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Educação e Pesquisa

Print version ISSN 1517-9702On-line version ISSN 1678-4634

Educ. Pesqui. vol.49  São Paulo  2023  Epub June 16, 2023

https://doi.org/10.1590/s1678-4634202349251469 

Artigos

Bullying e Transtorno do Espectro Autista (TEA): o que nos revelam as autobiografias?

Bullying and Autism Spectrum Disorder (ASD): what do autobiographies reveal to us?

Ana Flávia Teodoro de Mendonça Oliveira1 
http://orcid.org/0000-0002-4357-6558

Carlo Schmidt1 
http://orcid.org/0000-0003-1352-9141

1-Universidade Federal de Goiás, Goiânia, GO

2-Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS


Resumo

O bullying tem sido descrito como um conjunto de comportamentos agressivos repetidos e intencionais em que existe uma desigualdade de poder entre agressor e vítima. Pessoas com deficiência têm maior risco de serem vitimizadas por bullying, especialmente aquelas com transtorno do espectro autista (TEA). Este estudo tem por objetivo identificar situações de bullying relatadas por pessoas com TEA, a partir dos relatos autobiográficos de Temple Grandin e Donna Williams. Como procedimentos metodológicos, foram utilizadas a revisão secundária de dados e a análise de conteúdo de Bardin. Dessa forma, os relatos autobiográficos analisados evidenciam uma série de situações de bullying vividas no ambiente escolar, indicando que ambas as pessoas com TEA foram vítimas de ofensas diretas verbais, na forma de gozações constantes, ridicularizações, uso de apelidos e nomes aviltantes. O bullying direto com manifestações físicas também foi uma realidade na vida das autoras autistas, revelando um cenário de agressões e intimidação física, tendo como um dos algozes a própria professora. As agressões de caráter indireto foram reveladas nas narrativas autobiográficas, especialmente quando as autoras relatam os momentos de solidão vividos na escola. De fato, os depoimentos de Grandin e Williams desafiam a escola a tomar um novo posicionamento diante da dor e da humilhação sofridas pelos indivíduos com TEA no ambiente escolar, um posicionamento que exige de todos os atores da instituição de ensino a adoção de uma postura mais humanitária e solidária, em oposição a uma atitude indiferente diante desse fenômeno social.

Palavras-chave Transtorno do Espectro Autista; Autobiografias; Bullying; Intervenções na escola

Abstract

Bullying has been described as a set of repeated and intentional aggressive behaviors in which there is an inequality of power between aggressor and victim. People with disabilities are at greater risk of being victimized by bullying, especially those with Autism Spectrum Disorder (ASD). This study aims to identify bullying situations reported by people with ASD, based on the autobiographical reports of Temple Grandin and Donna Williams. As methodological procedures, secondary data review and Bardin’s content analysis were used. Thus, the autobiographical reports analyzed show a series of bullying situations experienced in the school environment, indicating that both people with ASD were victims of direct verbal offenses, in the form of constant teasing, ridicule, use of nicknames and demeaning names. Direct bullying with physical manifestations was also a reality in the lives of the autistic authors, revealing a scenario of aggression and physical intimidation, with the teacher herself as one of the executioners. Indirect aggressions were revealed in the autobiographical narratives, especially when the authors report the moments of loneliness experienced at school. In fact, Grandin and Williams’ testimonies challenge the school to take a new position in the face of the pain and humiliation suffered by individuals with ASD in the school environment, a position that requires all actors in the educational institution to adopt a more humanitarian and supportive, as opposed to an indifferent attitude towards this social phenomenon.

Keywords Autism Spectrum Disorder; Autobiographies; Bullying; Interventions at school

Introdução

O bullying é um fenômeno comum e generalizado que afeta todo o ambiente educacional, materializando-se em ações negativas que aparecem na forma de provocações, ameaças, intimidações, agressões físicas, isolamentos sistemáticos e insultos. Apesar da falta de consenso no meio científico, o bullying tem sido descrito como uma série de comportamentos agressivos repetidos e intencionais em que existe uma desigualdade de poder entre agressor e vítima, que pode se apresentar na forma de agressão física, verbal, exclusão social e cyberbullying (BESAG, 1989; OLWEUS, 1993; SMITH, 2014; SMITH; DEL BARRIO; TOKUNAGA, 2013; SMITH; GÖRZIG; ROBINSON, 2018).

O bullying traduz igualmente uma forma de comportamento agressivo que, para além de ser deliberado, normalmente provoca dor no sujeito vitimado (MOONEY; SMITH, 1995). Ademais, segundo esses autores, trata-se de um comportamento permanente, que perdura, por vezes, ao longo de semanas, meses ou anos e que acarreta dificuldades futuras para as vítimas.

As situações de bullying apontam uma realidade social complexa, sobretudo quando as vítimas são pessoas com maior vulnerabilidade, como aquelas que possuem alguma deficiência. De fato, crianças com deficiência têm maior risco de serem intimidadas, com mais de 50% experimentando vitimização por bullying, em comparação com 20-30% de seus pares sem deficiência (ROSE; MONDA-AMAYA; ESPELAGE, 2011). Especificamente no caso de pessoas com Transtorno do Espectro Autista (TEA), estima-se que sejam quatro vezes mais suscetíveis a experienciarem situações de bullying que seus colegas sem TEA (WAINSCOT et al., 2008).

Nesse cenário de vitimização por bullying na escola, destacam-se os estudantes com TEA, o que pode ser explicado, em grande parte, por suas dificuldades sociais. As falhas em iniciar e sustentar conversas ou em identificar pistas sociais (SWEENY; HAROZ; WHITNEY, 2012), bem como a escassez de amizades (MARTLEW; HODSON, 1991) tendem a colocá-los em situação de isolamento e, consequentemente, de maior vulnerabilidade ao bullying.

Na pesquisa de Zeedyk et al. ( 2014), por exemplo, os autores realizaram entrevistas separadas com adolescentes de 13 anos com TEA, com Deficiência Intelectual (DI) e com crianças de Desenvolvimento Típico (DT) e suas mães, investigando as experiências de vitimização na forma de bullying. Os resultados apontaram que os estudantes com TEA foram vitimados com mais frequência do que seus pares com DI e DT. Além disso, os estudantes com TEA sofreram maior violência física e verbal do que os demais alunos pesquisados.

Nesse contexto, o estudo de Wainscot et al. ( 2008), cujo objetivo foi analisar as relações sociais estabelecidas por alunos com síndrome de Asperger e alunos neurotípicos com os pares dentro de escolas de ensino médio, constatou que os alunos com Asperger, em comparação com o grupo de neurotípicos, envolveram-se menos em interações sociais durante as aulas e fora da sala de aula. Os dados revelaram que os estudantes com Asperger passavam o intervalo e o almoço dentro de áreas supervisionadas mais próximas da escola, além de serem mais propensos a relatar que tinham colegas de classe que não gostavam deles, declarando serem intimidados regularmente, sofrerem abuso verbal e físico e se sentirem socialmente excluídos.

Na pesquisa realizada por Chamberlain, Kasari e Rotheram-Fuller ( 2007), os autores buscaram analisar o envolvimento social de crianças com TEA com os pares, em turmas regulares do segundo ao quinto ano. A pesquisa constatou que as crianças com TEA tinham apenas alguns laços fracos de amizade e nenhuma amizade recíproca e experimentavam menor aceitação, companheirismo e reciprocidade. No entanto, os resultados mostraram que essas crianças não relatavam solidão. Os autores atribuem esse relato à falta de consciência social das pessoas com TEA, que, por vezes, não percebem que não são selecionadas com tanta frequência.

Falla e Ortega-Ruiz ( 2019) realizaram uma revisão sistemática no modelo Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA) sobre TEA e bullying escolar, reunindo 29 artigos do Web of Science e do Scopus. Dentre os achados, verificaram que na maioria dos estudos as taxas de ocorrência de bullying continuam sendo maiores em alunos com TEA do que em seus pares com desenvolvimento típico ou mesmo em relação a outro tipo de necessidade educacional especial. A pesquisa aponta ainda que características como dificuldades de interação social, de comunicação social e rigidez cognitiva tornam esses sujeitos especialmente vulneráveis a esse tipo de violência.

Não obstante ao volume de publicações sobre esse tema no cenário internacional, a literatura brasileira apresenta ainda um número reduzido de estudos sobre o bullying envolvendo pessoas com TEA. Nesse contexto, a pesquisa de Olivati e Leite ( 2019) buscou descrever a experiência acadêmica de seis estudantes com diagnóstico de autismo, regularmente matriculados em uma universidade pública no estado de São Paulo. Essas autoras ressaltam que o bullying esteve presente nos relatos de todos os participantes da pesquisa, a saber: três estudantes relataram que “foram zoados”, outros dois estudantes relataram que foram chamados de “retardados” e outros três disseram que foram “isolados socialmente” pelos colegas de sala de aula.

Os estudantes citaram ainda o despreparado dos professores universitários e o bullying por parte dos docentes. Sendo assim, os dados da pesquisa revelam que dois estudantes se sentiram humilhados pelos docentes, um estudante refere que o professor disse que ele não tinha capacidade, outro estudante relatou uma ação de bullying contra ele e outro salientou que os professores desprezavam o que ele perguntava. Nesse contexto, Olivati e Leite ( 2019) concluíram que, para que a inclusão dos estudantes com TEA se torne uma realidade nas universidades, são necessários ajustes tanto no âmbito singular quanto no contexto social acadêmico, com destaque para a participação desses estudantes, que ainda é pouco debatida e reconhecida, e para as adaptações ao meio, pois o que se percebe é que recai sobre o sujeito com TEA a culpa pela sua condição de diferença (negativa), sendo perpetuada a estranheza.

Outra pesquisa recente, realizada por Falcão, Stelko-Pereira e Alves ( 2021), objetivou identificar o envolvimento de estudantes com diagnóstico de TEA em situações de bullying, na percepção deles mesmos, seus pais e seus professores de educação física, bem como analisou o quanto conhecem do fenômeno. A pesquisa apontou que o público de escolares com TEA é propenso ao envolvimento em bullying, especialmente como vítimas, o que prejudica tanto sua saúde e qualidade de vida quanto sua inclusão escolar.

Além disso, o estudo confirma que ainda há um desconhecimento do fenômeno bullying por parte de peças-chave da comunidade escolar, o que dificulta a identificação do problema e as possíveis intervenções. Concluiu-se que se faz necessária e urgente a capacitação e formação sobre o tema bullying para professores, familiares e alunos, especialmente para os estudantes com TEA, devido à sua condição de maior vulnerabilidade.

Diante desse contexto, é preciso sublinhar que os relatos sobre episódios de bullying estão também amplamente presentes em autobiografias de autistas que narram o intenso sofrimento vivido em sala de aula, além de exclusão e episódios de depressão causados por esse fenômeno social. Como aponta Bialer ( 2014, p. 453), são muitas as autobiografias de autistas que contam as histórias de “agressões, bullying de outros colegas e pessoas que, sem intenção, lhe eram invasivas e agressivas”.

Indubitavelmente, os escritos autobiográficos configuram-se também como maneiras de comunicar o sofrimento e denunciar a dor vivida em situações de exclusão, provocação, ameaça, intimidação, agressão física, isolamento sistemático e insulto. Nesse sentido, as autobiografias Uma menina estranha: autobiografia de uma autista (GRANDIN; SCARIANO, 2012) e Meu mundo misterioso: testemunho excepcional de uma jovem autista (WILLIAMS, 2012) podem nos ajudar a refletir acerca das formas de compreender e intervir nesse fenômeno tão complexo que é o bullying.

Posto isso, devemos nos perguntar sobre o que as próprias vozes negligenciadas de autistas, como Grandin e Williams, têm a dizer sobre o bullying em seus escritos autobiográficos? Quais foram as variáveis ou fatores de risco que levaram os colegas a manifestarem comportamentos agressivos em relação às duas autistas? Quais foram as reações às situações de bullying vivenciadas no ambiente escolar e que consequências trouxeram para a vida de Grandin e de Williams? O que elas têm a dizer sobre suas experiências na escola e sobre as abordagens educacionais diante das situações de bullying?

Tomando essas premissas, este estudo tem por objetivo identificar situações de bullying no espaço escolar vivenciadas por pessoas com TEA a partir de relatos autobiográficos. Cabe sublinhar que os conteúdos de tais narrativas podem ser considerados dados empíricos, enquanto ancorados no campo da experiência, passíveis de serem tomados como dados secundários para analisar as situações de bullying sofridas por Grandin e Williams.

Por certo, acreditamos que os relatos autobiográficos referidos podem fornecer importantes subsídios para compreender o fenômeno do bullying no autismo, além de ajudar a pensar em soluções particulares para dirimir tais situações. Em consonância com Bialer ( 2014, p. 452-453), acreditamos que a análise da literatura produzida por essas duas autistas pode contribuir para “a construção de soluções singulares, de acordo com as nuances da estrutura subjetiva do autismo”.

Desse modo, esse artigo fundamenta-se no entendimento de que as narrativas autobiográficas têm muito valor no sentido de dar contorno e explicitar as experiências de sofrimento vivenciadas no espaço escolar por esses indivíduos, e, mais do que isso, os relatos das duas autistas podem ser um convite necessário a uma conscientização mais profunda sobre a posição de extrema inferioridade, fragilidade e isolamento vivida pelos estudantes com TEA em virtude da recorrência dos episódios de bullying no ambiente escolar.

Aspectos metodológicos da pesquisa

No que diz respeito aos aspectos metodológicos, para a discussão sobre bullying e autismo, como explicitado anteriormente, estabelecemos um diálogo entre as autobiografias de Temple Grandin e de Donna Williams e os estudos sobre bullying. Entretanto, é preciso salientar que, para a seleção dessas duas autobiografias, fizemos inicialmente um levantamento na plataforma do Google para identificarmos quais eram as autobiografias de autistas produzidas em âmbito nacional e internacional, disponíveis em língua portuguesa.

Não foi definido um intervalo de tempo específico para a busca, optando-se por verificar todos os resultados possíveis, independente do ano de publicação das obras. Sendo assim, nesse levantamento realizado identificamos as autobiografias de: Grandin e Scariano ( 2012), Tammet ( 2007), Robison ( 2008), Higashida ( 2014), Williams ( 2012) e Sales e Brito ( 2017).

Após esse mapeamento inicial, fizemos uma análise das autobiografias identificadas realizando uma leitura prévia de cada uma das obras, selecionando somente aquelas que se relacionavam com o nosso principal critério de busca (autismo e bullying). Dessa forma, excluímos deste estudo autobiografias que abordavam somente as questões comportamentais, sensoriais, cognitivas e de comunicação.

A autobiografia Uma menina estranha: autobiografia de uma autista, lançada em 1999, tendo como autoras a própria Temple Grandin e sua mãe, Margaret M. Scariano, apresenta, ao longo de suas 193 páginas, um apanhado de experiências vividas na escola e na universidade. Dos doze capítulos, pelo menos quatro discorrem sobre os primeiros tempos na escola, os dias inesquecíveis no curso secundário, o colégio interno e a universidade, evidenciando o bullying sofrido e as barreiras vivenciadas nos espaços escolares e acadêmicos.

A obra autobiográfica de Donna Williams, intitulada Meu mundo misterioso: testemunho excepcional de uma jovem autista, traduzida por Terezinha Braga Santos e publicada no Brasil em 1992, também enfatiza, ao longo dos 27 capítulos, situações de bullying vivenciadas nos espaços escolares e na universidade, evidenciando o sofrimento intenso, as situações de exclusão e os sentimentos de depressão resultantes desse processo.

Para a investigação relatada neste trabalho, foi utilizada a metodologia qualitativa de revisão secundária de dados (HEATON, 2008; THORNE, 2013), em que um material produzido anteriormente é reanalisado com novos propósitos. Heaton (2008) destaca que alguns tipos de materiais qualitativos, como histórias de vida ou diários, podem ser utilizados como fontes para análise secundária de dados. No caso deste estudo, os livros autobiográficos de Donna Williams ( 2012) e Temple Grandin (GRANDIN; SCARIANO, 2012) são retomados para serem examinados através da análise de conteúdo, com a finalidade de identificar situações de bullying na vida de pessoas com autismo.

Para o tratamento e a análise dos dados, tomando como guia a “análise de conteúdo” (BARDIN, 1977), utilizou-se uma abordagem indutivo-construtiva. Após a primeira leitura das autobiografias, realizada na etapa de pré-análise, a segunda leitura tomou como categoria a priori as situações de bullying presentes nas narrativas. A significação desse conteúdo foi extraída por meio de procedimentos sistemáticos, exaustivos e objetivos, dos quais emergiram quatro subcategorias temáticas, estabelecidas a posteriori: 1) tipos de bullying; 2) fatores de risco que aumentam a vulnerabilidade ao bullying; 3) reações e consequências do bullying; e 4) a atuação da escola em relação ao bullying sofrido por Grandin e Williams.

Resultados

A seguir são apresentadas, no Quadro 1, as quatro categorias estabelecidas para análise das respostas dos participantes e os assuntos tratados em cada uma delas.

Quadro 1- Categorias de análise e assuntos tratados 

Categorias Temas
Tipos de bullying

Bullying direto

- Uso de apelidos maldosos e desagradáveis

- Uso de intimidação física cercando a vítima

- Agressão física com uso de objetos

Bullying indireto

- Isolamento social no ambiente escolar (solidão)

Fatores de risco que aumentam a vulnerabilidade ao bullying

- Os interesses incomuns (hiperfoco)

- A ingenuidade

- O comportamento excêntrico

- As características específicas da linguagem

- Dificuldades de compreender e aceitar mudanças (busca pela previsibilidade)

- A aparência (formas de se vestir) pouco convencional

Reações e consequências do bullying

Reações ao bullying

- Comportamentos violentos (bater, chutar, brigar, arremessar objetos)

- Agressões verbais (insultos)

- Agressividade

- Isolamento

Consequências do bullying

- Atos deliberados de autoagressão

- Depressão

- Desejo de morte

A atuação da escola em relação ao bullying sofrido por Grandin e Williams

- Expulsão

- Transferência para outra instituição de ensino

- Culpabilização da vítima

Fonte: Os autores (2023).

Tipos de bullying (direto e indireto) e os sujeitos agressores

Podemos constatar pelas narrativas que ambas foram vítimas do bullying direto verbal, em que os agressores utilizaram como recurso apelidos maldosos e desagradáveis, como vemos a seguir.

[…] Naquela noite, entrei na fila com outros internos, esperando o sino do jantar. […] De repente, uma garota mais velha que furou a fila à minha frente. “Ei, não fure a fila”, reclamei, postando-me à frente dela. Ouvi quando ela respirou com força. “Sai da frente, debiloide”, ela disse, e me empurrou. Por impulso, girei e dei-lhe um soco. (GRANDIN; SCARIANO, 2012, p. 74).

Os outros alunos começaram a comentar maliciosamente sobre a minha “loucura”. Eu os ignorava, disfarçava e não deixava transparecer nada do que ouvia. Já ouvira comentários semelhantes. (WILLIAMS, 2012, p. 119).

Nessa circunstância, há de se considerar que o tipo de bullying sofrido por Williams e Grandin não se limitava às ofensas verbais, posto que, em alguns momentos, as autoras narram acontecimentos envolvendo a intimidação física.

Um dia, alguém cercado por seus companheiros se arriscou. Eu não fazia ideia alguma do que aqueles alunos haviam feito ou queriam fazer, mas eles me cercaram muito de perto. Apossei-me de uma cadeira e preparei-me para atirá-la… Foi assim que tive que entrar para outra escola, num bairro ainda mais longe. Era a minha última chance. (WILLIAMS, 2012, p. 120).

É interessante constatar que, embora todos os relatos anteriores evidenciassem diferentes tipos de bullying praticados pelos colegas de sala, os eventos de intimidação e humilhação não se restringiam apenas a esses agressores. As narrativas de Williams ( 2012) revelam a existência de bullying direto, com a ocorrência de agressões físicas cometidas por sua própria professora.

Uma professora que tinha dificuldade de avaliar a extensão de meus problemas quis um dia me dar “uma lição”. Reteve-me, só com ela, no vestuário e mandou-me pegar as bolas de críquete que ela me lançava bruscamente. Eu sempre tive medo de bolas. A primeira me tocou no estômago. A menina selvagem que eu era saiu da sala de repouso tropeçando. A intransigência da professora me havia encolerizado, seu jogo de bolas me havia apavorado. […] Ao evocar essa cena, hoje sou mais afetada. (WILLIAMS, 2012, p. 106).

Ainda sobre a tipologia de bullying perpetrada contra a pessoa com autismo, percebemos pelos relatos de Williams que nem sempre esse fenômeno social ocorria de forma direta, mas, em algumas ocasiões, era sutil, quase imperceptível, podendo ser qualificado como indireto. Dessa forma, o bullying indireto torna-se claro nas narrativas de Williams ( 2012) quando a autora relata os momentos de solidão vividos na escola, expondo um quadro de isolamento social marcado pelo afastamento dos seus colegas de sala e pela percepção de que estava sempre sozinha enquanto os alunos conversavam entre si.

Permaneci sozinha, como sempre, no meio das pessoas que conversavam entre si. Eu não tinha amigos entre os alunos. Passava a parte essencial do meu tempo livre sozinha, na cantina ou nas salas de serviços de orientação profissional, onde eu já me sentia à vontade e quase em minha casa. (WILLIAMS, 2012, p. 211).

À luz dos relatos anteriores, torna-se explícito que Grandin e Williams foram vítimas dos dois tipos de bullying mais usuais entre os jovens: o direto (na sua vertente verbal e física), marcado por ataques abertamente confrontacionais; e o indireto, marcado, sobretudo, pela exclusão e isolamento social, tendo como agressores os colegas da sala de aula, da escola e a própria professora.

Fatores de risco que aumentam a vulnerabilidade ao bullying

Os fatores de risco que aumentam a vulnerabilidade ao bullying não são completamente lineares e consensuais, no entanto, a partir dos relatos autobiográficos, podemos elencar causas/fatores de ordem individual presentes no quadro do autismo que podem tornar esses indivíduos alvos fáceis para o bullying.

Sendo assim, a maneira idiossincrática de comportar-se e as dificuldades de compreensão em relação ao comportamento dos outros podem se constituir como possíveis razões para que esses estudantes sejam vítimas de bullying. A forma diferente de se comportar na escola, evidenciada por interesses incomuns, foi elencada por Williams como uma das causas para ser taxada de louca pelos colegas.

Na hora do intervalo para o almoço, eu vagava pela escola, olhando diferentes cores desaparecerem sob meus pés. Às vezes parava para mergulhar na contemplação de alguma coisa durante todo o resto do tempo: poderia ser o piso encerado do ginásio ou o reflexo dos vitrais coloridos. Os outros alunos começaram a comentar maliciosamente sobre a minha “loucura”. Eu os ignorava, disfarçava e não deixava transparecer nada do que ouvia. Já ouvira comentários semelhantes. (WILLIAMS, 2012, p. 119).

Outra razão apresentada por Williams ( 2012) para ser ridicularizada e tratada como imbecil pelos colegas da escola era a sua ingenuidade.

Na escola, os alunos começaram a me ridicularizar. Eu não me importava nem um pouco em ser tratada como louca, mas eis que me tratavam, também, como imbecil. Por causa de minha característica ingenuidade, eu me sentia muito ofendida. Nesses casos, como sempre, reagia violentamente, mesmo se os adversários fossem meninos. (WILLIAMS, 2012, p. 141).

Além disso, a dificuldade de compreender o comportamento das outras pessoas e de ter o seu comportamento compreendido pelos outros sempre foi um problema na vida de Williams.

Meu comportamento era um enigma para as pessoas como o delas era para mim. Não tanto porque eu desprezasse suas regras, mas era-me impossível reter os inumeráveis regulamentos que se aplicavam a cada situação específica. (WILLIAMS, 2012, p. 130).

Por sua vez, Grandin (GRANDIN; SCARIANO, 2012) relata que o seu comportamento excêntrico e a sua forma de se comunicar resultavam no afastamento dos colegas de sala.

No entanto, apesar do talento criativo, faltava-me a capacidade de me relacionar com as pessoas. Normalmente, elas não se sentiam atraídas pelo meu comportamento excêntrico, meu modo esquisito de fala, minhas ideias estranhas, minhas piadas e as peças que pregava. (GRANDIN; SCARIANO, 2012, p. 66).

O estilo cognitivo presente em muitas pessoas com autismo é refletido em sua forma de comunicar-se com os outros, e as falhas dessa comunicação podem se constituir como fatores de risco para o bullying. Dessa maneira, a forma de expressar-se, usando uma linguagem excessivamente “sincera” e sem muitos rodeios, acarretou muitos problemas familiares para Williams, contribuindo para fortalecer a sua fama de pessoa mal-educada.

Lembro-me de ter levado uma surra, por volta dos sete anos, após ter entrado numa determinada casa, falando sem me dirigir a ninguém: “Como está imundo aqui”, acrescentando triunfalmente que não era de se admirar, pois o hospedeiro da casa era maneta. Isso era típico e eu acabava ganhando uma reputação de mal-educada e grosseira com minhas observações ofensivas e minhas palavras sem rodeios. Mais tarde, aquilo que podia ser considerado falar francamente me valeu algum respeito. “Ela jamais tem medo de dizer o que pensa”, dizia-se. (WILLIAMS, 2012, p. 102).

Outrossim, a conversação quase sempre comprometida, a fala carregada de jargões, flutuações na prosódia e a maneira bastante peculiar de falar fizeram com que Williams e Grandin fossem ridicularizadas, tornando-se alvo de chacotas e gracejos por parte dos outros estudantes.

Reconheço que eu não facilitava a tarefa de meus interlocutores: eu os ignorava quando, por acaso, eles me respondiam e não hesitava em continuar a falar ao mesmo tempo que eles. Contudo, eu gostava muito que me escutassem. Para isso começava todas as minhas frases por: “É, diz então!” ou: “Tu sabes o quê?” e as terminava por: “Tu vês?”, “Concordas?”, “Ok”? Esta mania tornou-se tão constante que as pessoas se divertiam antecipando os começos e os fins de minhas frases. (WILLIAMS, 2012, p. 100).

Havia também outro problema: minha maneira de falar. Eu misturava os gêneros, passava de um sotaque a outro, adotava diferentes entonações e mudava de fala. O estilo de minha linguagem também flutuava. Eu podia passar da elocução mais pura e mais refinada à gabarolice ou tagarelice de menina de rua. Podia falar com uma tonalidade normal ou emitir um timbre de voz profundo como uma imitação de Elvis. (WILLIAMS, 2012, p. 153).

Um dia me enfureci porque alguém ficou imitando meu modo de falar e meus gestos bruscos no corredor, atirei-me no chão e comecei a chutar todo mundo que se aproximava. (GRANDIN; SCARIANO, 2012, p. 46).

A literalidade na compreensão dos enunciados e a dificuldade de generalização da linguagem para diferentes situações tornavam Williams ( 2012) alvo de repreensão na escola em que estudava:

Tomava sempre ao pé da letra as frases que me chegavam em rajadas de palavras, e só lhes dava uma significação no contexto preciso em que eram pronunciadas. Um dia quando me repreenderam por ter feito desenhos nas paredes do Parlamento durante uma excursão, prometi não mais fazê-lo. Dez minutos mais tarde surpreenderam-me a reincidir, desta vez nas paredes da escola. Eu não tinha a consciência de ter desobedecido nem deixado de cumprir minha promessa, apenas pelo prazer de desenhar o palhaço. O que era válido para as paredes do Parlamento, a mim não o era para as paredes da escola. Eu não havia feito exatamente a mesma coisa que antes. Era isso. (WILLIAMS, 2012, p. 129-130).

A resistência às mudanças também pode ser um dos fatores preditores de bullying. Nesse sentido, é possível perceber os problemas comportamentais resultantes da mudança de rotina quando Williams e Grandin salientam que as alterações no ambiente as afetavam de maneira profunda, provocando crises de raiva.

Eu era extremamente maníaca e não tolerava que se desarrumasse a ordem estrita que eu fazia reinar ali. Explodia de raiva quando se deslocava qualquer coisa sem motivo. (WILLIAMS, 2012, p. 155).

Mas com a mudança de ambiente eu reagi com ataques nervosos. A exemplo da maioria das crianças autistas, eu necessitava manter a constância em meu ambiente, e a mudança de casa para um colégio interno me perturbava. Como a maior parte dos autistas, eu queria que tudo permanecesse igual. Usava o mesmo casaco e o mesmo tipo de roupa todo o dia. E quando a mãe da casa me propôs a mudança para um quarto maior e melhor, entrei em pânico e recusei. (GRANDIN; SCARIANO, 2012, p. 76).

Além das características pessoais do estudante autista, relacionadas ao comportamento incomum, à forma diferente de se comunicar e à inabilidade em aceitar mudanças, existe ainda um bullying cuja causa é a aparência ou o modo de se vestir desses indivíduos, como vemos na narrativa de Grandin:

Eu ainda tinha muitos problemas com as relações sociais. Havia alunos que me chamavam de “Mulher-abutre”! Mesmo quando eu usava roupas mais elegantes, muitos colegas não queriam falar comigo. Não me ocorria o que eu poderia estar fazendo de errado. (GRANDIN; SCARIANO, 2012, p. 108).

Assim, variáveis como déficits de habilidades sociais, dificuldades na comunicação verbal e não verbal, resistência a mudanças, além da aparência pouco convencional, mostraram-se como fatores associados às dificuldades de relacionamento com os pares, devendo, portanto, ser avaliadas e contempladas pela escola no sentido de promover ações que visam à inclusão efetiva desses estudantes.

As reações e consequências do bullying

As reações de Williams às situações de bullying vivenciadas no ambiente escolar eram diversas, embora todas as respostas diante desses acontecimentos fossem marcadas por muita agressividade e raiva.

As outras garotas, que também não eram anjinhos, julgavam-me cruel e colérica: eu insultava os professores, arremessava tudo e o que quer que fosse, fugia da escola, destruía tudo o que me caía às mãos, inclusive a mim própria. Quando eu mesma me agredia, tentava desarticular as mãos dos punhos ou balançar a cabeça esperando ouvir estourar os miolos. Os outros alunos riam dizendo que eu era doida. O professor pensava que eu estava gravemente perturbada. (WILLIAMS, 2012, p. 105-106).

Por sua vez, Grandin relata que era alvo de imitações grotescas, sendo constantemente chamada por apelidos grosseiros. Em resposta a essas situações, retrucava por meio de comportamentos desafiadores, como bater, chutar e brigar com os colegas.

[…] Quando Mary Lurie, uma das meninas da minha turma, passou por mim […] franzindo os lábios numa expressão de desprezo, cuspiu: “Retardada! Você não passa de uma retardada!”. Bem, a raiva, quente e rápida, tomou conta de mim. Eu estava segurando meu livro de história. Sem hesitar, arremessei-o com toda força. Ela gritou e eu saí andando, sem mesmo me incomodar em pegar o livro do chão. (GRANDIN; SCARIANO, 2012, p. 67).

Certamente, a experiência de ser alvo de bullying trouxe para Williams muitas consequências tanto em nível psicológico como em nível social. Dentre essas consequências, destacam-se a autoagressão, a depressão e, a mais extrema, o desejo de morte.

Voltei à minha antiga escola, mas fiquei à margem de todo grupo de crianças ao qual teria podido me integrar: Não sorria nem ria mais, e os esforços que faziam apenas me humilhavam ainda mais, tendo como único resultado me deixar plantada ali chorando silenciosamente. Em casa eu subia ao meu quarto para chorar, repetindo o tempo todo: “Eu quero morrer”. (WILLIAMS, 2012, p. 79).

Alguns meses mais tarde duas meninas decidiram me deixar conviver com elas. Eu não gostava do que elas diziam. Mentalmente eu me distanciava delas e logo elas se descartaram de mim. Caí numa depressão que se prolongou por um ano. (WILLIAMS, 2012, p. 78-79).

A angústia que suscitava esta luta interior tornou-se insuportável. Eu queria me comunicar. Em consequência da frustração, comecei a me autoagredir, a esbofetear meus olhos, arrancar os cabelos. (WILLIAMS, 2012, p. 51).

Eu rangia os dentes e me batia em todo o corpo para aliviar a dor. (WILLIAMS, 2012, p. 57).

Por todas as razões explicitadas anteriormente, é preciso considerar o bullying como um problema grave, sobretudo porque torna as pessoas com TEA mais suscetíveis ao desenvolvimento de transtornos mentais e psicológicos. Assim, manifestações como depressão, ansiedade, agressividade, além de todas as demais já citadas, indicam a importância de a escola criar um ambiente onde sejam valorizados a amizade, a solidariedade e o respeito à diversidade.

A atuação da escola em relação ao bullying sofrido por Grandin e Williams

Uma das consequências extremas da reação ao bullying pode ser as atitudes de violência da pessoa autista contra os seus agressores. No caso de Williams, a reação violenta apresentada em resposta às agressões constantes e às provocações dos colegas fez com que ela tivesse que mudar de escola.

Um dia, alguém cercado por seus companheiros se arriscou. Eu não fazia ideia alguma do que aqueles alunos haviam feito ou queriam fazer, mas eles me cercaram muito de perto. Apossei-me de uma cadeira e preparei-me para atirá-la… Foi assim que tive que entrar para outra escola, num bairro ainda mais longe. Era a minha última chance. (WILLIAMS, 2012, p. 120).

Nessas circunstâncias, mesmo mudando da primeira escola, a estudante autista continuava sendo alvo de bullying, culminando com mais uma transferência para outra instituição de ensino.

Na escola, os alunos começaram a me ridicularizar. […] Minha mãe, toda compadecida, resolveu permitir que eu mudasse de escola mais uma vez, porém nas suas condições. Eu estava com catorze anos e me mandaram a uma escola para jovens. (WILLIAMS, 2012, p. 141).

Entretanto, a mudança de escola não trouxe nenhum alívio para as situações de bullying vivenciadas por Williams no contexto escolar, pelo contrário, os problemas continuaram a acontecer.

Minha jornada nesta última escola foi um fracasso. Era sempre a mesma história: eu não conseguia participar, a não ser de maneira inadequada. Corria pelos corredores, ou jogava objetos pela classe. Tinha acessos de violência e não conseguia me concentrar no mínimo trabalho. (WILLIAMS, 2012, p. 145-146).

A expulsão da escola foi impactante na vida de Grandin, como resultado de uma reação violenta que manifestou impulsivamente contra Mary, sua colega.

Naquela noite, o telefone tocou na minha casa e eu atendi. Era o sr. Harlow, diretor da escola. Nem mesmo pediu para falar com meu pai ou minha mãe. Só disse “Nem precisa voltar para a escola. Você é incorrigível. A sra. Lurie está muito nervosa. Você poderia ter deixado a Mary cega, e tudo por causa do seu temperamento violento, maldoso e incontrolável. Desliguei o telefone. Fui tomada pela raiva e pela frustração, e comcei a tremer, com o estômago embrulhado. O sr. Harlow não tinha nem sequer perguntado por que eu fizera aquilo. Simplesmente presumira que, já que eu era”diferente”, a culpa era toda minha. (GRANDIN; SCARIANO, 2012, p. 68).

Considerando esses relatos, torna-se evidente que o posicionamento da escola em relação ao bullying sofrido por Grandin e Williams resumiu-se a três desdobramentos importantes: transferência de escola, expulsão e culpabilização da própria vítima.

Discussão

A análise das autobiografias evidenciou que os comportamentos de bullying praticados contra Grandin e Williams aconteceram de diferentes formas, em situações diversas, utilizando-se de recursos variados. Outrossim, esses comportamentos se apresentaram na forma de bullying “direto”, que, por sua vez, se subdivide em manifestações de caráter físico e verbal; e o bullying “indireto” (SÁ, 2012).

Sobre o tipo de bullying sofrido, Grandin e Williams relataram serem muitas vezes chamadas por apelidos ou nomes pejorativos como “debiloide”. No que diz respeito ao bullying direto verbal, Smith, del Barrio e Tokunaga ( 2013) esclarecem que este se traduz mais comumente na forma de insulto ou afronta, em que o agressor geralmente pragueja, goza da vítima ou a ameaça verbalmente. São atribuídos apelidos desagradáveis, contadas mentiras ou emitidos comentários ofensivos dirigidos à vítima ou à sua família, utilizando-se, ainda, de falas racistas e/ou que salientam qualquer defeito ou deficiência.

Bandeira e Hutz ( 2012) esclarecem que pais e professores apresentam maior tendência a impedir o bullying físico do que o verbal, pois muitos adultos acreditam que a agressão verbal não é tão prejudicial como os ataques físicos. Os autores asseveram que “por não ser tão visível como a agressão física, que pode deixar marcas evidentes, as marcas deixadas pelo bullying verbal são, de certa forma, silenciosas, porém graves” (BANDEIRA; HUTZ, 2012, p. 41).

A intimidação e a agressão física também surgem nos relatos autobiográficos das duas autistas. Sobre o bullying direto, com ocorrência de manifestações físicas, Sá ( 2012) sublinha que pode acontecer em situações em que o agressor (individual ou em grupo) bate e pontapeia a vítima ou lhe extorque dinheiro. O autor acrescenta ainda que nessa tipologia de bullying podem ser incluídos

o puxar de cabelo, o beliscar, o arranhar, o empurrar, o rasteirar, o forçar comportamentos sexuais, o obrigar a vítima a realizar tarefas servis contra a sua vontade, o roubar haveres, o extorquir de dinheiro (normalmente destinado às refeições) ou, mesmo, a danificação de material, sobretudo escolar. (SÁ, 2012, p. 59-60).

No que diz respeito aos sujeitos agressores, destacamos tanto os colegas de sala quanto a própria professora de Williams. De acordo com Attwood ( 2010, p. 25), pode ser considerado um ato de bullying quando um professor usa a sua posição de autoridade para “ridicularizar ou humilhar uma criança, responde com sarcasmo, é abertamente crítico ou punitivo, ou usa expressões faciais que desacreditam ou refletem a não-aceitação”.

Sobre essa relação entre bullying e docência, Sá ( 2012) chama a atenção para o número considerável de alunos (com ritmos de aprendizagem mais lentos ou com capacidades intelectuais mais limitadas, por exemplo) que continuam, como em tempos históricos anteriores, a ser objeto de estigmatização e esquecimento (voluntário ou não) por parte de alguns docentes, fato esse que, segundo o autor, precisa ser repensado nas escolas contemporâneas, ditas inclusivas.

Ademais, os achados revelam que o bullying indireto também marcou a trajetória escolar das duas autistas. Nesse contexto, Sá ( 2012) destaca que, para a pessoa vítima de bullying indireto, as consequências verificam-se muito particularmente a nível psicológico, e esclarece que essa forma de desrespeito acontece quando:

[…] Um aluno espalha histórias com conteúdo negativo pela escola envolvendo a vítima, quando são lançados rumores maliciosos sobre os atributos e/ou condutas de alguém com vista a destruir a sua reputação, sempre que um grupo exclui sistematicamente um colega de um grupo ou não o escolhe para fazer parte de uma equipa ou de um jogo, ameaçando recorrentemente com a cessação de uma amizade, por via do envio e da circulação de emails, mensagens de SMS mal-intencionadas ou, até, imagens de telemóvel comprometedoras ou do visado em situações ridicularizadoras. (SÁ, 2012, p. 60-61, grifo nosso).

Por certo, o afastamento dos colegas de sala de aula ou a exclusão desses indivíduos nos trabalhos em grupo, nas atividades coletivas realizadas na escola ou na hora do recreio consistem em uma forma de bullying muito sutil, indireto, mas capaz de gerar muito sofrimento psicológico para os indivíduos com autismo. Considerando-se que grande parte dos alunos com TEA necessita de uma mediação docente que proporcione seu engajamento com os colegas, o bullying nesse contexto agrava a situação ao aumentar o isolamento social (SCHMIDT et al., 2016).

Sobre os fatores de risco que aumentaram a vulnerabilidade das duas autistas ao bullying, destacam-se as questões comportamentais. De fato, os relatos autobiográficos mostram que os colegas de sala de Williams e Grandin praticavam bullying pela simples razão de considerar os comportamentos delas como impróprios, irritantes e provocativos. Num estudo realizado por Humphrey e Symes ( 2010), constatou-se que os estudantes com autismo têm maior risco de serem vítimas de bullying por causa das dificuldades que manifestam em âmbito social e do seu comportamento “estranho” diante de seus pares.

É preciso sublinhar que o comportamento excêntrico ou até ingênuo desses alunos pode ser reflexo do seu estilo cognitivo, explicado em parte por um déficit na Teoria da Mente, que se traduz na dificuldade de atribuir estados mentais aos outros a ponto de explicar ou prever seu comportamento (FRITH; HAPPÉ, 1994).

Ademais, a pesquisa revelou que a maneira direta e sem rodeios de se comunicar, as ecolalias, as inversões pronominais, a literalidade na interpretação das palavras, as dificuldades inerentes aos turnos de conversação, entre tantas outras características relacionadas à linguagem, podem ter sido algumas das características que resultaram nos problemas sociais enfrentados pelas duas autistas. Sobre isso, Atwood ( 2010) sublinha que as características específicas da linguagem nesse transtorno podem fazer com que os interlocutores julguem os autistas como pessoas estranhas, desrespeitosas e até mal-educadas (ATWOOD, 2010).

Além dos fatores comportamentais e de linguagem, identificamos que as dificuldades de compreender ou aceitar mudanças geraram para as duas autistas problemas na regulação do comportamento e no controle da impulsividade, o que as tornaram menos competentes nas relações sociais e mais suscetíveis ao bullying. O estudo de Forrest, Kroeger e Stroope ( 2020) confirma que dificuldades para compreender situações sociais e resistência em aceitar mudanças estão associadas a um risco significativo maior de vitimização dos autistas. Nesse sentido, os autores sugerem que, ao preparar uma criança com TEA para a escola, seria particularmente importante focar nessas habilidades para aumentar as chances de interações positivas com os pares.

Bosa ( 2006) aponta que, embora crianças com TEA apresentem prejuízo no desenvolvimento das habilidades sociais iniciais, intervenções comportamentais precoces e intensivas são eficientes para ampliar esse repertório e, portanto, para diminuir a probabilidade de rejeição e/ou bullying. A autora explica que não há uma modalidade de intervenção comportamental destacadamente mais eficaz, mas aquela que responde melhor às necessidades individuais da criança e de sua família, ajustando-se à etapa de vida da criança ou do adolescente.

A aparência pouco convencional também pode ser considerada como fator de risco para o bullying. Os apelidos maldosos foram usados como forma de criticar a aparência pouco convencional de Grandin, conquanto seja interessante perceber que nem mesmo a própria vítima compreendia a razão pela qual estava sendo rotulada. Sem dúvida, uma das razões pelas quais rapazes e moças autistas tornam-se vítimas de bullying tem relação com a não adoção de sinais convencionais de masculinidade ou feminilidade em termos de vestuário, estilo de penteado, maneirismo e interesses que são esperados de cada sexo (ATTWOOD, 2010).

Em relação às reações e ao sentimento causado pelo bullying, depreende-se que o comportamento violento tanto com os colegas quanto com os professores, as autoagressões, a destruição de objetos da escola, a tristeza, o isolamento e a depressão foram algumas das respostas às situações de constrangimento das quais Grandin e Williams eram vítimas frequentes.

Sá ( 2012) afirma que o bullying traz consigo diversas consequências para a vida de crianças e jovens, podendo deixar sequelas tanto físicas quanto psicológicas para todos os envolvidos nesse evento social, sejam esses sujeitos vítimas, agressores ou até mesmo testemunhas.

O autor assevera que o forte impacto psicológico produzido nas vítimas se traduz na construção de uma baixa autoestima, em sentimentos de vergonha, humilhação e rejeição, além de uma angustiante sensação de desamparo e uma forte desmotivação perante a vida escolar. De acordo com Sá ( 2012, p. 15), nos “casos mais graves, terminada a frequência da escola, as vítimas revelam uma maior tendência para virem a ser adultos potencialmente mais infelizes, com vidas mais deprimidas e com níveis de autoestima consideravelmente mais reduzidos”.

Nesse contexto, é preciso considerar que as experiências advindas das situações de bullying trazem muitas consequências para a vida dos estudantes com TEA, levando-os a um grau de depressão que pode não ter outra opção a não ser o suicídio. Sobre isso, Cappadocia, Weiss e Pepler ( 2012) afirmam que o indivíduo autista vítima de bullying pode desenvolver sequelas ao nível da integridade física e psicológica, podendo apresentar sintomas psicossomáticos, dificuldades acadêmicas (baixa dedicação aos estudos), pobre ajustamento social e emocional, sintomas depressivos, ansiedade e problemas sociais clinicamente significativos.

No que tange à atuação da escola em relação ao bullying sofrido por Grandin e Williams, identificamos uma postura de omissão da escola ao expulsar Grandin e rotulá-la como “incorrigivel”, além da indisponibilidade para ouvir seu relato a respeito do acontecimento, expondo o despreparo da instituições de ensino, especialmente da gestão da escola, que não teve sensibilidade suficiente para analisar a situação ocorrida e tomar as medidas necessárias e condizentes com o evento em questão.

Ademais, todos os relatos a respeito das infindáveis mudanças de escola vivenciadas por Williams são suficientes para evidenciar a pouca atenção dada pelas instituições de ensino aos problemas relacionados com os comportamentos agressivos contra a estudante autista e os efeitos nefastos em sua vida. De fato, transferir a criança autista para outra escola pode ter pouco resultado na diminuição da chance de ela ser vítima de afrontas ou perseguição, pois o bullying pode acontecer em todas as instituições educacionais.

Na verdade, faz-se necessário e imperativo que as instituições de ensino garantam aos estudantes autistas o apoio necessário para desenvolver-se na escola, ao mesmo tempo que deve protegê-los do bullying. Sobre isso, Forrest, Kroeger e Stroope ( 2020) salientam que os administradores escolares, professores e outros atores envolvidos no processo devem ser particularmente minuciosos na implementação de medidas antibullying, especialmente quando uma população vulnerável identificada, como é o caso dos autistas, está presente no ambiente escolar.

Nessa perspectiva, Sá ( 2012) esclarece que os adultos – dentro e fora da escola – têm uma importância crucial no que concerne à indispensabilidade de não negligenciar a temática do bullying. Além disso, são esses atores (direção da escola, professores, pessoal não docente e pais) os responsáveis por procurar as soluções mais adequadas de modo a inequivocamente enfrentar e resolver o problema com firmeza e determinação.

O estudo de Barros ( 2017) apontou que uma das grandes barreiras à atuação e solução dos casos de bullying em relação ao estudante autista está intimamente ligada ao desconhecimento, à falta de sensibilização e formação da comunidade escolar, nomeadamente dos colegas, sobre as caraterísticas específicas desses alunos. Dessa forma, a autora salienta que, para minimizar o bullying em relação aos estudantes autistas, são necessárias ações de formação de toda a comunidade educativa, envolvendo assistentes operacionais, pais, professores e alunos.

Segundo Barros ( 2017), uma das estratégias relevantes para combater o bullying e promover a aceitação do estudante autista é a de propiciar uma apresentação prévia acerca das caraterísticas do TEA para a turma, a fim de que os colegas aprendam formas de interagir com o estudante autista, contribuindo, assim, para a inclusão deste.

No tocante às estratégias de combate ao bullying, Barros ( 2017) ressalta que não são apenas os colegas de sala que devem receber formação acerca das características do autismo, mas é preciso, também, promover ou possibilitar ao aluno autista uma maior consciência do seu transtorno, levando-o a prestar mais atenção às ocorrências de bullying que o levam a se sentir prejudicado e excluído.

Ademais, há de se considerar a importância dos adultos nesse processo, sejam os pais, sejam os professores, no sentido de criar ambientes favoráveis à interação entre os pares e minimizar o potencial para interações negativas. Cappadocia, Weiss e Pepler ( 2012) sublinham que o adulto pode ajudar as crianças a adquirirem habilidades sociais, tais como estratégias de regulação emocional e comportamental para lidar com situações de bullying, ignorar a provocação dos pares, identificar e contactar pares apoiantes, resolver problemas e comunicar-se claramente.

A respeito dessa questão, Sá ( 2012) afirma que, no combate ao bullying dentro da sala de aula, o professor tem um papel fundamental, podendo exercer uma função arbitral e pedagógica. Sobre a forma de atuação do docente, o autor adverte que:

Para além de uma clara censura a estes atos, deve explicar aos alunos a incorreção das suas atitudes assim como as consequências nefastas que as mesmas causam nos colegas visados. Acresce ainda a indispensabilidade de serem, com regularidade, relembrados e fomentados atos que promovam valores como o respeito, a tolerância, a integração, o espírito de equipa ou a solidariedade entre pares. (SÁ, 2012, p. 94).

Entretanto, apenas formar e informar os alunos e toda a equipe pedagógica não é o suficiente, é fundamental também que os programas de prevenção ao bullying invistam de forma maciça na formação dos jovens, munindo-os das competências relacionais e sociais necessárias para que possam desenvolver posturas mais ativas, interventivas e assertivas, em detrimento da adoção de comportamentos mais passivos, negligentes ou indiretamente incentivadores das agressões.

Nessa perspectiva, Attwood ( 2010) sublinha que o docente deve encorajar um sistema de amigos para atuarem como uma espécie de guardião da criança autista. Esse guardião deve ser responsável por relatar qualquer incidente, além de ser capaz de encorajar o autista alvo do bullying a contar o incidente e a dizer publicamente que a situação não é engraçada e que a provocação deve cessar. O autor reitera ainda que:

O monitor ou guardião deve ser uma criança socialmente informada, que consiga facilmente fazer a distinção entre actos amigáveis e não amigáveis e que saiba reagir de modo adequado. O guardião também pode ir em auxílio da criança com síndrome de Asperger em situações que os adultos achem difíceis de controlar. (ATTWOOD, 2010, p. 142-143).

Sá ( 2012) adverte que, para executar a tarefa de apoio e mediação junto aos colegas vítimas de bullying, o estudante com essa incumbência deve apresentar um perfil que tenha como principais caraterísticas a “maturidade, calma, ponderação, consideráveis capacidades de comunicação e persuasão, reconhecimento social por parte dos outros alunos, tarefa que, em certos casos, se reveste de grande dificuldade e complexidade para estes jovens” (SÁ, 2012, p. 248).

Além da formação dessa rede de apoio, uma das estratégias fundamentais para o processo de prevenção do bullying pode ser a introdução da discussão sobre esse fenômeno social, nesse caso, especialmente em relação aos autistas, no currículo das diversas áreas disciplinares. A discussão sobre o autismo em diversas disciplinas pode contribuir para formar no estudante as competências pessoais, relacionais e sociais indispensáveis para que este possa efetivamente enfrentar e saiba cabalmente solucionar os conflitos de forma mais empática, assertiva e construtiva.

Considerações finais

Os relatos autobiográficos de Williams e Grandin evidenciam uma série de situações de bullying vividas no ambiente escolar. Com efeito, as narrativas das autoras indicam que ambas foram vítimas de ofensas diretas verbais, na forma de gozações constantes, ridicularizações, uso de apelidos e nomes aviltantes. O bullying direto com manifestações físicas também foi uma realidade na vida das autoras, revelando um cenário de agressões e intimidação física, tendo como um dos algozes a própria professora. As agressões de caráter indireto foram reveladas nas narrativas autobiográficas especialmente quando as autoras contam sobre os momentos de solidão vividos na escola, expondo um quadro de isolamento social marcado pelo afastamento dos seus colegas de sala e pela percepção da própria solidão.

Nesse contexto, embora não seja possível determinar um elo de causalidade direto e simplista entre os fatores de risco e as ofensas exteriorizadas pelas crianças e jovens em relação aos estudantes com TEA no espaço escolar, podemos constatar algumas variáveis e características desses indivíduos que contribuíram fortemente para uma maior probabilidade da ocorrência de bullying. Assim, as narrativas autobiográficas permitiram-nos constatar que o comportamento “excêntrico” e, por vezes, incomum dos sujeitos autistas, além da dificuldade desses indivíduos em compreender o comportamento das pessoas, por meio da leitura de pistas sociais, podem ser fatores de risco importantes para agressões de ordem verbal e física.

Ademais, as dificuldades de comunicação das pessoas autistas em virtude das características da linguagem constituem-se como fatores de risco importantes para o bullying. À vista disso, as narrativas de Grandin e Williams revelam que as dificuldades no nível pragmático da linguagem (conversação), as ecolalias, a literalidade na interpretação das palavras, entre tantas outras características relacionadas à comunicação, foram motivo de deboches, ironias e gozações dos colegas em sala de aula. No entanto, não foram apenas as características inerentes ao quadro do autismo as únicas variáveis responsáveis pelo bullying, haja vista que a aparência pouco convencional de Grandin, quanto à forma de vestir-se, tornou-a vítima de chacotas e apelidos grotescos.

As narrativas autobiográficas permitiram-nos constatar que o comportamento violento, tanto com os colegas quanto com os professores, as autoagressões e a destruição de objetos da escola foram algumas das respostas às situações de constrangimento das quais Grandin e Williams eram vítimas frequentes. A reação ao bullying de maneira violenta e intempestiva só torna evidentes a angústia e a dor emocional experenciadas por elas no espaço escolar e, por conseguinte, torna vísiveis o despreparo e a insensibilidade da escola diante das situações frequentes de bullying.

Obviamente, a resolução para o bullying não está na cura milagrosa para o autismo ou ainda em métodos e abordagens cuja premissa é normalizar os estudantes autistas, tornando-os mais parecidos com as pessoas ditas “neurotípicas”. Pelo contrário, a resolução para essa problemática social, que vitimiza muitos desses estudantes, encontra-se numa mudança da própria instituição de ensino e na forma de lidar com essa questão tão complexa.

De fato, os depoimentos de Grandin e Williams desafiam a escola a tomar um novo posicionamento diante da dor e da humilhação sofridas pelos indivíduos autistas no ambiente escolar, um posicionamento que exige de todos os atores da instituição de ensino a adoção de uma postura mais humanitária e solidária, em detrimento de uma atitude indiferente diante desse fenômeno social. Outrossim, as escolas não devem ficar à espera de que a tão esperada solução para este tipo de dificuldades surja prescrita do seu exterior (seja da tutela, dos tribunais, das forças policiais ou de outros organismos) em forma, por exemplo, de receituário ou lei.

Nesse sentido, as instituições de ensino, ao abrir as suas portas para a inclusão dos estudantes com TEA e de tantos outros discentes com deficiência, devem buscar encontrar soluções para resolverem seus próprios problemas. Essas soluções passam necessariamente por um diagnóstico apurado das possíveis situações de bullying vividas por esses sujeitos, acompanhado de ações de mobilização, formação e sensibilização de todos os atores da instituição de ensino (professores regentes, professores de apoio, técnicos, alunos e familiares) para a causa do autismo.

O combate a esse sério e perverso fenômento intitulado bullying não pode se restringir apenas à sensibilização de toda a comunidade escolar, mas é preciso ser matéria de pauta em todas as disciplinas, configurando-se como parte essencial e preponderante do currículo escolar. Nesse contexto, algumas estratégias como a promoção da leitura e discussão de textos informativos ou autobiográficos que coloquem em destaque o testemunho de outros jovens autistas, além da exibição de filmes sobre essa temática podem, de alguma forma, contribuir para a construção de uma visão menos preconceituosa e estereotipada do autismo.

Por outro lado, prover formação para as equipes escolares e os estudantes pode não ser suficiente, pois muitas vezes o próprio educando com TEA não tem consciência de que as ações dos colegas são atos de provocação e bullying. Devido às dificuldades inerentes à Teoria da Mente, muitos desses estudantes não são capazes de identificar as motivações do agressor ou as razões para tamanha crueldade, além de não saber o que fazer e o que pensar nas situações em que é alvo do bullying.

Nesse caso, a escola pode utilizar recursos visuais, como o uso de histórias sociais, objetivando apresentar e descrever possíveis situações de bullying e como o estudante poderia reagir, comportar-se e pedir ajuda. Cabe ressaltar que as histórias sociais foram criadas por Carol Gray objetivando prover “informações sobre o que as pessoas, em uma determinada situação, estão fazendo, pensando ou sentindo, a sequência dos eventos, a identificação das pistas sociais significativas e seu significado e o roteiro do que fazer ou dizer” (SILVA; ARANTES; ELIAS, 2020, p. 4).

Como dissemos anteriormente, os estudantes com TEA precisam de orientação para entender os pensamentos e sentimentos da outra pessoa e o papel ou ações esperados numa situação em particular. Por conseguinte, para compreender que está sendo vítima de bullying, poderia ser utilizado um treino cognitivo deliberado, portanto, uma das estratégias interessantes é utilizar técnicas de dramatização ( role play) para que que o estudante autista adquira a habilidade de pensar no que deve fazer ou dizer em situações de perigo ou risco iminente de bullying. Nas dramatizações de situações de bullying, deve-se encorajar outros estudantes a participarem ativamente, para que tanto o estudante autista quanto os demais alunos possam refletir sobre esse fenômeno social.

Outra possibilidade de prevenção é o trabalho com as famílias dos estudantes com TEA e dos estudantes autores do bullying. Por certo, a intervenção junto às famílias dos estudantes autistas deve ser no sentido de promover o acolhimento e apresentar as estratégias ou o programa de intervenção da escola no sentido de dirimir o bullying. Ademais, algumas famílias podem ser parceiras nesse processo de prevenção, sobretudo participando de momentos coletivos de sensibilização e esclarecimento a respeito do autismo e dos impactos do bullying sobre a vida dos seus filhos.

Já as famílias dos estudantes autores do bullying também podem ser inseridas em um programa de prevenção, uma vez que muitas delas ainda têm uma compreensão do autismo pautada em estereótipos e ideias preconceituosas, o que pode acabar sendo reproduzido no próprio ambiente familiar, perpetuando a violência contra esses sujeitos. Sendo assim, participar de palestras na escola e ler as autobiografias dos próprios autistas pode ser uma maneira de desconstruir ideias cristalizadas e preconceituosas sobre o autismo.

No que diz respeito aos estudantes autores do bullying, há de se considerar que a violência direta ou indireta cometida contra um indivíduo autista tende a ter como pano de fundo o preconceito contra todos aqueles que não se encaixam dentro dos padrões de normalidade preestabelecidos pela sociedade. Para Antunes e Zuin ( 2008, p. 36), o conceito de bullying se aproxima do conceito de preconceito “principalmente quando se reflete sobre os fatores sociais que determinam os grupos-alvo, e sobre os indicativos da função psíquica para aqueles considerados agressores”.

Nessa perspectiva, atos de violência como chutar, apelidar, discriminar e excluir, como vemos no discurso de Grandin e Williams, podem representar uma tipologia de violência que desvela um preconceito contra a forma do sujeito autista ser e estar no mundo, preconceito contra àquele que foge do que é considerado pela sociedade um indivíduo “ideal”. Em consonância com Amaral ( 1998), entendemos o preconceito como filtros de nossa percepção que colorem o olhar, modulam o ouvir e modelam o tocar, fazendo com que não percebamos a totalidade do que se encontra à nossa frente.

Por fim, acreditamos que a análise autobiográfica das obras Uma menina estranha: autobiografia de uma autista e Meu mundo misterioso: testemunho excepcional de uma jovem autista contribui, em nosso entender, para uma compreensão mais abrangente e aprofundada do fenômeno do bullying em relação aos estudantes com TEA, além de poder subsidiar a construção ou elaboração de projetos de prevenção e intervenção nas situações de violência contra sujeitos em situação de vulnerabilidade, como é o caso do estudante autista.

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Recebido: 23 de Abril de 2021; Revisado: 09 de Maio de 2022; Aceito: 20 de Junho de 2022

Contato: anaflavia1973@ufg.br

Contato: carlo.schmidt@ufsm.br

Editora responsável:

Profa. Dra. Cássia Geciauskas Sofiato

Ana Flávia Teodoro de Mendonça Oliveira

é graduada em fonoaudiologia com especialização em educação infantil pela Universidade Federal de Goiás (UFG), mestra e doutora em educação pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), professora da Faculdade de Educação (FE) da UFG e coordenadora do núcleo de acessibilidade na unidade.

Carlo Schmidt

é psicólogo, professor do Departamento de Educação Especial e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), editor-chefe da Revista Educação Especial (UFSM) e coordenador do Fórum de Editores de Periódicos em Educação da Região Sul, pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped).

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