamente humano, mas implica uma exigência prática bem particular.

É importante um esclarecimento. As condições da compreensão e aprendizagem, expostas nos próximos tópicos: experiência, jogo, linguagem e mundo, devem ser interpretadas como condições. Ora, ser condição necessária para que algo se torne possível não significa torná-lo, tal coisa, constantemente efetivo. Em suma, a experiência humana é necessária e constantemente um jogo dialético-especulativo da unidade de linguagem e mundo. É o que ainda hei de mostrar. Todavia, a experiência humana não é necessária e constantemente aprendizagem, embora, quando é aprendizagem, ela seja feita como um jogo dialético-especulativo. Portanto, a aprendizagem é apenas uma maneira particular de experimentar o jogo da unidade dialético-especulativa de linguagem e mundo. É o que também vale, na próxima subseção, para Bildung 9 .

Duas objeções à diferença entre compreensão e aprendizagem

Seria possível apresentar uma objeção à distinção feita entre compreensão e aprendizagem. Em Verdade e método, Gadamer ( 2003, p. 348) retoma um significado da palavra alemã Verstehen, em português, compreensão, que a define como “um saber fazer prático”. Para recorrer a seu exemplo, em alemão, “ Er versteht nicht zu lesen” significa “Ele não entende de leitura”, “Não sabe ler”, Gadamer argumenta; a propósito, eu até acrescentaria, ele não sabe realizar a atividade da leitura. “Quem ‘compreende’ um texto”, Gadamer ( 2003, p. 348) prossegue, “não somente projetou-se num sentido” como também se engajou em uma atividade prática. Logo, a distinção feita aqui entre compreensão e aprendizagem não seria muito clara; talvez até simplesmente não houvesse qualquer distinção. Compreender já equivaleria a aprender.

É imprescindível interpretar atentamente o que Gadamer almeja mostrar. Quando adverte: “quem ‘compreende’ um texto não somente projetou-se num sentido”, ele está visando exatamente ao que, além da projeção de sentido? Qual atividade ele concebe como um “saber fazer prático”? Ele esclarece na sequência da proposição. Além de projetar-se em um sentido, quem compreende um texto também adquire “uma nova liberdade espiritual”, Gadamer ( 2003, p. 348) responde. Vejam, uma liberdade espiritual. O que, no espírito de quem compreende um texto, torna-se mais livre? Sua “possibilidade de interpretar”, de “detectar relações”, de “extrair conclusões em todas as direções”, o filósofo (GADAMER, 2003, p. 349) esclarece. Gadamer pretende mostrar uma coisa. Compreender implica compreender-se, ou seja, descobrir novas “possibilidades de si mesmo”.

Logo, não haveria qualquer distinção entre compreensão e aprendizagem? Até onde sei, Gadamer nunca as diferenciou. Portanto, em seus textos, em vez de uma distinção, é mais provável encontrar uma confusão entre ambas. Ademais, o que ele compreende por saber prático é algo muito peculiar, baseado em sua interpretação de Aristóteles 10 . Decerto, quanto mais eu experimento a compreensão tanto mais a fortaleço, tanto mais relações de sentido estabeleço entre as coisas. Em síntese, é o que Gadamer defende na passagem citada. A aprendizagem, porém, é uma experiência distinta. Ela exige o exercício constante de uma atividade, por exemplo, a leitura, para retomar o exemplo de Gadamer. Somente aprende a ler quem repete ele/a mesmo/a insistentemente a atividade da leitura até dominá-la, eis o ponto.

A aprendizagem é a experiência pela qual, quando incansavelmente repetida, certa habilidade prática se incorpora ao modo como me relaciono com certas coisas. Quanto à expressão habilidade prática, não estou me referindo apenas a uma liberdade espiritual, como o faz Gadamer; estou me referindo, inclusive, a uma habilidade corporal. Se não pratico diariamente certos exercícios, minhas mãos jamais saberão tocar bem saxofone, por exemplo. É possível reconhecer até uma relação de condicionamento mútuo entre ambas. Se a compreensão é condição de possibilidade da aprendizagem, como defendi, a aprendizagem, por sua vez, condiciona a compreensão. Se aprendo a tocar um instrumento, minha compreensão da música se enriquece, pois, agora, compreendo-a não somente como diletante, mas também como músico.

Outra objeção ainda poderia ser apresentada. Em vez de aprendizagem, teria sido mais conforme à perspectiva de Gadamer retomar o conceito de Bildung. Por quê? Porque o que Gadamer pensa sobre Bildung parece implicar o que penso sobre aprendizagem. Logo, esse conceito seria desnecessário. Ora, tal objeção me obriga a esclarecer qual é minha posição em relação a Gadamer. Não me resumo em apenas apresentar o que Gadamer pensa acerca da hermenêutica e educação. Sim, como pretendo justificar sua proposição, assumo certo compromisso de pensar nos limites de sua perspectiva filosófica. Não obstante, é perfeitamente possível, creio, realizar distinções e cunhar conceitos afins com a hermenêutica de Gadamer. É o caso da aprendizagem. Busco concebê-la eu mesmo, porém, eis o ponto, a partir de sua hermenêutica.

Para introduzir a exposição sobre Bildung, convém lembrar de uma passagem curiosa da conferência Educação é educar-se. Quando afirma “educação é educar-se, formação é formar-se”, Gadamer ( 2000, p. 11) adverte seu público. – “Deixo conscientemente à margem”, ele ( 2000, p. 11, grifo meu) diz, “quais podem ser os problemas entre a juventude e seus preceptores, professores e pais”. “Desejo contemplar todo este âmbito desde um ponto de vista distinto do que domina propriamente o debate”. Ora, ele não pretende pensar a educação baseado em uma concepção escolar, mas sim em uma concepção realmente filosófica. E o que determina seu ponto de vista é, sem dúvida, o conceito de Bildung. É clara a afinidade de seu ponto de vista, penso, com a concepção filosófica de educação defendida neste ensaio 11 .

Enfim, desde o século de Goethe, Gadamer ( 2003, p. 44) ensina, Bildung tornou-se um conceito-chave graças ao qual se transformou a compreensão sobre o que é o ser humano. Bildung não significa mais o cultivo de certas aptidões previamente dadas, como julgava Kant; 12 nem as considerar, tais aptidões, meios para determinados fins. Em geral, não se trata de converter nenhuma outra coisa, por exemplo, livros, em um meio cujo sentido se esvai na realização de certos fins. Ao contrário, o ser humano assimila, preserva em seu ser tudo o que contribuiu para sua instrução. “Tudo que ele assimila integra-se nele”, esclarece Gadamer ( 2003, p. 47). “Na formação adquirida”, ele prossegue, “nada desaparece, tudo é preservado”. Por conseguinte, Bildung é “um conceito genuinamente histórico”, conclui Gadamer ( 2003, p. 47).

Mas foi Hegel “quem elaborou da maneira mais nítida o que é formação” (GADAMER, 2003, p. 47). O ser humano, afirma Hegel ( 1989, p. 310, grifo do autor), “ não é por natureza o que deve ser”. Portanto, ele precisa formar-se. Para Hegel, formar-se significa romper com o que é dado imediata e particularmente, a fim de elaborá-lo seu sentido universal. Mas há um ponto particularmente essencial aí. Na formação, o ser humano precisa visar a algo outro e, então, retornar a si transformado graças ao sentido universal elaborado. Gadamer ( 2003, p. 50) só se distancia de Hegel em sua defesa de um “saber absoluto”. Afinal, a formação envolve tato, uma sensibilidade prática muito peculiar. Discernir seguramente algo sem se basear em razões; contornar certas coisas conforme a ocasião; respeitar a “esfera íntima” de alguém (GADAMER, 2003, p. 52–53).

Enfim, a aprendizagem não deve ser simplesmente subsumida no conceito de Bildung. Antes, a aprendizagem é um momento particular de uma experiência universal chamada Bildung; é apenas aquele momento da formação em que o ser humano precisa se esforçar, insisto, para desenvolver certas habilidades práticas. É essencial à Bildung? Decerto! Porém, não deve ser confundida com ela. Particularmente, é o que, em sua conferência, Gadamer ( 2000, p. 45) relata sobre sua leitura do livro de Lessing, Europa e Ásia. Observem que Lessing mostrou a Gadamer uma maneira de compreender-se, de “detectar relações”, de “extrair conclusões”. É o que alguém faz quando mostra algo importante que outra pessoa ainda não tinha visto. Não se trata propriamente de aprendizagem, embora seja uma experiência de formação 13 .

Compreensão e aprendizagem como experiências

Não é difícil, como pretendo tornar claro, divisar o conceito de experiência nos aspectos mais característicos da formação. Não por acaso, primordialmente, elas, compreensão e aprendizagem, são experiências. Mas experiência não está sendo compreendida aqui como os filósofos empiristas Locke ( 1997, p. 57) e Hume ( 2000, p. 35) a compreenderam. Para eles, em suma, a experiência funda-se na observação, na concentração da atenção em algo cujo estímulo formaria outra coisa chamada ideia. Assim como Gadamer, eu me oriento pelas indicações de Hegel. Diferentemente dos filósofos empiristas, a experiência, segundo Hegel, não se reduz à suscetibilidade da atenção para sofrer estímulos da coisa observada. Ao invés, ela consiste na relação, repleta de nuances, entre a consciência e a coisa de que ela está consciente.

Originariamente, a experiência funda-se em dois aspectos da consciência, que mantém entre si uma relação inextricável. “A consciência, por um lado, é consciência do objeto”, diz Hegel ( 2003, p. 79); “por outro lado, [ela é] consciência de si mesma”. Mais especificamente, “a consciência distingue algo de si” e o determina como algo sendo independente dela, sendo Em-si. É o aspecto chamado verdade (HEGEL, 2003, p. 77–78). Todavia, a consciência busca conhecer o que considera sendo Em-si e assim mantém com ele uma relação. Portanto, simultaneamente, ele é Em-si para a consciência. É o aspecto chamado saber (p. 77). Ora, ambos, verdade e saber, radicam na consciência, diz Hegel ( 2003, p. 79). Assim, cabe-lhe comparar seu saber com seu objeto para verificar se aquele, seu saber, corresponde realmente a este, seu objeto.

Decerto, a situação não é tão simples. Se a consciência, alguém poderia questionar, se encarrega de comparar saber e objeto, em qual sentido tal comparação seria uma verificação? Afinal, aquilo com que algo está sendo comparado, nomeadamente, o ser Em-si, deveria ser algo independente do que está se encarregando da comparação, a consciência. Do contrário, tudo se passaria como se minha mão direita resolvesse emprestar dinheiro para minha mão esquerda, conforme o exemplo bem-humorado de Wittgenstein ( 2000, p. 102). Porém, aí está a “ambiguidade [do que é] verdadeiro”, do ser Em-si, como adverte Hegel ( 2003, p. 80). Sim, ele é Em-si. Porém, tal condição não o exime de ser também para a consciência. Então, há duas maneiras de ser para a consciência: ser como um saber elaborado e ser como algo Em-si.

Mais importante é o surgimento de um novo objeto para a consciência. Caso ambos os aspectos, verdade e saber, não se correspondam, a consciência deve mudar seu saber. Em outras palavras, o que a consciência supunha ser algo Em-si, na realidade, era algo sendo somente para ela. Todavia, eis o ponto, ao mudar seu saber, necessariamente muda também seu objeto. Afinal, o objeto “pertencia essencialmente” ao saber, nota Hegel ( 2003, p. 79). Logo, a verificação da consciência envolve tanto seu saber quanto seu “padrão de medida”, seu objeto (HEGEL, 2003, p. 80). De fato! Afinal, só faz sentido mudar o que eu sei sobre uma coisa, se ela, a coisa, também puder ser distinta do que eu sabia a respeito dela. Assim é, porque o ser Em-si, enquanto algo distinto da consciência, não se reduz ao que ela, a consciência, sabe sobre ele:

Ocorre que a consciência não representa o em si simplesmente como para ela: se tal se desse, o em si deixaria de ser em si para ser em si somente para a consciência [grifo meu].

Encontra-se aqui, entretanto, o motor mesmo do processo, a negatividade presente no interior da própria consciência: o seu saber do objeto não corresponde ao objeto porque tanto o saber do objeto quanto o próprio em si do objeto são tais [grifo meu] para a consciência [grifo do autor], de forma que o momento do em si permanece inalcançado. [...].

O em si é, portanto, o momento que empurra a consciência para além dela mesma. (NOBRE, 2018, p. 200).

Mas a mudança aqui não consiste em negar totalmente um objeto para afirmar outro; não se trata de anular simplesmente algo para substituí-lo por outro, sem qualquer relação com o objeto anterior. A experiência, sim, implica progressão. Mas, ao mesmo tempo, ela é concatenação, como bem adverte Marcos Nobre ( 2018, p. 209). Eis o que Hegel compreende por “movimento dialético” da experiência. Dialético, porque a afirmação de um novo objeto sintetiza em si a negação da verdade do objeto anterior. Em outras palavras, o novo objeto, ao invés de simples negação, é antes uma “renovação do objeto anteriormente posto”; “contém nele a história de sua renovação, a verdade do objeto anterior”, complementa Nobre ( 2018, p. 210). “Agora sabemos outra coisa e sabemos melhor”, nas palavras de Gadamer ( 2003, p. 464).

A experiência, enfim, consiste nas sucessivas transformações graças às quais a consciência nega o que julgava saber para se renovar em novos objetos. Para os propósitos deste ensaio, convém ressaltar sua significação universal para a existência humana. A experiência, como atenta muito oportunamente Jean Hyppolite ( 2003, p. 26), não é uma relação pontual em que a consciência conhece este ou aquele objeto. Antes, ela, a experiência, concerne à vida mesma da consciência em toda sua envergadura. Como bem pontua Hyppolite ( 2003, p. 24), a consciência pode viver uma “experiência ética, jurídica, religiosa” etc. Quando um novo objeto desponta, ela “não perde somente aquilo que, do ponto de vista teorético, tomava como verdade”; ela “perde ainda sua própria visão da vida e do ser, sua intuição do mundo” (HYPPOLITE, 2003, p. 29).

Não por acaso, ao invés de defini-la como “caminho da dúvida”, Hegel ( 2003, p. 74) prefere considerar mais dramaticamente a experiência como “caminho do desespero”. Porque é o percurso da vida mesma da consciência, a experiência é absolutamente essencial para uma concepção filosófica de educação. Ela, a educação, é primordialmente experiência. Aliás, conforme ressalta Hyppolite ( 2003, p. 27), os romances de formação de sua época influenciaram profundamente Hegel. Ele, Hyppolite, até considera a Fenomenologia do Espírito uma espécie de “romance de formação filosófica”. Afinal, Hegel, de fato, narra a história das experiências da consciência. Como ocorre em um romance de formação, a consciência sucessivamente abandona certas convicções que, no decurso da experiência, se lhe revelaram ilusórias.

Gadamer ( 2003, p. 461), quando concebe a “essência da experiência hermenêutica”, recorre justamente ao conceito de experiência de Hegel. Sem dúvida, ele não assimila simplesmente tudo o que Hegel pensa a respeito (GADAMER, 2003, p. 464). Todavia, os aspectos mais fundamentais da experiência da consciência, aqui expostos, certamente correspondem ao que significa compreender. Mas consciência não deve ser considerada sinônimo de compreensão. As razões de tal distinção são muitas e demasiado complexas, de sorte que seu desenvolvimento não caberia neste ensaio 14 . Cabe-me, ao menos, apontar duas considerações importantes. Primeiro, a experiência da compreensão envolve a “experiência em seu todo” (GADAMER, 2003, p. 465). Segundo, experiente não é quem presume saber tudo, mas quem está aberto a novas experiências.

Ao destacar tais aspectos da experiência da compreensão, destaco também dois aspectos daquilo de que a compreensão é condição: a aprendizagem. Ela, a aprendizagem, enquanto experiência, também abrange a experiência humana em seu todo. Não parece haver nada em cuja experiência não esteja implicada a aprendizagem. Quando compreendo a importância de uma conduta ética, abro caminho para aprendê-la e, assim, eu mesmo realizá-la. E assim ocorre com a experiência jurídica, religiosa, artística etc. Quando compreendo a lei, a fé, a arte etc., abro caminho para aprendê-las e, assim, eu mesmo cultivar a lei, a fé e a arte etc. em minha vida. E quanto mais experiente na verdade de tais coisas me torno, no sentido hermenêutico já exposto, tanto mais aberto estou para aprendê-las segundo novas verdades.

Compreensão e aprendizagem como jogo da experiência

Uma vez determinadas a compreensão e a aprendizagem enquanto experiências, enfim, convém abordar outra condição fundamental, o jogo. Ambas, experiência e jogo, não são determinações fundamentais da compreensão e aprendizagem sem qualquer relação entre si. Ao contrário, a experiência se estrutura, eis meu ponto, como jogo. A exposição seguinte, consequentemente, deve ser considerada um desenvolvimento do que expus sobre a experiência. Assim, o jogo abre uma perspectiva mais ampla sobre a relação do ser humano com a coisa em sua verdade manifesta e com a compreensão elaborada a respeito. A experiência não é a relação solitária de alguém com a verdade de algo. A experiência de cada um compõe com as experiências dos outros um feixe de interrelações que, no decorrer do tempo, torna-se tradição.

A abordagem de Gadamer, aqui resumida, parte de uma crítica ao conceito de jogo de Kant e Schiller. Para ambos, o jogo é algo vivido subjetivamente. Ou é uma harmonização de faculdades subjetivas, como em Kant ( 2005, p. 62), ou é uma harmonização de impulsos subjetivos, como em Schiller ( 1991, p. 88). Aliás, os dois partem de uma pressuposição antropocêntrica, como se o jogo fosse uma determinação eminentemente humana. Gadamer, em contrapartida, concebe o jogo como um fenômeno amplo, do qual o jogo humano seria apenas um caso particular. Eis a razão de ele encontrar o fio condutor de sua abordagem nos empregos considerados metafóricos da palavra jogo. Neles, o jogo pode ser constatado em qualquer coisa. Assim ele se distancia criticamente de uma concepção subjetiva e antropocêntrica do jogo.

Metaforicamente, há não só jogo do ser humano como também jogo das palavras, das ondas do mar, das luzes, das forças, das peças de um maquinário etc. Tudo joga. Mas o que tais metáforas esclarecem sobre a essência do jogo? Em todas as suas manifestações, o jogo revela alguns aspectos fundamentais. Primeiro, ele não é um fenômeno exclusivamente humano, como o mostram os exemplos chamados metafóricos do jogo. Segundo, consiste em um movimento de vaivém, delimitado em um espaço fechado, em constante repetição e sem uma finalidade específica. Terceiro, o jogo se caracteriza não só pela capacidade de agir de quem o joga mas também pela sua suscetibilidade para sofrer as ações do jogo; nas palavras de Gadamer ( 2003, p. 157, 159), sua essência se encontra em sua “forma”, em seu “sentido medial”.

Daí resultam alguns pontos importantes do jogo da experiência. Ele, o jogo, revela sua essência em uma “estrutura ordenadora”, como diz Gadamer ( 2003, p. 158). É apenas outra maneira de afirmar a proposição: o sentido do jogo está em sua “forma medial”, na ação recíproca entre o jogo e quem o joga (GADAMER, 2003, p. 157). Ora, se a ordenação do jogo não se funda na “vivência subjetiva” ou ainda na atividade de quem o joga, então ela se funda nele mesmo, no jogo. Ele induz quem o joga a abandonar-se ao seu movimento repetitivo, ao seu movimento de vaivém. Um exemplo: basta fazer uma experiência imaginativa com um jogo de futebol. O que eu vejo quando dele me distancio, sem participar sequer da torcida? Ora, vejo exatamente um movimento repetitivo, sem finalidade em si mesmo, onde jogadores vão e vêm em um espaço fechado.

Eu disse: sem finalidade em si mesmo. No futebol, evidentemente, cada time busca vencer o jogo com mais gols marcados do que o time adversário. Mas é a finalidade de cada time; não é a finalidade do jogo como tal, que, em si mesmo, repito, envolve até a possibilidade do empate. Eu também disse: a estrutura ordenadora do jogo induz quem o joga a se abandonar ao seu movimento repetitivo. A princípio, é uma afirmação anti-intuitiva, pois uma coisa parece clara: os jogadores atuam no jogo. Entretanto, o jogo é uma experiência tão cultivada justamente porque ele absorve, assenhora-se de quem o joga. Quando estou realmente envolvido, não noto sequer a passagem do tempo, é interessante notar. O jogo, não por acaso, é um passatempo. Ele se assenhora de mim a ponto de turvar minha noção do tempo.

Eis a razão de uma conclusão surpreendente de Gadamer. Se o sujeito do jogo não é o jogador, então só pode ser o jogo ele próprio. Logo, ele conclui: “jogar é”, na verdade, “ser-jogado” (GADAMER, 2003, p. 160). É precisamente o que explica, como bem aponta Gadamer, a fascinação pelos jogos. Há, creio, uma razão bastante compreensível no fundamento da conclusão do filósofo. O jogo se fecha em um espaço delimitado, porque a condição para jogá-lo é a submissão de quem o joga a certas regras. Bem aí, na necessidade de se submeter a suas regras para jogá-lo, encontra-se, creio, o poder do jogo de assenhorar-se dos jogadores. Vejam bem, certas objeções não podem enganar. Sim, eu posso me recusar a jogar este ou aquele jogo. Mas não posso recusar o jogo em geral, enquanto determinação universal da vida humana.

Exatamente! O jogo estrutura toda a experiência humana. Não por acaso, ao concluir Verdade e método, Gadamer ( 2003, p. 630) aponta para o vínculo entre jogo e um aspecto fundamental da experiência: a verdade. Todavia, ele não passa de algumas poucas considerações gerais sobre o jogo da verdade. Mesmo assim, é suficiente, creio, para mostrar a significação filosófica do jogo para a concepção de educação defendida neste ensaio. Então, convém perguntar: em que consiste o jogo especificamente humano? Ora, jogar implica jogar algo. O quê? Quem joga precisa desempenhar uma tarefa. É o que ele/a precisa jogar; é o que precisa pôr em jogo. As regras do jogo se encarregam definir qual tarefa cabe ao/à jogador/a. E, ao desempenhá-la, ele/a a representa, tal tarefa, para alguém, para aqueles/as com os quais joga.

Então começa a se descortinar aquele feixe de interrelações, como já sugeri, em que está enredada a experiência de qualquer ser humano. Cada um experimenta a verdade manifesta da coisa, elabora-a em uma interpretação e a representa para os outros com os quais compartilha o jogo humano. Há sempre certas regras segundo as quais a verdade deve ser experimentada; regras situadas em camadas profundas de uma tradição, de uma cultura; regras cuja transformação não está sob o domínio deste/a ou daquele/a jogador/a. Portanto, não se trata de regras fixas; elas não impedem novas descobertas. Seu reordenamento, porém, segue um movimento cujo único sujeito é o jogo. 15 Como diz Foucault ( 2002, p. 51), em Arqueologia do saber, “não basta [...] prestar atenção”, para que assim a verdade se revele translúcida.

A experiência não está sob o domínio pleno de quem a faz 16 . Afinal, defendo, em sua estrutura fundamental, ela é jogo. A compreensão, enquanto experiência e, como tal, jogo, também envolve e ultrapassa as pretensões de quem compreende. “A compreensão, portanto, é um jogo”, conclui Gadamer ( 2003, p. 631) na última página de Verdade e método. A experiência de apreender o sentido das coisas se apodera de quem as compreende antes mesmo de ele/a refletir sobre como as compreende. É o que também vale para a aprendizagem. Reconheço, enfim, ter aprendido algo pelo simples fato de ter vivido outrora certas experiências. E nada assim seria possível sem outra determinação fundamental do jogo da experiência: a linguagem. Ela é o âmbito [ Mitte] onde se abre o espaço necessário para realizar o jogo da experiência.

Compreensão, aprendizagem e linguagem

Como já comentei na introdução, e convém reforçar, a conversação, segundo Gadamer ( 2003, p. 575), consiste no “autêntico ser” da linguagem. Portanto, perguntar por que a conversação é o que possibilita a aprendizagem implica perguntar pela linguagem. Até aqui, compreensão e aprendizagem têm sido determinadas a partir do jogo da experiência. Cada ser humano experimenta a verdade da coisa e, baseado nela, examina se aprendeu a fazer o que a coisa compreendida exige. A experiência envolve quem a faz em um jogo no qual compreensão e aprendizagem repetidamente se renovam; de modo que quem compreende e, se possível, aprende precisa representar o que compreendeu e aprendeu para os outros. E somente a linguagem, eis o que cabe mostrar, torna possível à compreensão e à aprendizagem se representarem como tais.

Linguagem e mundo como condições da aprendizagem

A condição primeira em virtude da qual a aprendizagem se torna possível é a relação entre linguagem e mundo. Eles, linguagem e mundo, delimitam o espaço de jogo onde pode ser realizada qualquer experiência humana, inclusive, claro, a aprendizagem. E há entre eles, linguagem e mundo, uma relação, eu diria, de reciprocidade ontológica. Nem linguagem funda mundo, nem mundo funda linguagem. Antes, adverte Gadamer ( 2003, p. 572), mundo só é mundo quando manifesto na linguagem que, por sua vez, só é linguagem quando representa mundo; estar-no-mundo implica necessariamente linguagem, assim como linguagem implica necessariamente estar-no-mundo. É fundamental, porém, saber o que significa mundo, já que ele não pode ser confundido com planeta Terra ou com o espaço físico arredor de alguém.

Mundo define a peculiaridade humana em sua relação com as coisas. Diferente dos demais seres vivos, mostra Gadamer ( 2003), o ser humano não está confinado ao mundo circundante 17 . Em geral, mundo circundante ( Umwelt) designa as condições necessárias à existência biológica de um ser vivo. O ser humano, por sua vez, é livre em relação ao mundo circundante ( Umweltfreiheit) (GADAMER, 2003, p. 573). Ele pode “elevar-se acima das coerções” das coisas, no sentido de que lhe é possível “se referir de diversas maneiras a uma só coisa” (GADAMER, 2003, p. 57). Tal liberdade ocorre, porque ela repousa sobre uma negatividade essencial. Eu me distingo daquilo com que me relaciono: me sei não sendo, eis a negatividade, tais coisas. Ao mesmo tempo, sei cada uma delas não sendo as outras e até podendo não ser como ela mesma vinha sendo 18 .

Ora, a linguagem é exatamente a realização concreta, pela fala e, depois, pela escrita, de tal liberdade. Um leitor atento já deve ter notado na negatividade da liberdade fundamental da linguagem aquela mesma negatividade da experiência 19 . Pois, além de estruturar-se como jogo, a experiência também se estrutura como linguagem. Em suma, conforme já sugeri, o jogo da experiência se expressa no âmbito, no espaço aberto da linguagem. Assim, somente assim, abre-se algo chamado mundo, algo tão próprio da existência humana. Eis porque, como assere Gadamer ( 1999, p. 446; 2003, p. 571), a condição de os seres humanos serem no mundo repousa na linguagem. Deste modo, ele não nega necessariamente, já advirto, aquela reciprocidade ontológica entre mundo e linguagem. Ao contrário, ele só destaca um de seus aspectos.

Tudo o que tem sido exposto até aqui sobre o jogo da linguagem 20 da experiência deve assumir uma nova figuração, mais profunda, em outro aspecto. A linguagem estabelece uma relação especulativa com o mundo. E especulativo significa, como esclarece Gadamer ( 2003, p. 601), uma relação de espelhamento 21 . Quando uma coisa se reflete em outra, por exemplo, um castelo em um lago, ilustra Gadamer ( 2003, p. 601), “o lago devolve a imagem do castelo”. O reflexo está unido, eis o ponto, à coisa refletida e, ao mesmo tempo, não é nada por si mesmo. Em suma, há só uma coisa paradoxalmente duplicada. Gadamer confere à unidade especulativa de linguagem e mundo uma elaboração mais concreta quando trata da unidade especulativa entre palavra e coisa. A palavra se vincula à coisa tal como o reflexo, à coisa refletida.

O que vem à fala é, naturalmente, algo diferente da própria palavra falada. Mas a palavra só é palavra em virtude do que nela vem à fala. Só se faz presente em seu ser sensível para subsumir-se no que é dito. Inversamente, também o que vem à fala não é algo dado de antemão e desprovido de fala, mas recebe na palavra sua própria determinação. (GADAMER, 2003, p. 613).

O ponto determinante graças ao qual é possível encaminhar uma resposta ao problema motivador deste ensaio está na última linha da passagem. A palavra confere à coisa uma determinação própria. Se estou em um recinto mal iluminado, posso identificar algo ali, junto à parede. – Digo, então: “Há algo ali”. Mas a palavra algo, em seu significado indeterminado, revela quão indeterminada, para mim, é a coisa em sua verdade. Quando digo: “É uma cadeira!”, determino o que há ali e estabeleço o nexo de relações nas quais a coisa obtém sua significação completa. Com a aprendizagem não é diferente. Se não sei elaborar em palavras o que estou aprendendo, minha aprendizagem permanece indeterminada. E a conversação, como ainda hei de mostrar, é o âmbito onde a aprendizagem adquire sua determinação mais ampla.

Aqui, convém uma advertência. Quando algo “vem-à-fala” ( Zur-Sprache-kommt), expressão de Gadamer ( 1999, p. 479; 2003, p. 612), ele não passa a existir de outro modo. “O aspecto sob o qual algo se apresenta [na linguagem, acrescento] faz parte de seu próprio ser” (GADAMER, 2003, p. 613). Eis a unidade especulativa entre linguagem e mundo! Ela implica aquela duplicação paradoxal do espelhamento. São duas coisas, decerto: reflexo e coisa refletida. Porém, simultânea e paradoxalmente, elas são uma só 22 . Claro, a coisa sendo Em-si deve ser distinta dela mesma sendo representada em linguagem. Mas é uma distinção que não é uma distinção, eis o paradoxo (GADAMER, 2003, p. 613) 23 . Mas justo tal paradoxo é o que explica dois fatos correlatos; de minha compreensão precisar mudar quando ela não corresponde à coisa e de a coisa, assim, acabar mudando também.

Há ainda outro aspecto da relação especulativa da linguagem com o mundo que, aparentemente, não se relaciona com o que tem sido apresentado. Especulativa é não só a relação geral entre linguagem e mundo mas também o modo pelo qual o ser humano representa o mundo na linguagem. É possível representá-lo em uma perspectiva dogmática, em uma “determinação fixa”, como diz Gadamer ( 2003, p. 601). Mas também é possível representá-lo como o faz “uma cabeça especulativa”. “É especulativo” quem “sabe refletir”, isto é, quem está aberto à possibilidade de reconhecer uma coisa. O que eu considero sendo Em-si talvez o seja apenas para mim. Eis outro ponto fundamental da reflexão onde experiência e especulação se encontram. Experiente, ou melhor, especulativo, é quem se abre a novas experiências.

Também aí se insinua a unidade de linguagem e experiência:

Hermeneutic experience, and with it the event of understanding, unfolds accordingly. In the attempt to understand – whether it be a historical text, a work of art, the words spoken by another or even that experience that is strange and challenging – we are not mastering an object, but placing ourselves in the open where we encounter the breakdown of our expectations. Being in the open is a condition of exposure that is required for letting the meaning that is beyond our expectations emerge. It is here that Gadamer also insists on the linguisticality of understanding, for it is language that accomplishes this expansion of meaning and understanding of what is other. (RISSER, 2019b, p. 6).

Tudo se torna mais coeso, embora Gadamer não o mostre claramente, quando a relação da linguagem com o mundo se revela não só especulativa como também dialética. E dialética em dois sentidos inextricavelmente interrelacionados. Primeiro, e aí se encontra a passagem para a linguagem como conversação, a dialética de pergunta e resposta. A linguagem especula o mundo mediante perguntas para as quais são elaboradas respostas. E há entre elas, perguntas e respostas, uma ordem específica. Qualquer resposta é uma afirmação sobre algo. Isto é assim. Porém, vista mais atentamente, toda afirmação é a tentativa de determinar certa direção para uma pergunta implícita. O que é isto? Afinal, a pergunta impõe um estado de indecisão entre respostas contrárias. Eis a dialética! 24 – Isto é assim, mas talvez possa não ser assim.

Segundo, a dialética enquanto “fazer da própria coisa”, na expressão de Gadamer ( 2003, p. 598). Dialética, para os gregos antigos, não é um movimento do pensamento, ao contrário de como a concebeu a filosofia desde o século XVIII (GADAMER, 2003, p. 594) 25 . Para eles, ao invés, a dialética é a “ação da própria coisa” exercida sobre o pensamento; ela consiste em deixar a própria coisa fazer. Ora, quando deixo a coisa fazer, desfaz-se aquele estado de suspensão da pergunta; ela, a coisa, determina uma resposta. – “Pensar significa precisamente desenvolver uma coisa em sua própria consequência” (GADAMER, 2003, p. 599). Assim a linguagem espelha o mundo. Porém, a coisa não poupa ao pensamento o “esforço do conceito” (GADAMER, 2003, p. 598). Ela apenas evita a intervenção do pensamento dogmático, “desta ou daquela ideia preconcebida” (GADAMER, 2003, p. 598).

Por fim, o último aspecto da relação dialético-especulativa entre linguagem e mundo: a finitude. Como deve estar claro, o espelhamento não implica o império de um conhecimento encarregado de representar inequivocamente o mundo. Daí a importância da unidade entre compreensão e interpretação (GADAMER, 2003, p. 515). Ao compreender, ao apreender o sentido de algo, eu necessariamente interpreto, ressalto certos aspectos e encubro outros. A especulação da linguagem sobre o mundo é finita, limitada a perspectivas. Mas as múltiplas interpretações do mundo não estilhaçam sua unidade com a linguagem. É como ocorre quando duas pessoas percebem diferentemente uma coisa 26 . O mundo em si não é senão a continuidade graças à qual algo se manifesta a perspectivas contrárias que o debatem sem, todavia, perdê-lo de vista.

Em parte, eis as condições fundamentais da aprendizagem. Vejam, a linguagem elabora dialético-especulativamente – para a compreensão – algo em seu ser. Sem linguagem, por conseguinte, eu não poderia sequer distinguir algo do qual eu poderia fazer experiência; não poderia experimentar aquele movimento dialético graças ao qual minha aprendizagem poderia se renovar. Afinal, como poderia determinar a diferença mesma pela qual a coisa se renova para mim como outra coisa? Mais radicalmente, sem elaborar algo em seu ser, não haveria sequer algo que eu pudesse aprender! Não poderia espelhar nenhuma coisa para deixá-la fazer-se como tal coisa. Mais, não haveria jogo onde eu pudesse representar para os outros minhas interpretações da verdade. É o que só se consuma na linguagem enquanto conversação.

Linguagem como jogo da conversação

A unidade dialético-especulativa entre linguagem e mundo implica a unidade na relação eu e mundo (GADAMER, 2003, p. 612). Claro, a linguagem precisa supor alguém que, ao menos, fale-a e, conforme a cultura, escreva-a. Mas o pronome eu não deve ser interpretado literalmente; não se trata de uma relação entre alguém solitário e o mundo, como já adverti. Em outro ensaio intitulado Homem e linguagem, publicado em 1966, Gadamer explicita o que, creio, ele certamente já supunha em Verdade e método. “Falar significa falar para alguém. [...] [Portanto,] [...] falar não pertence à esfera do eu, mas à esfera do nós” (GADAMER, 2004, p. 179). Enfim, a unidade dialético-especulativa entre nós e mundo altera o foco da exposição. Agora, é necessário adentrar os aspectos das interrelações humanas na linguagem, determinantes para a aprendizagem.

Primeiro, a linguagem, em sua unidade dialético-especulativa com o mundo, pressupõe um acordo. Decerto, Gadamer não se refere exatamente a um acordo no significado comum da palavra, enquanto um pacto entre várias pessoas em favor de algo comum. O acordo compreendido na linguagem não resulta de uma ação humana consciente, planejada previamente com base em certos interesses. Antes, ele é um acontecimento, algo realizado à revelia do interesse ou planejamento humano; ou, nas palavras de Gadamer ( 2003, p. 597), é o que o ser humano “não pode fazer com que não tenha acontecido”. Em tal sentido, aconteceu de haver um mundo, um “solo comum”, que “une todos os que falam entre si” 27 ; e os une no sentido de pôr “aquilo sobre o que se discorre diante dos olhos dos que participam da conversa” (GADAMER, 2003, p. 576).

Ora, aquilo em torno do qual se desenvolve a conversação humana é a coisa discutida. Ela origina o acordo, pois é aquilo em torno de que é possível ensejar uma reunião. Portanto, aquela unidade dialético-especulativa de linguagem e mundo é o que também determina ontologicamente o acordo. Ele é especulativo, pois necessariamente espelha algo exprimível em linguagem; é dialético, pois necessariamente precisa se orientar pelo “fazer da coisa”. Porém, acordo não deve ser confundido com concordância. A unidade dialético-especulativa entre linguagem e mundo obviamente não anula a possibilidade da divergência. Antes, ela a torna possível, pois mesmo a divergência mais extrema pressupõe algo comum sobre o qual, eis o ponto, pessoas podem divergir. Assim, e somente assim, o mundo é um solo comum, um acordo.

Mais importante, o acordo é dialético, pois sua dinâmica se orienta pelo movimento de perguntas e respostas. E é absolutamente significativa para o acordo a primazia da pergunta sobre a resposta. Afinal, a coisa, na qual se funda e em torno da qual se firma o acordo, manifesta-se primeiramente como pergunta. Gadamer ( 2003, p. 395) afirma, em certo momento de Verdade e método: “a compreensão começa onde algo nos interpela”. Em geral, como se exprime uma interpelação, em seu tom tipicamente confrontativo? Ora, como pergunta! A coisa interpela os seres humanos reunidos em torno dela e os impele a perguntar: o que é isto? O que é isto, a educação? O que é isto, a arte? O que é isto, a linguagem? O que é isto, a religião? E assim por diante. Suspensos em respostas contrárias, eles passam a conversar entre si.

Não sem razão, Gadamer inicia sua investigação sobre a linguagem com considerações gerais sobre a conversação. Ele ( 2003, p. 497) diz: “quanto mais autêntica uma conversação, tanto menos ela se encontra sob a direção da vontade de um [ou] outro dos interlocutores”. Não raro, uma conversação costuma se enveredar em assuntos imprevistos, bem diferentes daquele com que ela se iniciou. Afinal, há invariavelmente algo inesperado em qualquer pergunta e em qualquer resposta. Tal imprevisibilidade é o que confere à conversação sua ordenação própria. Assim, ela se assenhora de quem dela participa em um movimento de vaivém entre perguntas e respostas sem um fim previamente definido. Ora, Gadamer pressupõe algo fundamental aqui, parece-me bem claro: porque é conversação, a linguagem é essencialmente jogo.

A linguagem é o âmbito [ Mitte], ou ainda, o espaço “fechado” 28 onde ocorre o jogo de um acordo dialético-especulativo. E assim ela perdura para constituir uma tradição, termo que, como se sabe, remonta ao latim traditìo e significa entrega, transmissão, ensino. Portanto, a linguagem encarrega-se de transmitir, de ensinar às gerações vindouras o que as gerações anteriores acordaram. Daí a importância de dois conceitos, o pertencimento e a “dialética do ouvir” (GADAMER, 2003, p. 596). Acontece a cada um/a pertencer a uma tradição cuja verdade, ao interpelá-lo/a, ele/a não pode deixar de ouvi-la. Basta aprender a falar para ouvir e assumir a verdade da tradição. “Quando [...] queremos saber no que devemos crer, parece-nos que chegamos demasiado tarde” (GADAMER, 2003, p. 631). Em suma, algo já se impôs como verdade (GADAMER, 2003, p. 629) 29 .

Entretanto, a tradição só pode impor algo como verdade graças à idealidade da palavra. É o que torna possível a transmissão. Afinal, o sentido pelo qual certa verdade interpela alguém repousa em uma esfera ideal. Ora, ideal é aquilo cuja apreensão só o pensamento pode realizar; aquilo cuja realidade é irredutível à efemeridade típica da condição sensível. Eis por que, diz Gadamer ( 2003, p. 505), tradição não é algo cuja validez está presa em um mundo passado, como pensa o senso comum; uma vez transmitida, ela é algo presente, “imediatamente aberto aos sentidos” de quem a recebe (GADAMER, 2003, p. 597); ela “não é o que restou”, mas sim o que “é transmitido” (GADAMER, 2003, p. 504). Eis por que Gadamer valoriza a tradição escrita. Uma verdade assim registrada pode ser mais bem preservada em sua idealidade do que uma verdade dita.

Enfim, “ o ser que pode ser compreendido é linguagem”, famosa proposição de Gadamer ( 2003, p. 612, grifo do autor). Ele não está afirmando: “Tudo é linguagem”, como certas más intepretações supõem. Reflexo e coisa refletida são obviamente diferentes e, ainda assim, mantém uma unidade dialético-especulativa. Para reforçar uma citação já feita, “o que vem à fala é, naturalmente, algo diferente da própria palavra falada”. Contudo, conforme conclui Gadamer ( 2003, p. 613), uma coisa somente pode receber sua determinação na palavra 30 . Linguagem e compreensão “abrangem [...] tudo o que, de um modo ou de outro, pode chegar a ser objeto” (GADAMER, 2003, p. 523). A linguagem, em suma, é uma determinação absolutamente universal. Qualquer experiência, por exemplo, a aprendizagem, precisa ser feita em seu âmbito.

Logo, para parafraseá-lo: o ser que pode ser aprendido é linguagem. A condição primeira da aprendizagem é determinar em seu ser o que alguém pretende ou deve aprender. Para tanto, é necessário elaborá-lo em linguagem, em palavras unidas dialético-especulativamente ao mundo. Definido o objeto da aprendizagem, é necessário identificar não só o que alguém deve fazer como também o que não deve fazer. Assim, o/a aprendiz encontra-se frequentemente situado/a entre alternativas contrárias. Para determinar um caminho, é necessário enveredar-se na dialética entre pergunta e resposta. E, assim, ele/a participa de uma conversação com quem é possível aprender o que precisa ser aprendido. Uma conversação com uma longa história, cujas regras invariavelmente se sedimentaram em um passado profundo e comum a todos/as.

Considerações finais

Assim, suponho, demonstro o que, na conferência de Gadamer, resta indemonstrado: por que a aprendizagem só é possível pela conversação. Mostrei também por que, em tal demonstração, é mesmo necessário mobilizar seus esforços filosóficos das décadas anteriores à conferência. Para concluir, convém reforçar alguns pontos. A conversação é um fenômeno bem complexo, fundado na unidade dialético-especulativa de linguagem e mundo experimentada como jogo. Dada sua universalidade, ela, a conversação, torna possível qualquer experiência humana, inclusive, a aprendizagem. Assim, precisei remontar às condições necessárias de possibilidade da aprendizagem. Mas, elas não devem ser consideradas como condições suficientes, pois, do contrário, qualquer conversação implicaria necessariamente experiência de aprendizagem.

Argumentação semelhante vale também para diferenciar aprendizagem e Bildung. Sim, a aprendizagem precisa ocorrer como conversação. Afinal, é o que reza a proposição de Gadamer. Porém, devem ser considerados aprendizagem apenas aqueles momentos em que é necessário se esforçar para adquirir certas habilidades práticas. Eles são importantes para a formação? Sem dúvida! Mas a formação é algo mais amplo e, portanto, pode ser experimentado quando não há aprendizagem, propriamente. Um exemplo é o que Gadamer chama, em sua conferência, de “experiências decisivas”. Elas coincidem muito mais com aquelas transformações pelas quais passa a compreensão ao descobrir novas possibilidades de si mesma. Se tais transformações fossem igualmente aprendizagem, ela não se diferenciaria da compreensão.

Há uma razão, creio, para interpretar mal o que eu defino aqui como aprendizagem. Em geral, o senso comum recorre a aprender e aprendizagem para se referir a qualquer nova experiência feita. Se alguém comete algum erro, basta reconhecê-lo, o erro cometido, para considerar apropriado o uso do verbo aprender. Assim, por exemplo, se uma criança pronuncia uma palavra errada e alguém a corrige, então lhe perguntam: Aprendeu? Claro, em resposta, a criança tende a consentir, muito mais em respeito à autoridade implícita da pessoa adulta: “Sim, aprendi”. Entretanto, ela provavelmente continuará a pronunciar incorretamente a palavra. Afinal, ela não aprendeu propriamente, mas apenas compreendeu como deve pronunciar a palavra. Exemplos de semelhante confusão com a compreensão poderiam se multiplicar.

Embora parta da hermenêutica filosófica de Gadamer, não me circunscrevo à sua perspectiva. Afinal, ele não notou a diferença entre compreensão e aprendizagem; pelo menos, não encontrei em seus textos nenhuma preocupação em diferenciá-las. Para ser coerente com a hermenêutica de Gadamer, não preciso limitar-me à sua perspectiva. É perfeitamente possível realizar certas distinções e manter coerência com seus conceitos fundamentais. Por exemplo, a experiência da Bildung, conforme já destaquei, não implica em si mesmo o que caracteriza a aprendizagem. Ela, a aprendizagem, é o que torna possível integrar em meu ser o que pode contribuir com minha formação. Assim, ao invés de trair a hermenêutica, eu a enriqueço, suponho. Aliás, é o que qualquer filósofo pode e deve fazer com a tradição herdada: fortalecê-la.

Enfim, a aprendizagem é só um momento da existência humana fundado em condições universais. Ela, a aprendizagem, é o esforço realizado para desenvolver certas habilidades práticas. Uma vez assimiladas, tais habilidades tornam possível o domínio da atividade relacionada à coisa compreendida. Para tanto, devo elaborar em palavras o que estou aprendendo, pois, caso contrário, permaneceria indeterminado o que me proponho a aprender. É o que necessita toda experiência de aprendizagem, sobretudo, nos momentos em que eu devo identificar minhas dificuldades. Quem não as sabe elaborar em palavras, suas dúvidas e dificuldades, também não sabe mais exatamente o que está obstruindo seu caminho para a aprendizagem. Ao assim elaborá-las, converso comigo mesmo ou com aqueles com quem aprendo algo.

A palavra concentra em si toda a complexidade da experiência, do jogo e, por fim, da unidade dialético-especulativa de linguagem e mundo. Ela, a palavra, torna igualmente complexa a aprendizagem. Para demonstrá-la, tal complexidade, precisei trilhar um caminho difícil, repleto de sutilezas, que se inicia na experiência e termina na conversação. Aprender é fundamentalmente experiência. E, como tal, ela exige a confrontação do que compreendo da coisa aprendida com a Verdade mesma do que ela é Em-si. Isso porque, somente é possível aprender o que se encontra no âmbito das possibilidades da coisa aprendida. Não posso exigir de certo instrumento musical, por exemplo, frequências sonoras possíveis apenas em outro instrumento. Para tanto, preciso elaborar em palavras as possibilidades da Verdade mesma do que estou aprendendo.

Não se trata de uma relação solitária com a Verdade da coisa compreendida e aprendida. Participo de um jogo em que, fatalmente, represento para e defendo dos outros a verdade do que aprendi. Por definição, cabe ao jogo estabelecer as regras segundo as quais se definem as tarefas de quem o joga. Elas, tais tarefas, são o que cada um põe em risco ao representá-las para os outros. Não é possível prever como os outros as julgarão, tais representações, nem como responderão a seu julgamento. Eis por que o jogo se assenhora de quem o joga. É o que ocorre quando alguém se relaciona tanto com o que está aprendendo quanto com quem aprende algo. Refaço incontavelmente certos exercícios. Erro inúmeras vezes. Represento o que aprendi e, à luz de certas regras, me reprovam. Represento-o novamente e, então, me aprovam.

Reforço, seria impossível experimentar o jogo da aprendizagem sem linguagem. A representação da aprendizagem no jogo humano se realiza no âmbito da unidade dialético-especulativa de linguagem e mundo. Represento para os outros o que aprendi sob a pressuposição de que minha representação da coisa aprendida a espelha, em palavras, tal como ela é. Mas posso me frustrar e, portanto, preciso estar especulativamente aberto a novas experiências. Minha representação, porém, só pode ser feita dialeticamente em um movimento de vaivém entre perguntas e respostas. E, para ser bem-sucedido, o movimento deve se basear no modo de ser da coisa aprendida, já que nela se encontram as respostas às perguntas. Todavia, minha aprendizagem é necessariamente finita, portanto, limitada a perfis, a perspectivas da coisa.

Eis por que, enfim, a linguagem é o que torna possível a aprendizagem. Não seria possível aprender sem experimentar o jogo da experiência realizada na unidade dialético-especulativa de linguagem e mundo. Aí se concentram as condições mais fundamentais da aprendizagem. Ela, a aprendizagem, não se reduz, repito, à descoberta pela qual a compreensão descobre novas possibilidades de si mesma. Gadamer ( 2003) a define, tal descoberta, como “saber fazer prático”, porque ele visa à semelhança entre sabedoria prática e compreensão. A aprendizagem, por sua vez, é prática em um sentido mais abrangente. Ela envolve a aquisição de certas habilidades práticas, como ocorre, por exemplo, na aprendizagem de instrumentos musicais. Sem a elaboração em linguagem, tais habilidades se perderiam no limbo da indeterminação de ser.

Referências

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3Disponibilidade de dados: o conjunto de dados que dá suporte aos resultados deste estudo não está disponível publicamente, devido ao fato de este estudo se basear em pesquisa bibliográfica cujos direitos de difusão sãpropriedade privada de editoras. Quando houver disponibilidade de dados, o endereço do repositório digital e a data de acesso estão informados no devido item da lista de referências no fim deste ensaio.

4Confira Marquard ( 2000, p. 130).

5“Puramente”, pois o texto, uma vez escrito, se desvincula das circunstâncias de sua composição. Trata-se de uma crítica indireta ao que Schleiermacher ( 2000, p. 39–42) chama de “lado mais psicológico da interpretação”Para ele, interpretar é, em parte, reconstruir o processo psicológico de quem compôs o texto. Para Gadamer, ao invés, interpretar é compreender a coisa referida no texto.

6Somente a partir da década de 80, Gadamer, em resposta às críticas, passa a considerar experiências não verbais como experiências de linguagem. Cf. Rohden ( 2005, p. 228).

7O problema de reduzir a linguagem à palavra se revela agudo no desafio de interpretar a música instrumental, que James Risser encara em seu ensaio Hermeneutic considerations for understanding music. Porém, em vez dquestionar a redução da linguagem à palavra, Risser ( 2017, p. 61, grifo meu) parte da seguinte pressuposição: “the effort to understand music, which is in effect the effort to translate it into words”. É o que (p. 62) reforçquando compreende a música como outro exemplo de arte “não-linguística” (non-linguistic), expressa, portanto, em um “meio não-verbal” (non-verbal medium).

8Para mais detalhes da minha concepção filosófica de educação, confira Back ( 2019).

9Formação é a palavra em língua portuguesa geralmente escolhida para traduzir a palavra alemã Bildung. Manterei a palavra em alemão, pois ela se tornou relativamente comum em artigos acadêmicos.

10Gadamer interessa-se especificamente pelas semelhanças entre a compreensão e a phrónesis, palavra grega para designar a parte racional da alma humana encarregada de orientar a ação ética. Chamo a atenção para a passagem dVerdade e Método em que ele ( 2003, p. 411) diferencia saber prático e saber técnico. Ao contrário do saber técnico, sempre aplicado a coisas particulares, o saber ético consiste em “saber-se (Sich-Wissen)”, em “saber para s(Für-sich-Wissen)”, observa Gadamer ( 2003, p. 416). Em outras palavras, o saber ético é saber-se no sentido de que o ser humano produz a si mesmo, porém, de um modo diferente daquele pelo qual ele produz instrumentos técnicosTrata-se de uma “relação para consigo mesmo”, Gadamer ( 2003, p. 424) destaca, pela qual o ser humano descobre “novas possibilidades de si” em situações em que sua conduta deve ser julgada. É um saber prático, porque cabe-lh“orientar seu fazer”, como enfatiza Gadamer ( 2003, p. 414). Eis por que Gadamer encontra uma analogia entre compreensão e phrónesis. Em ambas, trata-se de um saber sobre a “relação para consigo mesmo”.

11Igualmente afim com a perspectiva de Nicholas Davey ( 2020, p. 8) segundo a qual Bildung “does not concern the molding of an individual according to prevalent cultural norms but involves immersion in processes of continuatransformation. It is a process in which individual (practitioner) and collective (traditions of practice) are mutually dependent and mutable”.

12Cf. Kant ( 2013, p. 258).

13Em sua conferência, Gadamer a chama de “experiência decisiva”.

14Para uma crítica do conceito de consciência, confira Heidegger ( 1999). Para uma crítica mais direcionada ao pensamento de Hegel, ver Heidegger (1983).

15Subjaz aqui a pressuposição segundo a qual o jogo determina como cada um deve jogá-lo. Para a crítica ao determinismo implícito no conceito de jogo de Gadamer, confira Back ( 2010).

16A “consciência natural”, observa Hegel ( 2003, p. 81), não está plenamente ciente do que lhe acontece em suas experiências. Só a consciência filosófica, a observar silenciosamente seu percurso, sabe o que se passa com “consciência natural”.

17Para uma discussão mais aprofundada da diferença entre humanos e animais, recomendo o debate entre Agamben ( 2011, p. 59) e Heidegger ( 2003, p. 216).

18Que ser implique também não-ser, Gadamer ( 2003, p. 575) destaca, é uma descoberta importante de Platão ( 2007, p. 228, 258a), exposta no diálogo Sofista.

19É importante destacar a positividade dialeticamente implicada na negatividade da experiência, conforme Nicholas Davey ( 2017, p. 10) destaca muito bem. “Our argument turns to an affirmation of hermeneutic negativity becausof the positivity within it. It is precisely because and when interpretation fails, that an attempt at interpretation can be revelatory”.

20Jogo da linguagem não significa aqui o que Wittgenstein ( 2000) compreende por jogos de linguagem.

21Não se trata daquele espelhamento criticado em A filosofia e o espelho da natureza, de Richard Rorty ( 1994). Ao recorrer à palavra ‘hermenêutica’, aliás, Rorty evoca Verdade e método como fonte de inspiração para pensauma “filosofia sem espelhos” (RORTY, -RORTY ( 1994), p. 351-352).

22Eis por que Gadamer prefere comparar a palavra com a imagem, pois assim ele evita a concepção segundo a qual a palavra é signo de algo. Como James Risser ( 2019b, p. 4) bem adverte, a linguagem, para Gadamer, não é uinstrumento. Porém, enquanto imagem, também não se trata de compreendê-la, a palavra, como cópia de algo. Antes, a comparação com a imagem deve ser compreendida fenomenologicamente. Consequentemente, Risser ( 2019b, p. 4) conclui“[…] the nature of language is to be disclosive of reality, it allows something to show itself, to reveal itself”.

23Heidegger ressalta melhor, comparado a Nobre ( 2018), a relação ambígua da consciência com aquilo de que ela se distingue. “A consciência separa, representando, algo de si, acrescenta, porém, a si, o separado. consciência é em si mesma um diferenciar que o não é” (HEIDEGGER, 2002a, p. 195).

24Gadamer ( 2003, p. 476) atribui a Aristóteles ( 2005, p. 605, 607, 1078b 25–30) a compreensão segundo a qual a dialética seria uma “investigação das coisas contrárias”.

25Em Verdade e método, Gadamer atribui tal concepção de dialética à “filosofia do século XIX”. Parece-me mais correto atribuí-la ao século anterior, nomeadamente, a Kant. É o que, aliás, Gadamer ( 2005, p. 11) mesmo o faz eoutro ensaio, Hegel e a dialética dos filósofos gregos.

26Aqui, Gadamer ( 2003, p. 578) se baseia no modo como Husserl ( 2006, p. 98, §41) descreve a percepção.

27É o que James Risser chama de “shared life”, ou seja, “vida compartilhada”, em contraposição, conforme sua crítica, à concepção mais pobre de intersubjetividade. Em suas palavras, “[…] both the I and the thou belonging noso much to themselves but to the world and its language in which both participate and communicate” (RISSER, 2019a, p. 8). Mas Risser acrescenta um ponto importante. “The problem in understanding what the other has to say is nosimply that I do not understand the person, but, to quote Gadamer, ‘that we don’t understand ourselves.’ In the effort to understand ‘we must break down resistance in ourselves if we wish to hear the other as other’ (GADAMER apuRISSER, 2019a, p. 8)”.

28Fechado, porém, não significa negação de qualquer abertura para o que é diferente. Como Walter Brogan ( 2020, p. 9) bem observa, “[…] language comes to us from beyond ourselves and from our belonging together with others”Aliás, o propósito último de Brogan é justamente mostrar como alguns conceitos importantes de Gadamer, infelizmente, induzem a inúmeros mal-entendidos.

29Sem dúvida, há muitas nuances na experiência com a tradição que, infelizmente, não podem ser desenvolvidas aqui. Dentre várias, destaco o conceito de fusão de horizontes, fundamental para a hermenêutica filosófica, sobre qual, aliás, como Lawrence Schmidt ( 2020) bem denuncia, há muitas más interpretações.

30Deixo indecidido se minha interpretação seria platônico-realista, kantiano-epistemológica, hegeliano-idealista ou nenhuma delas. Cf. Rohden ( 2000).

Recebido: 02 de Fevereiro de 2022; Revisado: 11 de Outubro de 2022; Aceito: 16 de Dezembro de 2022

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Este ensaio é parte de um projeto de pesquisa de pós-doutorado realizado com bolsa de estudos pós-doutorado sênior (PDS) da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro – FAPERJ. Está sendpublicado com recursos do Edital 02/2021 do Decanato de Pesquisa e Inovação (DPI)/Decanato de Pós-Graduação (DPG) da Universidade de Brasília (UnB).

Contato: rainri.back@yahoo.com.br

Editor:

Prof. Dr. Fernando Rodrigues de Oliveira

Rainri Back

é graduado e mestre em filosofia pela Universidade de Brasília (UnB). É doutor em filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Atualmente, seu principal projeto filosófico é desenvolver uma concepção filosófica de educação.

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